Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
162/08.9GBCVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE DIAS
Descritores: DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
NULIDADE POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
LIVRE CONVICÇÃO DO JULGADOR
Data do Acordão: 06/16/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA COVILHÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: 153º,180º E 181º CP; 127º, 374º, Nº2, 412º 426º,428º,431º, 379º DO CPP
Sumário: 1.A apreciação da prova consagrada na lei (artigo 127º do CPP), não é uma apreciação arbitrária, antes tendo como pressupostos valorativos os critérios da experiência comum e da lógica do homem médio supostos pela ordem jurídica.
2. O princípio da livre apreciação da prova está intimamente ligado à obrigatoriedade de motivação ou fundamentação fáctica das sentenças criminais, com consagração expressa no art. 374°/2 do Código de Processo Penal.
3.A atribuição de credibilidade ou não a uma fonte de prova por declarações assenta numa opção motivável do julgador na base da sua imediação e oralidade que o tribunal de recurso só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum.
4.Quando dos depoimentos resultam duas versões dos factos, divergentes uma da outra, não pode aceitar-se uma e afastar outra, sem uma explicação/justificação plausível e coerente o que, inexistindo, constitui violação do estatuído no art. 374 nº 2 do CPP
Decisão Texto Integral: 17
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra, Secção Criminal.
No processo supra identificado foi proferida sentença que julgou procedente a pronúncia deduzida contra o arguido:
GL divorciado, empresário, nascido a 13/…/1959, em Castelo Branco, filho de A e de M residente em….. - Castelo Branco.
Sendo decidido:
Julgar as acusações provadas e procedentes e, em consequência:
Condenar o arguido pela prática de um crime de ameaça, p. p. pelo art.153 nº 1 do CP na pena de 50 dias de multa.
Condenar o arguido pela prática do crime de injúria p. e p. pelo art.181 do CP na pena de 50 (cinquienta) dias de multa.
Efectuando o cúmulo jurídico, vai o arguido condenado na pena única de 70 dias de multa à taxa diária de € 6,00 (seis), o que perfaz o montante global de €420,00.
Quanto ao pedido de indemnização cível, julgá-lo totalmente procedente e em consequência:
Condenar o demandado GL a pagar à demandante R a quantia de €700,00 (setecentos euros) a título de danos não patrimoniais.
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Inconformado interpôs recurso, o arguido.
São do seguinte teor as conclusões, formuladas na motivação do seu recurso, e que delimitam o objecto do mesmo:
1-O presente recurso tem por objecto a Sentença, proferida pelo Tribunal Judicial da Covilhã no processo em epígrafe mencionado, que julgou provadas as acusações, pública e particular, deduzidas contra o ora Recorrente e, em consequência, decidiu condená-lo pela prática de um crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153, n.º 1 do Código Penal, e de um crime de injúria previsto e punido pelo artigo 181 do mesmo diploma legal, condenando-o na pena única de 70 dias de multa à taxa diária de 6,OO€.
2-A sentença proferida tem subjacente uma errada apreciação da prova testemunhal produzida em audiência e uma errada apreciação da prova documental carreada para os autos.
3 - O Tribunal fundou a sua convicção no teor do documento de fls. 81 e ss e nos depoimentos do arguido, da assistente e das testemunhas ouvidas na audiência de julgamento, nomeadamente nas testemunhas A.
4 - Sucede que, quer face à prova documental, quer face à prova testemunhal produzida em sede de audiência, não se afigura correcto o entendimento do Tribunal em dar como provados os pontos 1, 2 e 3 da fundamentação de facto da sentença.
5- Deu-se como provado no pontos 1 da matéria de facto que: "1 - No dia 23/07/2008, cerca das 11:00 horas, junto à antiga fábrica J.. P.., sita no lugar das P.., nesta cidade da Covilhã, após breve discussão, o arguido GL dirigiu-se a R dizendo: Tire daí as patas. Quem entrar parto-lhe as patas. Quem entrar fica lá".
6 - Porém, do depoimento do arguido, ora Recorrente (registado no CD, na sessão de julgamento de 14-09-2009, das 10:11:40 às 10:26:12 (desde o minuto 06:22 até ao minuto 07:29), resulta que o mesmo apenas se referiu à assistente dizendo "tire daí as patas" e nada mais.
7 - O mesmo, aliás, resultando do depoimento da própria assistente prestado na sessão de julgamento de 14-09-2009 (registado em CD das 10:26:18 às 10:37:24 (desde o minuto 09: 17 até ao minuto 09:47),
8- Bem como ainda do depoimento da testemunha J prestado na mesma sessão de julgamento datada de 14-09-2009 (registado em CD, das 10:46:07 às 10:53, desde o minuto 02:25 até ao minuto 02:49).
9- Segundo os referidos depoimentos o arguido apenas se referiu à assistente dizendo-lhe "tire daí as patas" e não como resulta provado na sentença recorrida "Tire daí as patas. Quem entrar parto-lhe as patas. Quem entrar fica lá".
10- Deu-se também como provado no ponto 2 da matéria de facto que: "2 - Entretanto, o arguido muniu-se de uma barra de ferro, com cerca de um metro de comprimento, e três ou quatro centímetros de espessura, tendo começado a bater, com ela, numa grade de uma janela do armazém existente no local, pertença da ofendida".
11- Tal ponto encontra-se, também, face ao depoimento da própria assistente (prestado na sessão de julgamento de 14-09-2009, registado em CD das 10:26:18 às 10:37:24 (desde o minuto 1 0:03 até ao minuto 1 0:42) incorrectamente julgado.
12- Não se tendo, pois, feito prova daquilo que consta do referido ponto 2, isto é que o arguido se tenha munido de uma barra de ferro de cerca de um metro de comprimento e três ou quatro centímetros de espessura e que tenha batido com ela numa grade de uma janela do armazém pertença da arguida. Sendo até a própria assistente quem contradiz o que o Tribunal a quo entendeu dar como provado, quando refere que o arguido batia numa grade de uma janela do pavilhão que é dele, rectius da A. S. T...
13- No que ao ponto 3 concerne, entendeu o Tribunal a quo ter-se provado que: "3- Atenta a agressividade demonstrada pelo arguido, a ofendida R ficou com receio e medo de ser agredida por aquele, tendo-se afastado do seu aludido armazém, onde já não entrou, diligenciando, de seguida, pela presença no local das autoridades locais ".
14- Sucede que, nenhuma das testemunhas corrobora o que ficou dado como provado neste ponto, aliás, é a própria assistente, no seu depoimento (prestado na sessão de julgamento de 14-09-2009, registado em CD entre as 10:26:18 e as 10:37:24, desde o minuto 09:17 até ao minuto 09:50), quem refere que, em relação aos factos em causa nos presentes autos, a intenção do arguido era apenas e exclusivamente a de não permitir a entra daquela no recinto da fábrica J…, não denotando assim qualquer receio de poder vir a ser agredida pelo arguido.
15- Assim, não pode dar-se como provado que a assistente ficou com medo de o arguido a agredir, porquanto é a própria assistente quem afirma (no seu depoimento prestado na sessão de julgamento de 14-09-2009, registado em CD, entre as 10:26:18 e as 10:37:24, desde o minuto 05:33 até ao minuto 05:44), que antes da chegada das forças policiais, que entretanto foram chamadas, se encontrava a conversar pacificamente com o arguido.
16- Tanto mais que nem foi a própria assistente quem decidiu chamar as autoridades policiais, segundo depoimento prestado na audiência de julgamento pela testemunha J (prestado na sessão de julgamento de 14-09-2009, registado em CD entre as 10:46:07 e as 10:53:27, desde o minuto 03:19 até ao minuto 03:44), foi este quem convenceu a assistente a fazê-lo, enquanto aquilo alheia às supostas ameaças, continuava a tentar abrir o portão.
17- Revela-se, ainda, essencial para a descoberta da verdade e apuramento dos contornos em que decorreram os factos, o depoimento da assistente (prestado na sessão de julgamento de 14-09-2009, registado em CD entre as 10:26:18 e as 10:37:24, desde o minuto 08: 14 ao minuto 08 :57) no qual relata que a sua relação com o arguido não era, por responsabilidade de ambas, pacífica, tese, aliás, corroborada pelo depoimento do arguido (registado no CD entre as 10:11:40 e as 10:26:12, desde o minuto 07:30 até ao minuto 08:17).
18- A assistente R é filha de MF e solicitadora. A 13/1 0/1998, através de escritura pública a empresa "A. S, LDA." adquiriu à referida MF os prédios rústicos inscritos na respectiva matriz da Freguesia de … Concelho da Covilhã, sob os nºs 124 e 125 e os prédios urbanos inscritos na respectiva matriz da Freguesia de .., Concelho da Covilhã, sob os nºs 1126 e 494, correspondentes ao prédio misto descrito e registado na Conservatória do Registo Predial da Covilhã sob o artigo 340, da Freguesia de … (Cfr. os documentos ns.º 1 a 6 juntos com o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido a fls. dos autos), não sendo, pois, a assistente proprietária de tal prédio, mas antes a sua mãe.
19- Resulta do depoimento da testemunha H, prestado no dia 14-09-2009 (registado em CD, das 10:57:24 às 11:01 56, desde o minuto 00:57 até ao minuto 04: 11) que nunca houve quaisquer problemas até recentemente, quando a assistente começou a arrogar-se proprietária de parte da propriedade adquirida pela referida empresa à sua mãe.
20- Exposto isto, deve ser dada como não provada a matéria de facto vertida nos pontos 1), 2) e 3) da Sentença recorrida.
21- Acresce que, para além do erro na apreciação na prova, a Sentença recorrida faz uma errada aplicação do direito, porquanto a actuação do arguido, nos termos que ficaram expostos, não preenche nenhum dos tipos legais de crime em causa.
22- Quanto ao crime de ameaça, p. e p. no artigo 153 do Código Penal, tem três características que integram o tipo objectivo de ilícito do crime de ameaça: 1) mal, 2) futuro, 3) cuja ocorrência dependa da vontade do agente e nenhuma delas se verificou no caso dos autos.
23- Pois, mesmo que o arguido se tivesse dirigido à assistente dizendo "tire daí as patas; quem entrar parto-lhe as patas. Quem entrar fica lá", o que não se concede, o mal ameaçado não é futuro, mas presente, iminente, e dependia da conduta da assistente e não do arguido.
24- Ademais, deverá ainda entender-se que expressões imputadas ao arguido, bem como a conduta de "entretanto, o arguido muniu-se de uma barra de ferro (...) tendo começado a bater, com ela, numa grade de uma janela do armazém existente no local (..)", visto o seu conteúdo e compreendido o seu sentido e contexto, não configuram a prática de qualquer crime de ameaça.
25- Pelo que, não se encontram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito em causa.
26- Quanto ao crime de injúria a expressão imputada ao arguido "Tire daí as patas "dirigida à assistente, não é ofensiva da honra ou consideração. "Pata" no uso coloquial ou popular tem os sentidos de pé grande ou mão grande de pessoas.
27- A expressão "tire daí as patas" imputada ao arguido integra-se no contexto de uma discussão entre o arguido e a assistente acerca do direito de entrar dentro da Quinta das Poldras.
28- Tal expressão não é em si mesma e atento o contexto em que foi proferida violadora da honra ou consideração devida à assistente, pelo que, também não se encontram preenchidos os tipos objectivo e subjectivo do crime de injúria p. e p. pelo artigo 181 do Código Penal.
29- Não tendo o Tribunal a quo decidido no sentido que fica exposto - de absolvição do arguido - violou e/ou interpretou erroneamente o disposto nas normas previstas no artigo 153 e 181 do Código Penal devendo, como tal, ser revogada e substituída por outra que, em conformidade com o exposto, absolva o arguido dos crimes pelos quais foi condenado.
Foi apresentada resposta, pelo magistrado do Mº Pº que conclui pelo não provimento do recurso.
Nesta Instância, o Ex.mº Procurador Geral Adjunto, em parecer emitido, igualmente sustenta a improcedência do recurso.
Foi cumprido o art. 417 nº 2 do CPP.
Não foi apresentada resposta.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre decidir.
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Mostra-se apurada, a seguinte matéria de facto e fundamentação da mesma:
Fundamentação:
Da matéria constante da acusação do Ministério Publico provou-se que:
1- No dia 23/07/2008, cerca das 11:10 horas, junto à antiga fábrica "J… P..", sita no lugar das P…, nesta cidade da Covilhã, após breve discussão, o arguido GL dirigiu-se a R, dizendo: "Tire daí as patas. Quem entrar parto-lhe as patas. Quem entrar fica lá".
2- Entretanto, o arguido muniu-se de uma barra de ferro, com cerca de um metro de comprimento, e três ou quatro centímetros de espessura, tendo começado a bater, com ela, numa grade de uma janela do armazém existente no local, pertença da ofendida.
3- Atenta a agressividade demonstrada pelo arguido, a ofendida R ficou com receio e medo de ser agredida por aquele, tendo-se afastado do seu aludido armazém, onde já não entrou, diligenciando, de seguida, pela presença, no local, das autoridades policiais.
4- O arguido agiu consciente e livremente, com intenção de provocar receio, medo e inquietação em R, como efectivamente provocou, bem sabendo que a sua conduta era adequada a nesta causar tal resultado.
5- Ao proferir a expressão "tira daí as patas", o arguido agiu pois voluntária e conscientemente, demonstrando um objectivo claro, e conseguido de denegrir a imagem e o bom nome da assistente, o que conseguiu.
6- Sabia, também, o arguido, que tais comportamentos lhe eram proibidos e punidos pela lei penal.
7- A queixosa sentiu-se ofendida na honra e consideração que lhe são devidos.
8- A ofendida, em consequência do comportamento do arguido sentiu-se magoada humilhada, vexada e agastada.
9- A assistente ficou num estado de inquietude.
10- Sempre que tem a necessidade de se deslocar ao seu pavilhão, tem medo que o arguido concretize as suas ameaças.
11- A lesada não se desloca ao pavilhão sem ser acompanhada.
12- O que lhe causa aborrecimentos sérios e preocupações.
13- A lesada ficou emocionalmente alterada.
14- O arguido é empresário, organiza eventos, tem um rendimento de € 600 mês, já com a alimentação e despesas com o veículo automóvel pagas.
15- Tem um filho com 7 anos que vive com a mãe, a quem paga a quantia de € 125 mensais a título de alimentos.
16- O arguido confessou parcialmente os factos.
17 - O arguido é primário.
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Nada mais se provou para além ou em contradição com o supra referido.
Assim, da matéria constante da acusação e com interesse para a decisão a proferir, não se provou que:
1- O arguido tenha proferido a seguinte expressão: "Mais ninguém entre aí; esta senhora não me conhece bem, não sabe do que sou capaz; ai de si que entre aí ou alguém, tem que se haver comigo; quem retirar o cadeado ou o abrir ... "
2- Que a ofendida tenha ficado em permanente pânico.
3-Que a assistente não deixa a sua mãe, de avançada idade, aproximar-se do local.
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Convicção do Tribunal:
O tribunal fundou a sua convicção no conjunto da prova produzida em audiência de julgamento e no teor do documento de fls. 81 e ss.
Assim, desde logo, temos as declarações do arguido que confessou ter dito para a queixosa "tire daí as patas".
Nas declarações da assistente que referiu que aquele lhe disse "tire daí as patas. Quem lá entrar fica lá", enquanto batia com um ferro numa grade da janela do armazém.
Vista a forma como a assistente prestou declarações, entendemos que nenhuma razão existe para que o Tribunal não possa atender e valorar essas declarações, se merecerem, como é o caso, credibilidade, em conjugação também com critérios de normalidade e razoabilidade.
Tais declarações foram coerentes e consistentes, merecendo a credibilidade do tribunal.
Também o depoimento das testemunhas A e J que acompanhavam a assistente e a quem esta ia mostrar o armazém, foi relevante para que os factos fossem dados como provados. Como relataram, de forma segura e serena, os factos ocorreram em Junho de 2008 da parte da manhã quando acompanhavam a assistente para verem o armazém. Que a ofendida meteu a chave no cadeado e verificou que não abria. Foi então que o arguido dirigindo-se àquela lhe disse "tire daí as patas. Quem entrar parto-lhe as patas", ao mesmo tempo que se munia de um ferro e batia com ele na grade da janela do armazém. A assistente sentiu-se vexada, preocupada, tremia e ficou com medo.
Relataram, assim, com a precisão e minúcia que a documentação dos actos da audiência atesta, o tempo, modo e lugar em que a conduta do arguido decorreu, sem falhas, incongruências ou imprecisões, não nos deixaram dúvidas que as declarações que estas testemunham prestaram, foram expressão sincera do que viram e ouviram no dia e local em causa nos autos.
Relativamente à matéria do pedido cível foram relevantes as declarações das referidas testemunhas.
No que concerne à situação económica do arguido relevaram as suas declarações.
Quanto aos antecedentes criminais, o teor do certificado do registo criminal junto aos autos.
O tribunal deu como não provados os factos que se enunciaram, por falta de prova.
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Conhecendo:
O recorrente questiona a matéria de facto:
Os pontos 1 a 3 da matéria de facto, entendendo que as expressões que proferiu não são do teor das dadas como provadas, não se provaram as características do ferro usado, nem se provou que o armazém fosse propriedade da ofendida e que a intenção do arguido era apenas que a ofendida não entrasse no recinto da fábrica.
Questiona a matéria de direito, entendendo que com a alteração dos factos, os mesmos não preenchem os requisitos dos crimes imputados.
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Matéria de facto:
O recurso incide sobre matéria de facto, entendendo-se como incorrectamente apreciada face à prova produzida.
É colocada em causa a prova e a apreciação da mesma.
A prova é valorada tal qual é produzida em audiência, depoimentos e documentos, sendo a prova testemunhal perante os depoimentos orais e a imediação.
No nosso ordenamento jurídico/processual penal vigora o princípio da livre apreciação da prova, sendo esta valorada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador -, art. 127°do C. P. Penal.
Não se trata de apreciação arbitrária, antes tendo como pressupostos valorativos os critérios da experiência comum e da lógica do homem médio supostos pela ordem jurídica. O princípio da livre apreciação da prova está intimamente ligado à obrigatoriedade de motivação ou fundamentação fáctica das sentenças criminais, com consagração no art. 374°/2 do Código de Processo Penal.
E não dispensa a prova testemunhal um tratamento cognitivo por parte do julgador mediante operações de cotejo com os restantes meios de prova, sendo que a mesma, tal qual a prova indiciária de qualquer natureza, pode ser objecto de formulação de deduções ou induções baseadas na correcção de raciocino mediante a utilização das regras de experiência.
A atribuição de credibilidade ou da não credibilidade a uma fonte de prova por declarações assenta numa opção motivável do julgador na base da sua imediação e oralidade que o tribunal de recurso só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum. O juiz é livre de formar a sua convicção no depoimento de um só declarante em desfavor de testemunhos contrários, cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, 207.
Ao apreciar a matéria de facto, o tribunal de recurso está condicionado pela circunstância de não ter com os participantes do processo aquela relação de proximidade comunicante que lhe permite obter uma percepção própria do material que há-de ter como base da sua decisão.
Refere Figueiredo Dias que só a oralidade e a imediação permitem o indispensável contacto vivo com o arguido e a recolha deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais contritamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. Tal relação estabelece-se com o tribunal de 1ª instância, e daí que a alteração da matéria de facto fixada em decisão colegial deverá ter como pressuposto a existência de elemento que, pela sua irrefutabilidade, não afecte o princípio da imediação.
Observe-se que a decisão da primeira instância será sempre o resultado duma «convicção pessoal» nela desempenhando papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionais não explicáveis -, v. g. a credibilidade que se concede a determinado meio de prova -, pelo que o tribunal de recurso ao apreciar a prova por declarações deve, salvo casos de excepção, adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido.
Paulo Saragoça da Matta, in Jornadas de Direito Processual Penal, pág. 253, refere que se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração.
Como se refere no recurso desta Rel. nº 4172/05, de 15-03-2006, “Para respeitar os princípios da oralidade e da imediação, se a decisão do julgador estiver fundamentada na sua livre convicção e for uma das soluções possíveis segundo as regras da experiência comum, ela não deverá ser alterada pelo tribunal de recurso”.
Diga-se também que a prova processual, ao invés do que acontece com a demonstração no campo da matemática ou com a experimentação no âmbito das ciências naturais, não visa a certeza lógica ou absoluta mas apenas a convicção essencial às relações práticas da vida social- cfr. A. Varela in Manual de Processo Civil pág. 407.
A propósito do art.º 127 refere o Ac. do TC 197/97 de 11.3.97 [ DR, IIª Série, de 29.12.98] que o juiz aí pressuposto pelo legislador é o juiz responsável e livre, capaz de pôr o melhor da sua cultura, inteligência e conhecimento das realidades da vida na apreciação do material probatório que lhe é fornecido.
Na parte em que o recorrente discorda da convicção do tribunal, alguma razão tem, mas relativamente a questões de pormenor.
Ponto 1: Em causa ter sido dado como provado, “quem entrar parto-lhe as patas”.
O arguido admitiu ter proferido a expressão “tire daí as patas” e nunca que paria as patas a quem entrasse.
A assistente referiu ter o arguido proferido as expressões, “tire daí as patas. Se lá for ou alguém por si fica lá” e a pergunta insistente referiu que o arguido “não disse parto-lhe as patas, disse fica lá” e que, “não sabe do que sou capaz”.
A testemunha J referiu ter ouvido o arguido proferir, “tira daí as patas se não ficas aí”, expressão dirigida à assistente quando pretendia abrir o cadeado do portão.
Apenas a testemunha A referiu ter o arguido proferido “quem entrar parto as patas”.
Na motivação da matéria de facto da sentença tem-se como relevantes as declarações da ofendida, “tais declarações foram coerentes e consistentes, merecendo a credibilidade do tribunal”, mas igualmente se refere que o depoimento das testemunhas A e J “foi relevante para que os factos fossem dados como provados”, acrescentando que após a assistente tentar abrir o cadeado, “foi então que o arguido dirigindo-se àquela lhe disse «tire daí as patas. Quem entrar parto-lhe as patas”.
Como já se deixou dito, ouvido o depoimento da testemunha J, nunca o mesmo referiu, “quem entrar parto-lhe as patas”.
Esta circunstância revela insuficiente análise crítica da prova.
Análise crítica da prova.
Face à motivação e, neste particular, entendemos que é insuficiente a justificação, o que constitui falta/insuficiência de exame crítico das provas, em violação do disposto no art. 374 nº 2 do CPP.
Quando há versões diferentes, mesmo que substancialmente divergentes, não se pode aceitar uma e afastar outra, sem qualquer explicação plausível e coerente o que, inexistindo, constitui violação do estatuído no art. 374 nº 2 do CPP “exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”, convicção positiva ou negativa.
Nem se pode dizer que a convicção do tribunal se formou com base nas declarações da assistente e da testemunha J, quando estas não disseram o que ficou provado, tendo a assistente expressamente dito o contrário do que se deu como provado “não disse parto-lhe as patas”, quando lhe foi directamente perguntado.
Haveria que ser justificado o depoimento da testemunha A, para se dar como provado tal facto.
Como refere o Ac. do STJ de 30-01-2002, proc. 3063/01- 3ª, SASTJ, nº 57, 69, “A partir da indicação e exame das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, este enuncia as razões de ciência extraídas destas, o porquê da opção por uma e não por outra das versões apresentadas, se as houver, os motivos da credibilidade em depoimentos, documentos ou exames que privilegiou na sua convicção, em ordem a que um leitor atento e minimamente experimentado fique ciente da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção” (sublinhado nosso).
Não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, esse exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo –Ac. do STJ de 12-04-2000.
A insuficiente justificação, constitui falta de análise critica da prova, que gera nulidade da sentença, nos termos do art. 379 nº 1 al. a) do CPP.
Quanto ao ponto 2: questiona o recorrente não se ter apurado as características do ferro que utilizou e que a grade da janela onde bateu não era do armazém da ofendida.
E, tem razão o recorrente.
Nem a assistente nem as testemunhas A e J referem as características do ferro.
A testemunha A apenas refere que o arguido “puxa de um ferro”.
A testemunha J apenas refere que o arguido “tira um ferro e bate com ele nas grades ao lado do portão”.
E a assistente refere que o arguido retirou um ferro do carro e bate com ele na grade da janela do pavilhão.
E, na fundamentação da convicção nada se diz acerca das características do ferro nem a prova que serviu para se dar como provadas aquelas características.
Assim que se deve dar apenas como provado que o arguido se muniu de um ferro com características não apuradas e como não provado o tamanho e grossura do ferro.
Por outro lado, quanto à pertença do pavilhão em cuja grade da janela o arguido bateu com o ferro, temos que é a ofendida quem refere nas suas declarações que o “pavilhão é dele” referindo-se ao arguido e corrigindo que era pertença da A.S.T”.
Mas também aqui se verifica a divergência com a fundamentação da convicção, pois ao referir-se ás declarações da assistente apenas se diz, “enquanto batia com um ferro numa grade da janela do armazém”, e ao referir-se aos depoimentos das testemunhas A e J refere, “ao mesmo tempo que se munia de um ferro e batia com ele na grade da janela do armazém”.
Assim, o ponto 2 dos factos provados passa a ter a seguinte redacção: “Entretanto, o arguido muniu-se de um ferro, com características não apuradas, tendo começado a bater, com ele, numa grade de uma janela do armazém existente no local, pertença da A.S.T”.
Quanto ao ponto 3:
Tanto a assistente como as testemunhas A e J referem que perante a actuação do arguido que tiveram como agressiva e impeditiva de a assistente abrir o cadeado do portão e ir até ao seu armazém (que será outro que não aquele onde o arguido bateu com o ferro).
Perante tal situação foi a testemunha J que aconselhou a assistente a “telefonar à GNR, o que ela fez”.
Tal situação não é incompatível com o facto de o arguido apenas querer não deixar a assistente entrar.
E, na eventualidade de não serem preenchidos os requisitos do crime de ameaça (mal futuro), não se pode olvidar o tipo de crime do art. 154 do CP.
Sendo que em tal caso deve ser dado cumprimento ao art. 358 do CPP.
Assim que do ponto 3 da matéria de facto apenas há que retirar o termo “aludido”, pois que o armazém aludido não é da assistente mas da A.S.T.
Matéria de direito:
Quanto ao tipo de crime de ameaça, a decisão do mesmo depende da colmatação da nulidade apontada, falta/insuficiência de análise crítica da prova, sendo que após se deverá ponderar o eventual preenchimento do tipo de crime coacção, em vez de ameaça, sendo que se assim se entender deverá ser dado cumprimento ao estatuído no art. 358 do CPP, sem olvidar o art. 409 do mesmo Código.
Quanto ao crime de injúria:
A nulidade supra referida não coloca em crise a expressão tida como injuriosa, “tira daí as patas”, expressão que o arguido confessou ter proferido.
Com o crime de injúria visa-se proteger a honra e consideração do ofendido.
A honra é vista assim como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal e interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior – Prof. Faria Costa, Comentário Conimbricense do código Penal, tomo I -607.
Consideração é o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, o bom nome, o crédito, a confiança, a estima, a reputação, que constituem a dignidade objectiva, o juízo que a sociedade faz de cada cidadão, em suma, a opinião pública – Cfr. Ac. da Rel. Lx. De 6-02-1996, in Col. Jurisp. tomo I, pág. 156.
A expressão é objectivamente torpe e ofensiva do respeito e consideração devidos a qualquer indivíduo.
É certo que há expressões mais injuriosas e muito mais ofensivas.
Isso diz o arguido no recurso e com alguma razão.
No entanto não podemos esquecer os factos constantes do ponto 5 dos provados e que é matéria de facto não impugnada no recurso e como tal tem de se considerar fixada. “5- Ao proferir a expressão "tira daí as patas", o arguido agiu pois voluntária e conscientemente, demonstrando um objectivo claro, e conseguido de denegrir a imagem e o bom nome da assistente, o que conseguiu”.
Assim sendo, verificam-se preenchidos os elementos do tipo de crime injúria, assumindo aquela expressão relevância penal.
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Nos termos expostos, se julga apenas parcialmente procedente o recurso.
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Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação e Secção Criminal em, julgar parcialmente procedente o recurso do arguido GL , e em consequência:
1- Nos termos e com os fundamentos expostos, anula-se parcialmente a sentença recorrida (relativamente aos factos e crime de ameaça), que deverá ser substituída por outra que, se necessário com recurso a repetição de prova, colmate as lacunas apontadas, decidindo em conformidade.
2- Quanto ao mais, crime de injúria, mantém-se a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, relativamente à parte em que houve improcedência, fixando-se a taxa de justiça em 4Ucs.
Coimbra,
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