Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1523/12.4TBACB-E.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: INSOLVÊNCIA
PROMESSA DE PRESTAÇÃO
LEGISLAÇÃO COMUNITÁRIA
INSOLVÊNCIA PARCIAL
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
ALTERAÇÃO
RESIDÊNCIA
PRINCÍPIO DA LIVRE CIRCULAÇÃO
VIOLAÇÃO
CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 10/21/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALCOBAÇA - 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 36, 83, 238, 294 CIRE, REGULAMENTO (CE Nº 1346/2000 CONSELHO DE 29/5, ART. 3 CPC
Sumário: 1.- O processo particular de insolvência, previsto nos arts. 294º a 296º do CIRE, insere-se no Capítulo III, do Título XV, que tal como o Título XIV (que se inicia no art. 271º do mesmo diploma) respeita à execução do Regulamento (CE) nº 1346/2000, do Conselho, de 29.5.

2.- Nesse artigo 271º regula-se a competência internacional do tribunal português para o processo de insolvência principal caso o devedor tenha bens situados fora do nosso país mas dentro de outro estado da União Europeia, tendo em conta o disposto no art. 3º, nº 1, de tal Regulamento. Assim, de acordo com o texto deste normativo, se o centro dos interesses principais do devedor se encontrar localizado em Portugal, o tribunal nacional é competente para abrir e prosseguir esse processo de insolvência principal. Já no caso de o centro dos interesses do devedor se situar fora do nosso território mas dentro de outro Estado membro da U. Europeia então, de acordo com tal art. 3º, seu nº 2, do mesmo Regulamento, o tribunal português é competente para abrir e prosseguir um processo de insolvência relativo ao referido devedor se este possuir um estabelecimento em solo pátrio, sendo, porém, os efeitos deste processo limitados aos bens que se encontrem em Portugal.

3.- Este processo denomina-o o Regulamento de processo territorial, como resulta do citado art. 3º, seu nº 4, enquanto a nossa legislação nacional o denomina de processo particular, no referido Capítulo III do CIRE (art. 294º a 296º).

4.- Por sua vez, quando for aberto um processo de insolvência principal noutro Estado membro, ao abrigo do disposto no referido art. 3º, nº 1, qualquer processo de insolvência aberto posteriormente em Portugal, ao abrigo do nº 2, um processo territorial (ou particular), constitui um processo secundário, como resulta do mencionado art. 3º, nº 3, do Regulamento e da legislação portuguesa (arts. 272º, nº 1, e 296º, nº 1, do CIRE);.

5.- Finalmente, dispõe o mesmo Regulamento no seu art. 3º, nº 4, que nenhum processo de insolvência territorial/particular pode ser aberto antes da abertura de um processo principal de insolvência, salvo nas duas situações particularizadas nas suas a) e b).

6.- Não é possível convolar um processo de insolvência normal, iniciado por insolventes que se apresentaram à falência e na altura residentes em Portugal, sem bens localizados no estrangeiro, para processo particular de insolvência, previsto no art. 294º do CIRE, depois de declarada a falência e no âmbito do processado de exoneração do passivo, se entretanto, entre a apresentação à insolvência e a sentença que a declarou, ambos emigraram para a Alemanha e aí passaram a residir e trabalhar, tanto mais que não têm qualquer estabelecimento em Portugal.

7.- A violação pelo tribunal a quo do princípio do contraditório, previsto no art. 3º, nº 3, do NCPC, gera uma nulidade processual, a arguir, em devido tempo, perante esse tribunal, e não a arguir em recurso, perante o tribunal ad quem.

8.- Só é possível defender que o tribunal tem de autorizar previamente a mudança de residência dos insolventes, ao abrigo do art. 36º, c), do CIRE e de um dever de colaboração dos mesmos, para efeitos de apreciação liminar de exoneração do passivo, à sombra do art. 238º, nº 1, g), do mesmo código, depois da sentença ter declarado a insolvência e de ter fixado a residência aos mesmos, não antes, quando estes se apresentaram à insolvência e mudaram a residência entretanto, mas antes de tal sentença de insolvência.

9.- É inconstitucional a referida interpretação do art. 36º, c), do CIRE e do mencionado dever de colaboração, que exige a prévia autorização do tribunal aos insolventes para mudarem de residência, depois desta ter sido fixada na sentença que declarou a insolvência, designadamente em caso de os mesmos emigrarem para a Alemanha, por violação do art. 44º da C. Rep. Portuguesa.

10.-Não há violação do dever de informação dos devedores insolventes, nos termos do art. 83º, nº 1, a), do CIRE, para os efeitos de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo, a coberto do art. 238º, nº, 1, g), do mesmo código, se os autos não mostram que foi solicitada informação aos mesmos, pelas entidades referidas naquele preceito, no decurso do processo de insolvência, e à qual os insolventes não tenham respondido.

Decisão Texto Integral:
I – Relatório

 

1. P (…) e A (…), casados, residentes na x (...), Alcobaça, apresentaram-se à insolvência, em Julho de 2012, tendo requerido a aprovação de um plano de pagamentos e subsidiariamente a exoneração do passivo restante.

Alegaram que se encontram incapacitados de pagar as suas dívidas as quais ascendem a 281.466,67 €, que discriminaram, e que o requerente marido é empresário em nome individual, auferindo em média a quantia mensal de 400 € e a requerente mulher é assistente operacional numa escola secundária, auferindo o vencimento mensal de 570 €. Que, face aos rendimentos mensais que dispunham no montante de 1500 €, decidiram fazer alguns investimentos entre os quais a aquisição de casa própria e viatura automóvel, mas nos últimos anos o requerente marido começou a ter quebra no volume de trabalho e começou a defrontar-se com dificuldades em cobrar os serviços prestados o que levou a uma redução drástica do rendimento do casal, tendo tentado sem êxito negociar directamente com as instituições financeiras, mas sem êxito. Por fim referem que têm a seu cargo dois filhos menores.

Foi declarado não aprovado tal plano de pagamentos.

Em Março de 2014 foi declarada a insolvência dos requerentes P (…) e mulher A (…), ambos com residência na x (...), Alcobaça.

Na assembleia de credores (Maio de 2014), o administrador da insolvência não se pronunciou favorável ou desfavoravelmente, uma vez que não lhe foi possível obter quaisquer elementos para formular um juízo acerca do peticionado. Os credores (…) opuseram-se à prolação de despacho inicial positivo ao pedido de exoneração do passivo restante.

Na mesma assembleia os insolventes requereram prazo para informar da nova morada, bem como o seu rendimento e entidade empregadora, o que foi deferido.

*

Foi proferida decisão (em Julho de 2014) que decidiu:

a) Convolar o processo de insolvência para processo particular de insolvência, nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 294º e segs. do CIRE;

b) Indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante efectuado pelos insolventes.  

*

2. Os insolventes interpuseram recurso, tendo apresentado as seguintes conclusões:

(…)

3. Inexistem contra-alegações.

II – Factos Provados

Os factos provados são os que dimanam do relatório supra e os que vêm referidos na fundamentação da decisão recorrida, que abaixo vai transcrita.

 

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 639º, nº 1, e 635º, nº 4, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas (pela respectiva ordem lógica do seu conhecimento).

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Caso julgado e aplicação do art. 294º do CIRE.

- Erro na interpretação do art. 294º do CIRE.

- Violação do contraditório.

- Indeferimento liminar do requerimento de exoneração do passivo.

2. A decisão recorrida afastou a possibilidade de exoneração do passivo através de 2 pressupostos; i) considerou que havia lugar à convolação do processo de insolvência para processo particular de insolvência, nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 294º e ss do CIRE, e como tal, não prevendo este regime a exoneração do passivo, não havia lugar à sua aplicação; ii) ponderando o regime da exoneração do passivo não havia lugar ao mesmo por se verificar a circunstância impeditiva prevista no art. 238º, nº 1, g), do CIRE.

A fundamentação foi a seguinte:

“A concessão da exoneração pressupõe a não existência da verificação dos pressupostos negativos a que se faz referência no n.º 1 do artigo 238.º do CIRE.

Neste caso cumpre dar especial atenção ao que dispõe a al. g) do mencionado preceito legal, que reza o seguinte: “o devedor com dolo ou culpa grave, tiver violado deveres de informação, apresentação e colaboração, que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência”.

De acordo com o disposto no artigo 36.º, al. c) do CIRE, na sentença de declaração de insolvência deve ser fixada a residência dos devedores.

“O principal objectivo é de estabelecer a localização do insolvente e administradores, retirando-lhes a possibilidade legal de mudar livremente de residência, de modo a assegurar que estejam sempre contactáveis para o cumprimento das obrigações para eles decorrentes da declaração da insolvência (…)

“Para poder mudar de residência, quem a tiver fixada, deve obter prévia autorização judicial.

“Na eventualidade do o juiz omitir a fixação (…), [mantem-se] a residência que existir à data da sentença”. – vide Luís A Carvalho Fernandes e João Labareda, in CIRE Anotado, Qui Iuris, reimpressão, pág. 189

Aos devedores não foi fixada a sua residência, mediante sentença (vide fls. 153 e ss.), embora à data da sentença, a sua residência fosse, em conformidade com a própria sentença, em Rua da Sobreira, n.º 10, Alfeizerão, Alcobaça.

Sucede, porém, que os Insolventes não requereram qualquer alteração de morada, junto do processo, limitando-se, a 12.12.2013, informar que havia mudado de morada para a Alemanha – vide fls. 122, sendo certo que mediante o requerimento de fls. 295 e ss (entrado em 30.06.2014) vieram informar que não podem apresentar cópia da declaração de IRS referente ao ano de 2013, porquanto declararam rendimentos na Alemanha, o que nos permite concluir que já antes da data de 12.12.2013 os Devedores estariam a trabalhar/morar na Alemanha, sem que tal tenham informado e muito menos pedido autorização ao tribunal, violando assim o dever de informação subjacente.

Atentando-se para o manancial fáctico acima mencionado, verifica-se que os Insolventes não colaboraram com o tribunal na prestação de informações e que, ao contrário, manifestaram um comportamento avesso ao princípio da transparência que é ínsito ao instituto em causa.

Estamos a falar de factos facilmente atestados pelos Requerentes, pois que são factos pessoais e sobre os quais não podiam deixar de ter conhecimento.

Ora, a falta de colaboração para com o tribunal nestes moldes indicados é censurável, apresentando-se tal conduta, se não dolosa, pelo menos a título de culpa grave, já que não se verifica qualquer justificação plausível para terem mudado de residência sem pedir prévia autorização ao tribunal, como forma de se assegurar que estivessem sempre contactáveis para o cumprimento das obrigações para eles decorrentes da declaração da insolvência.

Somos forçados a concluir que se trata de uma conduta violadora do mencionado dever.

Acresce que, não tendo os insolventes o seu domicílio e o centro dos seus principais interesses em Portugal, o processo de insolvência abrange apenas os seus bens situados em território português, devendo este mesmo processo seguir como “processo particular de insolvência”, nos termos dos artigos 294.º e ss do CIRE, devendo ser convolado para esse tipo de processo.

De acordo com a al. c) do artigo 295.º do CIRE, em processo particular de insolvência não são aplicáveis as disposições sobre exoneração do passivo restante, o que determina que o requerido pelos Devedores esteja votado ao insucesso.

Assim e sem necessidade de outras considerações, tudo o que ficou exposto permite-nos concluir pelo indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante”.

3. Conhecendo a 1ª questão, sublinhe-se, desde logo, que os recorrentes, no seu recurso, misturam o caso julgado com a eleição de aplicação do processo particular, prevista no art. 294º do CIRE, que a decisão recorrida levou a cabo.

Nesta decisão deixou-se intocada a prévia decisão de declaração de insolvência, não se tendo proferido outra decisão igual, diferente ou contrária. Assim, não pode falar-se em violação de caso julgado.

O que verdadeiramente está em jogo é saber se a decisão recorrida podia convolar o processo principal de insolvência para um processo particular de insolvência, com a subsequente implicação de aplicabilidade do respectivo regime.

Vejamos. O processo particular de insolvência, previsto nos arts. 294º a 296º do CIRE, insere-se no Capítulo III, do Título XV (que se inicia no art. 275º do mesmo código), que tal como o Título XIV (que se inicia no art. 271º do mesmo diploma) respeita à execução do Regulamento (CE) nº 1346/2000, do Conselho, de 29.5.

Nesse artigo 271º regula-se a competência internacional do tribunal português para o processo de insolvência principal caso o devedor tenha bens situados fora do nosso país mas dentro de outro estado da União Europeia, tendo em conta o disposto no art. 3º, nº 1, de tal Regulamento. Assim, de acordo com o texto deste normativo – Os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em cujo território está situado o centro de interesses principais do devedor são competentes para abrir o processo de insolvência...-, se o centro dos interesses principais do devedor se encontrar, real ou presuntivamente, localizado em Portugal, o tribunal nacional é competente para abrir e prosseguir esse processo de insolvência principal.

Já no caso de o centro dos interesses do devedor se situar fora do nosso território mas dentro de outro Estado membro da U. Europeia então, de acordo com tal art. 3º, seu nº 2, do mesmo Regulamento - No caso de o centro dos interesses principais do devedor se situar no território de outro Estado-Membro, os órgãos jurisdicionais de outro Estado-Membro são competentes para abrir um processo de insolvência relativo ao referido devedor se este possuir um estabelecimento no território desse outro Estado-Membro. Os efeitos desse processo são limitados aos bens do devedor que se encontrem neste último território. -, o tribunal português é competente para abrir e prosseguir um processo de insolvência relativo ao referido devedor se este possuir um estabelecimento – o local de operações em que o devedor exerça de maneira estável uma actividade económica com recurso a meios humanos e a bens materiais, segundo o art. 2º, h), do Regulamento - em solo pátrio, sendo, porém, os efeitos deste processo limitados aos bens que se encontrem em Portugal.

Este processo denomina-o o Regulamento de processo territorial, como resulta do citado art. 3º, seu nº 4, enquanto a nossa legislação nacional o denomina de processo particular, no referido Capítulo III do CIRE (art. 294º a 296º).

Por sua vez, quando for aberto um processo de insolvência principal noutro Estado membro, ao abrigo do disposto no referido art. 3º, nº 1, qualquer processo de insolvência aberto posteriormente em Portugal, ao abrigo do nº 2, um processo territorial (ou particular), constitui um processo secundário, como resulta do mencionado art. 3º, nº 3, do Regulamento – Quando um processo de insolvência for aberto ao abrigo do disposto no nº 1, qualquer processo de insolvência aberto posteriormente ao abrigo do nº 2 constitui um processo secundário… -, e da legislação portuguesa (arts. 272º, nº 1, e 296º, nº 1, do CIRE). O que é confirmado pelo art. 27º do Regulamento, inserido no Capítulo III dedicado ao processo de insolvência secundário – O processo referido no nº 1 do artigo 3º que for aberto por um órgão jurisdicional de um Estado-Membro e reconhecido noutro Estado-Membro (processo principal) permite abrir, neste outro Estado-Membro, em cujo território um órgão jurisdicional seja competente por força do nº 2 do artigo 3º, um processo de insolvência secundário sem que a existência do devedor seja examinada neste outro Estado.

Finalmente, dispõe o mesmo Regulamento no seu art. 3º, nº 4, - Nenhum processo territorial de insolvência referido no nº 2 pode ser aberto antes da abertura de um processo principal de insolvência ao abrigo do nº 1… - que nenhum processo de insolvência territorial/particular pode ser aberto antes da abertura de um processo principal de insolvência, salvo nas duas situações particularizadas nas suas a) e b), que para o nosso caso não interessam. O que é confirmado pelo art. 36º do Regulamento, inserido no Capítulo III dedicado ao processo de insolvência secundário – Se for aberto um processo referido no nº 1 do art. 3º após abertura noutro Estado-Membro de um processo referido no nº 2 do artigo 3º, os artigos 31º a 35º são aplicáveis ao processo aberto em primeiro lugar, na medida em que a situação desse processo o permita.

Articulando estes dispositivos, quer isto significar que, em regra, podem abrir-se e existir dois processos de insolvência, primeiramente o principal e depois o secundário, em dois Estados-Membros da U. Europeia, em função da localização do centro dos interesses do devedor e localização dos seus bens. Excepcionalmente pode abrir-se e existir um único processo, um processo territorial/particular.

De maneira que, dando-se o caso de o centro dos principais interesses do devedor se situar fora do território nacional, não pode existir um processo de insolvência principal. Salvo se o devedor tiver no nosso país um estabelecimento, pois, visto o que dispõe o nº 2 do art. 3º do Regulamento, nessa situação, a insolvência pode ser decretada, mas o processo deve então ser qualificado e seguir como um processo territorial/particular, sendo os seus efeitos restritos aos bens que se encontrem no espaço nacional.

Descendo ao nosso caso, vemos, em primeiro lugar, que inexistem dois processos de insolvência, um principal e outro secundário, a correr em dois Estados-Membros da U. Europeia diferentes, relativamente a bens diferentemente localizados, pois o processo de insolvência é o mesmo, e apenas corre em Portugal.

Em segundo lugar, podendo, em teoria, abrir-se primeiramente um processo de insolvência territorial/particular em Portugal, desde que o devedor esteja domiciliado noutro Estado-Membro ou tenha lá o centro dos seus interesses e tenha bens situados em Portugal, que serão os únicos abrangidos pela insolvência, entendemos que é necessário neste caso que o devedor tenha um estabelecimento no nosso país.

Ora, os recorrentes quando abriram o processo de insolvência em Portugal abriram um processo de insolvência normal, pois à época em que o fizeram residiam em Portugal e não declararam bens no estrangeiro.

Objectar-se-á, porém, que na data em que foram declarados insolventes (Março de 2014) residiam na Alemanha e teriam aí o centro dos seus interesses, segundo informação prestada pelos mesmos em Dezembro de 2013 e Junho de 2014, pelo que o presente processo de insolvência pode ser convolado para um processo de insolvência territorial/particular.

Não podemos acompanhar tal objecção.

Desde logo, a ser possível tal convolação a mesma deve ser feita no âmbito do próprio processo de insolvência e na data em que esta é declarada e não no âmbito do processado de exoneração do passivo e posteriormente a tal data. Depois, e mais decisivamente, é necessário, como se assinalou, que o devedor, nas aludidas circunstâncias – não residir nem ter o centro dos seus interesses no nosso país e estarem aqui localizados bens -, tenha estabelecimento em Portugal, o que não se mostra ocorrer com os recorrentes.

É certo que a nossa lei, no referido art. 294º, nº 2, do CIRE, não parece exigir esse requisito em desfasamento com o que consta do art. 3º, nº 2, do citado Regulamento (e mesmo com o disposto em tal artigo, seu nº 4). Defendemos, no entanto, em face desta diversidade de regime, que não pode ser seguida a lei nacional. Por um lado, porque o art. 275º do CIRE dita expressamente a primazia do Regulamento sobre as normas do CIRE. Por outro lado, porque entendemos que resulta do mesmo Regulamento a intenção do legislador comunitário em estabelecer uma disciplina comum ao processo de insolvência, nos aspectos abrangidos, e que as legislações internas dos Estados-Membros não podem afastar. Isto é particularmente sensível nos considerandos nºs 8) – Para alcançar o objectivo de melhorar a eficácia e a eficiência dos processos de insolvência que produzem efeitos transfronteiriços, é necessário e oportuno que as disposições em matéria de competência, reconhecimento e direito aplicável neste domínio constem de um acto normativo da Comunidade, vinculativo e directamente aplicável aos Estados-Membros -, 11), e 12) - O presente Regulamento permite que o processo de insolvência principal seja aberto no Estado-Membro em que se situa o centro dos interesses principais do devedor. O processo tem alcance universal, visando abarcar todo o património do devedor. Para proteger a diversidade dos interesses, o presente regulamento permite que os processos secundários eventualmente instaurados corram paralelamente ao processo principal. Pode instaurar-se um processo secundário no Estado-Membro em que o devedor tenha um estabelecimento. Os efeitos dos processos secundários limitar-se-ão aos activos situados no território desse Estado. A necessidade de manter a unidade dentro da Comunidade é garantida por normas imperativas de coordenação com o processo principal - do Preâmbulo do Regulamento. Optou-se, assim, por aquilo a que é comum chamar-se harmonização máxima, que não deixa aos Estados-Membros a faculdade de ir mais além, mesmo quando isso pudesse parecer mais favorável aos interesses em jogo (cfr. neste sentido L. Carvalho Fernandes e J. Labareda, CIRE Anotado, 2ª Ed., nota 4. ao artigo 271º, págs. 854/855, nota 3. ao artigo 272º, págs. 856/857, nota 6. ao artigo 294º, págs. 898/899, e nota 3. ao artigo 296º, pág. 902).                 

Não tendo os recorrentes estabelecimento em Portugal queda inaplicável o processo de insolvência territorial/particular para o qual a decisão recorrida convolou o processo de insolvência inicial.

Aliás, a haver convolação só se divisam três hipóteses. Numa, o processo territorial/particular foi aberto antes do processo principal, eventualidade em que se aplica uma espécie de “convolação” nos termos do citado art. 36º do Regulamento. Nas outras; ou o processo secundário foi aberto posteriormente ao processo principal, mas sem conhecimento deste, eventualidade em que logo que a situação seja detectada o processo secundário deve ser oficiosamente convolado para um dos processos de liquidação admitidos no Estado-Membro; ou foi indevidamente aberto como principal um processo secundário, eventualidade em que poderá seguir como secundário, verificados os respectivos pressupostos (pois se eles não estiverem reunidos, faltando nomeadamente a existência de um estabelecimento do devedor no Estado-Membro onde este processo é instaurado, então o processo não pode ser convolado nem prosseguir) – vide autores e ob. cit., nota 5. ao artigo 272º, págs. 857/858. Nenhuma destas hipóteses se verifica, é bom de ver, no nosso caso.   

Por tudo o exposto, não podia o despacho recorrido – no seu segmento decisório sob a) - ser proferido no sentido em que foi, tendo de ser revogado, procedendo o recurso nesta parte. 

4. Face ao acabado de expor é inútil conhecer da subsequente questão, relativa a eventual erro de interpretação do citado art. 294º do CIRE.

5. Defendem os recorrentes que ao não notificar os recorrentes para se pronunciarem quanto às razões que levaram à indicação tardia da sua nova morada, rectius, para que se aquilatasse da existência de causas justificativas ou impeditivas do atraso, o Tribunal a quo não praticou acto a que estava legalmente adstrito, violando, com a sua actuação, o art. 3.º, nº 3º, do NCPC.

No que respeita a esta questão atinente à violação do princípio do contraditório, na dimensão estabelecida no art. 3º, nº 3, do NCPC, ensina L. Freitas que no plano das questões de direito estão proibidas decisões-surpresa, isto é, a decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes, aplicando-se sobretudo às questões de conhecimento oficioso. Por isso, antes de decidir, com base em questão de direito material ou processual de conhecimento oficioso que as partes não tenham considerado, o juiz deve convidá-las a sobre ela se pronunciarem, seja qual for a fase do processo em que tal ocorra. A omissão de tal convite gera nulidade, a apreciar nos termos do art. 195º do NCPC (antigo 201º do CPC) – vide CPC Anotado, Vol. I, 2ª Ed., nota 8. ao artigo 3º, págs. 8/9, e Introdução ao Proc. Civil, 1ª Ed., págs. 102/103.      

Tratando-se de uma situação geradora de uma eventual nulidade processual, ela devia ter sido arguida na 1ª instância, em 10 dias, perante o tribunal a quo (arts. 196º, 2ª parte, 197º, nº 1, e 199º, nº 1, do NCPC) e não perante o tribunal de recurso (só no caso excepcional do art. 199º, nº 3, isso pode acontecer, que no caso não se verifica). Representa, pois, a aplicação da velha máxima processual “das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se”.

Na situação ora em apreço isso não aconteceu, pois os recorrentes não arguiram a respectiva nulidade processual no sítio devido, no tribunal a quo, pelo que a eventual nulidade processual está sanada.

Improcede esta parte do recurso.

6. Quanto ao indeferimento liminar da exoneração do passivo entendemos que o despacho recorrido decidiu mal. Afastada que foi a sua inaplicabilidade por virtude da não aplicação do regime do processo particular de insolvência, e do consequente art. 295º, c), do CIRE, como vimos mais acima, resta analisar se há lugar liminar à sua rejeição ao abrigo do invocado art. 238º, nº 1, g), do CIRE.

Na fundamentação da decisão recorrida refere-se indiscriminadamente ter havido violação do dever de informação como do dever de colaboração, embora nos pareça que se acabou por identificar a violação de tal dever com a omissão do pedido de autorização ao tribunal para mudança de residência. Não conseguimos acolher este entendimento. Primus, porque tal dever de colaboração stricto sensu apenas é imposto legalmente no relacionamento entre o devedor insolvente e o administrador da insolvência. É o que decorre expressa e claramente do disposto no art. 83º, nº 1, c), do CIRE. E dos autos não resulta qualquer facto que tenha afrontado tal dever, nem a decisão recorrida também sequer menciona qualquer acto nesse sentido. Secundus, porque mesmo entendendo-se tal dever lato sensu, não podemos concluir que um insolvente tenha de pedir prévia autorização ao tribunal para mudar de residência, ao contrário do que o despacho recorrido pugna, na esteira do ensinamento doutrinal que cita. Outras normas relevantes e de superior dignidade se erguem contra tal entendimento. Assim, na Declaração Universal dos Direitos do Homem, seu art. 13º, estipula-se no nº 1 que “Toda a pessoa tem o direito de livremente circular e escolher a sua residência no interior de um Estado”, enquanto que o nº 2 do mesmo preceito prescreve que “Toda a pessoa tem o direito de abandonar o país em que se encontra, incluindo o seu, e o direito de regressar ao seu país”. Quer dizer, estabelece-se que é livre a circulação das pessoas e a fixação de residência por parte dos cidadãos, quer abandonando a residência do próprio país, ou a do país de residência, quer procurando uma nova residência noutro Estado (embora neste possam ser impostas por ele regras ou condições de acesso e fixação dessa residência). De outro lado, o Tratado de Funcionamento da U. Europeia, no seu art. 45º, nº 1, estabelece que “A livre circulação dos trabalhadores fica assegurada na União”, enquanto que o nº 3 do mesmo preceito prescreve que “A livre circulação dos trabalhadores compreende, sem prejuízo das limitações justificadas por razões de ordem pública, segurança pública e saúde pública, o direito de: a) Responder a ofertas de emprego efectivamente feitas; b) Deslocar-se livremente, para o efeito, no território dos Estados-Membros; c) Residir num dos Estados-Membros, a fim de nele exercer uma actividade laboral, em conformidade com as disposições legislativas, regulamentares e administrativas que regem o emprego dos trabalhadores nacionais; d) Permanecer no território de um Estado-Membro depois de nele ter exercido uma actividade laboral, nas condições que serão objecto de regulamentos a estabelecer pela Comissão”. Por fim, e sobremaneira importante, a nossa Constituição da República acolheu tais princípios como direitos fundamentais – arts. 8º, 17º e 18º, e delimitou no seu art. 44º que a todos os cidadãos é garantido o direito de se deslocarem e fixarem livremente em qualquer parte do território nacional (nº 1) e a todos é garantido o direito de emigrar ou de sair do território nacional e o direito de regressar (nº 2). Assim, o direito de emigrar, e, em geral, o direito de sair do país de que a emigração constitui uma expressão, impõe a proibição de interdição de saída do país ou a sua sujeição a autorização discricionária da administração (salvo medidas legais de restrição de saída derivadas de limitação da liberdade individual, de carácter penal, condenação em penas prisionais e similares, ou limitações derivadas de saúde, segurança ou ordem pública). Na verdade o Estado não tem o poder de reter os seus cidadãos (salvo casos contados). No caso da EU, o direito de saída e de emigração consubstancia-se na liberdade de circulação de pessoas no espaço comunitário, uma das liberdades de ordem constitucional comunitária (vide G. Canotilho e Vital Moreira, em C. Rep. Portuguesa Anotada, Vol. I, 4ª Ed., nota III., ao artigo 44º, pág. 633).

Desta sorte, a interpretação feita pela decisão recorrida, do art. 36º, c), do CIRE, de que os recorrentes careciam de autorização prévia do tribunal para poder mudar de residência, designadamente para emigrar para a Alemanha, tem de ser taxada de materialmente inconstitucional, por desproporcional, não podendo ser aceite.

Aliás, como bem assinalam os recorrentes, se o próprio CIRE no seu art. 239º, nº 4, d), concedida liminarmente a exoneração do passivo, e durante o período legal da cessão, não exige a prévia autorização do tribunal para mudança da residência, apenas exigindo ao insolvente um dever de informação nesse sentido ao tribunal e ao fiduciário, porque razão essencial, pertinente, absoluta e necessária, exigiria aquela prévia autorização depois da declaração de insolvência mas antes do despacho liminar de exoneração do passivo ? Não se percebe, porque não se descortina qualquer razão de peso nesse sentido interpretativo.  

Mais, a fundamentação do tribunal, nesta parte, nem faz qualquer sentido, pois defende que os insolventes têm de pedir prévia autorização para mudança de residência depois de terem sido declarados insolventes, pelas razões que avançou, e que transcrevemos, tendo-se “esquecido”, no entanto, que a insolvência só foi decretada em Março de 2014, e os recorrentes informaram ter mudado de residência em data anterior, em Dezembro de 2012. Portanto, em altura que não tinham de pedir a referida autorização.

Rejeitado este fundamento, vejamos o remanescente, o da suposta violação do dever de informação. Compreende-se que a não informação sobre a mudança de residência do insolvente possa, eventualmente, representar a violação desse dever de informação, pelas razões apontadas na decisão recorrida, fundadas na doutrina aí citada. O principal objectivo é o de estabelecer a localização do insolvente de modo a assegurar que esteja sempre contactável para o cumprimento das obrigações para ele decorrentes da declaração da insolvência, nomeadamente no que respeita aos deveres de apresentação e colaboração. Este dever de informação existe mesmo em fase anterior à sentença de insolvência para o devedor que se apresenta à mesma. Tal estrito dever de informação vem previsto no já citado art. 83º, nº 1, a), do CIRE, onde se dispõe que o devedor fica obrigado a fornecer todas as informações relevantes para o processo que lhe sejam solicitadas pelo administrador de insolvência, pela assembleia de credores, pela comissão de credores ou pelo tribunal.

Ora, nem a decisão recorrida o afirma, nem nós vemos, qual foi a informação que tenha sido solicitada, pelas aludidas entidades, aos insolventes, e a que estes, no decurso do processo de insolvência, não tenham respondido ?

Relembre-se que foram os recorrentes que de modo próprio foram informar que haviam mudado de morada para a Alemanha (em Dezembro de 2012, antes da declaração de insolvência) como a decisão recorrida acaba por reconhecer, e foram eles, também, que vieram fornecer informação adicional (em Junho de 2014, depois de decretada a insolvência, mas antes de ser proferida a decisão recorrida) no seguimento do que tinham requerido na assembleia de credores.        

Inexiste, por conseguinte qualquer violação do dever de informação por parte dos insolventes. Sendo assim, não se mostra preenchida a previsão do art. 238º, nº 1, g), do CIRE, não havendo lugar a indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo formulado pelos recorrentes. Assim, procede o recurso, também, nesta parte.     

7. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) O processo particular de insolvência, previsto nos arts. 294º a 296º do CIRE, insere-se no Capítulo III, do Título XV, que tal como o Título XIV (que se inicia no art. 271º do mesmo diploma) respeita à execução do Regulamento (CE) nº 1346/2000, do Conselho, de 29.5;

ii) Nesse artigo 271º regula-se a competência internacional do tribunal português para o processo de insolvência principal caso o devedor tenha bens situados fora do nosso país mas dentro de outro estado da União Europeia, tendo em conta o disposto no art. 3º, nº 1, de tal Regulamento. Assim, de acordo com o texto deste normativo, se o centro dos interesses principais do devedor se encontrar localizado em Portugal, o tribunal nacional é competente para abrir e prosseguir esse processo de insolvência principal. Já no caso de o centro dos interesses do devedor se situar fora do nosso território mas dentro de outro Estado membro da U. Europeia então, de acordo com tal art. 3º, seu nº 2, do mesmo Regulamento, o tribunal português é competente para abrir e prosseguir um processo de insolvência relativo ao referido devedor se este possuir um estabelecimento em solo pátrio, sendo, porém, os efeitos deste processo limitados aos bens que se encontrem em Portugal;

iii) Este processo denomina-o o Regulamento de processo territorial, como resulta do citado art. 3º, seu nº 4, enquanto a nossa legislação nacional o denomina de processo particular, no referido Capítulo III do CIRE (art. 294º a 296º);

iv) Por sua vez, quando for aberto um processo de insolvência principal noutro Estado membro, ao abrigo do disposto no referido art. 3º, nº 1, qualquer processo de insolvência aberto posteriormente em Portugal, ao abrigo do nº 2, um processo territorial (ou particular), constitui um processo secundário, como resulta do mencionado art. 3º, nº 3, do Regulamento e da legislação portuguesa (arts. 272º, nº 1, e 296º, nº 1, do CIRE);

v) Finalmente, dispõe o mesmo Regulamento no seu art. 3º, nº 4, que nenhum processo de insolvência territorial/particular pode ser aberto antes da abertura de um processo principal de insolvência, salvo nas duas situações particularizadas nas suas a) e b);

vi) Não é possível convolar um processo de insolvência normal, iniciado por insolventes que se apresentaram à falência e na altura residentes em Portugal, sem bens localizados no estrangeiro, para processo particular de insolvência, previsto no art. 294º do CIRE, depois de declarada a falência e no âmbito do processado de exoneração do passivo, se entretanto, entre a apresentação à insolvência e a sentença que a declarou, ambos emigraram para a Alemanha e aí passaram a residir e trabalhar, tanto mais que não têm qualquer estabelecimento em Portugal;  

vii) A violação pelo tribunal a quo do princípio do contraditório, previsto no art. 3º, nº 3, do NCPC, gera uma nulidade processual, a arguir, em devido tempo, perante esse tribunal, e não a arguir em recurso, perante o tribunal ad quem;

viii) Só é possível defender que o tribunal tem de autorizar previamente a mudança de residência dos insolventes, ao abrigo do art. 36º, c), do CIRE e de um dever de colaboração dos mesmos, para efeitos de apreciação liminar de exoneração do passivo, à sombra do art. 238º, nº 1, g), do mesmo código, depois da sentença ter declarado a insolvência e de ter fixado a residência aos mesmos, não antes, quando estes se apresentaram à insolvência e mudaram a residência entretanto, mas antes de tal sentença de insolvência; 

ix) É inconstitucional a referida interpretação do art. 36º, c), do CIRE e do mencionado dever de colaboração, que exige a prévia autorização do tribunal aos insolventes para mudarem de residência, depois desta ter sido fixada na sentença que declarou a insolvência, designadamente em caso de os mesmos emigrarem para a Alemanha, por violação do art. 44º da C. Rep. Portuguesa;

x) Não há violação do dever de informação dos devedores insolventes, nos termos do art. 83º, nº 1, a), do CIRE, para os efeitos de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo, a coberto do art. 238º, nº, 1, g), do mesmo código, se os autos não mostram que foi solicitada informação aos mesmos, pelas entidades referidas naquele preceito, no decurso do processo de insolvência, e à qual os insolventes não tenham respondido.

IV – Decisão

 

Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida, e, em consequência, admite-se liminarmente o pedido de exoneração do passivo, ordenando-se o prosseguimento do processado no que respeita a tal exoneração.

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Sem custas.

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                                                                                              Coimbra, 21.10.2014

                                                                                              Moreira do Carmo ( Relator )

                                                                                              Fonte Ramos

                                                                                              Inês Moura