Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1054/05.9TBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: INDIGNIDADE SUCESSÓRIA
INCAPACIDADE SUCESSÓRIA
TESTAMENTO
OCULTAÇÃO
Data do Acordão: 10/26/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.2033º, 2034º, 2036º, 2166º, 2209º CC
Sumário: 1. A ocultação do testamento, como causa possível da declaração de indignidade sucessória, prevista no art. 2034º d) do CC, radica na omissão do dever de apresentação do testamento ao notário, em cuja área o documento se encontre, dentro de três dias contados desde o conhecimento do falecimento do testador, por parte da pessoa que o tem em seu poder, conforme prescreve o art. 2209º nº2 CC.

2. Não juntar um testamento ao processo de inventário não consubstancia, por si só, ocultação dolosa desse mesmo testamento, sobretudo quando esse testamento foi expressamente revogado por um testamento posterior, cuja existência não é posta em causa.

3. Negar que um testamento tenha sido outorgado na residência de uma beneficiária desse testamento não comporta, por si só, ocultação dolosa desse mesmo testamento.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I.RELATÓRIO

1. P (…), casado, reformado, residente na (…) em Coimbra, propôs contra M (…), casada, residente (…), Porto, acção declarativa sob a forma ordinária, pedindo a declaração, por indignidade, da incapacidade sucessória da Ré e o seu afastamento da sucessão à herança de C (…), nos termos do disposto nas alíneas c) ou d) do artigo 2034º do C.C.

Fundamentou tal pedido alegando que a Ré coagiu na realização ou ocultou dolosamente a existência do 10° testamento efectuado pela falecida C (…)em casa da Ré, com a finalidade de obter um benefício patrimonial que de outra forma não conseguiria.

Contestou a Ré, alegando, para além de invocar as excepções do caso julgado e da caducidade, que o testamento em causa foi revogado por outros posteriores, que o autor não impugnou, pelo que os factos alegados por este teriam de ser dirigidos aos testamentos que conduziram à partilha e não ao que veio a ser revogado.

Impugna a matéria alegada quanto à interpretação do testamento e quanto ao alegado facto da ocultação do mesmo.

Termina pedindo a improcedência da acção e a condenação do autor como litigante de má fé.

O Autor respondeu, mantendo a posição assumida na petição inicial.

As partes juntaram com os respectivos articulados vasta documentação, tendo o Autor, a fls. 223, procedido ainda à junção de um parecer/consulta da autoria do Doutor J.P.Remédio Marques, professor assistente da Faculdade de Direito de Coimbra.

Foi proferido despacho saneador que, entre o mais, julgou improcedente a excepção de caso julgado e remeteu para a decisão final a apreciação da excepção de caducidade, também invocada pela Ré.

Realizou-se o julgamento, vindo a final a ser proferida sentença, que, julgando totalmente improcedente a acção, absolveu a Ré dos pedidos contra ela formulados.

2. Não se conformando com a decisão que julgou improcedente a excepção do caso julgado, e julgou legítimas as partes, dela veio a agravar a Ré, apresentando com as suas alegações as seguintes conclusões:

            “1ª: - Porque o Recorrido não alegou qualquer facto que integre o interesse na procedência da acção;

2ª: - Porque o Julgador só pode servir-se dos factos articulados e dos que, resultando da discussão e julgamento, deles sejam instrumentais e complementares e

3ª: - porque estes pressupõem obrigatoriamente a alegação dos essenciais, sem os quais não tem relevância jurídica;

4ª: - Porque os documentos não são factos mas apenas meios de prova, só podendo ser considerados para comprovarem os que tenham sido articulados, não os substituindo nem deles prescindindo;

5ª: deve o Recorrido ser julgado parte ilegítima por falta de interesse directo em demandar, nos termos do art.º 26 do Cod de Proc. Civil, excepção do conhecimento oficioso.


Quando assim Vossas Excelências não entendam

5ª: - Porque se verifica identidade das partes, do pedido e da causa de pedir entre esta acção e o inventário que corre termos por óbito da testadora deve ser julgada procedente a excepção de caso julgado porquanto

6ª: - o Recorrido é parte nesse inventário por ser legatário de uma pensão imposta pela testadora a um herdeiro,

7ª: - nele tendo sido suscitado, tal como neste processo, a questão de a testadora ter expresso ou não a sua vontade real no testamento e

8ª: - peticionando que fosse declarado que a Recorrente não fosse legatária de um dos legados e

9ª: - porque a identidade de pedidos não depende da sua amplitude

10ª: - a Decisão proferida no inventário de no testamento a testadora ter expresso a sua vontade real vincula-o nos termos do disposto no art.º 1336 do Cod. de Proc. Civil.

A Decisão em crise viola por erro de interpretação e aplicação o disposto nos art.s 497 e 498 do Cod de Proc. Civil pelo que deve ser a Recorrente absolvida do pedido como é de Justiça”.

O agravado não apresentou, tempestivamente, contra-alegações.

3. Também inconformado com a decisão final, dela interpôs o Autor recurso de apelação para este Tribunal da Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:

“1- O Tribunal a quo não fez uma análise crítica das provas, não especificou os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador, e relativamente a alguns factos nem sequer apresentou qualquer fundamentação;

2. O Tribunal a quo não fez uma análise crítica das provas, no que diz respeito aos factos vertidos no quesito 1º;

3. Analisados criticamente os 12 testamentos outorgados pela (…), e juntos pelo Autor (ora Recorrente) na sua P.I., resulta que apenas no décimo testamento o Notário regista a seguinte expressão: “Assim, o disse, tendo-me apresentado por escrito as presentes disposições, que me declarou verbalmente e confirmou assim querer”, pelo que a Meritíssima Juíza deveria ter dado como Provado o 1º quesito;

4. O Tribunal a quo não especificou os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção relativamente aos factos vertidos nos quesitos 6º e 9º;

5. O Tribunal a quo não fundamentou o porquê de dar como provado os factos vertidos no quesito 21º:

6. Toda a fundamentação apresentada na resposta à Matéria de Facto é exclusivamente respeitante às respostas dadas aos quesitos 4º, 10º, 24º, 25º e 27º, sendo que, apesar disso, a Meritíssima Juíza não faz qualquer correspondência entre a fundamentação e os respectivos quesitos cuja resposta positiva ou negativa visa fundamentar;

7. O Tribunal a quo não fundamentou o porquê de dar como não provados os factos vertidos nos quesitos 2°, 3º, 5°, 8º, 11º, 12º, 14º, 17º, 18º, 19º, 20º, 22º, 22ºA e 28º;

8. A Sentença recorrida não pode deixar de fazer um “exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer”, nos termos e para os efeitos do n° 2 do art. 659.° do Código de Processo Civil – O QUE NÃO SE VERIFICOU NO CASO EM APREÇO.

9. A decisão recorrida não apresenta os fundamentos quer de facto que a sustentam, pelo que será nula nos termos do artigo 668.°, n.° l, al. b), do CPC.

10. A sentença recorrida não assegura o cumprimento do dever constitucional de fundamentação das decisões judiciais – previsto no nº. 1 do art. 205.º da Constituição da República Portuguesa.

11. A douta Sentença Recorrida, na parte da fundamentação, limita-se a enumerar os factos que considera como provados, sem qualquer argumento, raciocínio e/ou fundamento;

12. Relativamente à alínea h) da fundamentação nem sequer perceber que factos é que são dados como provados pelo Tribunal a quo, uma vez que o mesmo se limita a reproduzir a transcrição de fls. 406 e 407.

13. Relativamente à parte da Sentença a quo assinalada como “Do Direito”, a Meritíssima Juíza faz uma súmula do que dispõe o nossos sistema jurídico quanto ao instituto da Indignidade e da capacidade sucessória, mas na boa verdade não aplica as normas que menciona ao caso em concreto.

14. A sentença é omissa quanto a factos objectivos que resultam do processo, os quais a serem considerados levariam a uma decisão diferente:

15. A prova produzida em sede de julgamento, e prova documental junta aos autos, e da prova documental junta aos autos, a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo deveria, para além dos factos que deu como provados, dar como provados, ainda, os outros factos;

16. Deveria ter dado como provado os seguintes factos:

a) “O 10° testamento, é o único em que a (…) lega expressamente à M (…), ora Ré, os 50% que detém nos dois prédios da Av. ....com os nºs 62 e 63.” – Correspondente ao quesito 2°;

b) “O 10º testamento é o único em que a (…) “instituiu a ora Ré como única usufrutuária e de forma automática.”

c) Até ao 10º testamento (…) apenas institui a ora Ré como usufrutuária no caso, e só no caso, de sua irmã (…), mostrar carenciada economicamente”.

d) “Sem que para tal necessitasse de cábula”.

e) Até ao 10º testamento (do 1º ao 9º testamento), a Testadora sempre legou à Ré apenas 50% de um dos prédios, com o n° 61 e 63 da Avenida .... ....em Coimbra e não 50% de dois prédios.

f) “Numa acção de prestação de contas (Processo n° 366/2001 que correu termos na 2ª Secção das Varas Mistas de Coimbra) e durante uma audiência gravada o marido da ora Ré – (…) negou a existência deste 10º testamento, ou de qualquer outro efectuado na sua residência”. – Correspondente ao quesito 9°;

g) Em 8 de Maio de 2002 (…), mandatário da Ré, para prova de que nenhum testamento tinha sido feito na casa dele e da Ré, requereu no processo de prestação de contas, a junção de 11 testamentos feitos após 1962, em que o único testamento que falta é precisamente o 10º testamento, o testamento feito em casa da Ré – corresponde ao quesito 14.

h) O Autor, ora Recorrente, só tomou conhecimento do 10º testamento quando pediu ao Tribunal de Coimbra as sete cassetes que contém a gravação das duas sessões de julgamento referentes ao processo n° 366/2001 que correu termos na 2ª Secção das Varas Mistas de Coimbra - correspondente ao quesito 18;

i) O Despacho que ordenou a entrega das referidas cassetes está datado de 7/12/2004 – correspondente ao quesito 19;

j) O Autor só teve a certeza absoluta da existência desse 10° testamento quando foi à Secretaria Notarial do Porto requisitar uma Certidão da mesma – correspondente ao quesito 20.

K) Quando o mandatário da Ré negou que a (…) tivesse feito qualquer testamento na casa da sua Constituinte, a mesma encontrava-se sentada imediatamente ao lado daquele.

l) À data daquela negação por parte do seu mandatário a Ré sabia que a (…) tinha feito um testamento na sua casa.

m) No momento em que o seu representante legal fez tal afirmação (negar a feitura de qualquer testamento em sua casa), a Ré, apesar de estar sentada ao seu lado, nada fez ou disse para evitar, impedir ou corrigir a afirmação feita pelo seu Mandatário.

n) A Ré, ora Recorrida, apesar de estar sentada imediatamente ao lado do seu mandatário, nada fez e até teve uma atitude de conivência com o seu advogado quando o mesmo afirmou que na casa da ré nenhum testamento foi feito pela (…).

17. O Tribunal a quo ao ter dado como provado e ao ter dado como reproduzido, na Douta Sentença da qual se recorre, a transcrição constante de fls. 406 e 407 dos presentes autos referente ao depoimento de (…) no processo n° 366/2001 da 2ª Vara Mista de Coimbra, deveria, ter dado como provado que ”(…), na qualidade de Mandatário constituído da Ré, ora Recorrida, negou a existência de qualquer testamento feito em sua casa e em casa da sua constituinte por parte da (…)”.

18. E, em consequência, deveria, relativamente a estes factos aplicar as respectivas normas de direito, mormente, as normas previstas no Código Deontológico da Ordem dos Advogados – o que efectivamente não fez.

19. E, deveria ter dado como provado, nos termos do Código Deontológico da Ordem dos Advogados, que a afirmação feita pelo mandatário da Ré, em sua representação, feita e da forma e nas circunstâncias em que foi feita, é como se fosse a própria Ré a fazê-la!

20. Todos os factos afirmados ou negados pelo advogado em representação do seu constituinte em sede de julgamento ou qualquer outra diligência devem ser reportados a este último (constituinte);

21. O advogado da Ré ao ter feito a afirmação em causa – que na casa da sua constituinte a (…) não fez qualquer testamento – fê-lo por instruções precisas da Ré, sua constituinte, nesse sentido,

22. Pois nenhum advogado, diz-nos a voz da experiência, afirma, sem antes consultar o seu constituinte, que determinado facto é verdadeiro ou falso, sob pena de não estar a defender correcta e cabalmente os interesses daquele.

23. A Ré, ora Recorrida, ao ouvir o seu mandatário, em pleno julgamento, fazer uma afirmação falsa, relativamente a um facto de que ela tinha conhecimento directo, e que sabia que era falso,

24. E ao não ter tomado qualquer atitude para o evitar ou corrigir – só à mesma deve ser imputado o domínio e a responsabilidade de tal facto.

25. Se o Tribunal a quo tivesse feito uma análise crítica de todos os meios de prova existentes, dos depoimentos das testemunhas, das declarações da própria Ré, se tivesse aplicado as normas que constam da O.A., teria, certamente, proferido uma decisão bem diferente da que proferiu, tendo concluído que a ocultação do 10º testamento foi perpetrada pela Ré, declarando, consequentemente, incapacidade sucessória da Ré, por indignidade, determinando que a mesma fosse afastada da sucessão à herança da sua tia (…), nos termos do art. 2034°, alínea d) do C.C.

NORMAS VIOLADAS:

a) Art. 653º, nº 2 e art. 659º ambos do C.P.C.

b) Art. 668º, nº1, alínea b) do C.P.C.

c) Art. 205º, nº1 da C.R.P.

d) Estatuto da Ordem dos Advogados.

e) Arts. 83º, nº2 e 92º, nº1 do E.O.A.

f) Arts. 76º, nº1, 78º, alínea a) e b), art. 87º, nº2 do E.O.A”.

Termina, pedindo a revogação da sentença recorrida e substituição por outra que declare a incapacidade sucessória da Ré, por indignidade, determinando-se que a mesma seja afastada da sucessão à herança da sua tia (…), nos termos do artigo 2034º, alínea d) do Código Civil, ou, caso assim se não entenda, que a mesma sentença seja declarada nula, nos termos do disposto nos artigos 668º e 623º do Código de Processo Civil.

A apelada contra-alegou, defendendo a manutenção da decisão recorrida.

Manifestou, entretanto, que continua a ter interesse no agravo interposto.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO

A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras[1], importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito[2].

B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar fundamentalmente:

B.1. Agravo:

- Ilegitimidade do Autor;

- Caso julgado.

B.2. Apelação:

- Nulidades da sentença;

- Erro na apreciação da matéria de facto.

B.3. Determina o artigo 690º-A, nº1 do Código de Processo Civil:

“1. Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”.

O apelante veio impugnar a matéria de facto contida dos artigos 1º, 2º, 3º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 11º, 12º, 14º, 17º, 18º, 19º, 20º, 21º, 22º, 22º-A e 28º da base instrutória.

Todavia, e não obstante o imperativo constante da alínea b) do citado preceito, o apelante apenas em relação à matéria dos artigos 1º, 3º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 14º, 18º, 19º e 20º da base instrutória, que considera incorrectamente apreciados pela primeira instância, cumpriu aquele imperativo legal, indicando, ainda que em alguns casos de forma incipiente, os concretos meios de prova que, no seu entender, justificavam decisão diversa.

Deste modo, ao abrigo do preceito legal em causa, impõe-se a rejeição do recurso quanto ao segmento da impugnação do julgamento da matéria de facto em que não foram indicados os meios de prova pelo recorrente fundamentadores da sua discordância, ou seja, da matéria contida nos artigos 2º, 11º, 12º, 17º, 21º, 22º, 22º-A e 28º, prosseguindo o recurso para apreciação da demais matéria impugnada[3].

 

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Foram os seguintes os factos julgados provados pela primeira instância:

A) C (…), tia materna quer do Autor quer da Ré, faleceu com a idade de 90 anos, em 17 de Novembro de 1998.

B) Aquela, em vida fez 12 testamentos conhecidos.

C) Em 18 de Fevereiro de 1997, C (…), faz o seu 10° testamento, em casa da ora ré — M (…) – na Rua (…) Porto, uma vez que era lá que a autora da herança residia.

D) Pelo que, o Notário teve que se deslocar àquela residência.

E) Foram testemunhas desse acto: (…) e (…).

F) No testamento em causa, o notário tez constar que: “Assim, o disse, tendo-me me apresentado por escrito as presentes disposições, que me declarou verbalmente e confirmou assim querer”.

G) A C (…) deslocou-se a Coimbra em 11/12/1997, menos de dez meses do anterior testamento, para em Cartório Notarial fazer novo testamento.

H) Resulta da transcrição constante de fls. 406 e 407 destes autos, que se dá por reproduzida, e, referente ao depoimento de (…), no processo n°. 366/2001 da 2ª secção desta Vara Mista:

 (…)

I) A autora da Herança não tinha qualquer tipo de relação com as testemunhas que intervieram no 10º testamento.

J) O Dr. (…) na referida acção de prestação de contas, requereu a concessão de prazo, para apresentar os vários testamentos feitos pela (…)o longo da sua vida.

K) O 11° testamento, feito em Dezembro de 1997, refere expressamente que este revoga o anterior, o feito a l8 de Fevereiro de 1997.

L) A Testadora 10 meses mais tarde da feitura do 10° Testamento, fez mais dois testamentos.

M) A R. deu de arrendamento ao autor o rés-do-chão, primeiro andar e águas furtadas da casa com o n°. de polícia 62 da Avenida ....

N) No testamento outorgado em 21 de Julho de 1998 consta que foi outorgado por minuta.

O) Desde o falecimento da irmã (…), que a testadora passava o Natal em casa da R., com seu marido e (…) e depois só com esta.

P) Chegavam na 1ª quinzena de Dezembro e permaneciam até aos l°s dias de Janeiro.

Q) A testadora (…) era pessoa de personalidade forte que manteve até falecer.

R) Na Páscoa, após o falecimento do marido, passavam a quinzena que precedia ou se seguia a 23 de Março, aniversário da (…) em casa da Ré.

IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

De acordo com o disposto no artigo 710º, nº1 do Código de Processo Civil, “a apelação e os agravos que com ela tenham subido são julgados pela ordem da sua interposição, mas os agravos interpostos pelo apelado que interessem à decisão da causa só são apreciados se a sentença não for confirmada”.

Importa, assim, conhecer desde já o objecto da apelação:

            A. Nulidades da sentença

Balizada pelas conclusões das suas alegações, a censura à decisão recorrida centra-se, além do mais, no vício da nulidade da sentença, arguido pelo apelantes, por, em seu entender, ter sido violado o artigo 668º, nº1, b) do Código de Processo Civil.

            Usando da faculdade prevista no nº 4 do artigo 668º do Código de Processo Civil, a Sr.ª. Juiz da primeira instância, tomando posição quanto à invocada nulidade da sentença, pronunciou-se no sentido da inexistência do invocado vício.

            Cumpre, por isso, em sede de recurso, apreciar a questão colocada em debate, começando a análise sobre a invocada nulidade da sentença.

            O nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil prevê os vários casos de nulidade que podem afectar a sentença, determinando que “é nula a sentença:

            a) Quando não contenha a assinatura do juiz;

            b) Quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

            c) Quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão;

            d) Quando o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

            e) Quando condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido”.

            O nº1 do artigo 668º do Código de Processo Civil contém uma enumeração taxativa das causas de nulidade da sentença[4], nelas não se inserindo o designado erro de julgamento, que apenas pode ser atacado por via de recurso, quando o mesmo for legalmente admissível[5].

            Importa, assim, indagar se existe o vício reclamado pelo apelante, plasmado na citada alínea b) do nº1 do artigo 668º do Código de Processo Civil.   

            Diz ele respeito à omissão de fundamentação, quer de facto, quer de direito, da sentença. Como esclarecem, a propósito, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora[6]: “para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta embora esta se possa referir aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito.

            (…) Para que haja falta de fundamentação, como causa de nulidade da sentença, torna-se necessário que o juiz não concretize os factos que considera provados e coloca na base da decisão.

            Relativamente aos fundamentos de direito, dois pontos importa salientar.

            Por um lado, o julgador não tem que analisar todas as razões jurídicas que cada uma das partes invoque em abono das suas posições, embora lhe incumba resolver todas as questões suscitadas pelas partes: a fundamentação da sentença contenta-se com a indicação das razões jurídicas que servem de apoio a solução adoptada pelo julgador.

            Por outro lado, não é indispensável, conquanto seja de toda a conveniência, que na sentença se especifiquem as disposições legais que fundamentam a decisão; essencial é que se mencionem os princípios, as regras, as normas em que a sentença se apoia”[7].

            Importa ainda reter que “da falta absoluta de motivação jurídica ou factual -  única que a lei considera como causa de nulidade —há que distinguir a fundamentação errada, pois esta, contendendo apenas com o valor lógico da sentença, sujeita-a a alteração ou revogação em recurso, mas não produz nulidade”[8].

            O dever de fundamentação da sentença, imposto pelo artigo 659º do Código de Processo Civil, não se confunde com o dever de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto exigido pelo nº 2 do artigo 653º do mesmo diploma legal.

            O primeiro caso reporta-se à necessidade de motivação da própria sentença e abrange o dever de fundamentação quer de facto, quer de direito, devendo a sentença conter os factos julgados provados e sobre eles fazer incidir as normas legais aplicáveis, que indicará e interpretará.

            Como esclarece Teixeira de Sousa[9] “esta causa de nulidade verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido (e, por isso, não comete, nesse âmbito, qualquer omissão de pronúncia), mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. Nesta hipótese, o tribunal viola o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais (art. 208º, n.º 1, CRP; art. 158º, n.º 1)”, acrescentando ainda: “o dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo (...) e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (...); a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível”.

            O segundo reconduz-se à motivação do julgamento de facto, pressupondo a análise crítica das provas e dos fundamentos que conduziram à convicção do julgador.

            A falta de motivação da decisão da matéria de facto, nos termos impostos pelo citado nº 2 do artigo 653º do Código de Processo Civil, não acarreta nulidade da sentença, designadamente ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 668º do mesmo diploma legal, sendo apenas susceptível de desencadear o mecanismo previsto no nº5 do artigo 712º, quando a baixa do processo à primeira instância seja requerida por alguma das partes[10], condicionalismo que, no caso, não se verifica.

            Assim, ainda que a decisão da matéria de facto comportasse falta de motivação nos termos exigidos pelo nº 2 do artigo 653º do Código de Processo Civil, esse vício nunca seria determinante da nulidade da sentença e da consequente anulação do julgamento.

            Diga-se, de todo o modo, que não sendo modelar a decisão que julgou a matéria de facto, a mesma, indicando os meios probatórios determinantes da convicção do julgador e a respectiva razão de ciência, responde de forma satisfatória às exigências decorrentes do nº 2 do artigo 653º do Código de Processo Civil.

            Analisando a sentença recorrida, verifica-se que a mesma cumpre o dever de fundamentação requerido pelo artigo 659º do Código de Processo Civil: enumera os factos provados, indica as normas legais aplicáveis ao caso, e explicita o raciocínio jurídico que conduziu à decisão proferida.

Não padece, pois, de qualquer vício de falta de fundamentação que possa originar a nulidade invocada pelo apelante.



B. Erro na apreciação da matéria de facto

(…)

Assim se conclui ter a primeira instância apreciado correctamente a matéria submetida a julgamento, não havendo razão para proceder à sua modificação.

C. Da existência ou não da reclamada indignidade

Fixada a matéria de facto, importa, finalmente, indagar se da mesma se retira, em relação à apelada, a existência de factos passíveis de integrarem uma situação de indignidade, susceptível de afectar a sua capacidade sucessória em relação à herança aberta por óbito da testadora C (…)

A capacidade sucessória consiste, como refere a decisão recorrida, “na idoneidade para ser destinatário de uma vocação sucessória, da aptidão para ser chamado a suceder como herdeiro ou como legatário”, encontrando-se o seu princípio geral enunciado no artigo 2033º do Código Civil.

A lei qualifica a indignidade como incapacidade sucessória, como se percebe pela inserção sistemática dos artigos 2034º a 2038º do Código Civil e pelo uso da expressão “carecem de capacidade sucessória, por motivo de indignidade” do corpo do artigo 2034º do referido diploma, mas que Oliveira Ascensão[11] prefere tratar como ilegitimidade sucessória passiva.

À incapacidade sucessória – ou ilegitimidade sucessória passiva, na terminologia adoptada por Oliveira Ascensão - determinada por indignidade referem-se os artigos 2034º e seguintes do Código Civil, elencando o primeiro daqueles preceitos as causas que podem conduzir àquela incapacidade, que não se confunde com a figura da deserdação, prevista no artigo 2166º do Código Civil, que admite a privação do direito à legítima por determinação da vontade do autor da herança.

O artigo 2034º do Código Civil contempla diversas situações de indignidade que, a verificarem-se, poderão afastar o indigno da vocação sucessória: “as indignidades são situações em que, a um acto ilícito de um sucessível, praticado contra o autor da sucessão, a lei reage estabelecendo como sanção o seu afastamento da sucessão. Muitas vezes, com a sanção da indignidade procura-se também evitar que o acto ilícito se torne lucrativo para aquele que o praticou”[12].

O ora apelante propôs acção declarativa comum contra a apelada, beneficiária em sucessivos testamentos outorgados por sua tia C (…)e cabeça-de-casal no inventário aberto por óbito da testadora, pretendendo que judicialmente se reconheça ter a Ré praticado actos susceptíveis de integrarem situação de indignidade prevista no aludido artigo 2034º do Código Civil e que a mesma seja afastada da sucessão àquela herança.

Embora fosse intenção do autor do projecto do Código Civil conferir carácter automático à actuação da indignidade, as sucessivas revisões ministeriais e a introdução do artigo 2036º do Código Civil, a exigir uma acção de declaração de indignidade, afastam esse carácter automático.

Na acção para o efeito proposta pelo apelante, invoca este, como causa de pedir para a pretensão formulada, coacção exercida pela demandada sobre a tia de ambos nas disposições contidas no 10º testamento, no sentido de nele ser beneficiada em relação aos demais legatários, incluindo o próprio recorrente, e ainda a circunstância de ter a mesma e o marido ocultado a existência do referido testamento, o que indicia a existência da invocada coacção e aproveitamento do facto por parte da recorrida, factualismo passível de integração nas alíneas c) e d) do referido artigo 2034º.

Quanto à invocada coacção, nenhum facto concreto indicador dessa interferência na vontade da testadora foi comprovado, sendo que era ao autor que incumbia essa demonstração, como decorre do artigo 342º, nº1 do Código Civil.

Saliente-se, de resto, que a testadora não era pessoa psicologicamente frágil, dependente de terceiros, ou por eles influenciável, pois, tal como se apurou em julgamento, “era pessoa de personalidade forte, que manteve até falecer”. Nunca a sua lucidez ou capacidades cognitivas foram questionadas, tudo indicando, pelo contrário, que sabia muito bem o que queria, e sempre agiu motivada pela preocupação de garantir, após a sua morte, um futuro estável e seguro para a sua sobrinha e afilhada, (…)

Quanto à invocada ocultação do 10º testamento: essa “ocultação” traduz-se, no entender do apelante, no facto de a apelada e o seu marido – que não é parte na acção declarativa por aquele instaurada – terem negado a existência do 10º testamento, outorgado em casa da Ré, com o propósito de obter um benefício patrimonial que de outro modo não conseguiriam.

Não deixa de existir uma certa contradição entre as razões invocadas pelo apelante como justificativas da declaração de indignidade da apelada que requer: por um lado, sustenta ter a mesma coagido a autora da herança, no 10º testamento por ela outorgado, a beneficiá-la nas disposições contidas naquele testamento, e seguidamente imputa-se-lhe a ocultação desse testamento – precisamente aquele que, na perspectiva do recorrente, conferia maiores vantagens patrimoniais à recorrida.

De todo o modo, não se trata de uma qualquer ocultação a exigida pela alínea d) do artigo 2034º do Código Civil: essa ocultação terá, antes de mais, de ser dolosa.

Não juntar um testamento ao processo de inventário não consubstancia, por si só, ocultação dolosa desse mesmo testamento, sobretudo, como no caso em apreço, quando esse testamento foi expressamente revogado por um testamento posterior, cuja existência não é posta em causa.

Negar que um testamento tenha sido outorgado na residência de uma beneficiária desse testamento – negação manifestada pelo marido e mandatário da Ré, durante a instância a uma testemunha em julgamento de processo judicial – não comporta, por si só, ocultação dolosa desse mesmo testamento (tanto mais se quem nega o facto não estava presente quando o mesmo ocorreu, achando-se então no estrangeiro).

De todo o modo, e esta é a questão fulcral, a previsão da alínea d) do artigo 2034º do Código Civil tem de ser compatibilizada com a norma contida no artigo 2209º, nº2 do mesmo diploma legal, que dispõe: “a pessoa que tiver em seu poder o testamento é obrigada a apresentá-lo ao notário em cuja área o documento se encontre, dentro de três dias contados desde o conhecimento do falecimento do testador; se o não fizer, incorre em responsabilidade pelos danos a que der causa, sem prejuízo da sanção especial da alínea d) do artigo 2034º”.

Ora, é na omissão desse dever que se traduz a ocultação que a alínea d) do artigo 2034º do Código Civil aponta como causa possível para a declaração de indignidade em relação ao autor do acto omitido.

Tal situação não se configura nos autos, não tendo, sequer sido alegada pelo Autor da acção.
Foi, deste modo, acertadamente decidida a improcedência da acção, por inexistência de qualquer situação de indignidade que justifique o afastamento da Ré da sucessão na herança aberta por óbito de sua tia, a testadora C (…).

*
Do agravo:
Em face do que dispõe o nº1 do artigo 710º do Código de Processo Civil, a que já se aludiu, e perante a improcedência da apelação e consequente confirmação da decisão recorrida, não se conhece do objecto do agravo interposto pela apelada.

*

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em:

- Julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida;

- Não conhecer do agravo, em virtude dessa mesma confirmação.

Custas: pelo apelante.


Judite Pires ( Relator )
Carlos Gil
Fonte Ramos


[1] Artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do C.P.C., na redacção anterior à introduzida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 4 de Agosto.
[2] Artigo 664º do mesmo diploma.
[3]Neste sentido, cf. Abrantes Geraldes, ob. cit. págs. 146, 147.
[4] Cf. Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil anotado”, vol. V, pág. 137.
[5] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., pág. 686.
[6] “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., pág. 687 e segs.
[7] Cf. em idêntico sentido, Acórdão STJ de 19/03/02, “Rev. nº 537/02-2ª sec., Sumários, 03/02”; Acórdão Relação de Coimbra de 16/5/2000, www.dgsi.pt; Acórdão STJ de 13/01/00, “Sumários, 37-34”; Acórdão Relação Lisboa, de 01/07/99, BMJ 489-396.
[8] Anselmo de Castro, “Direito Processual Civil Declaratório”, vol. III, pág. 141.
[9]Estudos Sobre o Processo Civil”, pág. 221.
[10] Cf. Lebre de Freitas, ob. cit., pág. 628, Lopes do Rego, “Comentários ao Código de Processo Civil”, pág. 434, Acórdão desta Relação, de 11.01.2005, processo nº 1862/04 e de 07.09.2010, www.dgsi.pt.
[11] “Sucessões”, pág. 149.
[12] Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 146.