Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
23/21.6GDCNT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA ALEXANDRA GUINÉ
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
EXTORSÃO
CONCURSO EFECTIVO
PRISÃO EFECTIVA
PENA ACESSÓRIA DE CONTACTOS COM A VÍTIMA
Data do Acordão: 03/02/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE COIMBRA – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA, PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTS. 152.º, N.ºS 1, 2, 4 E 5, E 223.º DO CP
Sumário: I – Há concurso efectivo entre o crime de violência doméstica e o crime de extorsão, uma vez que os tipos que os contemplam tutelam diversos bens jurídicos.

II – Enquanto o tipo de crime do artigo 152.º do CP protege a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra tratos cruéis, degradantes ou desumanos, o tipo de crime do artigo 223.º do mesmo diploma visa a protecção do património – este, primordialmente – e da liberdade (de decisão e de acção).

III – A condenação em prisão efectiva, decorrente da prática pelo arguido de um crime de violência doméstica, não obsta à imposição da pena acessória de proibição de contactos, com afastamento da residência ou do local da vítima, prevista nos n.ºs 4 e 5 do artigo 152.º do CP.

Decisão Texto Integral:








Acórdão deliberado em conferência na 5ª secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra
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I. Relatório
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No Juízo Central Criminal de Coimbra, do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, foi o arguido AA condenado pela prática de um crime de violência doméstica, agravado, p. e p. pelo artigo 152º, n.ºs 1, alínea d), 2 al. a), 4 e 5 do Código Penal na pena de 3(três) anos de prisão; pela prática de um crime de extorsão, na forma continuada, p e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 223º, nº 1, e 30º, nº 2, do Código Penal, na pena de 1(um) ano e 6(seis) meses de prisão. Em cúmulo jurídico foi decidido aplicar a pena única de 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão efetiva. Foi condenado, na pena acessória de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de 3(três) anos e 9 (nove) meses de prisão, incluindo-se o afastamento da residência e do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância, sempre que o arguido esteja em liberdade. Mais se determinou que o arguido frequentasse programas específicos de prevenção da violência doméstica. Determinou-se, ainda, que o arguido AA, seja sujeito a tratamento à sua toxicodependência, nos termos do art.º 46 do DL Decreto-Lei n.º 15/93. Condenou-se, ainda, o arguido no pagamento à vitima de uma indemnização que se arbitra o valor de €5000.
Inconformado, o arguido interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões (que se transcrevem):
«1. O crime de violência doméstica consome o de extorsão, devendo o arguido ser absolvido deste último;
2. A pena fixada é excessiva, devendo ser aplicada prisão igual ou inferior a dois anos;
3. A pena de prisão deve ser suspensa, sujeita à condição de tratamento à toxicodependência, em regime de internamento em comunidade terapêutica ou similar;
4. Deve ser aplicada pena igual ou inferior a dois anos a cumprir em regime de permanência na habitação em comunidade terapêutica;
5. Não deve haver proibição de contactos com a vítima, nem quantia arbitrada superior a € 500,00.
Das normas violadas: 152º, do Código Penal, 40.º do Código Penal, 42.º do Código Penal; 43.º do Código Penal; 44.º do Código Penal; 45.º do Código Penal; 46.º do Código Penal; 47.º do Código Penal; 50.º do Código Penal; 58.º do Código Penal; 70.º do Código Penal; 71.º do Código Penal».

Notificado, respondeu o Ministério Público, pugnando pela manutenção do decidido.

Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador Geral Adjunto, emitiu parecer, acompanhando a posição assumida pelo Ministério Público na 1ª instância.

Notificado, nos termos e para os efeitos consignados no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o arguido exerceu o seu direito de resposta.

Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido a conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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II. Fundamentação:
1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:
O objeto de um recurso penal é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação (que delimitam o âmbito de intervenção do tribunal ad quem), sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso (Cfr. Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 7/95, de 19-10-1995, publicado no Diário da República, Série I-A, de 28-12-1995).
Assim, o tribunal ad quem tem de apreciar apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.ºs 1 e n.º 3, ambos do C.P.P. – cfr. Ac. STJ de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271.
De acordo com as conclusões da motivação do recurso interposto nestes autos, são as seguintes as questões a que cabe dar resposta:
1. Do concurso efetivo das infrações;
2. Da dosimetria da pena e seu cumprimento em efetividade;
3. Do quantum indemnizatório.


2. Acórdão a quo (transcrito na parte relevante):
«2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1Fundamentação de Facto:
2.1.1 Matéria de facto provada:
1.O arguido AA é filho da ofendida BB, nascida a .../.../1961, com quem reside na R..., ..., (…).
2.O arguido sofria de adição a produtos estupefacientes - heroína e cocaína, desde data não apurada, e não exercia qualquer atividade profissional.
3.Visando custear o vicio das drogas, no interior da habitação comum, o arguido decidiu custear a compra do produto estupefaciente de que necessitava, exigindo dinheiro á sua mãe, alegando que precisava consumir produto estupefaciente.
4.Mal a ofendida chegava à residência comum, regressada do trabalho, o arguido dizia-lhe que se ela não lhe desse dinheiro, que roubava o que aquela tinha em casa e que a matava, o que aconteceu desde data não concretamente apurada mas que se situa nos meses de Novembro/Dezembro de 2020.
5.A ofendida foi entregando ao arguido o dinheiro por ele exigido, porque tinha medo dele, só não o fazendo quando não o tinha. A ofendida entregava-lhe cerca de 10/20 euros, quase todos os dias.
6.No dia 16 de junho de 2021, cerca das 18h, o arguido exigiu à sua mãe que lhe desse dinheiro, tendo esta entregue ao mesmo cerca de 10/20 euros, e à meia noite do dia 17 de junho de 2021, o arguido voltou a exigir-lhe mais dinheiro, sendo que a ofendida, lhe entregou mais 10 euros.
7.Quando a ofendida dizia ao arguido que não tinha dinheiro, o arguido partia objetos existente na habitação, nomeadamente, pratos, AA portas dos quartos e até a mobília do quarto dele.
8.O arguido desferiu empurrões na sua mãe, duas ou três vezes, colocou AA suas mãos no corpo da ofendida, e empurrou-a.
9.Praticamente todos os dias o arguido apelidou a ofendida de “vaca”, “porca”, “puta”, e disse-lhe “não vales uma merda” e “és uma mãe de merda”.
10.Como consequência das supra descritas condutas do arguido, a ofendida sentiu medo, inquietação, vivendo em permanente estado de desassossego, temendo pela sua integridade física e vida.
11.O arguido quis e conseguiu ofender a integridade física e psicológica da ofendida, atingir a sua dignidade pessoal, apoderar-se do dinheiro da ofendida, estando o arguido ciente da fragilidade decorrente da idade da vitima e da enorme desproporção física existente entre ambos.
12. Assim, o arguido pelo menos desde novembro/dezembro de 2020, até à data em que foi detido, em 24 de junho de 2021, agrediu física, verbal, psicologicamente a ofendida, provocou-lhe medo e receio, afetou a sua liberdade de determinação e apoderou-se do dinheiro da mesma.
13.Quis o arguido empregar violência contra a ofendida, por forma a atemorizá-la e deixá-la na impossibilidade de resistir ás exigências de dinheiro que lhes fazia, obrigando-a desta forma a entregar-lhe sucessivamente quantias em dinheiro, bem sabendo o arguido que o fazia contrariando a vontade da ofendida a quem provocou prejuízo, e que AA quantias que recebeu eram indevidas, e aproveitando-se do facto de a ofendida, por medo do arguido, não o denunciar às autoridades.
14. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que AA supra descritas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.
15. Com interesse para a e para a decisão, resulta do relatório social o seguinte:
(…).
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III. O DIREITO
(…).
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IV. Determinação da medida da pena
(…).
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V. Da suspensão da pena privativa da liberdade
(…)
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VI. Das penas acessórias:
(…).
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VII. Do arbitramento oficioso de indemnização à vitima:
(…).
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Apreciando e Decidindo
1. Do concurso efetivo das infrações;
Sustenta, o recorrente, o entendimento de que o crime de violência doméstica e o crime de extorsão se encontram numa situação de concurso aparente de crimes, onde este último é absorvido, ou consumido, por aquele, em vez de um concurso real de crimes, que obrigaria a fixar uma pena para cada um dos tipos legais em causa, com a consequente determinação de uma pena única concursal.
Vejamos.
Nos termos do art.º 30.º n. 1 do Código Penal «o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente».
Será real, o concurso de crimes, quando o agente pratica vários atos que preenchem autonomamente vários crimes ou várias vezes o mesmo crime (pluralidade de ações) e é ideal quando através de uma mesma ação se violam normas penais ou a mesma norma, repetidas vezes (unidade de ação).
O critério operativo de distinção entre categorias, que permite determinar se em casos de pluralidade de ações ou pluralidade de tipos realizados existe, efetivamente, unidade ou pluralidade de crimes, reverte ao bem jurídico e à concreta definição que esteja subjacente relativamente a cada tipo de crime.
No caso de concurso aparente de crimes, AA leis penais concorrem só na aparência, excluindo umas AA outras, segundo regras de especialidade, subsidiariedade ou consumpção.
Há consunção quando o conteúdo de injusto de uma ação típica abrange, incluindo-o, outro tipo de modo que, de um ponto de vista jurídico, expressa de forma exaustiva o desvalor - Cfr. Ac. do STJ, 13.10.2004, Proc 04P3210, Cons. Henriques Gaspar, disponível in www.dgsi.pt.
No crime de violência doméstica o bem jurídico tutelado consiste na saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra tratos cruéis, degradantes ou desumanos, em suma, um bem jurídico complexo que abrange a tutela da saúde física, psíquica, sexual, emocional e moral.
No que respeita à factualidade típica, exige-se que sejam infligidos a outra pessoa maus tratos físicos ou psíquicos, que podem os maus tratos ser infligidos mediante AA mais variadas ações ou omissões (e, por isso, é um crime de execução não vinculada).
Trata-se de crime específico, pois exige a verificação de determinadas qualidades pessoais do agente em relação ao ofendido (seja um vínculo de conjugalidade, ou quase-conjugabilidade, com ou sem coabitação, seja a coabitação com pessoa particularmente indefesa, ou a existência de descendente comum em 1.º grau).
É esta posição de vulnerabilidade de certas condições individuais que, perante manifestações de prepotência física ou psíquica, pode redundar na “coisificação” de um ser humano, o que significa a eliminação ou limitação insuportável da respetiva dignidade humana, quando esta tem uma consagração constitucional [art. 1.º, 24.º, n.º 1, 25.º, da C. Rep.] e é uma referência inabalável dos direitos humanos [5.º da DUDH; 3.º, n.º 1 da CEDH; 7.º, n.º 1, 10.º, n.º 1 do PIDCP; 1.º, 3.º, n.º 1, 4.º da CDFUE] - Cfr. Ac. do TRL, 21.10.2020, p. 689/19.7PCRGR.L1-3, Des. Florbela Sebastião e Silva..
Prevê-se «uma “tutela especial e reforçada” da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima» (vide Acórdão da Relação do Porto de 28.09.2011, disponível in www.dgsi.pt).
Nesta conformidade, podemos assentar e partindo do bem jurídico aqui tutelado que os maus tratos proibidos pelo crime de violência doméstica têm sempre subjacente um tratamento degradante ou humilhante de uma pessoa, de modo a eliminar ou a limitar claramente a sua condição humana, reduzindo-a praticamente à categoria de coisa - Cfr. supra referido Ac. do TRL, 21.10.2020.
Já o crime de extorsão é um crime híbrido com um significado pluri-ofensivo (cfr. acórdão de 21.09.2011 do Tribunal da Relação do Porto, in www.trp.pt), porquanto afeta simultaneamente vários bens jurídicos, como seja o património e a liberdade.
O art.º 223º do CP visa, antes de mais, garantir a liberdade de disposição patrimonial.
Objetivo direto da extorsão é a obtenção de uma vantagem patrimonial à custa de um prejuízo do extorquido. Daí a inclusão do crime de extorsão entre os crimes contra o património.
Ou seja, a extorsão é, em primeiro lugar, um crime contra o bem jurídico património, sem prejuízo de tutelar o bem jurídico, liberdade de decisão e de ação, cuja lesão é conatural à extorsão.
A respetiva ação típica corresponde a uma conduta de constrangimento de outra pessoa, através de violência ou de ameaça com um mal importante, que tem como seu objeto um ato de disposição patrimonial.
A ameaça terá que representar um dano ou um prejuízo relevante, pelo que tanto pode corresponder a um facto ilícito típico como a um ato lícito. O essencial é que tanto a violência como a ameaça grave, enquanto requisitos típicos imprescindíveis, sejam idóneas e adequadas a constranger o visado a fazer a pretendida disposição patrimonial.
Assim, o comportamento típico abrangerá desde AA ações de simples constrangimento até às ações que eliminam em absoluto a possibilidade de resistência, incluindo aquelas que afetam psicológica e mentalmente a capacidade de decidir, mas sempre todas elas dirigidas à adoção de um certo comportamento, pretendido pelo agente e contrário à vontade do visado - Cr. Ac. da Rel. De Évora, 22.11.2011, proc. 3/07.4GACVD.E1, Des. José Lúcio, disponível in www.dgsi.pt.
Ora, tal como consta do Acórdão a quo:
«Tendo por base a factualidade provada, resulta à saciedade, que o arguido com a sua conduta preenche todos os elementos objetivos e subjetivo dos ilícitos imputados.
Na verdade, por diversas vezes e por um período situado entre Novembro e Dezembro de 2020 até ser detido o arguido exigiu da sua mãe, pessoa particularmente indefesa, varias quantias em dinheiro, a que esta acedia, mediante ameaçAA de morte, ou de injurias, de ofensas à integridade física, tendo em vista o seu consumo de estupefacientes.
Além disso e sempre que não lograva obter os seus intentos, partia vários objetos que se encontravam em casa, como a mobiliário do seu quarto.
O arguido quis e conseguiu ofender a integridade física e psicológica da ofendida, atingir a sua dignidade pessoal, apoderar-se do dinheiro da ofendida, estando ciente da fragilidade decorrente da idade da vitima, sua mãe, e da desproporção física existente entre ambos.
Pelo menos desde novembro/dezembro de 2020, até à data em que foi detido, em 24 de junho de 2021, agrediu física, verbal, psicologicamente a ofendida, provocou-lhe medo e receio, afetou a sua liberdade de determinação e apoderou-se do dinheiro da mesma.
Quis o arguido empregar violência contra a ofendida, por forma a atemorizá-la e deixá-la na impossibilidade de resistir ás exigências de dinheiro que lhes fazia, obrigando-a desta forma a entregar-lhe sucessivamente quantias em dinheiro, bem sabendo o arguido que o fazia contrariando a vontade da ofendida a quem provocou prejuízo, e que AA quantias que recebeu eram indevidas, e aproveitando-se do facto de a ofendida, por medo do arguido, não o denunciar às autoridades.
O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que AA supra descritas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal» (fim de citação).
Com AA suas condutas, preencheu os elementos típicos dos crimes por que foi condenado, tratando de forma degradante a sua mãe, humilhando-a enquanto pessoa, de modo a eliminar ou a limitar claramente a sua condição humana, reduzindo-a praticamente à categoria de coisa, e mediante violência, agrediu física, verbal, psicologicamente a ofendida, provocou-lhe medo e receio, afetou a sua liberdade de determinação e apoderou-se do dinheiro da mesma.
Quer isto dizer que, existe um concurso efetivo entre o tipo legal de violência doméstica, agravado, p. e p. pelo artigo 152º, n.ºs 1, alínea d), 2 alínea a), 4 e 5 e do crime de extorsão, p e p., pelo artigo 223º, nº 1, ambos do Código Penal, improcedendo, nesta parte o recurso.
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Da dosimetria penal e do cumprimento efetivo
Insurge-se o recorrente e arguido contra AA medidas das penas parcelares fixadas (de 3 anos e 1 ano e seis meses) e a pena única (3 anos e nove meses) aplicada, invocando a seu favor, que é toxicodependente e agiu por conta da sua adição, confessou a generalidade dos factos e mostra-se arrependido, deu o seu consentimento para o tratamento, a mãe, visita-o, no estabelecimento prisional, dá-lhe o seu apoio e recusa-se a prestar declarações. Pugna, o recorrente e arguido que não deverá ser-lhe aplicada pena superior a 1 ano e nove meses de prisão, pelo crime de violência doméstica, devendo, no máximo ser aplicado pena de 2 anos de prisão, em cúmulo.
Vejamos.
Dispõe o artigo 40º, nº 1 do Código Penal que «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade»; não podendo, em caso algum a pena ultrapassar a medida da culpa (pois a culpa do agente é sempre o seu limite inultrapassável (nº 2 do artigo 40º do Código Penal e artigo 30º da Constituição da República).
Quanto à determinação do quantum concreto da pena, e dentro dos limites definidos na lei, há-de considerar-se, nos termos do art.º 71.º, «a culpa do agente e AA exigências de prevenção» (n.º1), bem como «todas AA circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele» (n.º 2).
No caso, considerando a frequência e gravidade das suas consequências dos tipos de crime em apreço, no nosso país, designadamente, no que respeita ao crime de violência doméstica, um autêntico flagelo comunitário, e o alarme social causado por crimes de extorsão, são elevadas AA exigências de prevenção geral, e, como tal, a constante necessidade de reafirmar, de forma eficaz, a validade das normais incriminadoras.
Igualmente, são prementes AA necessidades preventivas especiais, atendendo ao grau de culpa manifestado nos fatos (atuação com dolo direto) e à diversidade, frequência e gravidade dos maus tratos, à forma e contexto com que o arguido atingiu o corpo de sua mãe, assim como o seu estado psíquico, a sua honra e consideração, procurando atemorizá-la, no seu quotidiano, nas várias formas em que o crime de violência doméstica aqui se decompôs, reveladoras de um grau de ilicitude na execução do facto já algo elevada; e no caso da extorsão, releva o modo de atuação do arguido, tendo em conta que a ofendida é sua mãe, a quem causou medo e receio, sendo toxicodependente, e agindo por conta da sua adição.
Exacerbam, ainda, AA exigências de prevenção especial continuar o arguido associado ao consumo de produtos estupefacientes, não obstante já ter sido sujeito a tratamento, sem qualquer trabalho fixo, nem qualquer fonte de rendimento; bem como os antecedentes criminais.
O arguido, por várias vezes teve contacto com o meio jurisdicional, havendo sido condenado por diversos crimes de condução sem habilitação legal, furto simples, ameaça, em penas de multa, algumas delas substituídas por pena de prisão subsidiaria. Foi, ainda, sujeito a uma condenação, em processo sumaríssimo, pela prática de um crime de violência doméstica, ainda que por factos praticados em 10.07.2010 e tem uma condenação pela prática do mesmo crime, por factos praticados em 12.05.2016, transitada em 5.01.2018, na pena de dois anos e dois meses de prisão, suspensa na sua execução, com regime de prova, e cuja pena foi declarada extinta em 5.1.2020.
Acresce que, não obstante ter prestado declarações após a produção de prova testemunhal e ter parcialmente confessado os factos, não externalizou qualquer arrependimento, remetendo a prática dos factos para a adição de produtos estupefacientes que até então andava a fazer, manifestando uma consciência crítica reduzida e autodesculpabilizante.
Do ponto de vista preventivo, insuficientes se revelam o consentimento prestado para tratamento e a mera alegação, em sede de recurso, que a mãe visita-o no estabelecimento prisional, dá-lhe o seu apoio e recusou-se a prestar declarações,
No que se refere à pena única, estabelece o artigo 77º, nº 1, do Código Penal:
«Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente».
E dispõe o nº 2, que «A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes».
Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta AA conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso.
A moldura abstrata do concurso tem como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas, e como máximo a soma de todas elas, mas sem ultrapassar os 25 anos de prisão.
No caso concreto, tendo em atenção AA penas parcelares agora aplicadas, a moldura penal da pena aplicável em cúmulo tem os seguintes limites:
Mínimo: prisão de 3 anos (a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes)
Máximo de prisão de 4 anos e 6 meses (a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes).
A pena única tem de socorrer-se dos parâmetros da fixação das penas parcelares, podendo funcionar como “guias” na fixação da pena do concurso.
A sua fixação – tal como resulta da lei – não se determina com a soma dos crimes cometidos e das penas respetivas, mas da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do arguido.
Atento tudo o que se deixou dito, é óbvio que na pena única a aplicar, terá de relevar a medida de cada uma das penas concretas aplicadas por cada um dos crimes.
Quanto à ilicitude, entendida como juízo de desvalor da ordem jurídica sobre um comportamento, por este lesar e pôr em perigo bens jurídico-criminais, a saúde, entendida em sentido complexo, o património e a liberdade - será de considerar elevada e mediana, nos termos sobreditos.
Quanto à modalidade de dolo, o arguido agiu com dolo direto e intenso, consubstanciado no período da atividade ilícita agora em apreço, e no número de comportamentos encetados.
Na avaliação da personalidade do arguido importa reter o que consta dos factos dados como provados, nomeadamente, AA suas condições de vida, e os antecedentes criminais.
No que toca à prevenção especial, não há dúvidas que, o arguido carece de forte socialização, importando não esquecer a existência de antecedentes criminais.
Neste contexto, valorando o ilícito global perpetrado, ponderando em conjunto a gravidade dos factos e a sua relacionação com a personalidade do arguido, entendemos justa, adequada e proporcionada (face ás penas parcelares aplicadas e supra descritas) a pena única fixada de 3 anos e 9 meses de prisão.
Mais alega o recorrente que, não obstante os antecedentes criminais e ter cumprido penas de prisão efetiva, deverá ser-lhe permitido resolver o problema de toxicodependência em estabelecimento de saúde adequado, devendo a pena de prisão ser suspensa na sua execução, na condição de efetuar tratamento em regime de internamento em comunidade terapêutica.
Os pressupostos da suspensão da execução da pena vêm enunciados no art.50.º, n.º 1 do Código Penal.
Nos termos deste preceito legal, na redação vigente à data dos factos, «O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente AA finalidades da punição».
O pressuposto formal de aplicação da suspensão da execução da prisão é apenas que a medida concreta da pena aplicada ao arguido não seja superior a 5 anos.
O pressuposto material da suspensão da execução da pena de prisão é que o Tribunal conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do arguido, ou seja, que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente AA finalidades da punição.
No juízo de prognose deverá o Tribunal atender, no momento da elaboração da decisão, à personalidade do agente (designadamente ao seu carácter e inteligência), às condições da sua vida (inserção social, profissional e familiar, por exemplo), à sua conduta anterior e posterior ao crime (ausência ou não de antecedentes criminais e, no caso de os ter já, se são ou não da mesma natureza e tipo de penas aplicadas), bem como, no que respeita à conduta posterior ao crime, designadamente, à confissão aberta e relevante, ao seu arrependimento, à reparação do dano ou à prática de atos que obstem ao cometimento futuro do crime em causa) e às circunstâncias do crime (como AA motivações e fins que levam o arguido a agir).
A prognose exige a valoração conjunta de todas AA circunstâncias que tornam possível uma conclusão sobre a conduta futura do arguido, pois a finalidade político-criminal visada com o instituto da suspensão da pena é o afastamento da prática pelo arguido, no futuro, de novos crimes.
No presente caso, tendo em conta que o arguido foi condenado neste processo numa pena única de três anos e nove meses de prisão, portanto não superior a 5 anos de prisão, o pressuposto formal de aplicação da suspensão da execução da prisão encontra-se verificado.
Vejamos se também o pressuposto material de aplicação da mesma pena de substituição se verifica, tendo em conta a factualidade dada como provada na sentença.
Entende-se que a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada, mesmo em caso de conclusão do tribunal por um prognóstico favorável (à luz de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização), se a ela se opuserem AA finalidades da punição (art.50, n.º 1 e 40, n.º1 do Código Penal), nomeadamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigência mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, pois que « só por estas exigências se limita – mas por elas se limita sempre – o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto…»Cf. na doutrina, Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, AA Consequências do Crime”, pág. 344.
Tal como consta do Acórdão a quo:
«Perante uma personalidade para quem uma anterior pena de suspensão de execução não alcançou efeito dissuasor útil, nem impediu o sucessivo cometimento de factos de idêntica natureza, forçoso é concluir que uma nova pena de suspensão de execução, ainda que acompanhada de regime de prova, sempre seria insuficiente para realizar AA finalidades da punição, o mesmo é dizer, para garantir a tutela dos bens jurídicos e a reinserção do agente na sociedade, entendida aqui como perspetiva que o condenado não volte a delinquir no futuro.
Na verdade, o arguido tem varias condenações por crimes de condução sem habilitação legal, ameaça e furto, bem como duas penas de prisão suspensas na sua execução pela pratica do crime de violência doméstica.
Não se mostra adequado nem possível, formular um juízo de prognose favorável em relação ao arguido, na medida em que não revela qualquer interiorização da gravidade dos factos, não demonstrou arrependimento, manifesta consciência crítica reduzida e desculpabilizante sobre os factos, imputando ao seu consumo aditivo a pratica dos mesmos.
O arguido não só não se consciencializou da necessidade de atuar de acordo com o direito, como voltou a incorrer na prática de atos delituosos.
Por outro lado, o cumprimento efetivo torna-se necessário para a reafirmação contrafáctica das normas violadas, sendo manifestas AA necessidades de prevenção geral e de defesa do ordenamento jurídico face aos crimes praticados» (fim de citação).
No caso, a suspensão da pena de prisão, ainda que mediante condição será insuficiente para a formulação de um juízo de prognose favorável de que o arguido, pela simples censura do facto e ameaça de prisão (cfr. artigo 50.º n.º 1 do Código Penal), venha a abster-se de praticar quaisquer ilícitos criminais no futuro.
Por outro lado, o sentimento jurídico da comunidade na validade e na força de vigência da norma jurídico-penal violada pelo arguido ficaria afetado pela suspensão, de uma pena única de prisão.
Ausente o pressuposto formal, (condenação prisão efetiva não superior a 2 (dois) anos, ou o remanescente resultante dos descontos) não colhe ainda, a pretensão do arguido de lhe ser aplicado o regime de permanência na habitação a cumprir em comunidade terapêutica (art.º 43.º do Código Penal), à qual sempre se oporiam (pelas razões explicitadas a propósito da não suspensão), AA exigências de prevenção geral e especial.
Insurge-se, ainda o arguido contra a condenação na pena acessória de proibição de contactos com a vítima e afastamento da sua residência, local de trabalho ou qualquer outro local onde se encontre, sujeita a vigilância eletrónica, considerando a desnecessidade ( a pena de prisão efetiva, precisamente por ser cumprida em regime de reclusão, já assegura o afastamento do agente da residência ou local de trabalho da vítima e a possibilidade deste a contactar), e ilegalidade porquanto, tal pena acessória pressupõe que o condenado se localize fora de estabelecimento prisional, o que resulta do texto da norma prevista no n.º 2 do artigo 35.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro (na redação resultante da Lei n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro), segundo a qual o controlo à distância é efetuado «por monitorização telemática posicional, ou outra tecnologia idónea, de acordo com os sistemas tecnológicos adequados». Mas alega o recorrente e arguido que a vítima é a sua mãe, e que esta, voluntariamente, o visita no Estabelecimento Prisional onde este se encontra recluso.
Também aqui não merece censura o Acórdão a quo, pelas razões dele constantes:
«O Digno MP requereu que ao arguido sejam aplicadas AA penas acessórias previstas no art.º 152, no âmbito de qualquer saída do arguido do EP.
Não obstante o tribunal entender que a pena a aplicar ao arguido tem de ser uma pena de prisão efetiva, entendemos que importa acautelar os interesses da vitima, em fase de qualquer tentativa de aproximação do arguido, que se deve, a todo o custo evitar.
Assim, determina-se a aplicação ao arguido da pena acessória de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de três anos e 9 meses de prisão, incluindo-se o afastamento da residência e do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância» (fim de citação).
Como se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 15.04.2020, proc. 222/18.8T9ACB.C1, Des. Alcina da Costa Ribeiro, disponível in www.dgsi.pt: «O tribunal recorrido ponderou a necessidade da pena acessória de proibição de contactos com a vitima, impondo-a, como meio de por termo à reiteração criminosa do arguido.
E, se, como defende o Recorrente, a pena acessória não deve ser aplicada, quando o arguido estiver em reclusão efetiva, porque não será, nesse caso, imprescindível à proteção da vitima, o mesmo não se diga, quando e enquanto o arguido estiver em liberdade, o que pode suceder, além do mais, se o arguido se colocar em posição de não cumprir a prisão efetiva, não se entregando voluntariamente, dificultando ou fugindo da efetiva detenção, durante o tempo que mediar entre o trânsito em julgado da sentença e a efetiva reclusão, nas licençAA de saída do estabelecimento prisional e liberdade condicional.
Nestas situações de liberdade, a vitima fica à mercê do arguido, podendo este contactá-la e continuar a exercer violência sobre a mesma».
Donde a proibição de contactos e o afastamento constituem meio adequado e legal de proteção da vítima, mesmo nos casos em que seja aplicada prisão.
AA penas acessórias foram aplicadas, considerando o âmbito da saída do arguido do Estabelecimento Prisional.
A mera alegação, em sede de recurso, de que a mãe voluntariamente visita o arguido no Estabelecimento Prisional, revela-se insuficiente, em particular, face às evidentes necessidades de preventivas, já apontadas.
Assim, sendo por ser legal, adequada às necessidades preventivas, e não ultrapassar a culpa do arguido manifestada no facto, não merece censura a pena acessória posta em crise.
Sem prejuízo, e para melhor esclarecimento, onde se lê, no Acórdão a quo, na parte da fundamentação:
«Assim, determina-se a aplicação ao arguido da pena acessória de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de três anos e 9 meses de prisão, incluindo-se o afastamento da residência e do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância».
Deve passar a ler-se:
«Assim, determina-se a aplicação ao arguido da pena acessória de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de três anos e 9 meses, incluindo-se o afastamento da residência e do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância, sempre o arguido esteja em liberdade».
E, na parte dispositiva, onde se lê:
«Na pena acessória de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de 3(três) anos e 9 (nove) meses de prisão, incluindo-se o afastamento da residência e do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância, sempre que o arguido esteja em liberdade»;
Deve passar a ler-se:
«Na pena acessória de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de 3(três) anos e 9 (nove) meses, incluindo-se o afastamento da residência e do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância, sempre que o arguido esteja em liberdade».
Ou seja, excluindo, em ambos os trechos (quer da fundamentação, quer do dispositivo do Acórdão a quo) a menção a «de prisão», pelas razões sobreditas.
*
Do quantum indemnizatório.
(…).
*
III. Dispositivo
Em face do exposto, acordam AA Juízas que compõem a 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, julgar parcialmente provido o recurso, e, em consequência:
- Esclarecer que, relativamente à pena acessória, nos termos sobreditos, (quer da fundamentação, quer do dispositivo do Acórdão a quo), e pelas razões supra referidas, deve considerar-se não escrita a menção a «de prisão»;
- Reduzir o montante arbitrado, a título indemnizatório para a quantia de € 2 500,00 (dois mil e quinhentos euros).
Manter no restante, o Acórdão recorrido.

Custas pelo arguido recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC´s (art.ºs 513 e 514 do CPP e 8 n.º 9 e tabela III anexa do RCP)
Custas cíveis pelo arguido, nos termos do art.º 523.º do CPP.

(Este texto foi por mim, relatora, integralmente revisto antes de assinado)
Coimbra, 2 de março de 2022

Maria Alexandra Guiné (relatora)

Ana Carolina Cardoso (adjunta)