Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2/20.0T8MMV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL DOS TRIBUNAIS PORTUGUESES
Data do Acordão: 01/18/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE MONTEMOR-O-VELHO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 7.º, N.º 2, DO REGULAMENTO (EU) N.º 1215/2012, DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, DE 12 DE DEZEMBRO DE 2012, RELATIVO À COMPETÊNCIA JUDICIÁRIA, AO RECONHECIMENTO E À EXECUÇÃO DE DECISÕES EM MATÉRIA CIVIL E COMERCIAL
Sumário: I – O segmento “lugar onde ocorreu o facto danoso”, constante do n.º 2 do artigo 7.º, do Regulamento n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, compreende tanto o lugar onde o dano se produz como o lugar onde ocorre o evento causal.

II - Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para julgar uma ação declarativa de condenação em que o Autor, pai de dois filhos, pede a condenação da Ré, mãe desses filhos, a pagar-lhe uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do facto da Ré ter abandonado a residência em Portugal e levado os filhos consigo para Espanha, onde fixou nova residência, infringindo as obrigações decorrentes do regime que regulava o exercício das responsabilidades parentais.

III - O facto “abandono da residência”, reportado ao local da residência fixada à data em que foi estabelecido o regime relativo às responsabilidades parentais é, no caso, para efeitos do n.º 2 do artigo 7.º do referido Regulamento, o facto causal do dano.

Decisão Texto Integral:


I. Relatório

a) O presente recurso vem interposto da seguinte decisão:

« (…) III- Do Saneamento:

3.1- Da competência do Tribunal:

Em sede de contestação, veio a Ré invocar a exceção dilatória de incompetência absoluta dos tribunais portugueses para dirimirem o presente litígio, por infração das regras de competência internacional, atento o disposto no artigo 96.º, al. a) do Código de Processo Civil.

Para o efeito, a Ré alegou que os tribunais espanhóis são os competentes para a presente ação, tendo em conta que foi em Espanha que ocorreu a deslocação alegadamente ilícita dos menores, com carater duradouro, e a fixação da sua residência, sem autorização do Autor, bem como foi em Espanha que ocorreu o primeiro dano sofrido pelo Autor, traduzido na impossibilidade e visitar os seus filhos e ter qualquer contacto físico com eles. Tais factos, segundo alegou a Ré, permitem preencher o critério estabelecido pelo citado art. 7.º, n.º 2 do Regulamento (CE) n.º 44/2001, de 16 de janeiro.

Por seu turno, o Autor peticionou a improcedência da exceção, alegando que o facto ilícito em causa constitui o impedimento de o Autor exercer as suas responsabilidades parentais, nos termos do acordo fixado, nomeadamente, de ir levar e buscar os filhos nos dias determinados. Desta forma, alegou o Autor que o aludido impedimento, decorrente da deslocação dos menores, ocorreu em Portugal, sendo que os demais danos sofridos desencadearam-se, de igual modo, em território Português; razão pela qual, nos termos do art. 7.º, n.º 2 do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12 de dezembro, a competência internacional cabe aos tribunais portugueses.

Cumpre decidir.

O Autor intentou a presente ação declarativa de condenação contra a Ré, residente na ..., Espanha.

Neste sentido, considerando a residência da Ré, indicada na ação intentada pelo Autor (que se encontra num Estado-Membro distinto), bem como a matéria a discutir nestes autos (responsabilidade civil extracontratual) e a data em que a presente ação foi intentada (03-01-2020), importará chamar à colação as regras instituídas pelo Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12 de dezembro, que, por seu turno, estabelece as regras de competência judiciária, reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial, e que veio  substituir o Regulamento (CE) n.º 44/2001, de 16 de janeiro, anteriormente em vigor a este propósito e a título meramente exemplar, leia-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 01-10-2019, processo n.º 2300/18.4T8PRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt.

Assim sendo, o art. 4.º do aludido Regulamento estabelece a regra geral a aplicar, quando o objeto da ação intentada não se integrar em qualquer uma das disposições especiais, também previstas no mencionado Regulamento. Por conseguinte, o art. 4.º, n.º 1 em apreço, Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado-Membro

Todavia, o objeto da presente ação insere-se no âmbito da responsabilidade civil extracontratual; razão pela qual o art. 7.º, n.º 2 do Regulamento em apreciação consagra uma regra especial, que deverá ser tida em consideração para a tomada de decisão sobre a exceção suscitada pela Ré, no seu articulado de contestação. O art. 7.º, n.º 2 mencionado dispõe, então, As pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso.

Ora, para este efeito, considero que o lugar onde ocorreu o facto danoso é o local onde se verificou o facto ilícito gerador da responsabilidade civil extracontratual, bem como o local onde se verificou o dano, podendo o Autor optar por intentar a ação em qualquer dos tribunais, desde que os mesmos sejam distintos, pela aplicação dos critérios em apreço neste sentido, vejam-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 03-03-2005, processo n.º 04A4283 e o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 18-06-2013, processo n.º 3398/11.1TVLSB.L1-7, disponíveis em www.dgsi.pt.

Assim sendo, tendo em consideração os factos alegados em sede de petição inicial e o objeto da ação, impõe-se, então, conhecer o local onde ocorreu o facto danoso.

Tal como resultou admitido por acordo, antes de alterar a sua residência para Espanha, a Ré residia, com os dois filhos menores, na ..., Montemor-o-Velho. Desta forma, os factos que, alegadamente, estiveram na origem dos danos invocados pelo Autor, terão ocorrido em território português. Vejamos: tendo presente o que foi alegado pelo Autor, em sede de petição inicial, os danos alegados, que estão na origem da ação de responsabilidade civil, desencadearam-se, por um lado, pelo facto de a Ré se ter deslocado com os menores para local distinto ao que previamente havia sido estabelecido no acordo de regulação das responsabilidades parentais, com vista a possibilitar o cumprimento dos direitos instituídos no referido acordo e, por outro lado, pelo facto de a Ré ter ficado impedido de exercer os direitos de visita e os demais direitos estabelecidos no referido acordo de regulação das responsabilidades parentais.

Na verdade, contrariamente ao alegado pela Ré, no art. 42.º da sua contestação, a alegada deslocação dos menores não terá ocorrido em Espanha. A alegada deslocação dos menores terá ocorrido em Portugal, pois tal como resulta da matéria assente por acordo, era em Portugal que os menores residiam com a Ré.

Do mesmo modo, contrariamente ao alegado pela Ré no art. 43.º da sua contestação, a alegada impossibilidade de o Autor visitar os seus filhos e de exercer os demais direitos fixados por acordo terá ocorrido em Portugal, pois, tal como já se explanou, era em Portugal e, mais concretamente, em Montemor-o-Velho, que os menores residiam com a Ré [cfr. art. a regulação das responsabilidades parentais das crianças, em Portugal, apenas fixou a sua residência junto da mãe Por outra via, atentos os danos invocados pelo Autor cujo valor indemnizatório pedido assenta, maioritariamente, em danos de natureza não patrimonial dúvidas, também, não subsistem de que os mesmos ocorreram em território português. O Autor invoca que a deslocação dos seus dois filhos para Espanha provocou-lhe tristeza, abalo psicológico, depressão (entre outros). Ora, a terem ocorrido os aludidos danos (o que o Tribunal, de momento, desconhece), os mesmos desencadearam-se, naturalmente, em Portugal, onde o Autor reside habitualmente.

Assim, independentemente do critério adotado pelo Autor, as regras de competência internacional aplicáveis (mais concretamente, as que resultam do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12 de dezembro) sempre atribuiriam a competência aos tribunais portugueses para a presente ação.

Face ao exposto, improcede a exceção dilatória de incompetência absoluta dos tribunais portugueses para dirimirem o presente litígio.»

b) É desta decisão que vem interposto recurso por parte da recorrente A. , cujas conclusões são as seguintes:

«1ª - Com o presente recurso visa a ora Recorrente impugnar o despacho saneador, de 21.09.2021, com a Ref.ª Citius 86298173, (notificado à Ré em 27.09.2021) na parte em que o mesmo julgou improcedente a exceção dilatória de incompetência absoluta dos tribunais portugueses para dirimirem o presente litígio.

2ª - Do despacho saneador sub iudicio consta que o Autor intentou a presente ação declarativa de condenação contra a Ré, residente na ..., Espanha, pelo que, considerando a residência da Ré, indicada na ação intentada pelo Autor (que se encontra num Estado-Membro distinto), bem como a matéria a discutir nestes autos (responsabilidade civil extracontratual) e a data em que a presente ação foi intentada (03-01-2020), importará chamar à colação as regras instituídas pelo Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12 de dezembro, que, por seu turno, estabelece as regras de competência judiciária, reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial, e que veio substituir o Regulamento (CE) n.º 44/2001, de 16 de janeiro, anteriormente em vigor.

3ª – O Tribunal a quo determinou que, atendendo a que o objeto da presente ação se insere no âmbito da responsabilidade civil extracontratual deverá ser tida em consideração, para a tomada de decisão sobre a exceção dilatória de incompetência absoluta dos tribunais portugueses, suscitada pela Ré, no seu articulado de contestação, o artigo 7.º, n.º 2 do mencionado Regulamento.

4ª - Para este efeito, o Tribunal a quo estipulou que o lugar onde ocorreu o facto danoso é o local onde se verificou o facto ilícito gerador da responsabilidade civil extracontratual, bem como o local onde se verificou o dano, podendo o Autor optar por intentar a ação em qualquer dos tribunais, desde que os mesmos sejam distintos, pela aplicação dos critérios em apreço.

5ª - Mais estabeleceu o Tribunal ora Demandado que, tendo presente o que foi alegado pelo Autor, em sede de petição inicial, os danos alegados, que estão na origem da ação de responsabilidade civil, desencadearam-se, por um lado, pelo facto de a Ré se ter deslocado com os menores para local distinto ao que previamente havia sido estabelecido no acordo de regulação das responsabilidades parentais, com vista a possibilitar o cumprimento dos direitos instituídos no referido acordo e, por outro lado, pelo facto de o Autor ter ficado impedido de exercer os direitos de visita e os demais direitos estabelecidos no referido acordo de regulação das responsabilidades parentais.

6ª - Considerou igualmente o Tribunal a quo que, a alegada deslocação dos menores terá ocorrido em Portugal, pois tal como resulta da matéria assente por acordo, era em Portugal que os menores residiam com a Ré.

7ª - Acresce que, também determinou que a alegada impossibilidade de o Autor visitar os seus filhos e de exercer os demais direitos fixados por acordo terá ocorrido em Portugal, pois, era em Portugal e, mais concretamente, em Montemor-o-Velho, que os menores residiam com a Ré.

8ª - Por outra via, também considerou que atentos os danos invocados pelo Autor – cujo valor indemnizatório pedido assenta, maioritariamente, em danos de natureza não patrimonial – ocorreram em território português.

9ª - Concluindo que, independentemente do critério adotado pelo Autor, as regras de competência internacional aplicáveis (mais concretamente, as que resultam do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12 de dezembro) sempre atribuiriam a competência aos tribunais portugueses para a presente ação, pelo que improcedia a exceção dilatória de incompetência absoluta dos tribunais portugueses para dirimirem o presente litígio.

10ª – Com efeito, a questão da competência internacional deve ser aferida em função da forma como a ação é configurada pelo autor na petição inicial.

11ª - Neste conspecto, decorre da presente ação, tal como configurada pelo Autor, que este tem o seu domicílio em Portugal e que a Ré tem o seu domicílio em Espanha.

12ª - Por outro lado, tal competência internacional também se afere em função do pedido formulado pelo Autor e dos fundamentos (causa de pedir) que o suportam.

13ª - A presente ação tem como causa de pedir a alegada prática culposa de alegados factos ilícitos causadores de danos patrimoniais e morais, visando efetivar a responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana da Ré, ora Recorrente.

14ª - Com efeito, in casu, conforme decorre do alegado em 6º a 35º da Petição Inicial, o facto alegado pelo Autor que no seu entender é ilícito e causador de danos consiste na atuação da Ré, que de forma intencional e pensada, se mudou com os seus filhos para Espanha, para local desconhecido do Autor, sem o seu conhecimento ou consentimento, escondendo do Autor a localização dos filhos de ambos, impedindo com tal conduta que o Autor, desde janeiro de 2015, tenha consigo os seus filhos nos termos acordados e homologados por sentença, no âmbito do processo de regulação das responsabilidades parentais.

15ª – Neste conspecto, e contrariamente ao defendido pelo Tribunal a quo, tal facto ilícito e causador de danos OCORREU EM ESPANHA, isto é, ocorreu quando a Ré passou a residir com os menores em Espanha, com carater duradouro, sem o consentimento e autorização do Autor, isto é, o facto danoso verificou-se no momento em que os menores começaram a residir em Espanha, pois se estes não estivessem a residir naquele país e tivessem permanecido em Portugal, não se verificaria qualquer ilicitude e não teriam ocorridos quaisquer danos.

16ª - Acresce que, todos os danos patrimoniais descritos pelo Autor em 44º a 89º da sua petição inicial provocados pela alegada residência dos menores, com carater duradouro, em Espanha, sem a autorização e consentimento do Autor, mormente gastos com deslocações em Espanha e estadias em hotéis em Espanha, também ocorreram necessariamente em Espanha, mais uma vez contrariamente ao determinado pelo tribunal a quo.

17ª - Já os danos morais, pormenorizadamente descritos em 90º a 117º da P.I., também foram alegadamente provocados, indireta e consequentemente, pela fixação da residência dos menores Espanha, sem o consentimento e autorização do Autor e inerente incumprimento do regime de visitas estabelecido em Portugal, por acordo homologado por sentença, no âmbito de ação de regulação das responsabilidades parentais.

18ª - Trata-se, assim, como é de meridiana clareza, de um litígio emergente de uma relação plurilocalizada ou transnacional face aos diversos elementos de conexão com ordens jurídicas estrangeiras: o Autor tem nacionalidade e residência portuguesa, a Ré tem nacionalidade e residência espanhola, os factos ilícitos que o Autor imputa à Ré ocorreram em Espanha, os danos patrimoniais que o Autor imputa à Ré ocorreram em Espanha e os danos morais são indiretamente decorrentes da atuação alegadamente ilícita da Ré ocorrida em Espanha.

19ª - Assim, prima facie, para efeitos de definição do foro internacionalmente competente (dentro da EU e uma vez que, conforme supra referimos as partes têm o seu domicílio em diferentes Estados Membros), haverá que atender-se às regras estabelecidas no Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012 (também designado por “Regulamento Bruxelas Ibis”), no qual se estabelece o regime comunitário relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial.

20ª - Tal Regulamento é obrigatório em todos os seus elementos e diretamente aplicável em todos os Estados-Membros, em conformidade com o Tratado que institui a Comunidade Europeia.

21ª - A presente ação, tal como se encontra configurada pelo Autor na sua P.I., está compreendida no âmbito territorial, material e temporal do Regulamento n.º 1215/2012.

22ª – Com efeito, o litígio tem conexão com o território de Estados - Membros vinculados pelo Regulamento, uma vez que o Autor tem residência em Portugal e a Ré é domiciliada em Espanha;

23ª - a ação tem por objeto matéria civil (especificamente o que está em causa é a eventual responsabilidade civil extracontratual da Ré pela prática de factos ilícitos) não excluída do âmbito do Regulamento por nenhum dos seus preceitos;

24ª - e a ação foi instaurada depois de 10 de Janeiro de 2015, data em que entrou em vigor o Regulamento, o qual é aplicável apenas às ações judiciais intentadas depois da sua entrada em vigor (artigos 66º e 81.º do Regulamento).

25ª O artigo 7º n.º 2 do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12 de dezembro de 2012, determina que as pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro, em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso.

26ª - Não vem sendo, todavia, pacífica a interpretação a dar à expressão “lugar onde ocorreu o facto danoso”.

27ª - A tal propósito, podemos sintetizar tal controvérsia em duas correntes de opinião.

Uma - mais arreigada à letra da lei (e portanto suportada no elemento literal e da interpretação feita com base nele) - defendendo que “o facto danoso” deve ser entendido como o facto ou evento que desencadeou ou causou o dano, ou seja, que esteve na origem do dano, e gerador, portanto, da responsabilidade civil extracontratual, e que está normalmente associado a um facto dominável ou controlável pela vontade humana, pelo que o tribunal competente é aquele do lugar onde esse facto ocorreu. (Nesse sentido, cfr., por todos, Acs. da RC de 1/6/2004 e de 19/12/2000, respectivamente, in “CJ, Ano XXIX, T3 – 21” e in “Agravo de 19/12/2000”).

28ª - Um outra corrente - alicerçada na jurisprudência do TJUE e na interpretação autónoma que dela tinha sido feita por esse Tribunal - entendendo que aquela expressão abrange tanto o lugar onde se verifica o dano como o lugar onde ocorre o evento causal do mesmo, de tal forma que não havendo coincidência entre tais lugares o autor sempre poderá escolher entre cada um dos tribunais que tem jurisdição sobre tais lugares, dada a estreita conexão que têm com o litígio, não se justificando a exclusão de qualquer deles.

29ª - Porém, tal interpretação deverá ser feita com um campo limitado, no que concerne ao lugar da verificação do dano, por forma a entender-se não ser de considerar-se como lugar da materialização do dano o Estado ou Estados onde se façam sentir as consequências danosas de um evento que causou um dano num outro Estado.

30ª- Ou seja, embora seja em princípio de admitir que o referido conceito possa abranger quer o lugar onde se produziu o dano, quer o lugar do evento que o produziu, não pode, todavia, ser interpretado de modo extensivo no sentido de abranger ou englobar todo e qualquer lugar onde se possam fazer sentir as consequências danosas de um facto que causou já um dano efetivamente ocorrido noutro lugar.

31ª - De tal forma que, sintetizando tal corrente de opinião, deve concluir-se que a interpretação do referido conceito, inserto no art.º 7, nº 2, do Regulamento, deve ser feita no sentido de abranger tanto a competência do tribunal do lugar onde ocorreu o dano, como a competência do tribunal do lugar onde ocorreu o evento/facto causal dele.

32ª - Porém, acontecendo que, em consequência de um dano produzido num dado lugar, venham ainda a produzir-se outros danos noutros lugares, só o dano ocorrido em primeiro lugar determinará a competência do tribunal.

33ª - Ora, posto isto, e independentemente da corrente de opinião que se perfilhe, sobre a interpretação a dar ao conceito expressivo inserto no art.º 7º, nº 2, do Regulamento (“tribunal onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso”), é patente que, também à luz da aplicação do critério especial previsto em tal normativo comunitário, é competente o foro espanhol para julgar a presente ação.

34ª - Na verdade, foi no território espanhol que ocorreu o evento causal do dano gerador da responsabilidade civil extracontratual (por facto ilícito) na qual se fundamenta o autor para exercitar na ação a sua pretensão indemnizatória. Ou seja, quando a Ré fixou a residência dos menores em Espanha com carater duradouro e sem autorização do Autor que ocorreu o dano.

35ª - Foi também nesse território (com a fixação da residência das crianças em Espanha) que ocorreu o primeiro dano sofrido pelo autor, traduzido na impossibilidade de visitar os seus filhos, tal como estava acordado no regime de regulação das responsabilidades parentais estabelecido em Portugal.

36ª - Sendo que os subsequentes danos patrimoniais e morais descritos pelo Autor na P.I. não são mais do que consequências ou sequelas daquele evento que causou um primeiro efetivo dano (fixação de residência em Espanha e consequente ausência de visitas aos seus filhos menores) e que lhe são subsequentes, ou seja, que se lhe sucederam.

37ª - Em suma, o facto ilícito que fundamenta o pedido (fixação da residência dos menores em Espanha sem a autorização do Autor) ocorreu em Espanha, todos os danos patrimoniais (deslocações em Espanha e estadias em hotéis em Espanha) que o Autor imputa à Ré, subsequentes ao dano inicial supra descrito que alegadamente constituem causa adequada daquele alegado facto ilícito também ocorrerem em Espanha.

38ª - Pelo que, é sem sombra de dúvida o foro espanhol o competente para julgar a responsabilidade civil extracontratual da Ré quanto aos alegados danos patrimoniais que lhe são imputados pelo Autor.

39ª – Conforme já referido supra, quando o lugar do facto gerador de responsabilidade extracontratual e o lugar onde esse facto provocou um prejuízo não coincidam, a expressão “lugar onde ocorreu o facto danoso”, deve ser entendida no sentido de que se refere tanto ao lugar onde o prejuízo se verifica como ao do evento causal, pelo que o autor pode optar entre o tribunal do lugar do facto e o do dano para demandar o alegado responsável.

40ª – No entanto, é de excluir a atribuição de competência com este fundamento aos tribunais do lugar da verificação de um dano apenas indiretamente causado pelo evento gerador de responsabilidade civil extracontratual.

41ª - Destarte, sendo os danos morais descritos pelo Autor na sua Petição Inicial subsequentes ou consecutivos do dano inicial causado pelo evento gerador de responsabilidade civil extracontratual (fixação de residência dos menores em Espanha com carater duradouro e sem autorização do Autor e consequente impedimento de cumprimento do regime de visitas estabelecido por acordo, homologado por sentença, em ação de regulação das responsabilidades parentais), deverá considerar-se que são os tribunais espanhóis que têm competência para dirimir o presente litígio, também quanto a estes danos extra-patrimoniais.

42ª - Assim sendo, verifica-se, in casu, a exceção dilatória de incompetência absoluta dos tribunais portugueses para dirimirem o presente litígio, por infração das regras de competência internacional plasmadas no Regulamento n.º 1215/2012 (cfr. artigo 96º al. a) do CPC), conducente à absolvição da instância nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 278º do CPC,

43ª – pelo que, ao decidir pela improcedência de tal exceção, violou o tribunal a quo o nº 4 do artigo 581º do Código de Processo Civil, no n.º 2 do artigo 7º do Regulamento (EU) n.º 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 20212, a al. a) do artigo 96º e a alínea a) do n.º 1 do artigo 278º ambas do Código de Processo Civil.

Para instruir o presente recurso (…).

Nestes termos, e nos mais de direito aplicáveis, com o douto suprimento de V. Ex.ªs, deverá o presente recurso ser julgado procedente, por provado e, consequentemente, deverá o despacho judicial saneador de 21.09.2021, com a Ref.ª 86298173, ser revogado, determinando-se que se verifica a exceção dilatória de incompetência absoluta dos tribunais portugueses para dirimirem o presente litígio, por infração das regras de competência internacional plasmadas no Regulamento n.º 1215/2012 (cfr. artigo 96º al. a) do CPC), conducente à absolvição da instância nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 278º do CPC, SÓ ASSIM SE FARÁ A COSTUMADA JUSTIÇA!»

c) O Autor contra-alegou e concluiu assim:

«1.º A Recorrente requer a atribuição de efeito suspensivo, sem razão. O artigo 647.º, n.º 4, do CPC, impõe a verificação de dois requisitos cumulativos para a atribuição de efeito suspensivo (a alegação e comprovação da existência de um prejuízo considerável e o oferecimento e, posterior, efetiva prestação de caução). A Recorrente não cumpriu qualquer um daqueles requisitos.

2.º Não merece qualquer censura a decisão recorrida. O Tribunal a quo não violou o disposto nos artigos 581.º, n.º 4, do CPC, não se compreendendo, sequer, porque razão tal norma jurídica é invocada (nem tendo a Recorrente indicado em que sentido deveria ser aplicada), já que a mesma se reporta aos requisitos da litispendência e do caso julgado, o que não está em discussão neste recurso.

3.º Da mesma forma, o Tribunal a quo não violou o disposto no artigo 7.º, n.º 2, do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, do Parlamento e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, 96.º, alínea a) e 278.º, n.º 1, alínea a), do CPC, tendo  

5.º A Recorrente introduz duas alterações na sua alegação de recurso em face ao por si alegado na sua contestação, na tentativa (desesperada e sem qualquer sustentação legal) de tentar “encaixar” os requisitos legais na tese que mais lhe convém:

a) enquanto, na sua contestação, a Recorrente admitia que os danos não patrimoniais invocados pelo aqui Recorrido na sua petição inicial “podem considerar-se como tendo corrido em Portugal (sic, veja-se artigo 11.º e 12.º da contestação), agora, nas suas alegações de recurso já omite tal segmento;

b) enquanto, na sua contestação, a Recorrente identifica como o facto ilícito a deslocação ilícita dos menores, nas suas alegações de recurso já vem invocar como facto ilícito (e também como dano) a fixação da residência dos menores em Espanha.

6.º Ora, tal como sustenta a decisão recorrida, os factos ilícitos que estiveram na origem dos danos invocados pelo aqui recorrido ocorreram em território português: os danos alegados “desencadearam-se, por um lado, pelo facto de a Ré se ter deslocado com os menores para local distinto ao que previamente havia sido estabelecido no acordo de regulação das responsabilidades parentais, com vista a impossibilitar o cumprimento dos direitos instituídos no referido acordo e, por outro, pelo facto de o A. (aqui se corrige o evidente lapso da decisão recorrida, que refere a Ré) ter ficado impedido de exercer os seus direitos de visita e os demais direitos estabelecidos no referido acordo de regulação das responsabilidades parentais” (cfr. decisão recorrida).

7.º O facto ilícito alegado pelo Recorrido, como decorre cristalinamente da sua petição inicial, é o impedimento que a Recorrente, sem qualquer justificação e de modo reiterado, realizou de o Recorrido, desde 23 de Janeiro de 2015 (dia em que, nos termos da cláusula 4.ª da regulação das responsabilidades parentais, era suposto o Recorrido ir buscar os seus filhos para com eles passar o fim-de-semana), ter consigo os seus filhos nos termos acordados e homologados  por sentença no âmbito do processo de regulação das responsabilidades parentais, impedindo a convivência dos menores com o Recorrido.

8.º No momento do facto ilícito quer o Recorrido, quer a Recorrente, quer os filhos de ambos, tinham residência habitual em Portugal. O facto ilícito não correu, assim, em Espanha, como bem refere a decisão recorrida, mas sim em Portugal, pois era em Portugal que as crianças residiam e era em Portugal que o Recorrido, nos termos da cláusula 4.ª da regulação das responsabilidades parentais, tinha o direito e dever de ir buscar os seus filhos para com eles passar o fim-de-semana.

9.º Da mesma forma, os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo Recorrido ocorreram em Portugal, conforme, bem, indica a decisão recorrida. Conforme consta da petição inicial apresentada pelo Recorrido, é em Portugal que o Recorrido vive, trabalha e tem domiciliadas as suas contas bancárias e foi aqui que pagou e suportou todos os encargos decorrentes dos danos patrimoniais alegados, bem como foi aqui, em Portugal, onde tem a sua vida organizada e onde reside, que sofreu todos os danos não patrimoniais peticionados.

10.º Os danos não patrimoniais alegados na petição inicial não foram “indiretamente” causados pela atuação ilícita da Recorrente e mais bem descrita na petição inicial. Antes foram diretamente causados pela mesma. Para tentar distorcer este facto incontornável, vem agora a Recorrente, de forma intencional, procurar “misturar” facto ilícito e dano, dizendo, deturpadamente, que o facto ilícito seria a fixação da residência dos menores em Espanha e o dano, pasme-se, também seria a fixação da residência dos menores em Espanha. Assim não é, como, bem e de forma absolutamente fundamentada, entendeu a decisão recorrida.

11.º À luz de qualquer corrente interpretativa e independentemente do critério a adotar, como bem refere a decisão recorrida, as regras de competência internacionais aplicáveis, nomeadamente o disposto no artigo 7.º, n.º 2, do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, sempre atribuiriam a competência aos tribunais portugueses para a decisão da ação proposta pelo Recorrido.

12.º Acresce que é com a jurisdição portuguesa que o presente litígio tem afinidade: foi em Portugal que a regulação das responsabilidades parentais que a Recorrente violou foram homologadas por sentença; é em desrespeito a uma decisão judicial portuguesa que a Recorrente impede o convívio do Recorrido com os seus filhos. Sempre foi em Portugal que a vida familiar do Recorrido, incluindo na relação com os seus filhos, esteve e está organizada.

13.º E a igual conclusão se chegaria por aplicação do disposto no artigo 7.º, n.º 3, do Regulamento (EU) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro, já que, como se alegou na petição inicial, a presente ação emerge, precisamente, daquela ação pública, na sequência do despacho datado de 26 de Novembro de 2019, que determinou, no âmbito do processo crime 328/15.5T9CBR, que corre termos no Juízo de Competência Genérica de Montemor-o-Velho, ao abrigo do n.º 3 do artigo 82.º do Código de Processo Penal, a remessa das partes cíveis (os aqui Recorrido e Recorrente) para os tribunais civis.

14.º Em suma, todos os elementos de conexão relevantes (facto ilícito e dano) ocorreram em Portugal, sendo o português o foro competente, como bem decidiu a decisão recorrida, que não merece qualquer censura.

15.º A decisão recorrida não violou as disposições jurídicas invocadas nas conclusões de recurso da Recorrente, tendo procedido à correta aplicação do direito.

Para instruir o recurso (…).

Termos em que, e nos melhores de direito, deverá ser negado provimento ao recurso interposto pela Recorrente, mantendo-se a decisão recorrida, assim se fazendo a acostumada Justiça.»

II. Objeto do recurso.

O presente recurso coloca apenas duas questões:

1 - Em primeiro lugar coloca-se a questão de saber se o recurso é admissível, sustentando o Recorrido que não, porquanto, diz, «4.º O disposto no artigo 639.º do CPC elenca o ónus de alegação que incumbe sobre o Recorrente quando o recurso verse sobre matéria de direito. A Recorrente não cumpre tais requisitos, limitando-se a reproduzir o por si alegado em sede de contestação, pelo que deverá o recurso ser rejeitado.»

2 -  A segunda questão consiste em saber qual é o tribunal internacionalmente competente para conhecer da causa, face ao Regulamento n.º 1215/2012, sabendo-se que o Autor tem residência em Portugal e a Ré é domiciliada em Espanha e se trata de uma ação para efetivação de responsabilidade civil extracontratual, instaurada pelo Autor (pai dos menores) contra a Ré (mãe dos menores), baseada no facto de estar estipulado entre ambos, numa altura em que a ré residia em Portugal,  que o Autor estaria com os filhos em Portugal, nos períodos acordados, sendo certo que a mãe dos menores, sem o acordo do Autor, deslocou os filhos para Espanha, onde fixou residência, desde 2015, factualidade esta que, segundo o alegado pelo Autor, lhe causou e causa danos patrimoniais e não patrimoniais.

 III. Fundamentação

a) Inadmissibilidade do recurso

Vejamos se deve rejeitar-se o recurso, porquanto, como diz o Recorrido, «4.º O disposto no artigo 639.º do CPC elenca o ónus de alegação que incumbe sobre o Recorrente quando o recurso verse sobre matéria de direito. A Recorrente não cumpre tais requisitos, limitando-se a reproduzir o por si alegado em sede de contestação, pelo que deverá o recurso ser rejeitado.»

Não assiste razão ao Recorrido.

Com efeito, como decorre do relatório que antecede, a Recorrente indica com clareza as razões de facto e de direito que a levam a discordar a decisão recorrida.

Não há razões, por isso, para rejeitar o recurso.

b) Matéria alegada na petição

(I) Os menores C., nascida em 11 de Julho de 2009, e D., nascido em 9 de Janeiro de 2011, são filhos da Ré recorrente e do Autor recorrido.

(II) No âmbito da acção especial de regulação do exercício das responsabilidades parentais, com o n.º 133/13.3TBMMV, que correu termos, inicialmente no Tribunal Judicial de Montemor-o-Velho e mais tarde na Instância Central da Figueira da Foz – 2.ª Secção de Família e Menores – J1, foi homologado por sentença datada de 28 de Fevereiro de 2014 um acordo quanto à regulação do exercício das responsabilidades parentais dos menores que, do qual ficou a constar o seguinte:

«1. exercício das responsabilidades parentais relativamente às questões de particular importância para a vida dos menores C. e D. serão exercidas, em conjunto, por ambos os progenitores.

2. Acordam os progenitores que constituem questões de particular importância para a vida dos filhos:

i. (…)

ii. Saída dos filhos para o estrangeiro, não em turismo, mas em mudança de residência, com algum carácter duradouro

iii. (…)

3 - (…)

4 - Os menores passarão fins-de-semana alternados com o progenitor devendo este, os avós ou tios paternos ir buscá-los na sexta-feira ao estabelecimento de ensino que frequentem, no final das actividades lectivas, e entregá-los no Domingo à porta do prédio em que a mãe reside entre as 19:00 horas e as 20:00 horas.

5 - O pai terá consigo os menores às terças-feiras entre as 17:00 horas e as 21:00 horas, devendo para o efeito, ir buscá-los ao estabelecimento de ensino que frequentem e entregá-los até às 21:00 horas desse mesmo dia à porta do prédio em que a mãe reside.

6 - (…); 7 - (…); 8 - (…); 9 - (…); 10 - (…); 11 - (…);

12 - O pai desde já autoriza a que a mãe se desloque com os menores a Espanha, nos períodos em que tenha os menores consigo, sem prejuízo das actividades escolares e do regime estabelecido para os convívios e contactos pessoais entre o progenitor e os seus filhos, devendo a mãe, no entanto, comunicar previamente ao pai as deslocações respectivas».

Na sequência de incidente de incumprimento da regulação das responsabilidades parentais, foi homologada por sentença, datada de 31 de Outubro de 2014, alteração parcial ao acordo de regulação do poder parental, que alterou as acima citadas cláusulas quarta e quinta, mantendo as restantes transcritas inalteradas:

1 - (…); 2 - (…); 3 - (…);

4 - Os menores passarão fins-de-semana alternados com o progenitor devendo este, os avós ou tios paternos ir buscá-los na sexta-feira ao estabelecimento de ensino que frequentem, no final das actividades lectivas, e entregá-los no Domingo à porta do prédio ou do apartamento onde a mãe reside entre as 21:30 horas e as 22:30 horas, já com jantar e banhos tomados.

5 - O pai poderá ter consigo os menores às terças-feiras desde o final das suas actividades curriculares ou extracurriculares, devendo para o efeito, ir buscá-los ao local das actividades que frequentem e entregá-los até às 21:30 horas desse mesmo dia, com o jantar tomado, à porta do prédio ou do apartamento onde reside a requerida e os menores (cfr. documento que se junta sob o n.º 4 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).»

(III) A mãe e os menores residiam então na ..., Montemor-o-Velho.

(IV) Após o fim-de-semana de 9 a 11 de Janeiro de 2015, o Autor entregou os filhos à mãe nesta residência e de seguida a mãe foi residir para Espanha levando os filhos consigo, sem informar o Autor e sem o consentimento deste.

(V) O Autor fez diversas deslocações Espanha, em automóvel, com o fim de localizar e estar com os filhos o que implicou a realização de despesas com combustível   e outras.

Alegou ter sofrido «…angústia, dor, sofrimento, medo e tristeza causados, bem como pela privação que provocou no acompanhamento do crescimento dos filhos…»

(VI) Formula o seguinte pedido:

Termos em que, e nos melhores de direito, deve a presente ação ser julgada procedente, por provada, e, em consequência, a Ré condenada a  pagar ao Autor:

a) a quantia de 6.429,70 euros (seis mil quatrocentos e vinte e nove euros e setenta), a título de danos patrimoniais;

b) a quantia de 32.500 euros (trinta e dois mil e quinhentos euros), a título de danos não patrimoniais;

c) juros de mora sobre as quantias acima identificadas, à taxa legal de 5%, a contar da notificação deste pedido, até integral e efectivo pagamento.»

c) Apreciação da outra questão objeto do recurso

Recapitulando e resumindo, existia um acordo entre os pais, homologado pelo tribunal, segundo o qual os menores residiriam com a mãe, como já residiam e continuaram a residir, em Montemor-o-Velho e o pai estava com os menores em fins de semana alternados e às 3.ª feiras à noite. Em 2015 a mãe foi residir para Espanha, sem o acordo do pai, e levou os filhos consigo, atuação esta que implicou, na alegação do Autor, os danos patrimoniais e não patrimoniais que peticiona.

Vejamos então qual o tribunal internacionalmente competente para conhecer da causa, face ao Regulamento n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (reformulação) – doravante designado apenas por «Regulamento».

1 - O n.º 2 do artigo 7.º (Competências especiais) do Regulamento, diz o seguinte:

«As pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro: (…). 2) Em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso;»

2 - Muito embora não venha questionada a qualificação do caso como sendo de responsabilidade extracontratual, cumpre começar com um breve apontamento sobre os conceitos de «responsabilidade contratual» e «responsabilidade extracontratual» no âmbito a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia.

Sobre esta matéria, o Tribunal de Justiça da União Europeia, no acórdão de 24 de novembro de 2020, no processo C-59/2019 (Relator: Marek Safjan), disse o seguinte:

«23. Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o conceito de «matéria extracontratual», na aceção do artigo 7.º, ponto 2, do Regulamento n.º 1215/2012, abrange qualquer ação destinada a pôr em causa a responsabilidade de um demandado e que não esteja relacionada com a «matéria contratual», na aceção do artigo 7.º, ponto 1, alínea a), deste regulamento (v., neste sentido, Acórdãos de 27 de setembro de 1988, Kalfelis, 189/87, EU:C:1988:459, n.º 18, e de 12 de setembro de 2018, Löber, C-304/17, EU:C:2018:701, n.° 19), a saber, que não se baseie numa obrigação jurídica livremente assumida por uma pessoa para com outra (Acórdão de 20 de janeiro de 2005, Engler, C-27/02, EU:C:2005:33, n.° 51).»

E mais adiante:

«32. Assim, uma ação está relacionada com matéria contratual, na aceção do artigo 7.º, ponto 1, alínea a), do Regulamento n.º 1215/2012, se a interpretação do contrato que vincula o demandado ao demandante for indispensável para estabelecer o caráter lícito ou, pelo contrário, ilícito do comportamento censurado ao primeiro pelo segundo (v., neste sentido, Acórdão de 13 de março de 2014, Brogsitter, C-548/12, EU:C:2014:148, n.º 25). É o caso, nomeadamente, de uma ação cujo fundamento assenta nas cláusulas de um contrato ou nas regras de direito aplicáveis em razão desse contrato (v., neste sentido, Acórdãos de 10 de setembro de 2015, Holterman Ferho Exploitatie e o., C-47/14, EU:C:2015:574, n.º 53, e de 15 de junho de 2017, Kareda, C-249/16, EU:C:2017:472, n.os 30 a 33).

33. Em contrapartida, quando o demandante invoca, na sua petição, as regras da responsabilidade extracontratual, a saber, a violação de uma obrigação imposta por lei, e não se afigura indispensável examinar o conteúdo do contrato celebrado com o demandado para apreciar o caráter lícito ou ilícito do comportamento censurado a este último, uma vez que tal obrigação se impõe ao demandado independentemente desse contrato, o fundamento da ação enquadra-se na matéria extracontratual, na aceção do artigo 7.º, ponto 2, do Regulamento n.º 1215/2012.» - ( in https://curia.europa.eu/jcms/jcms/P_106311/pt/).

Ou seja, a responsabilidade contratual é apenas aquela que implica, para efeitos da sua determinação, a análise e interpretação de contratos.

No caso dos autos, muito embora estejamos perante um acordo entre pais homologado por sentença, um tal acordo não constitui um contrato, desde logo, por se tratar de matéria que está subtraída à livre disponibilidade das partes, situação esta de indisponibilidade que não permite a sua sujeição à autocomposição das partes através do exercício da sua liberdade contratual.

Estamos, por conseguinte, no âmbito da responsabilidade extracontratual.

3 – Como se vem referindo nos autos, em matéria de responsabilidade extracontratual as pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro se este último ficar situado «o lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso.»

Tal como a Ré refere nas suas alegações, suscitam-se dúvidas de interpretação sobre o que se deve entender por «lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso.»

No acórdão do Tribunal de Justiça, de 29 de julho de 2019, proferido no processo C‑451/18 (Tibor‑Trans Fuvarozó és Kereskedelmi Kft. contra DAF Trucks NV), este tribunal ponderou que «27. No que respeita à determinação do lugar de materialização desse dano, há que observar que o mesmo depende da questão de saber se se trata de um dano inicial, diretamente decorrente do evento causal, cujo lugar de ocorrência pode justificar a competência à luz do artigo 7.o, ponto 2, do Regulamento n.º 1215/2012, ou se se trata das consequências adversas subsequentes que não podem fundamentar uma atribuição de competência com base nesta disposição (v., neste sentido, Acórdão de 5 de julho de 2018, flyLAL‑Lithuanian Airlines, C‑27/17, EU:C:2018:533, n.o 31).»

Ou seja, no dizer do acórdão, «28. (…) o conceito de “lugar onde ocorreu o facto danoso” não pode ser interpretado de modo extensivo a ponto de englobar qualquer lugar onde se podem fazer sentir as consequências danosas de um facto que causou já um dano efetivamente ocorrido noutro lugar. Por conseguinte, precisou que este conceito não pode ser interpretado como abrangendo o lugar onde a vítima alega ter sofrido um prejuízo patrimonial consecutivo a um dano inicial ocorrido e sofrido por esta noutro Estado (Acórdão de 5 de julho de 2018, flyLAL‑Lithuanian Airlines, C‑27/17, EU:C:2018:533, n.º 32 e jurisprudência referida).»

A este respeito, Luís de Lima Pinheiro refere que «O TCE/TUE também tem procedido a uma interpretação autónoma da expressão “lugar onde ocorreu o facto danoso”, entendendo que abrange tanto o lugar onde o dano se produz como o lugar onde ocorre o evento causal. Por isso, caso não haja coincidência entre estes dois lugares, o autor pode escolher entre a jurisdição de cada um deles. O TCE entendeu que ambas as jurisdições têm uma conexão estreita com o litígio, não se justificando a exclusão de qualquer delas» - Direito Internacional Privado, Vol. III, Tomo I (Competência Internacional), 3.ª edição refundida. Lisboa, AAFDL Editora, 2019, pág. 131.

4 – O facto que desencadeia os danos alegados pelo Autor é o incumprimento por parte da mãe dos menores, relativo ao acordo sobre o exercício das responsabilidades parentais, cujos termos ficaram mencionados supra.

É este incumprimento dá-se com o abandono da residência em Portugal, pelo que é este abandono que surge como facto causal dos danos alegados.

Tal incumprimento ocorre no local onde as obrigações relativas ao acordo parental eram cumpridas.

Verifica-se que, nos termos do acordo, o Autor ia buscar os filhos à residência da Ré, sita em Montemor-o-Velho, e no final do respetivo período entregava-os nessa mesma residência, pelo que o referido incumprimento ocorreu, nasceu, surgiu factualmente, com o abandono da residência que existia à data em que foi estabelecido o regime relativo às responsabilidades parentais.

Não se pode dizer, como a Ré afirma (Conclusão 15.ª, entre outras), que o facto gerador do dano ocorreu em Espanha, porque foi neste país que a Ré fixou a nova residência.

Não é assim.

A fixação da nova residência é indiferente para a verificação do incumprimento, que se basta com o abandono da residência primitiva, pois sempre existirá incumprimento mesmo que não seja fixada nova residência em lugar algum, como ocorreria, por hipótese, num caso de nomadismo.

Por conseguinte, o facto “abandono da residência”, reportado ao local da residência fixada à data em que foi estabelecido o regime relativo às responsabilidades parentais é, no caso, o facto causal gerador do dano, relevante para efeitos do n.º 2 do artigo 7.º do referido Regulamento.

Tal facto ocorreu na área territorial do tribunal de Montemor-o-Velho, Portugal, e é suficiente para atribuir ao tribunal desta localidade, nos termos do n.º 2, do artigo 7.º do Regulamento, a competência internacional para julgar a ação.

Os tribunais portugueses também seriam competentes internacionalmente seguindo o critério do local onde se produziram os danos.

Com efeito, quanto aos danos não patrimoniais os mesmos produziram-se na própria pessoa do Autor, por conseguinte, no local onde então se encontrava, ou seja, na sua residência, em Viseu.

E quanto aos danos patrimoniais sucedeu o mesmo, pois as despesas que fez traduziram-se numa diminuição do seu património monetário, património este que faz parte do conjunto de todos os direitos e obrigações encabeçados na pessoa do Autor.

Luís de Lima Pinheiro refere que «Quando o prejuízo é constituído exclusivamente por uma perda financeira (dano puramente económico) coloca-se a questão de saber se releva como “lugar onde se produz o dano” aquele em que se localiza o património do lesado, que é geralmente o do seu domicílio. O TUE tem entendido que esta localização só é relevante quando concorra com outros elementos de conexão» -  Ob. Cit., pág. 135.

Ora, havendo a necessidade de definir fisicamente um local onde situar este património monetário, este local tem de coincidir com o local onde o Autor tem a sua residência, onde paga os impostos, e não onde o dinheiro fisicamente ao virtualmente se encontram, no respetivo banco onde a conta bancaria se encontra domiciliada.

O dano patrimonial alegado (despesas monetárias) produz-se no património do Autor, pelo que residindo ele em Portugal, é de considerar que os danos patrimoniais ocorreram em Portugal.

Por tal razão, não é pelo facto do Autor ter feito despesas em Espanha, com compra de combustível ou pagamento de estadias em hotéis, como pretende a recorrente (Conclusão 16.ª entre outras) que desloca para Espanha a produção do dano.

Acrescendo ao domicílio do Autor a circunstância do facto casual dos danos ter ocorrido também em Portugal, não se afigura que existam dúvidas no sentido da competência internacional para julgar a ação caiba aos tribunais nacionais, no caso, ao tribunal de Montemor-o-Velho.

Improcede, pelo exposto, o recurso.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e mantém-se a decisão recorrida.

Custas pela Ré


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Coimbra, …