Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
272/17.1JACBR-O.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: CONSTITUIÇÃO COMO ASSISTENTE
PESSOA COLECTIVA NÃO OFENDIDA
LIGA DOS BOMBEIROS PORTUGUESES
INTERESSE PÚBLICO
Data do Acordão: 11/14/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (J INSTRUÇÃO CRIMINAL)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 68.º E 69.º DO CPP
Sumário: I – O assistente é o sujeito processual que intervém no processo penal como colaborador do Ministério Público na promoção da aplicação da lei ao caso concreto, por ter a qualidade de ofendido ou especiais relações com este ou pela natureza do próprio crime (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, 4ª Edição Revista e Actualizada, 2000, Editorial Verbo, pág. 333).

II – A regra geral é a de que pode ser investido na qualidade de assistente o ofendido do crime, o titular dos interesses que a lei penal especialmente quis proteger com a incriminação [desde que maior de 16 anos], tendo, portanto, a lei adoptado um conceito estrito de ofendido [por contraposição ao conceito amplo, em que é ofendido qualquer pessoa que, de acordo com as regras do direito civil, tenha sido lesada pelo cometimento do crime].

III – A lei prevê ainda que qualquer cidadão relativamente a certos crimes, possa ter a qualidade de assistente [acção penal popular].

IV – E também prevê, em muito ampliando o campo de intervenção particular no processo penal, que leis avulsas confiram a determinadas pessoas e entidades o direito de se constituírem assistentes relativamente a certos crimes.

V – A recorrente Liga dos Bombeiros Portugueses não tem a qualidade de ofendida em inquérito onde é (foi) investigada a prática de crimes de incêndio florestal, homicídio por negligência e ofensa à integridade física por negligência, dos quais não resultou para si, qualquer dano.

VI – Não integrando os crimes referidos, investigados nos autos as categorias e /ou tipos de crime previstos na alínea e) do n.º 1 do art. 68.º do CPP e, não existindo norma avulsa habilitante que confira à recorrente a faculdade de requerer a sua constituição como assistente nos autos, nas referidas circunstâncias, carece a recorrente de legitimidade para requerer a sua constituição como assistente pelo que, não merece censura, o despacho recorrido.

Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO

No inquérito nº 272/17.1JACBR, que corre termos na Procuradoria da República da Comarca de Leiria – Departamento de Investigação e Acção Penal de Leiria – 1ª Secção, a Liga dos Bombeiros Portugueses, pessoa colectiva de utilidade pública, requereu a sua admissão nos autos como assistente.

A Digna Magistrada do Ministério Público promoveu o indeferimento da requerida constituição de assistente.

Em 19 de Março de 2018 [fls. 68 dos presentes autos de recurso em separado], o Mmo. Juiz de instrução proferiu o seguinte despacho:

Indefere-se a requerida constituição como assistente.

Na verdade, a Liga dos Bombeiros Portugueses não é titular dos interesses pessoais e patrimoniais em causa, nem existe norma habilitante a tal (art. 68º, nº 1 do C.P.P.).

Notifique.


*

Inconformada com a decisão, recorreu a Liga dos Bombeiros Portugueses, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

            B1 – Veio requerer a Liga dos Bombeiros Portugueses a sua constituição como assistente nestes autos, estribando-se, essencialmente, naquele que é o seu objeto.

B2 – Cabe recordar que a Liga dos Bombeiros Portugueses (breviter LBP) é a Confederação das Associações e Corpos de Bombeiros de qualquer natureza, voluntários ou profissionais, que, estando legalmente constituídos e em efetiva atividade, obedeçam aos requisitos da lei geral e dos Estatutos da Liga dos Bombeiros Portugueses e se proponham realizar os fins neles preconizados.

B3 – A LBP é instituição dotada utilidade pública, fundada em 1930, e diversamente agraciada, em vários momentos do sua história, já vasta, pelo serviço prestado à Comunidade, sendo, pelo sua pertinência, de relevar a Comenda da Ordem de Benemerência (1935), o título de Membro Honorário do Ordem Militar de Cristo (1980), o título de Membro Honorário do Ordem do Liberdade (2008), e o Prémio Direitos Humanos 2008, atribuído à Confederação em representação de todos os Bombeiros Voluntários Portugueses.

B4 – A LBP é, conforme se deixou antevisto, pessoa coletiva de utilidade pública, significando que nos termos do artigo 1º, nº 1 do Lei nº 460/77, de 7 de Novembro, "são pessoas coletivas de utilidade pública as associações ou fundações que prossigam fins de interesse geral, ou da comunidade nacional ou de qualquer região ou circunscrição, cooperando com o Administração Central ou a administração local, em termos de merecerem do parte desta administração o declaração de «utilidade pública»: - realces do signatário.

B5 – A LBP rege-se pela lei e pelos respetivos estatutos dos quais ressalta, para o que importa, ser esta um "instrumento de cooperação, consulta e representação dos seus associados, nas relações com os Órgãos de Soberania, com o administração central, regional e local e o sociedade civil em geral" – cf. artigo 3º, nº 1 dos respetivos estatutos.

B6 – Cabe-lhe também participar na definição das políticas nacionais nos áreas da proteção e socorro às populações, nomeadamente em iniciativas cívicas e legislativas respeitantes ao sector de Bombeiros e Proteção Civil – cf. o disposto no alínea c) do nº 2 do artigo 3º do referido normativo;

B7 – E ainda, propor ao Governo e demais Órgãos de Soberania a adoção de medidas legislativas ou executivas que se considerem indispensáveis ao desenvolvimento e consolidação dos serviços de proteção e socorro e dos suas estruturas de suporte – cf. a alínea g) do mesmo preceito.

Mas mais ainda,

B8 – No âmbito dos suas atribuições, compete à LBP, designadamente: "participar nas áreas da proteção e socorro às populações, no âmbito da defesa das suas vidas e haveres": "pronunciar-se sobre projetos de natureza legislativa e normativa que versem questões relacionados com a atividade dos seus associados, bem como propor, a quem de direito, medidas sobre as mesmas matérias"; e ainda, "prestar apoio jurídico, administrativo e técnico aos seus associados, bem como prestar todas as informações relativas às matérias do sua competência e atribuição" – cf. o artigo 4.º dos estatutos do LBP.

            B9 – Não perdendo de vista que a LBP é pessoa coletiva de utilidade pública, prosseguindo fins de interesse geral e conjugando tal premissa com os fins e interesses acabados de transcrever – que são aqueles pelos quais se rege esta LSP, resulta sobeja a respetiva legitimidade para intervir nos autos na qualidade de assistente.

B10 – Não pode perder-se de vista que os presentes autos se encontram, à presente data, em segredo de justiça.

B11 – Não pode, porém, olvidar-se que a Procuradoria Geral desta Comarca emitiu, recentemente, comunicado no sentido de que em causa poderá estar a existência de indícios da prática de crime de homicídio negligente e de ofensas à integridade física, também negligente.

B12 – Certo é que a finalidade destes autos é, sem apelo nem agravo, apurar responsabilidades criminais – se as houve e, em caso afirmativo, quem as protagonizou – pelos infelizes acontecimentos do ido dia 17 de Junho.

B13 – O assistente, nas suas vestes de sujeito processual, é, na definição propugnada pelo artigo 69.º, Código de Processo Penal, um colaborador do Ministério Público, embora não se lhe encontre subordinado porquanto, como se sabe, é detentor das suas próprias atribuições.

B13 – É certo que o assistente surgiu estreitamente relacionado com a figura do ofendido – a verdadeira inovação do Direito Processual Penal Português, nas palavras de Figueiredo Dias.

Porém,

B14 – O certo é que hoje, como outrora, o estatuto processual do assistente não pode espartilhar-se na figura do ofendido e assim o inculca a evolução legislativa que, hoje, admite, até, que "qualquer pessoa" se constitua assistente nos casos de crimes contra a paz e humanidade, bem como nos crimes de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção" – cf. a alínea e) do n° 1 do artigo 68.º, CPP, na sua redação introduzida em 2010. Resulta, assim, evidenciada uma clara abertura do legislador processual penal à participação de um leque mais amplo de assistentes.

B15 – Diga-se que a fase processual em que se encontram os autos apenas permitem intuir os factos ilícitos que poderão estar em questão que serão, a este tempo, sempre meramente indiciários podendo, é certo, surgir outros que inculquem tipificação diversa ou, de outra banda, que inculquem outra, acrescida, tipificação.

B16 – A legitimidade desta LBP é manifesta e evidente, não porque ofendida da aceção estrita – espartilhada, dir-se-á, da lei processual penal – mas, isso sim, mercê de duas particulares circunstâncias, quais sejam:

B17 – A utilidade pública de que se encontra revestida, conjugada com os fins que teve o signatário, já, oportunidade de expor – o que, havendo de notar-se que, nos termos da cláusula geral ínsita no nº 1 do artigo 68.º, CP'P, segundo o qual podem constituir-se assistentes no processo penal as pessoas e entidades a quem a lei conferir esse direito – o que se assoma ser o caso. Isto de uma banda.

De outra banda,

B18 – O alargamento do conceito de assistente hoje propugnado pela doutrina – e já vertido na lei – a que não podem estes autos ser alheios. De facto,

B18 – A hodierna opção do legislador processual penal vai no sentido – já assinalado – de alargamento do conceito de assistente, facultando essa opção "a qualquer pessoa" (cf. a já citada alínea e) do nº 1 do artigo 68.º, CPP). Ora,

B20 – Em causa, nestes autos, estão não apenas os interesses dos malogradamente – ofendidos ou seus descendentes ou ascendentes mas, isso sim, da coletividade. Na verdade,

B21 – O bem jurídico tutelado por estes autos é, certamente, a Vida Humana mas, a jusante, também as opções de política legislativa no que atine ao combate aos incêndios florestais, à prevenção, à defesa da floresta, ao acionamento de meios materiais e humanos.

B22 – Há, pois, um manifesto interesse público ao qual não é alheia esta LBP enquanto representante dos Bombeiros Portugueses, do deslinde cabal destes autos. Mas diga-se mais,

B23 – Não só atentos os interesses postulados por esta requerente como, também, numa leitura aturada e atualista da lei, é perspícuo concluir-se que o assistente, como nos diz a lei, é um "colaborador do Ministério Público", logo, um auxiliar na tarefa de "promover o processo", auxiliando na investigação sobre a prática de um crime e sua autoria.

B24 – Ora, o Ministério Público está, como se sabe, obrigado a um dever de legalidade estrita da sua atuação, e de objetividade na sua conduta, id est, procurar todas as provas e todos os indícios de molde a poder demonstrar todos os factos, seja os que contribuam para responsabilizar o arguido, seja os que levem a concluir pela sua não responsabilidade. O mesmo para o assistente, consequentemente, pois a prova é indivisível! – o que, de resto, merece acolhimento da melhor doutrina.

B25 – Assim, e em consequência, o assistente, como "colaborador" do MP, tem sempre de ser alguém que, materialmente, objetivamente, se encontre habilitado a auxiliar na "descoberta da verdade". Mais: se a investigação passa necessariamente por "investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas", só quem possa "participar" nessas atividades é que poderá ser assistente. Sendo proibida a investigação privada, porque só realizável através de meios reservados ao Estado, óbvio é que para ser assistente, i.e.. para poder "colaborar" com o MP, tem de ser alguém que tenha dados e/ou elementos necessários à investigação, dados esses que nunca podem ter sido obtidos por vias proibidas às próprias autoridades – o que, de resto, e repisa-se, merece acolhimento da melhor doutrina.

B26 – Está, pois, hoje em franco desuso uma visão restritivo da figura processual do assistente.

B27 – Como bem entende Augusto Silva Dias, é, hoje, preferível advogar um conceito alargado, esgrimindo, em seu favor, várias razões, sendo elas: "umas que assentam na «moderna vitimologia», ao «recomendar uma aplicação da participação processual da vítima como uma forma de melhor conseguir a pacificação social, uma finalidade que é consensualmente cometida ao processo penal»; outras, nas alterações operadas no âmbito do conceito de bem jurídico, que o fez catapultar para o domínio dos «bens jurídicos da sociedade civil, de estrutura circular, de titularidade intersubjetiva, cujo objeto é indivisível e que são responsáveis pelo aparecimento, no plano da tutela processual, da noção de interesse difuso», como são os casos do ambiente e da qualidade dos produtos de consumo; outras ainda, que radicam na atual «opção político-criminal do legislador processual de alargar a área de abrangência do assistente», facultando a sua constituição a qualquer pessoa em circunstâncias especiais, como fez na alínea e) do n° 1 do artigo 68.º; e, finalmente, na coerência do sistema processual penal, que ficaria comprometida com a visão restritiva de ofendido, como aconteceria nos casos em que o M.ºPº, após inquérito, decida arquivá-lo, frustrando assim a possibilidade de se exercer o controlo desse despacho através de instrução" – realces do Autor; cf. A tutela do ofendido e a posição do assistente; Jornadas de Direito Processual e Direitos Fundamentais, Coimbra, 2004, pp. 55 e ss.

B28 – Não pode à ora requerente ser vedada a intervenção nestes autos, atentos os fins, interesses e atribuições que postula e à colaboração e auxílio que a esta – delicada! – investigação pode prestar,

B29 – Cabendo-lhe, desde logo, carrear prova aos autos, deduzir acusação independentemente do Ministério Público e, outrossim, interpor os recursos que entender pertinentes,

B30 – Havendo de ser permitido à Liga dos Bombeiros Portugueses a intervenção como assistente – e, assim, ser a decisão que antecede objeto de revogação.

Termos em que, na procedência do presente recurso, deverá ser revogada a decisão recorrida, assim se fazendo a Costumada Justiça!


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            Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público, alegando, em síntese, que sendo investigados nos autos factos susceptíveis de virem a preencher o tipo do crime de incêndio florestal, de homicídio por negligência e de ofensa à integridade física por negligência [na decorrência do incêndio deflagrado em Junho de 2017 em X... ] a recorrente, apesar de prosseguir fins de interesse geral, público e colectivo, não é titular de qualquer dos interesses especialmente protegidos pelas normas que prevêem aqueles tipos legais, sendo que tais tipos, além do mais, não integram o conceito de crime contra a humanidade, de crime contra a paz, pelo que não são subsumíveis à previsão da alínea e) do nº 1 do art. 68º do C. Processo Penal pelo que, carece de legitimidade para se constituir nos autos como assistente, e concluiu pelo não provimento do recurso.

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O Mmo. Juiz a quo sustentou o despacho recorrido.

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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, aderiu à argumentação da resposta do Ministério Público, realçando que a lei fixa especificamente os casos em que há lugar à constituição de assistente e em nenhum deles cabe a recorrente, mesmo enquanto entidade de utilidade pública com competência na área dos incêndios florestais, e concluiu pela improcedência do recurso.

 


*

            Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.


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            II. FUNDAMENTAÇÃO

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pela recorrente, a questão a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, é a de saber se estão ou não verificados os pressupostos legais habilitantes da sua intervenção nos autos como assistente.


*

            Com relevo para a questão proposta colhem-se dos autos os seguintes elementos:

            i) No inquérito nº 272/17.1JACBR são (foram) investigados factos susceptíveis de, eventualmente, preencherem os tipos dos crimes de incêndio florestal, homicídio por negligência e ofensa à integridade física por negligência, na sequência do incêndio que deflagrou no dia 17 de Junho de 2017 em X... , no decurso do qual morreram sessenta e quatro pessoas e mais de uma centena ficaram feridas.

            ii) No requerimento de constituição de assistente  a recorrente não invocou ter sofrido prejuízos causados pelo incêndio referido. 


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Da verificação ou não dos pressupostos legais habilitantes da constituição de assistente

1. O assistente, enquanto sujeito processual, é uma figura particular do processo penal português que desde sempre se encontra relacionado com a figura do lesado e com a figura do ofendido

O C. Processo Penal em vigor não define o conceito de assistente limitando-se [como o seu antecessor e o Decreto nº 35007, de 13 de Outubro de 1945] à indicação da sua posição e competências processuais.

Dispõe o art. 68º do C. Processo Penal, na parte em que agora releva:

1 – Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito:

a) Os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos;

b) As pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento;

c) No caso de o ofendido morrer sem ter renunciado à queixa, o cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens ou a pessoa, de outro ou do mesmo sexo, que com o ofendido vivesse em condições análogas às dos cônjuges, os descendentes e adoptados, ascendentes e adoptantes, ou, na falta deles, irmãos e seus descendentes, salvo se alguma destas pessoas houver comparticipado no crime;

d) No caso de o ofendido ser menor de 16 anos ou por outro motivo incapaz, o representante legal e, na sua falta, as pessoas indicadas na alínea anterior, segundo a ordem aí referida, ou, na ausência dos demais, a entidade ou instituição com responsabilidades de protecção, tutelares ou educativas, quando o mesmo tenha sido judicialmente confiado à sua responsabilidade ou guarda, salvo se alguma delas houver auxiliado ou comparticipado no crime;

e) Qualquer pessoa nos crimes contra a paz e a humanidade, bem como nos crimes de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção.

(…).

E dispõe o art. 69º do mesmo diploma:

1 – Os assistentes têm a posição de colaboradores do Ministério Público, a cuja actividade subordinam a sua intervenção no processo, salvas as excepções da lei.

2 – Compete em especial aos assistentes:

a) Intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se afigurarem necessárias e conhecer os despachos que sobre tais iniciativas recaírem;

b) Deduzir acusação independente da do Ministério Público e, no caso de procedimento dependente de acusação particular, ainda que aquele a não deduza;

c) Interpor recurso das decisões que os afectem, mesmo que o Ministério Público o não tenha feito, dispondo, para o efeito, de acesso aos elementos processuais imprescindíveis, sem prejuízo do regime aplicável ao segredo de justiça.

A regra geral é a de que pode ser investido na qualidade de assistente o ofendido do crime, o titular dos interesses que a lei penal especialmente quis proteger com a incriminação [desde que maior de 16 anos], tendo, portanto, a lei adoptado um conceito estrito de ofendido [por contraposição ao conceito amplo, em que é ofendido qualquer pessoa que, de acordo com as regras do direito civil, tenha sido lesada pelo cometimento do crime].

A lei prevê ainda que qualquer cidadão relativamente a certos crimes, possa ter a qualidade de assistente [acção penal popular].

E também prevê, em muito ampliando o campo de intervenção particular no processo penal, que leis avulsas confiram a determinadas pessoas e entidades o direito de se constituírem assistentes relativamente a certos crimes [v.g., a Lei nº 35/98, de 18 de Julho, que define o estatuto das organizações não governamentais de ambiente – ONGA –, e no seu art. 10º, d), confere a tais organizações legitimidade, além do mais, para se constituírem assistentes por crimes contra o ambiente, e a Lei nº 24/96, de 31 de Julho – Lei de defesa do consumidor – que no seu art. 18º, nº 1, m), confere às associações de consumidores legitimidade, além do mais, para se constituírem assistentes por crimes relacionados com o consumo designadamente, os previstos no Dec. Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro].

Por outro lado, no que às atribuições do assistente respeita, este é sempre um colaborador do Ministério Público, estando a sua actividade a este subordinada [sem prejuízo de tal subordinação poder assumir diversas gradações designadamente, em função da natureza pública, semipública ou particular do processo], ainda que possa exercer, autonomamente, certos poderes.

O assistente é, assim, o sujeito processual que intervém no processo penal como colaborador do Ministério Público na promoção da aplicação da lei ao caso concreto, por ter a qualidade de ofendido ou especiais relações com este ou pela natureza do próprio crime (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, 4ª Edição Revista e Actualizada, 2000, Editorial Verbo, pág. 333).

Aqui chegados.

 2. Já dissemos que assistente, ofendido e lesado são ‘categorias’ que, estando conexionadas, não são, processualmente, confundíveis, embora possam coincidir na mesma pessoa.

O ofendido é o titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação [conceito de ofendido em sentido estrito].

O lesado é todo aquele que sofreu danos com a prática do crime [conceito de ofendido em sentido amplo], podendo, por isso, constituir-se parte civil para exercer o direito à indemnização. Mas quando é também o titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, a qualidade de lesado coincide com a de ofendido.

Por sua vez, o ofendido [que, enquanto tal, não é sujeito processual], porque tem essa qualidade, pode constituir-se assistente, o que significa que casos há em que o lesado é ofendido e é também, porque o requereu, assistente.

Como vimos, o art. 68º, nº 1, a) do C. Processo Penal adoptou o conceito estrito de ofendido e à luz deste conceito, a recorrente não tem, manifestamente, tal qualidade.

No inquérito que constitui os presentes autos, é (foi) investigada pelo Ministério Público a prática de crime de incêndio florestal, de vários crimes de homicídio por negligência e a de vários crimes de ofensa à integridade física por negligência.

O crime de incêndio florestal, previsto pelo art. 274º do C. Penal, tutela vários bens jurídicos, como a vida, a integridade física e o património, o crime de homicídio por negligência, previsto no art. 137º do C. Penal, tutela o bem jurídico vida humana e o crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto no art. 148º do C. Penal, tutela o bem jurídico integridade física e psíquica.  

A recorrente, enquanto pessoa colectiva de direito privado, dotada de utilidade pública administrativa [art. 2º dos Estatutos respectivos], porque a sua esfera patrimonial não integra os bens vida e integridade física e psíquica, é insusceptível de ser ofendida pelos investigados crimes de homicídio por negligência e ofensa à integridade física por negligência, bem como pelo investigado crime de incêndio florestal na parte em que este tutela aqueles bens jurídicos.  

Relativamente à tutela sobrante do crime de incêndio florestal, no requerimento de constituição de assistente a recorrente não invoca a lesão de bens seus de natureza patrimonial designadamente, da destruição pelo fogo de qualquer parcela florestal ou de qualquer viatura de combate a incêndios, sua pertença.

Assim, mostra-se esvaziada a previsão da alínea a) do nº 1 do art. 68º do C. Processo Penal sem que, por seu intermédio, a recorrente veja ser-lhe atribuída legitimidade para se constituir como assistente nos autos.

3. Os crimes em investigação não são, por outro lado, crimes contra a paz (arts. 10º a 18º da Lei nº 31/2004, de 22 de Julho), crimes contra a humanidade (arts. 8º e 9º da Lei nº 31/2004, de 22 de Julho), crime de tráfico de influência (art. 335º do C. Penal), crime de favorecimento pessoal praticado por funcionário (art. 368º do C. Penal), crime de denegação de justiça e prevaricação (art. 369º do C. Penal), crime de corrupção (arts. 373º e 374 do C. Penal), crime de peculato (art. 375º do C. Penal), crime de participação económica em negócio (art. 377º do C. Penal), crime de abuso de poder (art. 382º do C. Penal), crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção (art. 36º do Dec. Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro) e crime de desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado (art. 37º do Dec. Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro).      

Não será pois, pelo exercício da manifestação de «acção penal popular», com longa tradição aliás, no nosso direito [já se encontrava prevista no art. 124º da Carta Constitucional de 1826, para os crimes de suborno, peita, peculato, corrupção e concussão], prevista na alínea e) do nº 1 do art. 68º do C. Processo Penal que a recorrente obterá a necessária legitimidade para se constituir assistente nos autos.

4. Como referimos já, normas especiais podem conferir a certas pessoas e entidades o direito a constituírem-se assistentes, circunstância esta que o nº 1 do art. 68º do C. Processo Penal expressamente prevê.

Porém, o alargamento da qualidade de assistente a quem não é ofendido e/ou fora dos casos em que a atribuição dessa qualidade radica, exclusivamente, na natureza e relevância dos valores tutelados pelas normas penais [seja pela universalidade da dignidade da pessoa humana, seja pela afectação grave de valores da comunidade] não dispensa a existência de lei habilitante, de norma que expressamente atribua tal faculdade a determinadas pessoas, singulares ou colectivas.

Não encontrámos diploma legal que atribua à recorrente – que não tem, nos autos, pelas razões sobreditas, a qualidade de ofendida – a faculdade de se constituir assistente por qualquer dos crimes investigados nos autos, muito especialmente, pelo crime de incêndio florestal. E tão-pouco a recorrente afirma a existência dessa norma.

Pelo contrário, a recorrente suporta a sua, pretendida, legitimidade para se constituir assistente, na qualidade de pessoa colectiva de utilidade e nos fins e interesses por si prosseguidos – cooperação, consulta e representação dos associados nas relações com Órgãos de Soberania, administração central e local e sociedade civil em geral [art. 3º, nº 1 dos respectivos Estatutos] / participação na definição das políticas de protecção e socorro às populações e consulta na respectiva legislação [art. 3º, nº 2, c) e g) dos respectivos Estatutos] / participação na protecção e socorro das populações na defesa de vidas e haveres [art. 4º dos respectivos Estatutos] – deles retirando a sua, assim o diz, manifesta legitimidade para a pretensão deduzida, não porque seja ofendida, em sentido estrito, mas porque, face à sua natureza e fins, é uma das entidades pessoas a quem a lei conferiu esse direito, e porque os autos não pode ser alheio ao alargamento do conceito de assistente acolhido pela melhor doutrina, quando neles não estão apenas em questão os interesses dos ofendidos mas também, da colectividade, através do bem jurídico ‘opções de política legislativa no que atine ao combate aos incêndios florestais, à prevenção. À defesa da floresta, ao accionamento de meios matérias e humanos’, sendo pois manifesta a existência de interesse público no deslinde dos autos, à qual não é alheia a recorrente enquanto representante dos bombeiros portugueses.

Correndo embora o risco de repetição, cumpre dizer que não está em causa, quanto à legitimidade para requerer a constituição como assistente, a qualidade de pessoa colectiva de utilidade pública da recorrente nem os elevados fins altruístas que prossegue, merecedores, como é evidente, do mais elevado respeito da comunidade. Acontece, porém, que nenhuma lei atribui à recorrente legitimidade para se constituir assistente nos presentes autos, em razão dos concretos tipos legais que nele são (foram) investigados.

Não desconhecemos a posição de Augusto Silva Dias, citado pela recorrente, na defesa de uma concepção alargada de ofendido e sua argumentação (Jornadas de Direito Processual e Direitos Fundamentais, A tutela do ofendido e a posição do assistente, 2004, Almedina, pág. 55 e ss.). Todavia, não só é posição seguramente minoritária, já que, entre outros, Figueiredo Dias (cfr. Direito Processual Penal, 1ª Edição, 1974, Reimpressão, 2004, Coimbra Editora, pág. 508 e ss.), Simas Santos e Leal Henriques, Código de Processo Penal Anotado, Volume I, 3ª Edição, 2008, Editora Rei dos Livros, pág. 450 e ss.), Henriques Gaspar (Código de Processo penal Comentado, obra colectiva, 2014, Almedina, pág. 239) e Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10ª Edição, Revista e Actualizada, 1999, Almedina, pág. 207) subscrevem uma concepção estrita de ofendido, como foi precisamente esta a recebida pelo C. Processo Penal na alínea a) do nº 1 do seu art. 68º. E também a jurisprudência vem adoptando esta concepção restrita, como é demonstrado pela argumentação que consta do Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2003, de 16 de Janeiro, onde se pode ler, «quando os interesses, imediatamente protegidos pela incriminação, sejam, simultaneamente, do Estado e de particulares (…), a pessoa que tenha sofrido danos em consequência da sua prática tem legitimidade para se constituir como assistente».

Por outro lado, há que reconhecer que a lei processual penal contempla já algumas concessões à posição minoritária referida, quer quando reconhece a possibilidade de leis avulsas conferirem a faculdade em questão a determinadas pessoas, no âmbito dos interesses difusos, o que vêm sendo feito, conforme já referido, no sector do ambiente e no sector do consumo, além de outros, quer quando reconhece tal faculdade a toda e qualquer pessoa, em determinadas circunstâncias, como sucede com a previsão da alínea e) do nº 1 do art. 68º do C. Processo Penal. Mas aqui estarão sempre em causa opções do legislador.

Não será também, portanto, pelo alargamento do conceito de ofendido, ao arrepio e contrariamente ao fixado na alínea a) do nº 1 do art. 68º do C. Processo Penal que a recorrente logrará obter a pretendida legitimidade para requerer a sua constituição nos autos como assistente.


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            5. Em síntese conclusiva do que fica dito:

            - O C. Processo Penal – alínea a) do nº 1 do seu art. 68º – adopta uma concepção estrita de ofendido para efeitos de determinação da legitimidade para requerer a qualidade de assistente, entendendo como tendo tal qualidade [de ofendido] o titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação portanto, o titular do interesse imediatamente tutelado pela norma que prevê o tipo de ilícito;

            - A recorrente Liga dos Bombeiros Portugueses não tem a qualidade de ofendida em inquérito onde é (foi) investigada a prática de crimes de incêndio florestal, homicídio por negligência e ofensa à integridade física por negligência, dos quais não resultou para si, qualquer dano;

            - Os crimes referidos, investigados nos autos, não integram as categorias e /ou tipos de crime previstos na alínea e) do nº 1 do art. 68º do C. Processo Penal;

            - Por outro lado, não existe norma avulsa habilitante que confira à recorrente a faculdade de requerer a sua constituição como assistente nos autos, nas referidas circunstâncias;

            - Assim, carece a recorrente de legitimidade para requerer a sua constituição como assistente pelo que, não merece censura, o despacho recorrido.     


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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam o despacho recorrido.


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Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 2 UCS. (art. 521º, nº 2 do C. Processo Penal e 4º, nº 1, f) – a contrario, do R. das Custas Processuais).

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Coimbra, 14 de Novembro de 2018


Heitor Vasques Osório (relator)


Helena Bolieiro (adjunta)