Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1285/12.5TBPMS-F.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: INSOLVÊNCIA
CRÉDITO
FAZENDA NACIONAL
PLANO DE RECUPERAÇÃO
HOMOLOGAÇÃO
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Data do Acordão: 04/01/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE PORTO DE MÓS – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 30º, Nº 2, E 36º, Nº 3 DA LGT; 85º DO CPPT; 215º DO CIRE.
Sumário: I – Numa perspectiva de adequada ponderação de interesses, tendo em conta os fins que as leis falimentares visam, pode violar o princípio da proporcionalidade admitir que o processo de insolvência seja colocado em pé de igualdade com a execução fiscal, servindo apenas para a Fazenda Nacional actuar na mera posição de reclamante dos seus créditos, sem atender à particular condição dos demais credores do insolvente ou pré-insolvente, que contribuem para a recuperação da empresa, abdicando dos seus créditos e garantias, permanecendo o Estado alheio a esse esforço, escudado em leis que contrariam o seu Compromisso de contribuir para a recuperação das empresas, como resulta do Memorandum assinado com a troika e até das normas que, no contexto do PER, o legislador fez introduzir no CIRE.

II - O papel de auto-regulação dos credores do insolvente, no quadro do princípio da legalidade, impõe que se adopte uma interpretação restritiva das normas dos arts. 30.º, n.º 2, e 36.º, n.º 3, da LGT, e art. 85.º do CPPT, restringindo o seu campo de aplicação à relação tributária em sentido estrito, valendo primordialmente na relação Estado-contribuinte, normas que devem ceder no confronto com a legislação especial do direito falimentar.

III - Atentas as funções sociais do Estado seja na perspectiva social – o direito ao trabalho – seja na perspectiva económica, a interpretação conforme à Constituição implica que entre uma interpretação que salvaguarde os princípios constitucionais e outra que com eles colida, deve prevalecer aquela.

IV - Ainda que o n.º 2 do artigo 30.º da LGT determine que o crédito tributário é indisponível, tal indisponibilidade não é absoluta uma vez que a própria norma admite a possibilidade da sua redução ou extinção, tal significando que a administração tributária não pode dispor livremente deste crédito e, portanto, ao contrário do que acontece com qualquer outro credor, não pode, em qualquer caso e por sua livre iniciativa, perdoar, reduzir ou alterar os créditos tributários, estando o perdão, redução moratória ou qualquer alteração, vinculados aos princípios da igualdade e da legalidade tributária.

V - Numa situação em que os créditos tributários e para-tributários representam apenas 1,5% do universo total dos créditos, sendo contemplado no plano de insolvência que tais créditos não sofrem redução mas apenas recalculo de juros e um prazo de pagamento mais alargado, a aprovação de tal plano por 70% dos credores representativos de igual percentagem de créditos contra a aprovação do representantes dos créditos tributários, deve considerar-se como negligenciável e não impeditiva da homologação do plano.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

Relatório

Nos autos de processo de insolvência em que é requerente/insolvente “A…, S.A.” esta apresentou plano de insolvência na modalidade de recuperação da empresa, peticionando a sua homologação.

Proferido despacho de admissão liminar, em 9.10.2013 efectivou-se a assembleia de apreciação e votação do plano de insolvência na qual o mesmo foi aprovado, tendo o MP, em representação da Fazenda Pública, votado desfavoravelmente.

Com base  no voto desfavorável do MP o Tribunal veio a indeferir a homologação do plano de insolvência da Requerente A…, S.A. nos termos do art.º 215.º do CIRE.

    Inconformado com esta decisão dela interpôs recurso a requerente, concluindo que:

 (…).

Na resposta o MP contra alegou defendendo a confirmação da decisão recorrida.

Cumpre decidir

Fundamentação

Interessam à decisão os seguintes factos:

- A assembleia de apreciação do plano de insolvência ocorreu com a presença de credores que representavam 94,56% dos direitos de voto.

- O plano foi aprovado pelo Banco C…, pelo Banco A…, pelos credores trabalhadores, pela T…, pela G…, S.A., pelo Instituto da Segurança Social, pela R…, N… e L…

- Os demais credores votaram desfavoravelmente, exceptuando-se J… que se absteve.

- o plano de insolvência foi aprovado por credores representativos de mais de 70 % dos direitos de voto.

- No que se refere aos créditos fiscais, é proposto no plano o pagamento integral da dívida em regime prestacional, com recalculo dos juros a taxas mais benéficas para a insolvente em função das garantias a prestar.

- O MP, em representação da Fazenda Pública, votou desfavoravelmente o citado plano.

- o valor total dos créditos é de 12.786.662,21 € e o crédito da Fazenda Nacional é de 191.801,52 € (1,5% do total)

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (arts. 635 nº3 e 4 e 637 nº2 do CPC).

Na observação destas prescrições normativas concluímos que o objecto do presente recurso é o de saber se existe nulidade da decisão por falta de fundamentação e se o Plano de insolvência deveria ter sido homologado mesmo perante o voto desfavorável do M.P.

Quanto à suscitada nulidade da decisão por falta de fundamentação, protesta a recorrente que “na douta sentença proferida não se vislumbra com suficiente clareza - violando-se o n.º 4 do Art. 607 do NCPC – quais os factos julgados e os não provados especificando-se com clareza quais os fundamentos que foram decisivos para a convicção do Mtº Juiz na decisão tomada.”.

Estabelece o art. 607 nº 4 do NCPC que na fundamentação o juiz declara quais os factos que julga provados e não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, tomando ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados s presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.

Este preceito (o art. 607) corresponde, essencialmente, aos artigos 658º e 659º do CPC e, particularmente, a primeira parte do nº 4 é inovadora na sua localização na fase da sentença, tendo correspondência com a segunda parte do nº 2 do artigo 653º do CPC. Por seu turno, a segunda parte do nº 4 tem alguma correspondência com o nº 3 do artigo 659º do CPC.

            Trata-se pois de um normativo que tem como finalidade regular o julgamento da matéria de facto.

            Se verificarmos que o CIRE nos seus art.s 209 e ss regula o modo como em tribunal se aprecia o Plano de Insolvência, concluímos que nesses procedimentos não se realiza qualquer actividade probatória tudo passando pela evidência já constante nos autos de quais os créditos verificados e graduados (vd. nº2 do art. 209 do CIRE).

            De facto, na diligência de aprovação e homologação do plano de insolvência, estando já determinados quais os créditos existentes e feita a sua graduação, com trânsito em julgado, tudo o que se realiza é uma contabilidade para garantia do quórum da reunião de aprovação e do exigido para a aprovação (nº2 do art. 212 do CIRE).

            Assim, cremos que a decisão proferida pelo tribunal recorrido não carecia de fazer constar quais os créditos que se encontravam aprovados qual o seu valor relativo em percentagens ou, menos ainda, a indicação de que nenhum credor tivesse solicitado a recusa da homologação nos termos do art. 216 do CIRE, porquanto todos estes elementos não resultavam de nenhuma actividade probatória realizada na diligência de aprovação e estavam já adquiridos nos autos, estando pois a fundamentação da não homologação oficiosa do plano de insolvência construída de forma inteligível sobre todas a matéria de facto que existe no processo e fixada em momento anterior, sendo sobre essa matéria que o tribunal concluiu pelo indeferimento.

      Indeferem-se assim, nesta parte, as conclusões de recurso, quanto á protestada nulidade da decisão por violação do art. 607 nº4 do NCPC.

            A recorrente argui ainda a nulidade da decisão recorrida, agora baseada no art. 615 nº 1 al. b) do NCPC no qual se prevê tal consequência para o vício de falta de fundamentação de facto e de direito que justifique a decisão.

    Como refere Teixeira de Sousa, “esta causa de nulidade verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido (e, por isso, não comete, nesse âmbito, qualquer omissão de pronúncia), mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. Nesta hipótese, o tribunal viola o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais (art. 208º, n.º 1, CRP; art. 158º, n.º 1)”, acrescentando o mesmo autor que “o dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo (...) e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (...); a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível”[1] [In “Estudos sobre o Processo Civil”, pg. 221].

Ou, como refere Lebre de Freitas, “há nulidade quando falte em absoluto indicação dos fundamentos de facto da decisão ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão, não a constituindo a mera deficiência de fundamentação” [In CPC, pg. 297].

No mesmo sentido diz o Conselheiro Rodrigues Bastos, que “a falta de motivação a que alude a alínea b) do n.º 1 é a total omissão dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito em que assenta a decisão; uma especificação dessa matéria apenas incompleta ou deficiente não afecta o valor legal da sentença” [in "Notas ao Código de Processo Civil", III, 194].

E como advertia o Professor Alberto dos Reis “há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.

Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade do nº 2.° do art. 668º”.

Deste modo, face à doutrina exposta, se conclui que a nulidade da sentença não se verifica quando apenas tenha havido uma justificação deficiente ou pouco persuasiva, antes se impondo, para a verificação da nulidade, a ausência de motivação que impossibilite o anúncio das razões que conduziram à decisão proferida a final[2].

Ora, analisada a decisão recorrida constata-se que todas as questões, que se colocaram à consideração do tribunal, foram devidamente ponderadas, aduzindo-se, se não uma profícua e exaustiva fundamentação, pelo menos uma fundamentação bastante em face da dificuldade da lide, de modo que a decisão recorrida não pode ser havida por não motivada, salientando-se que a questão central (a da não homologação do plano de insolvência aprovado por 70% dos credores mas com o voto desfavorável d MP) se encontra mais que suficientemente motivada.

Improcedem assim, nesta parte, as conclusões de recurso quanto à nulidade prevista no art. 215 nº1 al.b) do NCPC.

Passando agora a conhecer da questão de saber se o plano de insolvência podia ser recusado oficiosamente pelo tribunal com base na sua não aprovação pelo MP em representação da Fazenda Nacional, quando 70% dos restantes credores aprovaram tal plano, neste domínio, o tribunal recorrido entendeu que “No que se refere aos créditos fiscais, é proposto o pagamento integral da dívida em regime prestacional, com recalculo dos juros a taxas mais benéficas para a insolvente em função das garantias a prestar, sendo que o MP, em representação da Fazenda Pública, votou desfavoravelmente o citado plano.

Ante a mencionada vicissitude, impõe-se a equação da admissibilidade da descrita modificação dos créditos tributários.

Na verdade, em convergência com o prescrito no art.º 30.º/1 da Lei Geral Tributária, integram a relação jurídica tributária: a) O crédito e a dívida tributários; b) O direito a prestações acessórias de qualquer natureza e o correspondente dever ou sujeição; c) O direito à dedução, reembolso ou restituição do imposto; d) O direito a juros compensatórios; e) O direito a juros indemnizatórios.

Ademais, o crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária (art.º 30.º/2, da LGT). Sendo que o normativo enunciado prevalece relativamente ao disposto em qualquer legislação especial (art.º 30.º/3, da LGT e art.º 125.º, da Lei 55-A/2010, de 31 de Dezembro).”.

E nesta sequência, entendendo que a consagração do princípio da indisponibilidade do crédito tributário tem na base a defesa da afectação dos interesses públicos primários, i.e., a satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas e a promoção da justiça social, a igualdade de oportunidades e as necessárias correcções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento, concluiu a decisão recorrida que a sua modificação, redução ou extinção é exclusivamente admissível à luz dos princípios da legalidade e igualdade tributárias, carecendo, assim, de uma norma legal expressa que tipicamente o preceitue[3].

Ora, se a relação jurídica tributária se constitui com o facto tributário, sendo que os elementos essenciais da relação jurídica tributária não podem ser alterados por vontade das partes, não podendo a administração tributária conceder moratórias no pagamento das obrigações tributárias, salvo nos casos expressamente previstos na lei (art.º 36.º/1 a 3, da LGT), a decisão recorrida entendeu que o plano de insolvência implicava para os créditos da Fazenda Nacional “uma redução dos juros de mora vencidos e vincendos sem suporte em qualquer norma legal ou regime especial de regularização de dívidas fiscais em sede de processos de insolvência, sendo que, sopesando quer o art.º 196.º, do CPPT, quer o art.º 3.º/3 a 5, do D.L. n.º 73/99, de 16 de Março, os mesmos consagram meras reduções de taxas de juro cujos pressupostos não se configuram perfectibilizados nos vertentes autos.

Ademais, a referida medida de redução da taxa de juro concernente às dívidas fiscais afigura-se genérica e proclamatória (fls. 664), destituída de um mínimo exigível de concreção fáctica passível de sustentar uma aferição do montante e proporcionalidade da respectiva ablação”.

Contra isto sustentou a recorrente que não consegue vislumbrar onde está a fundamentação da decisão recorrida mas esta é clara no sentido de apontar que essa redução resulta de se tentar fazer aprovar que os créditos fiscais vissem recalculados os seus juros “a taxas mais benéficas para a insolvente” em função das garantias a prestar.

Seguindo, na apreciação da questão em recurso, o recente ac. do STJ de 18-2-2014, no proc. 1786/12.5TBTNV.C2.S1 (in dgsi.pt), observamos que o Direito Falimentar Português, objecto de diversas reformas, oscilou sempre entre dois paradigmas, por referência à situação da economia e das empresas, um deles dando primazia à recuperação, o outro optando pela liquidação.

Ao CPEREF, tendo por objectivo primordial a recuperação das empresas e não a sua liquidação, sucedeu o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) aprovado pelo DL.53/2004, de 18.3, alterado pelos DL. n.º 200/2004, de 18 de Agosto, do DL n.º 76-A/2006, de 29 de Março, do DL n.º 282/2007, de 7 de Agosto, do DL. n°116/2008, de 4 de Julho, do DL n.º185/2009, de 12 de Agosto, e, mais recentemente, da Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril.

Sobre a natureza do novo diploma, Catarina Serra afirma que “No Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo DL. Nº53/2004, de 18 de Março foi-se mais longe e, numa fase inicial, eliminou-se o primado da recuperação. Por este motivo, ainda em Projecto, o CIRE suscitou críticas cerradas.

Mas não ficaram por aqui as novidades. Além disto, eliminou-se o próprio processo de recuperação. Conforme resulta, ainda hoje (i.e., depois de todas as alterações legislativas), claramente do n.º1 do art. 1º a recuperação de empresas insolventes é apenas uma das finalidades do processo de insolvência, em alternativa à liquidação…” E mais adiante, acrescenta que “A grande novidade do CIRE é a supressão da dicotomia recuperação/falência [cfr. ponto7. do Relatório do Diploma Preambular que aprovou o CIRE (DL. nº53/2004, de 18 de Março)]. O processo de insolvência é agora um processo único.

Caracteriza-se por uma tramitação supletiva baseada na liquidação do património do devedor, existindo a possibilidade de os credores aprovarem um plano de insolvência (cfr. arts. 192.º e segs.), com o fim de prover à realização da liquidação em moldes distintos ou de recuperar a empresa. Mais precisamente, a lei define o processo de insolvência como um processo de execução universal com a finalidade de liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, mas admite que a satisfação dos credores venha a realizar-se por (outras) formas previstas num plano de insolvência, que pode, nomeadamente, passar pela recuperação da empresa compreendida na massa insolvente (cfr.art.1º. nº1).

Em suma, o processo de insolvência é um processo de liquidação e o plano de insolvência é o único mecanismo que pode ter como fim a recuperação da empresa insolvente [cfr. art. 1º, n.º1, e art. 195.º, n.º2, al. b)].”[4].

A Lei nº16/2012, de 20 de Abril, reformou aspectos do CIRE, em consequência das obrigações assumidas pelo Estado por imposição do Memorando da troika[5] e dos pontos 2.17, 2.18, e 2.19 – “Enquadramento legal da reestruturação de dívidas de empresas e de particulares” extrai-se, como se lê no ac. do STJ que vimos acompanhando, que “o Estado, num quadro de forte constrangimento económico e financeiro, assumiu o compromisso de legislar no sentido de introduzir um quadro legal de cooperação e flexibilização dos seus créditos quando estiver em causa a aceitação de reestruturação de créditos de outros credores, ou seja, o Estado aceitou adoptar, legislativamente, procedimentos flexíveis quanto aos seus créditos, que no direito português como é consabido, se apresentam exornados de fortes garantias (v.g. privilégios creditórios), em ordem à salvaguarda das empresas em comunhão de esforços com os credores particulares.

O caminho trilhado pela Jurisprudência dos Tribunais Superiores[6], antes mesmo da Reforma de 2012, foi assim o de considerar que o Estado, no contexto do processo insolvencial, poderia ver os seus créditos afectados por decisão dos credores, porquanto as prerrogativas dos seus créditos, no contexto da relação tributária não seriam, sem mais, transponíveis para o processo universal que a insolvência é, por isso, não estavam os créditos da Autoridade Tributária numa posição de intangiblidade, enquanto os credores privados renunciavam aos seus direitos, na tentativa de recuperar a empresa e, reflexamente, outros interesses a ela ligados, onde nem sequer é despiciendo aludir aos benefícios que o erário público colhe quando uma empresa é recuperada e não liquidada pela inviabilidade da sua recuperação.

No entanto, paradoxalmente, o legislador alterou a Lei Geral Tributária blindando os seus créditos fiscais. O art. 30º, nº 2, estatui – “O crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária”, tendo o art. 125º da Lei nº55-A/2010, de 31.12, (Lei do Orçamento para 2011), aditado um nº3 ao art. 30º para que não restassem dúvidas: “O disposto no número antedito prevalece sobre qualquer legislação especial.”.

Reafirmando com indiscutível clareza a indisponibilidade dos créditos tributários, proibindo a sua redução ou extinção e tendo em conta a amplitude do conceito de “relação tributária” e o que a constitui - cfr. art. 30º, nº1, als. a) a e) - o direito insolvencial, após a reforma de 2012, quando conjugado com aqueles preceitos da LGT é dificilmente harmonizável.”.

Neste registo, a prof. Catarina Serra,[7] sustenta que a pergunta central perante as dívidas fiscais e da à Segurança Social é a de saber se ainda assim é possível que o plano de insolvência preveja perdões, reduções de valor, moratórias ou outros condicionamentos ao pagamento destas dívidas, e acrescenta que no que toca às dívidas fiscais está em causa, por um lado, o carácter imperativo dos arts. 30º, n.º2, e 36.º, n.ºs 2 e 3, da Lei Geral Tributária (LGT) e do art. 196.º, n.ºs 1 e 5, do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT). E estão em causa, por outro lado, principalmente, os preceitos do art. 196.º, n.º1, e ainda do art. 197º do CIRE, na parte em que este último se refere à “ausência de estatuição expressa em sentido diverso constante do plano de insolvência” e da qual decorre o seu carácter supletivo.

Porém, no final de 2010 a Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, veio aditar um n.º 3 à norma do art. 30.º da LGT, afirmando expressamente a prevalência do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários mesmo nos casos de legislação especial (cfr. art. 123.º) e , em sede de “disposições transitórias no âmbito da Lei Geral Tributária, estender aplicabilidade da norma aos “processos de insolvência que se encontrem pendentes e ainda não tenham sido objecto de homologação” (cfr. art. 125.º), não restando dúvida que, com estas alterações, o legislador pretendeu alargar o alcance da protecção aos créditos tributários.

Neste novo contexto, Catarina Serra escreve que “Depois da introdução do n.º3 do art. 30º da LGT a situação agravou-se consideravelmente, sendo, como se referiu, dos próprios juízes que parte a inflexão. Em favor da manutenção da tese da modificabilidade dos créditos pelo plano de insolvência resta, em todo o caso, um argumento de peso imanente à disciplina do plano de insolvência e o argumento da unicidade do sistema jurídico.

A regra de que havendo contradição entre o que resulta da interpretação do texto expresso de uma norma jurídica e aquilo que resulta do silêncio de outra ela se resolve com a sobreposição da primeira norma à segunda não deve ser mantida sempre que isso acarrete perturbações intoleráveis da harmonia do sistema jurídico. Tudo indica ser este o caso.”[8].

Com a Lei n.º 5-A/2010, de 31 de Dezembro, a norma transitória do seu art. 125º, o legislador afastou por forma expressa, a interpretação de que a lei especial (CIRE) derroga a aplicação da lei geral (LGT) – [nos termos do art. 7º, nº3, do Código Civil “a lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador”] – pelo que no actual quadro vigente depende do Estado, em conformidade com as normas próprias da LGT e CPPT, designadamente, a redução ou extinção dos seus créditos fiscais e/ou concessão de moratória, créditos que não podem ser afectados, contra a sua vontade, pelo plano de insolvência ou de revitalização.

Com a sexta alteração do CIRE pela Lei 16/2012, de 20.4, foi introduzido neste Código o PER – Programa Especial de Revitalização – arts. 17º-A a 17-H – processo pré-insolvencial destinado a possibilitar ao devedor em risco de insolvência iminente obter um plano de recuperação sem que seja declarada a sua insolvência. Mais uma vez tudo dependerá da vontade dos credores, estando na disponibilidade deles o ser ou não ser viabilizado o Plano.

Uma vez mais a prof. Catarina Serra[9], e sobre a questão da indisponibilidade dos créditos públicos, expressa as suas reservas em face do novo regime do PER, entre outras razões por ser um dos maiores problemas do plano de insolvência: a (alegada) indisponibilidade dos créditos tributários, por força dos arts. 30.º, nºs 2 e 3, e 36.º n.ºs 2 e 3, da Lei Geral Tributária, dos arts. 196.° e 199.° do Código de Processo e Procedimento Tributário e do DL n.°411/91, de 17 de Outubro. Tal como acontece relativamente ao plano de insolvência, não se contestando esta indisponibilidade, os créditos do Estado e da Segurança Social são, em princípio, insusceptíveis de perdões, reduções de valor, moratórias ou de outros condicionamentos contra a vontade dos seus titulares e a aprovação e a homologação de planos de recuperação e, consequentemente, a realização da finalidade de reestruturação tornar-se-á muito difícil, já que as dívidas à Fazenda Pública e à Segurança Social representam quase sempre a parte mais significativa do passivo do devedor.

E adiantando uma solução para o impasse refere que “o problema só será superado com uma interpretação restritiva das normas que compõem o regime tributário.

Convocam-se, para isso, dois argumentos: a teleologia subjacente ao PER e a unidade do sistema jurídico. A regra de que havendo contradição entre o que resulta da interpretação do texto expresso de uma norma jurídica e aquilo que resulta do silêncio de outra se resolve com a sobreposição da primeira à segunda não deve ser mantida quando acarrete uma desconsideração da teleologia que está subjacente a esta e outras perturbações intoleráveis para a harmonia do sistema esta e outras perturbações intoleráveis para a harmonia do sistema jurídico (…).

A interpretação restritiva é, por outro lado, a interpretação mais adequada ao disposto no “Memorando de entendimento sobre os condicionalismos específicos de política económica”, de 17 de Maio de 2011 (…), onde se diz, no ponto 2.19, que “[a]s autoridades tomarão também as medidas necessárias para autorizar a administração fiscal e a segurança social a utilizar uma maior variedade de instrumentos de reestruturação baseados em critérios claramente definidos, nos casos em que outros credores também aceitem a reestruturação dos seus créditos, e para rever a lei tributária com vista à remoção de impedimentos à reestruturação voluntária de dívidas.

Resta saber se existe vontade de fazer esta interpretação, ou seja, se o interesse na reestruturação de empresas é, em primeiro lugar genuíno e, em segundo lugar, suficientemente forte seja, para que o Estado abdique da sua posição confortável, ou se, pelo contrário, e como sucede a respeito de tantos outros objectivos de política económica, apenas se insiste na sua importância para “externalizar” os custos da reestruturação (…).

Se outra motivação não houver, espera-se que o legislador ou, na falta de uma intervenção esclarecedora por parte deste, o aplicador se recorde que o princípio da igualdade se opõe frontalmente a que os encargos (públicos) com a reestruturação ou recuperação de empresas sejam sempre suportados pelos credores privados e não o sejam nunca pelos credores públicos.”

Isto é, a aparente impossibilidade de homologação de um plano de insolvência com base em que tal plano implica uma qualquer modificação ou alteração dos créditos, seja por alteração da taxa de juro, do prazo e condições de pagamento ou qualquer outra razão, pode ser resolvida através de um processo de interpretação normativo que tenha por referência a finalidade subjacente das normas observada na perspectiva da unidade do sistema jurídico.

Acompanhando este processo interpretativo, accionado no ac. do STJ que seguimos de perto (de 18-2-2014) assumimos como fundamento nosso que, no quadro legal em vigor, os créditos fiscais e parafiscais no processo de insolvência (e no de revitalização), têm de ser contextualizados tendo por referência o CIRE, alterado com a introdução do PER, com o Compromisso assumido com a troika mas, em simultâneo, tendo presente a Lei Geral Tributária, fortemente tuteladora dos créditos da Fazenda Nacional, considerados indisponíveis, mesmo no processo de insolvência.

Que a harmonização destes dois regimes é complexa resulta já do que antes se expôs e de onde sublinhamos o facto de as alterações introduzidas no CIRE pelo PER contrariarem a filosofia do diploma, agora, contraditoriamente, tendo por objectivo primeiro a liquidação da empresa (versão inicial) do CIRE e, após as alterações do PER, visando a revitalização da empresa e já não a sua liquidação.

Por outro lado, a LGTributária, com as alterações introduzidas pela Lei nº55-A/2010, de 31.12, tirou sentido ao entendimento jurisprudencial antes referido, contrariando de modo inquestionável o Compromisso assumido pelo Estado Português em relação à proclamada intenção de flexibilizar a sua actuação quanto aos créditos fiscais e seu tratamento no contexto da insolvência, temos que concluir como o faz o ac. do STJ citado, que da conjugada interpretação do regime que encerram, difícil é aceitar que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, o que constitui a presunção do art. 9º, nº 3, do Código Civil.

Na análise da questão em termos de exegese interpretativa as regras e de acordo com o art. 9º, nºs 1 e 2, do Código Civil, o intérprete não deve cingir-se à letra da lei, ao seu elemento literal ou gramatical, mas, a partir dele, tentar construir a real intenção do legislador tendo em conta a teleologia da norma, atentos os interesses que o legislador quis contemplar no tempo histórico em que foi chamado a intervir, sendo que tal interpretação, partindo da letra de lei não pode acolher um sentido que nela não esteja minimamente expresso.

Neste âmbito, escreve-se no ac. do STJ de 18-2-2014 que “[n]a última década, o direito falimentar com a vigência do CIRE, em 2004, editado num tempo em que a crise das dívidas soberanas não tinha ocorrido, provocando o colapso de muitas empresas e das finanças públicas, sobretudo, países endividados do sul da Europa, apesar de não se poder falar em crise, ao tempo do seu início de vigência, o objectivo do referido Código, como antes dissemos e os tratadistas consideram, não tinha como objectivo primeiro a recuperação da empresa; por algum motivo logo na sua identificação se menciona “Código da Insolvência..,” só depois constando “ e de Recuperação de Empresas”.

Com a crise, que a passos largos passou da economia para as finanças dos Estados, mormente, os do Sul da Europa (Grécia, Portugal, Chipre, Espanha [esta afectada apenas no seu sistema bancário], a situação da economia portuguesa entrou em rápido colapso com as empresas descapitalizadas a encerrarem, com a inerente repercussão na arrecadação de impostos, no emprego, no aumento das prestações sociais e quebra do PIB, o que levou a que o Estado tivesse que pedir auxílio internacional através da troika que impôs ao Estado a adopção de políticas económicas e financeiras restritivas.

Sendo as empresas privadas a principal fonte de emprego e de geração de riqueza, rapidamente se tornou claro, que haveria que estancar a torrente de falências, com as nefastas consequências sociais ao nível dos trabalhadores, com perda de postos de trabalho, e repercussão ao nível das prestações sociais do Estado, para obviar a essa hemorragia.

Hoje, no processo falimentar, aos credores cabe decidir, com larga autonomia, a forma como recuperar os seus créditos, abrindo-se duas vias; a da liquidação da empresa ou a sua recuperação. Daí que, tendo em conta a tendencial igualdade dos credores no processo falimentar – “par conditio creditorum” – haverá que não esquecer que, decretada a insolvência desaparecem os privilégios dos créditos do Estado e outras entidades, designadamente da Segurança Social, nos termos do art. 97º, nº1, al. a) do CIRE.

Hoje, também na conjugação dos preceitos legais do PER, integrados no CIRE e no Memorandum da troika e das suas “imposições” que o Estado Português se comprometeu a adoptar no que respeita a actuação mais conforme à recuperação das empresas, as alterações introduzidas na LGT, pela Lei Orçamental de 2010, em vigor desde 1.1.2011, interpretadas literalmente, não são compatíveis com a perspectiva do direito insolvencial actual que coloca a tónica na recuperação da empresa e não na sua liquidação.

O papel de auto-regulação dos credores do insolvente, no quadro do princípio da legalidade, impõe que se adopte uma interpretação restritiva das normas dos arts. 30.º, n.º 2, e 36.º, n.º3, da LGT, e art. 85.º do CPPT, restringindo o seu campo de aplicação à relação tributária em sentido estrito, valendo primordialmente na relação Estado-contribuinte, normas que devem ceder no confronto com a legislação especial do direito falimentar.

Depois, atentas as funções sociais do Estado seja na perspectiva social – o direito ao trabalho – seja na perspectiva económica – a interpretação conforme à Constituição implica que entre uma interpretação que salvaguarde os princípios constitucionais e outra que com eles colida, deve prevalecer aquela.”.

É notório também que neste quadro de crise das finanças públicas o papel que os créditos do Estado por impostos e as contribuições para o sistema de Segurança Social desempenham como fonte de receitas são essenciais ao Estado de Direito e, de modo mais prosaico, ao financiamento do deficit e julgamos que por isso o legislador fez menção de erguer uma barreira à jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça quanto aos créditos tributários no processo de insolvência, acrescentando ao art. 30º da LGT, o nº3, pretendendo reforçar o princípio da indisponibilidade dos créditos tributários; todavia, tal normativo não contende com nº 2 que permaneceu imodificado. E não faria sentido mantê-lo, do ponto em que se a lei geral pode fixar condições para a sua redução ou extinção, por maioria de razão a legislação especial o poderá fazer.

Como se escreve no ac. do STJ de 18-2-2014 “[H]averia desrespeito pelo princípio da legalidade e da igualdade tributárias se o CIRE, de maneira discriminatória e desproporcionada, possibilitasse aos credores atingir os créditos do Estado ou contribuições da Segurança Social, estabelecendo desigualdade não materialmente fundada entre os credores do insolvente. O CIRE, sobretudo após a introdução do processo especial de recuperação, visa a salvaguarda da empresa com os olhos postos na sua recuperação, sobretudo em relação às suas obrigações pecuniárias, nestas assumindo particular relevo as obrigações de natureza fiscal e parafiscal, em regra, de elevada expressão.”.

Por outro lado, como também já se entendeu, ainda que o n.º 2 do artigo 30.º da LGT determine que o crédito tributário é indisponível, é a própria norma que admite a possibilidade da sua redução ou extinção e, portanto, tal indisponibilidade não é absoluta, não resultando da citada norma que o crédito não possa, em circunstância alguma, ser objecto de redução ou extinção.[10]

A indisponibilidade do crédito tributário, a que alude esta norma, bem como o artigo 36.º do mesmo diploma, significa apenas que a administração tributária não pode dispor livremente deste crédito e, portanto, ao contrário do que acontece com qualquer outro credor, não pode, em qualquer caso e por sua livre iniciativa, perdoar, reduzir ou alterar os créditos tributários, significando que o perdão, redução moratória ou qualquer alteração estão vinculados aos princípios da igualdade e da legalidade tributária.

Tais princípios pressupõem um tratamento igual para o que é igual e um tratamento desigual para o que é desigual, tendo o legislador consagrado um tratamento diferenciado para os insolventes, através do regime que instituiu com o CIRE, impondo, designadamente, aos credores, a sua vinculação a um plano de insolvência, ainda que os mesmos não tenham dado o seu acordo para o perdão ou redução dos respectivos créditos que conste desse plano.

Assim é que a administração tributária ao ficar vinculada ao plano de insolvência apenas fica submetida ao regime especial que o legislador impôs à generalidade dos credores sempre que está em causa uma pessoa insolvente, sem que tal importe uma qualquer violação dos princípios da legalidade tributária e da igualdade.

Como se adverte expressamente no ac. do STJ que vimos seguindo, “[a] prevalecer a interpretação dada na sentença sob recurso, ter-se-ia encontrado, por forma ínvia – através de uma disposição transitória na Lei do Orçamento de Estado – a maneira de inviabilizar todo o capítulo do CIRE dedicado ao plano de insolvência, sabendo-se, como se sabe, que, normalmente, os créditos do Estado (Segurança Social e Fazenda Nacional) têm um grande peso no universo das dívidas do insolvente e que, não podendo o Estado aprovar um plano com redução ou extinção dos seus créditos, e não podendo o mesmo ser homologado sem o seu voto favorável, conduziria, inevitavelmente, à inviabilização de qualquer plano de insolvência e, por consequência, à revogação, ainda que não formal, de todo esse capítulo.

Não terá sido essa, acreditamos, a vontade do legislador, nem se justificaria que o Estado se colocasse à parte, abstendo-se de contribuir para a prossecução dos fins que visou atingir com o processo de insolvência e que o próprio Estado consagrou legislativamente, normas essas – do CIRE – que, repete-se, não foram alteradas, subsistindo, portanto, a interpretação que das mesmas vinha fazendo a jurisprudência, o que relega para o campo estritamente fiscal a alteração introduzida na Lei Geral Tributária.”.

Em resumo, com respaldo na doutrina e jurisprudência citada, concluímos também que o perdão ou redução dos créditos tributários ao abrigo de um plano de insolvência validamente aprovado, não viola (ou pode não violar) os princípios da igualdade e da legalidade tributária e, como tal, não é vedado pelo disposto no artigo 30º, n.º 2, da LGT, ainda que a Administração Tributária não tenha dado o seu acordo ao mesmo, sendo que o aditamento do n.º 3 a este artigo 30.º, em nada altera este raciocínio, do mesmo não resultando que o legislador tenha querido inviabilizar - pelo seu voto desfavorável - a homologação de planos de insolvência, ao contrário do que a jurisprudência vinha aceitando uniformemente.

Julgamos que entender o contrário, ou seja, figurar um poder potestativo incondicional que permitisse ao Estado a tutela absoluta dos seus créditos num processo de insolvência contra o acordo de todos (ou pelo menos da maioria qualificada) dos restantes credores seria transformar uma excepção, ditada por razões de ordem pública, em regra, afrontando o princípio da proporcionalidade, apesar da peculiar natureza e finalidade dos tributos que o Estado arrecada.

 Por referência ao princípio da proporcionalidade, desdobrado como é pacífico, quanto às exigências de relação entre as medidas e os fins prosseguidos: na adequação das medidas aos fins; na necessidade ou exigibilidade das medidas e na proporcionalidade em sentido estrito, ou “justa medida”[11]Numa perspectiva de adequada ponderação de interesses, tendo em conta os fins que as leis falimentares visam, pode violar o princípio da proporcionalidade admitir que o processo de insolvência seja colocado em pé de igualdade com uma simples execução fiscal, servindo apenas para a Fazenda Nacional actuar na mera posição de reclamante dos seus créditos, sem atender à particular condição dos demais credores do insolvente ou pré-insolvente, que contribuem para a recuperação da empresa, abdicando dos seus créditos, permanecendo o Estado alheio a esse esforço, escudado em leis que contrariam o seu Compromisso de contribuir para a recuperação das empresas, como resulta do Memorandum assinado com a troika e até das normas que, no contexto do PER, o legislador fez introduzir no CIRE.”[12]

Se assim deve ser, isto é, se deve admitir-se a aprovação do plano de insolvência mesmo que nele se preveja o perdão ou redução dos créditos tributários sem o parecer favorável a esse plano por parte do Estado seu titular (desde que nesse plano se não imponham a esses créditos regimes mais desfavoráveis que o fixado aos restantes credores), julgamos que este entendimento mais sentido faz ainda quando, como no caso em estudo, os créditos públicos que ditaram o indeferimento do plano de insolvência representam apenas 1,5% do universo da dívida global.

E acrescente-se que do plano de insolvência aprovada não resulta para os créditos do Estado qualquer regime diferente do dos restantes credores, maxime não implica qualquer perdão da dívida.

Veja-se que neste Tribunal da Relação já se decidiu, quanto à aprovação de plano de insolvência com voto desfavorável do Estado por créditos de que era titular que “dispondo-se no art. 215.º do CIRE (para que remete o art. 17.º-F/5 do CIRE) que o juiz só deve recusar a homologação em caso de “violação não negligenciável (…) das normas aplicáveis ao seu conteúdo”, deve considerar-se ser possível entender, em certos e concretos casos, que estaremos tão só perante violações negligenciáveis das normas tributárias.

Vem-se entendendo, é certo, que devem ser consideradas como não negligenciáveis todas as violações de normas imperativas que acarretam a produção dum resultado que a lei não autoriza; todas as violações de normas que interfiram com a justa salvaguarda dos interesses/posições dos credores.”, concluindo que se deve entender como caso negligenciável (e por isso admitindo aprovação do plano) a violação que se traduza “[n]uma mera modificação dos prazos de pagamento e numa redução das taxas de juros, que reflictam e exprimam uma redução global do crédito pouco expressiva e se tal modificação dos prazos e redução de juros não estiver à partida proibida pelas disposições tributárias abstractamente convocáveis e invocáveis”[13].

A admissibilidade do plano de insolvência que defendemos no presente caso, seja como entendimento geral acolhido no ac. do STJ de 18-2-2014, no qual nos revemos, seja como possibilidade casuística extraída da circunstância de o valor dos créditos do Estado e do regime para eles fixado não importar uma violação não negligenciável das normas tributárias, impõe e que julguemos procedente a Apelação quanto à pretensão de ver aprovado o plano de insolvência.

Procedendo ao sumário da presente decisão faz-se constar que:

- Numa perspectiva de adequada ponderação de interesses, tendo em conta os fins que as leis falimentares visam, pode violar o princípio da proporcionalidade admitir que o processo de insolvência seja colocado em pé de igualdade com a execução fiscal, servindo apenas para a Fazenda Nacional actuar na mera posição de reclamante dos seus créditos, sem atender à particular condição dos demais credores do insolvente ou pré-insolvente, que contribuem para a recuperação da empresa, abdicando dos seus créditos e garantias, permanecendo o Estado alheio a esse esforço, escudado em leis que contrariam o seu Compromisso de contribuir para a recuperação das empresas, como resulta do Memorandum assinado com a troika e até das normas que, no contexto do PER, o legislador fez introduzir no CIRE.

- O papel de auto-regulação dos credores do insolvente, no quadro do princípio da legalidade, impõe que se adopte uma interpretação restritiva das normas dos arts. 30.º, n.º 2, e 36.º, n.º 3, da LGT, e art. 85.º do CPPT, restringindo o seu campo de aplicação à relação tributária em sentido estrito, valendo primordialmente na relação Estado-contribuinte, normas que devem ceder no confronto com a legislação especial do direito falimentar.

- Atentas as funções sociais do Estado seja na perspectiva social – o direito ao trabalho – seja na perspectiva económica, a interpretação conforme à Constituição implica que entre uma interpretação que salvaguarde os princípios constitucionais e outra que com eles colida, deve prevalecer aquela.

- Ainda que o n.º 2 do artigo 30.º da LGT determine que o crédito tributário é indisponível, tal indisponibilidade não é absoluta uma vez que a própria norma admite a possibilidade da sua redução ou extinção, tal significando que a administração tributária não pode dispor livremente deste crédito e, portanto, ao contrário do que acontece com qualquer outro credor, não pode, em qualquer caso e por sua livre iniciativa, perdoar, reduzir ou alterar os créditos tributários, estando o perdão, redução moratória ou qualquer alteração, vinculados aos princípios da igualdade e da legalidade tributária.

- Numa situação em que os créditos tributários e para tributários representam apenas 1,5% do universo total dos créditos, sendo contemplado no plano de insolvência que tais créditos não sofrem redução mas apenas recalculo de juros e um prazo de pagamento mais alargado, a aprovação de tal plano por 70% dos credores representativos de igual percentagem de créditos contra a aprovação do representantes dos créditos tributários, deve considerar-se como negligenciável e não impeditiva da homologação do plano.

Decisão

Pelo exposto, nos tempos sobreditos, acorda-se em julgar procedente a Apelação e, em consequência em revogar a decisão recorrida, substituindo-a por outra que aprova o plano de insolvência aprovado pela assembleia de credores.

Sem custas – art. 4 nº 1 al. a) do RCP.

Coimbra, 1 de Abril de 2014

 

Manuel Capelo (Relator)

Jacinto Meca

Falcão de Magalhães


[1] in "Código de Processo Civil Anotado", V, 140
[2] Ver por todos, ac. STJ de 15-12-2011 no porc. 2/08.9TTLMG.P1S1, in dgsi.pt

[3] Conforme entendimento de vd. Jorge Miranda/Rui Medeiros, CRP Anotada, vol. I, Coimbra Editora, 2.ª edição, anotações ao art.º 103.º e de José Casalta Nabais, Direito Fiscal, Almedina, 4.ª edição, p. 140 e ss..

[4] Idêntica perspectiva é assinalada por Menezes Cordeiro no estudo “Perspectivas Evolutivas do Direito da Insolvência”, Revista Thémis, Ano XII, nºs 22/23, 2012, págs. 40 e 41/42, quando sobre o CIRE refere que se procurarmos enumerar as grandes linhas inovatórias do CIRE , encontramos: a primazia da satisfação dos credores que pretende afastar o óbice da a recuperação.

[5] Menezes Cordeiro, in Revista de Direito das Sociedades” – Ano IV (2012), nº3, pág.588: “A reforma da insolvência levada a cabo pela Lei n° 16/2012, de 20 de Abril, decorreu das obrigações assumidas pelo Estado Português, através da assinatura do Memorando da Troika. Curiosamente, o Memorando da Troika ocupa-se da matéria da insolvência a propósito do seu ponto 2: Regulação e supervisão do sector financeiro, fazendo-lhe, depois, uma curta referência a propósito do sistema judicial.
[6] Cfr. Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 13.1.2009 – Proc. 08A3763I – in www.dgsi.pt, prolatado antes da introdução do nº3 ao art. 30º da LGT pelo art. 125º da Lei nº55-A/2010, de 31.12.
[7] Po.cit. págs. 147/148
[8] Op. Cit. p. 249
[9] in “Revista da Ordem dos Advogados”, Ano 72, Abril/Setembro 2012, págs. 715 a 741, em Estudo datado de 7.6.2012, págs. 739 a 741

[10] Ac. da Relação de Guimarães, de 10.4.2012 – Proc. 2261/11.0TBBRG-E.G1 , decisão esta que mereceu aplauso de Catarina Serra no citado Estudo publicado na Revista da Ordem dos Advogados – págs. 740-741.
[11] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º40/07, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt.
[12] Ac. do STJ de 18-2-2014 citado.
[13] Ac. R.C de de 1-10-2013 no proc. 1786/12.5TBTNV.C2, in dgsi.pt.
Veja-se também quanto à unidade do sistema e à medida do não negligenciável que o art. 196 nº6 do CPPT no âmbito do processo executivo, prevê que “Quando, no âmbito de plano de recuperação económica legalmente previsto, se demonstre a indispensabilidade da medida e, ainda, quando os riscos inerentes à recuperação dos créditos o tornem recomendável, a administração tributária pode estabelecer que o regime prestacional seja alargado até ao limite máximo de 150 prestações, com a observância das condições previstas na parte final do número anterior.”