Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2891/16.4T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE MANUEL LOUREIRO
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
PRESSUPOSTOS
INDEFERIMENTO LIMINAR
Data do Acordão: 03/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – VISEU – JUÍZO DE COMÉRCIO – J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 235º E 238º, Nº 1, AL. D) DO CIRE.
Sumário: I - A exoneração do passivo restante corresponde a um instituto jurídico de excepção, pois que por via do mesmo se concede ao devedor o benefício de se libertar de algumas das suas dívidas e de por essa via se reabilitar economicamente, inteiramente à custa do património dos credores.

II - A excepcionalidade desse instituto exige que o recurso ao mesmo só possa ser reconhecido ao devedor que tenha pautado a sua conduta por regras de transparência e de boa-fé, no tocante às suas concretas condições económicas e padrão de vida adoptado, à ponderação e protecção dos interesses dos credores, e ao cumprimento dos deveres para ele emergentes do regime jurídico da insolvência, em contrapartida do que se lhe concede aquele benefício excepcional.

III - Estando em causa uma pessoa singular não titular de uma empresa, logo não sujeita ao dever de apresentação à insolvência (art. 18º/2 do CIRE), o pedido de exoneração do passivo restante só pode ser objecto de indeferimento liminar com fundamento no art. 238º/1/d do CIRE se estiveram verificados, cumulativamente, os seguintes requisitos: a) ter o devedor deixado de se apresentar à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da insolvência; b) ter causado, com o atraso, prejuízo aos credores; c) sabendo ou não podendo ignorar, sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

IV - O ónus de alegação e demonstração dos factos integradores de cada dos requisitos cumulativos enunciados em III) cabe ao administrador da insolvência ou aos credores, porquanto tendo a natureza de factos impeditivos do direito do devedor a pedir a exoneração do passivo restante, é sobre eles que recai aquele ónus.

Decisão Texto Integral:


Acordam na 3.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

Na petição inicial que apresentou com vista à sua declaração de insolvência, o autor formulou pedido de exoneração do passivo restante e requereu a fixação de “rendimento disponível pelo mínimo de 2 salários mínimos nacionais.”.

A tal pedido opuseram-se os credores ...

Alegou a primeira, em síntese, que pelo menos desde Outubro de 2014 que o insolvente sabia que estava impossibilitado de cumprir com as suas obrigações e, apesar disso, optou por não se apresentar mais cedo à insolvência e por continuar a aumentar o seu passivo, sem que pudesse perspectivar qualquer melhoria da sua situação económica, o que redundou em prejuízo dos credores.

A segunda alegou, em síntese, que a situação de insolvência já se verificava pelo menos desde 28 de Setembro de 2013, data em que o insolvente não pagou qualquer factura à oponente, para além de que, a seu pedido, ainda prestou serviços ao insolvente em 29 de Dezembro de 2014, data em que o mesmo já não tinha condições de efectuar qualquer pagamento.

O Ministério Público não se pronunciou sobre a pretensão do insolvente e o administrador da insolvência declarou nada ter a opor a que seja proferido despacho de deferimento liminar do pedido.

Veio a ser proferida decisão que indeferiu liminarmente o pedido do insolvente, por se ter considerado estar preenchida a hipótese normativa do art. 238º/1/d do CIRE, na base da argumentação que seguidamente se deixa transcrita:

A questão principal consiste em apurar se está verificada a hipótese prevista na alínea d), do n.º 1, do artigo 238.º.

Para que ocorra indeferimento liminar com base nesta disposição é necessário que se verifiquem três requisitos: a) incumprimento do dever de apresentação à insolvência (estando ou não obrigado a se apresentar); b) com prejuízo em qualquer dos casos para os credores; c) sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica (conhecimento ou desconhecimento com culpa grave – Olímpia Costa, Dever de Apresentação à Insolvência, Almedina, pág. 64).

Não resulta demonstrado que o devedor era titular de uma empresa na data em que incorreu em situação de insolvência, como tal, não é aplicável o disposto no n.º 1 do artigo 18.º (cfr., n.º 2), na medida em que esta disposição não abrange os meros sócios das sociedades comerciais.

Deste modo, importa verificar se ocorre a violação do dever de apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo para os credores, sabendo ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica.

Resulta do facto constante do artigo 6.º, sem considerarmos a reversão, que a data do primeiro incumprimento é de 20-09-2011, no valor de €32.171,15, ainda nesse ano, em 19 de novembro, verifica-se o incumprimento de contrato de mútuo no valor de €43.184,44.

Apesar destes factos, o insolvente só se apresentou à insolvência em 31 de maio de 2016, acabando até,  depois  de  2011,  por  assumir  novos  compromissos financeiros, conforme resulta dos factos referidos nos artigos 6.º e 7.º, conduzindo ao agravamento da situação  dos  credores,  nomeadamente  por  ter  contraído  novas  obrigações  quando  era patente que já se encontrava em situação de insolvência, isto é impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, tanto mais que, para além de ter acumulado dívidas fiscais, a sociedade  de  que  é  sócio  não  gerava  rendimentos  suficientes  para  o  pagamento  das contribuições devidas à segurança social desde junho de 2009.

Acresce ainda que o requerente alega que aquela sociedade não exerce qualquer atividade há pelo menos quatro anos e que deixou de auferir qualquer rendimento (art.º 5.º e 17.º da petição inicial), não obstante o insolvente foi aumentando o valor do passivo.

Neste contexto impõe-se concluir que o insolvente agravou a respetiva situação de insolvência, assumindo compromissos financeiros sem que dispusesse ou perspetivasse dispor de rendimentos suficientes para os honrar, agravando a posição dos credores, pelo que se se apresentasse mais cedo o valor das dívidas não seria tão elevado e não teria contraído parte das dívidas, o que determina o indeferimento do pedido de exoneração, na medida em que “não podem beneficiar do regime de exoneração do passivo restante, de carácter excecional, os que pura e simplesmente contraíram dívidas para as quais sabiam não ter meios de as pagar por estarem acima das suas possibilidades económicas, com prejuízo para os credores” (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 02-11-2010, Processo n.º 570/10.5TBMGR-B.C1, in www.dgsi.pt).

3. Termos em que, indeferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.”.

Não se conformando com o assim decidido, apelou o autor, rematando as suas alegações com as conclusões seguidamente transcritas:

...

Não foram apresentadas contra-alegações.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

II - Principais questões a decidir

Sendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso, integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, é a seguinte a questão a decidir: se o tribunal recorrido podia ter indeferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante nos termos e com os fundamentos aduzidos na decisão recorrida.

III – Fundamentação

A) De facto

Os factos provados

O tribunal recorrido descreveu como provados, sem censura do apelante, os factos seguidamente transcritos:

...

B) De Direito:

Questão única: se o tribunal recorrido podia ter indeferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante nos termos e com os fundamentos aduzidos na decisão recorrida.

 “Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo.” – art. 235º do CIRE.

Consagrou-se na norma transcrita, em resposta ao problema do sobreendividamento das famílias, o instituto da exoneração do passivo restante, com o propósito de conjugar o ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica (ponto 45 do preâmbulo do CIRE), prosseguindo-se, assim, o objectivo de revitalização e investimento no devedor insolvente, e de salvaguarda e continuidade da produção através dos recursos humanos existentes, preservando-se a sua potencialidade como meio de obtenção de receita.

Estabeleceu-se entre nós, assim, o modelo do fresh start para as pessoas singulares de boa-fé, que teve a sua origem nos EUA e à luz “honest but unfortunate debtor” (título 11 do capítulo 7 do Bankruptcy Code de 1978), estando-lhe subjacente a filosofia de preservação do capital humano, de crescimento económico, de reeducação financeira do devedor, de combate ao sobreendividamento e, a final, de defesa do interesse público.

Conjugam-se neste instituto, assim, o espírito da concessão de uma nova oportunidade, a socialização do risco e a prevenção da exclusão social.

Nos termos do art. 238º/1/d do CIRE, cuja constitucionalidade orgânica foi afirmada pelo Tribunal Constitucional no seu acórdão 487/2008, de 7/10/2008, o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

Estando aqui em causa uma pessoa singular não titular de uma empresa, logo não sujeita ao dever de apresentação à insolvência (art. 18º/2 do CIRE)[1], o pedido de exoneração do passivo restante só pode ser objecto de indeferimento liminar se estiveram verificados, cumulativamente[2], os seguintes requisitos: a) ter o devedor deixado de se apresentar à insolvência nos seis meses[3] seguintes à verificação da insolvência[4]; b) ter causado, com o atraso, prejuízo aos credores; c) sabendo ou não podendo ignorar, sem culpa grave[5], não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

Importa ter presente, também, que o ónus de alegação e demonstração dos factos integradores de cada um desses requisitos cumulativos cabe ao administrador da insolvência ou aos credores, porquanto tendo a natureza de factos impeditivos do direito do devedor a pedir a exoneração do passivo restante, é sobre eles que recai aquele ónus – neste sentido, por exemplo, acórdãos do STJ de 21/1/2014, proferido no processo 497/13.9TBSTR-E.E1.S1, de 21/3/2013, proferido no processo 1728/11.5TJLSB-B.L1.S1, de 14/2/2013, proferido no processo 3327/10.0TBSTBD, de 19/4/2012, proferido no processo 434/11.5TJCBR; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7/5/2013, proferido no processo 3251/12.1TJLSB-C.L1-7, acórdão da Relação de Guimarães de 6/3/2014, proferido no processo 3776/13.1TBBRG-E.G1; Luís M. Martins, Recuperação de Pessoas Singulares, volume I, 2ª Edição, 2013, p. 98.

No que ao primeiro dos apontados requisitos, a decisão recorrida considerou que estava verificada, entre 20/9/2011 e 19/11/2011 (fls. 99)[6], a situação de insolvência do apelante, consideração essa que não mereceu qualquer discordância por parte do apelante, tendo por isso transitado em julgado.

Tendo em conta que o requerente apenas se apresentou à insolvência em 31/5/2016, evidente é que tem de ter-se por verificado aquele primeiro requisito.

No que respeita ao segundo requisito supra referenciado, importa notar que o preenchimento do mesmo não se basta com a simples demonstração de que o devedor se apresentou à insolvência depois de transcorrido o período de seis meses subsequentes à verificação da situação de insolvência, pois que essa tardia apresentação não implica, por si só, qualquer presunção de prejuízo, que carece de demonstração efectiva.

Na verdade, como escrevem Carvalho Fernandes e João Labareda (Colectânea de Estudos sobre a Insolvência, 2009, p. 280), “Para além da não apresentação à insolvência, a relevância deste comportamento do devedor, para efeito de indeferimento liminar, depende ainda, em qualquer destas hipóteses, de haver prejuízo para os credores e de o devedor saber ou não poder ignorar, sem culpa grave, que não existe “qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica”. Está aqui em causa apurar se a não apresentação do devedor à insolvência se pode justificar por ele estar razoavelmente convicto de a sua situação económica poder melhorar em termos de não se tomar necessária a declaração da insolvência.”.

No mesmo sentido, ensina Catarina Serra que “O problema é que, entendido assim, este segundo requisito dilui-se no primeiro e fica esvaziado de efeito útil: o prejuízo para os credores passa a consubstanciar um efeito necessário da não apresentação à insolvência. É verdade que o atraso na apresentação à insolvência conduz invariavelmente a um conjunto de consequências nefastas para os credores: o activo reduz-se por força das execuções singulares dos credores e, em princípio desvaloriza-se com o decurso do tempo; em contrapartida o passivo aumenta, seja em virtude da contracção de novas dívidas, seja do curso de juros, seja da constituição do devedor na constituição do pagamento de custas judiciais que fiquem a seu cargo como parte vencida.

Mas se considerar que isso é suficiente para se configurar (mediante o funcionamento da presunção ou a produção de prova) o prejuízo para os credores, para que serve a alusão autónoma a ele?

(…).

Para que a norma se aplique será preciso, por um lado, que entre a não apresentação atempada à insolvência e o prejuízo para os credores se verifique um nexo de causalidade; o conhecimento ou desconhecimento com culpa grave, por parte do devedor, da inexistência de qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica será, por sua vez, a circunstância que faz que os outros dois factos assumam relevância qualificada.” - O Novo Regime Português da Insolvência, Uma Introdução, 2010, pp. 138 a 140[7].

Por outro lado, é mister que esteja em causa um prejuízo irreversível e grave, o qual deve ter-se por verificado, por exemplo, naquelas situações em que o devedor: i) persiste na contracção de dívidas, estando já em estado de insolvência; ii) leva a cabo actos de ocultação do seu património ou actos de dissipação dolosa do mesmo.

Com efeito, comportamentos do tipo dos referidos no antecedente parágrafo implicam um dano acrescido para os credores a justificar o indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante – neste sentido, acórdãos do STJ de 14/2/2013, proferido no processo 3327/10.0TBSTS-D.P1.S1, de 19/6/2012, proferido no processo 1239/11.9TBBRG-E.G1.S1, de 24/1/2012, proferido no processo 152/10.1TBBRG-E. G1.S1, do Tribunal da Relação de Lisboa de 8/5/2012, proferido no processo 4344/11.8TBCSC-D.L1-7, do Tribunal da Relação de Guimarães de 31/10/2012, proferido no processo 58/12.0TBGMR-D.G1.

Como referido supra, em 19/11/2011, o apelante estava já em situação de insolvência.

Não obstante tal circunstância e como claramente emerge dos pontos 6º) e 7º) dos factos dados como provados, a partir dessa data o apelante continuou a contrair débitos pessoais, como por exemplo: i) em 20/11/2011 contraiu o débito reclamado pelo reclamante B..., no valor de 5.500 euros, assumindo pessoalmente uma dívida de que apenas era titular passivo uma sociedade de que era legal representante; ii) constituiu-se devedor perante a Fazenda Nacional de imposto único de circulação vencido em 2012, 2013, 2014 e 2015; iii) em 5/7/2012 assumiu responsabilidades pessoais pela satisfação de uma dívida de que é credora a reclamante O... e de que apenas era titular passivo uma sociedade de que era legal representante; iv) em 14/3/2013 assumiu responsabilidades pessoais pela satisfação de uma dívida de que é credor o reclamante S... e de que apenas era titular passivo uma sociedade de que era legal representante; v) em 2014 constitui-se devedor perante a credora T..., solicitando-lhe a prestação de serviços cujo preço não liquidou.

O apelante incorreu em situação de incumprimento em relação a todos esses credores.

Acresce que o apelante era sócio e gerente da sociedade ..., Unipessoal, Lda, sendo que, como confessa o apelante na sua petição inicial (arts. 5º, 15º a 17º), tal sociedade cessou integralmente a sua actividade em momento anterior ao ano de 2012, deixando, por consequência, de geral quaisquer receitas aptas a satisfazer os seus encargos, designadamente os fiscais e parafiscais.

Não obstante tal circunstância, o apelante não providenciou pela extinção dessa sociedade, permitindo que a sua existência e personalidade jurídicas persistissem, como decorrência do que a mesma se viria a constituir devedora de impostos (IVA e IRC) referentes a períodos de tributação dos anos de 2012, 2013, 2014 (cfr. reclamação de créditos apresentada pelo MP em representação da Fazenda Nacional e documentos que a acompanham, todos constantes do apenso a estes autos), bem assim como de taxa social única relativa aos anos de 2012, 2013 e 2014 (cfr. reclamação de créditos apresentada pelo ISS e documentos que a acompanham, todos constantes do apenso a estes autos), acabando o apelante por ser responsabilizado pessoalmente por essas dívidas ulteriores ao momento da verificação da insolvência, através de decisões de reversão contra si proferidas enquanto responsável subsidiário por tais débitos.

Em face de quanto vem de referir-se, deve ter-se por preenchido o segundo pressuposto supra enunciado do indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante fundado no estatuído no art. 238º/1/d do CIRE.

No que concerne ao terceiro dos apontados requisitos, importa ter em consideração que o próprio apelante confessa na sua petição inicial que a partir do momento da cessação da actividade da sociedade ..., Unipessoal, Lda, registada em momento anterior a 2012, deixou de auferir quaisquer rendimentos (arts. 5º e 17º da petição), que entre 2012 e 2015 esteve emigrado em Moçambique, onde apenas teve trabalhos esporádicos (art. 17º da petição), e que a partir de finais de 2015 se encontra desempregado.

Neste enquadramento, facilmente se percebe que o apelante não podia ignorar, sem culpa grave, que não se registava nos tempos sequentes à verificação da insolvência qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica[8] [9], sendo que a inexistência de qualquer perspectiva desse tipo deve ter-se por verificada, designadamente, quando não exista qualquer fonte de rendimento ou qualquer actividade geradora de rendimentos e, para lá disso, existirem consideráveis dívidas acumuladas.

Não obstante quanto acaba de referir-se, o apelante contraiu as dívidas referidas antecedentemente a respeito do segundo requisito atrás enunciado, com o consequente prejuízo para os credores referido a propósito desse segundo requisito.

Preenchidos estão, pois, os três requisitos substantivos enunciados no art. 238º/1/d do CIRE para fundamento de uma decisão de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.

A tudo acresce que: i) a exoneração do passivo restante corresponde a um instituto jurídico de excepção, pois que por via do mesmo se concede ao devedor o benefício de se libertar de algumas das suas dívidas e de por essa via se reabilitar economicamente, inteiramente à custa do património dos credores; ii) a excepcionalidade desse instituto exige que o recurso ao mesmo só possa ser reconhecido ao devedor que tenha pautado a sua conduta por regras de transparência e de boa-fé, no tocante às suas concretas condições económicas e padrão de vida adoptado, à ponderação e protecção dos interesses dos credores, e ao cumprimento dos deveres para ele emergentes do regime jurídico da insolvência, em contrapartida do que se lhe concede aquele benefício excepcional – neste sentido, por exemplo: acórdão do STJ de 24/1/2012, proferido no processo 152/10.1TBBRG-E. G1.S1; acórdãos da Relação de Lisboa de 30/6/2011, proferido no processo 7523/10.1T2SNT-E.L1-7, de 8/5/2012, proferido no processo 4344/11.8TBCSC-D.L1-7, de 18/10/2012, proferido no processo 5006/11.1TBALM-A.L1-8, de 25/6/2013, proferido no processo 3365/12.8TJLSB.L1-7; acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25/5/2013, proferido no âmbito do processo 13/13.2TBCLB-C.C1; acórdão da Relação do Porto de 9/1/2006, proferido no processo 0556168; Filipe de Sousa, Questões controversas que se colocam em torno da exoneração do passivo restante, Dissertação de mestrado em Direito das Empresas e dos Negócios, Maio de 2016, p. 31, Nuno Líbano Monteiro, Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Colecção PLMJ, Coimbra Editora, 2012, pp. 388 e 389, Verónica Barros Lima, A exoneração do passivo restante – Considerações sobre as causas de indeferimento liminar, Dissertação de Mestrado em Solicitadoria, 2014, p. 56; Ana Filipa Conceição, Disposições específicas da Insolvência das pessoas singulares, I Congresso de Direito da Insolvência, Almedina, 2013, p. 48.

Ora, face ao comportamento do apelante posterior ao momento da verificação da situação de insolvência a que supra se aludiu, traduzido num assumir de novos e consecutivos débitos por parte do mesmo, durante os três anos sequentes àquela verificação, em prejuízo dos credores e sem a sua apresentação à insolvência, não pode deixar de concluir-se que o apelante se colocou à margem da situação de excepcionalidade com base exclusiva na qual poderia reconhecer-se-lhe a faculdade de se exonerar do passivo restante.

Flui de quanto vem de referir-se que nenhuma censura merece a decisão recorrida ao concluir pelo indeferimento liminar do pedido do apelante no sentido de lhe ser facultada a exoneração do passivo restante.

IV- DECISÃO

Acordam os juízes que integram esta 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra no sentido de julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão apelada.

Custas pelo apelante.

Coimbra, 07/03/2017


(Jorge Manuel Loureiro)

(Maria Domingas Simões)

(Jaime Carlos Ferreira)


Sumário:

I - A exoneração do passivo restante corresponde a um instituto jurídico de excepção, pois que por via do mesmo se concede ao devedor o benefício de se libertar de algumas das suas dívidas e de por essa via se reabilitar economicamente, inteiramente à custa do património dos credores.

II - A excepcionalidade desse instituto exige que o recurso ao mesmo só possa ser reconhecido ao devedor que tenha pautado a sua conduta por regras de transparência e de boa-fé, no tocante às suas concretas condições económicas e padrão de vida adoptado, à ponderação e protecção dos interesses dos credores, e ao cumprimento dos deveres para ele emergentes do regime jurídico da insolvência, em contrapartida do que se lhe concede aquele benefício excepcional.

III - Estando em causa uma pessoa singular não titular de uma empresa, logo não sujeita ao dever de apresentação à insolvência (art. 18º/2 do CIRE), o pedido de exoneração do passivo restante só pode ser objecto de indeferimento liminar com fundamento no art. 238º/1/d do CIRE se estiveram verificados, cumulativamente, os seguintes requisitos: a) ter o devedor deixado de se apresentar à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da insolvência; b) ter causado, com o atraso, prejuízo aos credores; c) sabendo ou não podendo ignorar, sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

IV - O ónus de alegação e demonstração dos factos integradores de cada dos requisitos cumulativos enunciados em III) cabe ao administrador da insolvência ou aos credores, porquanto tendo a natureza de factos impeditivos do direito do devedor a pedir a exoneração do passivo restante, é sobre eles que recai aquele ónus.


***



[1] Neste sentido acórdão do STJ de 19/6/2012, proferido no processo 1239/11.9TBBRG-E, acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 8/2/2011, proferido no processo 754/10.6TBOAZ-E, e de 6/10/2009, proferido no processo 286/09.5TBPRD-C, acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19/6/2012, proferido no processo 1239/11.9TBBRG-E; considerando os casos específicos do sócio e gerente de uma sociedade por quotas ou de uma sociedade unipessoal por quotas, Luís M. Martins, Recuperação de Pessoas Singulares, volume I, 2013, p. 110, e acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25/9/2014, proferido no processo 269/13.0TBCMN-C.G1.
Apesar de não estar sujeito ao dever de apresentação à insolvência, a pessoa singular não titular de uma empresa que pretenda ser exonerada do passivo restante está sujeita a um ónus de se apresentar à insolvência no prazo de seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência – Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2013, p. 658.
[2] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25/11/2011, proferido no processo 1512/10.3TJLSB.L1-A-6, acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28/5/2015, proferido no processo 528/10.4TBMMN-B.E1, acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10/11/2011, proferido no processo 1241/10.8TBOAZ-B.P1, acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 8/5/2012, proferido no processo 890/11.1TBTMR-D.C1, acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21/5/2013, proferido no processo 610/12.3TBGMR-E.G1.
[3] Importa reter que não está aqui em causa um prazo de caducidade - acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 26/5/2009, proferido no processo nº 1526/09.6TBLRA.C1, acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26/2/2015, proferido no processo 467/12.4TBPTL-G.G1.
[4] Cfr. acórdão da Relação de Guimarães de 4/10/2007, proferido no processo 1718/07-2, acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 9/12/2008, proferido no processo 0827376, de 9/1/2006, proferido no processo 0556158.
[5] Estará em causa uma conduta que, não sendo dolosa, é todavia grosseiramente descuidada e manifestamente violadora dos deveres de diligência e cuidado que deve ter um bom pai de família -  acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21/5/2013, proferido no processo 2998/12.7TBGMR-E, acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11/6/2015, proferido no processo 45/14.3TBCDV.E1
[6] Datas dos incumprimentos dos créditos do credor reclamante Montepio Geral, nos valores, à data das reclamações, de €43.184,44, €31,69 e €32.171,15, correspondentes a débitos de capital, à data dos incumprimentos, de €23.150,02, €31,69 e €26.762, 31, respectivamente.
[7] No sentido da necessária demonstração efectiva do prejuízo dos credores decorrente causalmente do atraso na apresentação à insolvência, podem consultar-se os acórdãos do STJ de 21/1/2014, proferido no processo 497/13.9TBSTR-E.E1.S1, de 24/1/2012, proferido no processo 152/10.1TBBRG-E. G1.S1, de 14/2/2013, proferido no processo 3327/10.0TBSTS-D.P1.S1, do Tribunal da Relação de Lisboa de 28/11/2013, proferido no processo 9507/12.6TBCSC-C.L1-8, da Relação de Guimarães de 30/6/2016, proferido no processo 1347/14.4TJVNF-F.G1; na doutrina, pode consultar-se Nuno Líbano Monteiro, Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Colecção PLMJ, Coimbra Editora, 2012, p. 389.

[8] A utilizar-se o conceito de perspectiva séria “…o legislador aponta para um juízo de verosimilhança sobre a melhoria económica da situação do devedor, alicerçada naturalmente em indícios consistentes e não em fantasiosas construções ou optimismo compulsivo.” - acórdão do STJ de 10/02/2013, proferido no processo 3327/10.0TBSTS-D.P1.S1; neste mesmo sentido, por exemplo, acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 4/10/2007 (relator: GOUVEIA BARROS), de 12/7/2010 (relatora: MARIA LUÍSA RAMOS), e de 30/4/2009 (relatora: RAQUEL REGO), de 18/11/2010 (relatora: HELENA MELO), acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11/6/2015 (relatora: CRISTINA CERDEIRA); acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 9/1/2012 (relator: CARLOS MOREIRA), e de 7/9/2010 (relator: ARTUR DIAS).
[9] Ou seja, o apelante sabia, ou não podia deixar de estar consciente, que a situação em que se encontrava era definitiva, no sentido de que não iria ser alterada num curto ou médio prazo – acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 20/11/2008 (relator: TELES DE MENEZES), e de  25/3/2010 (relatora: MARIA DO CARMO DOMINGUES).