Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
22/10.3TACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: CRIME DOLOSO
ABERTURA DA INSTRUÇÃO
REQUERIMENTO
REJEIÇÃO
INADMISSIBILIDADE
LEI DE PROCESSO
Data do Acordão: 05/22/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 286.º, N.º 1, 283.º, N.º 3, ALS. B) E C), E 287.º, N.º 3, DO CPP
Sumário: I - O requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente há-de conter, necessariamente, a concretização precisa e concisa quer dos factos - objectivos e subjectivos conformadores do ilícito penal em causa - quer do direito, realidade não compatível com remissões, designadamente, para a “participação”.

II - Não existindo presunções de dolo, os princípios da vinculação temática e da garantia de defesa do arguido impõem ao assistente, requerente da abertura da instrução, entre outros, o dever de afirmar factualmente qual o tipo de atitude ético-pessoal do agente perante o bem jurídico-penal lesado pela conduta proibida.

III - Sendo o requerimento para abertura da instrução omisso em relação aos factos consubstanciadores do tipo objectivo e subjectivo de um determinado crime, tem de ser rejeitado, por inadmissibilidade legal da instrução, nos termos do artigo 287.º, n.º 3, do CPP.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito dos autos de Instrução n.º 22/10.3TACBR do Tribunal de Instrução Criminal de Coimbra, na sequência do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público finda a fase de inquérito, requereu o assistente A... a instrução, defendendo a existência de indícios «mais que suficientes» da prática pelo arguido B... dos crimes de abuso de confiança e de burla, p. e p. nos artigos 205.º e 217.º do Código Penal.

2. Requerimento, esse, que, por inadmissibilidade legal, veio a ser rejeitado por despacho da Exma. JIC de 08.01.2013.

3. Inconformado com o assim decidido recorre o assistente, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1. O requerimento de abertura de instrução dos presentes autos contém de forma perfeita, todos os requisitos legais previstos no n.º 2 do artigo 287.º e nas als. b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º do C.P.P.

2. Na verdade, contém a narração de factos concretos, descrevendo a conduta do arguido de forma clara e inequívoca, susceptível de preencher objectiva e subjectivamente o tipo legal imputado, incluindo nela porque foi possível: “… o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada” (al. b) do n.º 3 do artigo 283.º do C.P.P.).

3. A acusação contém as disposições legais aplicáveis:”108.º - Assim, salvo o devido respeito, foram recolhidos indícios mais que suficientes da prática dos crimes de abuso de confiança e de burla, pelo arguido B..., p. e p. nos art. 205.º e 217.º do Código Penal.”

4. Não houve qualquer diminuição das garantias de defesa do arguido, cujo contraditório sempre pôde exercer, pois bem sabe qual é a matéria que está em causa nos presentes autos e, bem assim, qual a “modalidade do dolo” imputada.

5. Ainda assim, no requerimento de abertura de instrução, o assistente remeteu, na descrição dos factos, para a narração sintética efectuada na queixa, o que fez logo o artigo 1.º do r.a.i.

6. O Despacho recorrido interpreta de forma inconstitucional os artigos 283.º, n.º 3, als. b) e c) e 287.º, n.º 2, violando as garantias de intervenção processual do assistente, ínsitas no basilar princípio constitucional do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 20.º da C.R.P., e denegando a Justiça essencial à concretização do Estado de Direito Democrático.

7. O Despacho recorrido viola, entre outras disposições, as referidas nos artigos 287.º e 283.º do C.P.P. e o artigo 20.º da C.R.P.

Termos em que e nos melhores de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser admitido o requerimento de abertura de instrução do assistente, proferindo-se a final despacho de pronúncia do arguido.

V. Ex.ªs farão, como sempre, JUSTIÇA!

4. Ao recurso respondeu o Ministério Público, aduzindo em síntese:

«No caso em apreço, parece-nos óbvio que o requerimento instrutório não observa os requisitos legais atrás apontados, na medida em que não descreve as circunstâncias de tempo, modo e lugar, nem alega factos que integrem os elementos objectivos e subjectivos dos respectivos crimes de burla e de abuso de confiança que pretende ver imputados ao arguido.

Na verdade, no mesmo o assistente limita-se a invocar as razões de discordância do Ministério Público, fazendo apelo a diferente valoração dos elementos de prova recolhidos no inquérito. Contudo, esquece que o requerimento instrutório constitui uma verdadeira acusação alternativa ao despacho de arquivamento, não sendo admissível a narração por remissão para a queixa.

Assim, no que concerne ao crime de burla, o assistente não alegou um dos elementos objectivos constitutivos daquele ilícito, isto é, o uso de erro ou engano sobre factos, astuciosamente provocado bem como o elemento subjectivo do mesmo, ou seja, a intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo. Relativamente ao crime de abuso de confiança, também não descreve o elemento subjectivo, traduzido na intenção de fazer sua a coisa que lhe foi entregue por título não translativo da propriedade, integrando-o no seu património.

Em suma, omitiu a assistente os factos essenciais que deve conter a acusação alternativa, razão pela qual a instrução é legalmente inadmissível, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 287º, n.ºs 2 e 3 e 283º, nº 3, alíneas b) e c) do CPP.

Pelo exposto, deverá improceder o recurso e manter-se o despacho recorrido, que, ao invés do que sustenta o assistente, não violou qualquer disposição legal.

Contudo, V. Ex.ªs melhor decidirão, fazendo, como sempre, a costumada Justiça.»

5. Admitido o recurso, fixado o respectivo regime de subida e efeito foram os autos remetidos a este Tribunal.

6. Na Relação o Exmo. Procurador – Geral Adjunto, secundando a resposta apresentada, em 1.ª instância, pelo Ministério Público, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso.

7. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, apenas o assistente reagiu para, no essencial, dar por reproduzidas as alegações por si anteriormente produzidas.

8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

                       De harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 412º do CPP, e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça, o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, só sendo licito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – [cf. acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR. I – A Série, de 28.12.1995].

                        No caso concreto tem este tribunal de se pronunciar sobre se a decisão recorrida, ao rejeitar o requerimento de abertura de instrução, violou os artigos 287º, 283º do CPP e, bem assim, o artigo 20º da CRP.

2. A decisão recorrida

É o seguinte o teor do despacho recorrido:

«Fls. 423 e seguintes: O assistente A... veio requerer a abertura de instrução em virtude de não concordar com o despacho de arquivamento proferido nos autos.

Nos termos do nº 1 do artigo 286º do Código de Processo Penal, a instrução tem como finalidade a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

Se o juiz de instrução decidir que a causa deve ser submetida a julgamento, aceitando as razões apresentadas pelo assistente, isso significa que recebe a acusação implícita no requerimento para abertura da instrução, pronunciando o arguido em conformidade com ela.

Assim, o requerimento apresentado pelo assistente para abertura de instrução há-de conter, substancialmente, uma verdadeira acusação, como resulta desde logo do nº 2 do artigo 287º do Código de Processo Penal, que remete para as alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 283º do mesmo diploma legal.

Nos termos das alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal a acusação contém, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada e ainda a indicação das disposições legais aplicáveis.

Como comenta Maia Gonçalves, o requerimento do assistente para a abertura da instrução “deverá, a par dos requisitos do nº 1, revestir os de uma acusação, que serão necessários para possibilitar a realização da instrução, particularmente no tocante ao funcionamento do princípio do contraditório, e a elaboração da decisão instrutória” – in “Código de Processo Penal Anotado”, 1999, 11ª Edição, pág. 552.

Neste sentido o Acórdão da Relação de Coimbra de 24 de Novembro de 1993, in CJ, T. IV, 61, ou seja, se no “requerimento de abertura de instrução em causa não se faz qualquer enumeração dos factos concretos que se pretende estarem indiciados nos autos, não se faz uma descrição da conduta do arguido.

Não compete ao Juiz de instrução perscrutar os autos para fazer a enumeração e descrição dos factos que se poderão indiciar como cometidos pelo arguido, pois, se assim fosse, estar-se-ia a transferir para o Juiz o exercício da acção penal, com violação dos princípios constitucionais e legais vigentes”.

O requerimento para abertura de instrução deverá conter as razões de facto e de direito da discordância relativamente à não acusação. Deverá, igualmente, conter factos que constituem uma verdadeira acusação. Isto é um pressuposto da instrução, uma vez que, desta forma se fixam os poderes de cognição do juiz. Sem tais elementos não poderá o juiz abrir tal fase processual.

Apreciemos, pois, o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente.

O requerimento de abertura de instrução em causa contém os motivos de discordância do despacho de arquivamento, bem como várias considerações sobre a matéria, mas o assistente não elaborou uma verdadeira acusação, como o exige os normativos legais supra referidos.

O assistente, depois de tecer as considerações quanto à discordância do despacho de arquivamento, devia elaborar a acusação relativamente à qual pretende ver o arguido pronunciado.

O assistente acabou por não expôr de modo preciso os factos praticados pelo arguido.

Não cabe ao Tribunal escolher os factos que deveriam fazer parte dessa acusação.

Não está cumprido o disposto na lei quanto à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança (artigos 283º, nº 3, e 287º, nº 2, do CPP).

Conforme resulta do artigo 283º, nº 3, al. b), do CPP, na formulação da “acusação” não há lugar à existência de “factos implícitos”, mas apenas à “narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena …”. E percebe-se porquê, se tivermos bem presente que é pela acusação que se define e fixa o objecto do processo – o objecto do julgamento – e, portanto, passível de condenação é tão só o acusado e relativamente aos factos constantes da acusação”. Doutro modo, sempre o arguido estaria impedido de se defender cabalmente, por ignorar, nomeadamente, a modalidade do dolo.

Assim sendo, o requerimento para abertura de instrução apresentado contraria, pois, o disposto nos supra citados nº 2 do artigo 287º e alíneas b) e c) do artigo 283º do Código de Processo Penal, por não conter uma verdadeira acusação.

Como refere José Souto de Moura, “se o assistente requerer instrução sem a mínima delimitação do campo factual sobre que há-de versar, a instrução será a todos os títulos inexequível. O juiz ficará sem saber que factos é que o assistente gostaria de ver provados (…). Aliás, um requerimento de instrução sem facto, subsequente a um despacho de arquivamento, libertaria o juiz de instrução de qualquer vinculação temática. Teríamos um processo já na fase de instrução sem qualquer delimitação do seu objecto” – in “Inquérito e Instrução” (cfr. “Jornadas de Direito Processual Penal”, pág. 120).

A falta de descrição de factos e normas legais no requerimento de abertura de instrução do assistente constitui ao mesmo tempo a nulidade prevista no artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c), dada a remissão do artigo 287º, nº 2, e, em conformidade com o nº 3 deste último preceito, causa de rejeição desse requerimento.

De referir o Acórdão da Relação do Porto de 23 de Maio de 2001, in CJ, III, 238, que esclareceu que: “o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente quando o MºPº arquiva o inquérito fixa o objecto do processo, traçando os limites dentro dos quais se há-de desenvolver a actividade investigatória e cognitória do juiz de instrução”.

Segundo o Ac. da RP de 21.11.2001, in CJ, V, 2001, há fundamento para rejeitar o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, se tal requerimento, não descreve os factos, nem indica as disposições legais incriminadoras por forma a que cada arguido possa saber concretamente o que lhe é imputado. Num tal caso, existe falta de acusação, e não apenas acusação deficiente, o que torna a instrução legalmente inadmissível.

Assim sendo, o requerimento apresentado pelo assistente enferma da nulidade, prevista no artigo 283º, nº 3, para que remete o artigo 287º, nº 2, ambos do Código de Processo Penal (só é legalmente admissível a instrução mediante a apresentação de requerimento que obedeça aos requisitos previstos no nº 2 do artigo 287º do Código de Processo Penal), devendo por isso ser rejeitado.

Nestes termos, decide-se rejeitar o presente requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal da instrução.

Custas pelo assistente, com taxa de justiça reduzida ao mínimo.»

3. Apreciação

Defende o recorrente que o despacho recorrido, ao ter rejeitado o requerimento de abertura da instrução, violou os artigos 287º e 283º do CPP e, bem assim, o artigo 20º da CRP.

Vejamos, pois.

Que o requerimento para abertura da instrução não está sujeito a uma forma especial resulta claro da primeira parte do n.º 2 do artigo 287º do CPP.

Não obstante, deve obedecer a vários requisitos de conteúdo que vem enunciados na dita norma, a saber:

- a enunciação “em súmula” das razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação;

- a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende ver levados a cabo, bem como dos meios de prova que não hajam sido considerados no inquérito e ainda dos factos que, através de uns e de outros, o requerente espera provar.

Sendo o requerimento apresentado pelo assistente tem o mesmo, igualmente, de observar o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283º do CPP.

Donde, com propriedade, se pode afirmar que o requerimento do assistente deve conformar materialmente uma acusação [artigo 287º, n.º 2, parte final], impondo-se-lhe, sob pena de nulidade, que contemple os elementos enunciados nas referidas alíneas do n.º 3 do citado artigo 283º, isto é “A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada” e, bem assim, “A indicação das disposições legais aplicáveis”.

O requerimento de abertura de instrução vale, neste caso, como uma verdadeira acusação, sendo através dele que se define o thema probandum em termos de não poder o tribunal, sob pena de nulidade, vir a pronunciar o arguido por factos diferentes daqueles que constam do mesmo, uma vez que tal se traduziria numa alteração substancial, aspecto que encontra justificação, desde logo, no direito de defesa, o qual para ser exercido de forma eficaz, implica o conhecimento concreto e preciso daquilo que se lhe imputa e a que título, isto quer ao nível dos factos quer em sede do respectivo enquadramento jurídico.

Na verdade, a estrutura acusatória do processo, o princípio do contraditório, bem como o direito de defesa leva a que o tribunal esteja vinculado pelo “alegado” por quem requer a instrução, sem embargo dos poderes de investigação do juiz, que podendo praticar outras diligências probatórias, tendo em conta a indicação constante do respectivo requerimento [princípio da investigação oficiosa], está, nessa actividade, sujeito aos limites do objecto da instrução fixados no requerimento de abertura de tal fase processual no caso de arquivamento do inquérito [artigo 303º do CPP].

Na situação em apreço, dúvidas não subsistem que o assistente/recorrrente não concedeu autonomia à vertente da “acusação”, condensando, antes, numa amálgama, factos, considerações de direito e elementos de prova – dando-lhe a sua interpretação -, o que faz quando trata de evidenciar os motivos da sua discordância com o despacho de arquivamento.

De facto, a metodologia seguida leva a que não se assista a uma verdadeira imputação de factos, mas antes a uma rebelião contra o que assistente considera ter sido uma errada opção por parte do titular do inquérito, à qual contrapõe, com recurso quer à prova produzida, quer à errónea interpretação que da mesma terá feito o Ministério Público, quer, ainda, ao que entende constituir a melhor hermenêutica da lei, a sua, evidenciando, assim, a dita divergência.

Sem dúvida que se trata de uma vertente importante e obrigatória que deve integrar o requerimento de abertura de instrução, mas não substitui a “acusação” exigível ao assistente sempre que, na sequência do arquivamento do inquérito, pretende a pronúncia do arguido.

Tão pouco reside o problema numa deficiente arrumação, pois que é essencial que o arguido tenha um correcto conhecimento do que realmente lhe vem imputado, o que passa pela concretização precisa e concisa quer dos factos – objectivos e subjectivos conformadores do ilícito típico em causa - quer do direito, realidade não compatível com remissões, designadamente para a «participação», ou com uma acusação, em alternativa, que ora parece colocar a tónica num ardil ab initio engendrado, ora a transfere para um desvio subsequente – [cf. vg. os pontos 1.º, 3º, 33º, 50º, 51º do requerimento de abertura de instrução].

O mesmo se diga no que concerne à imputação dos elementos intelectual e volitivo do dolo – os quais, também, não mereceram atenção – traduzidos, respectivamente na representação ou previsão pelo agente do facto ilícito típico com todos os seus elementos integrantes, bem como na consciência de que esse facto é censurável e na vontade de realização do mesmo.

É que não existem presunções de dolo e, assim sendo, não é possível afirmar a sua existência simplesmente a partir de circunstâncias externas da acção concreta. Os princípios da vinculação temática e da garantia de defesa impõem ao assistente que requeira a abertura da instrução, entre outros, o dever de afirmar factualmente qual o tipo de atitude ético-pessoal do agente perante o bem jurídico – penal lesado pela conduta proibida.

Como ensina Figueiredo Dias “… a ideia de um “dolus in re ipsa”, que sem mais resultaria da simples materialidade da infracção é hoje indefensável no direito penal. A moderna tendência para a personalização do direito penal não se compadece com uma estrita indagação da culpa dentro dos férreos moldes das antigas presunções de dolo” – [cf. R.L.J., 105, pág. 142].

Em idêntico sentido refere o acórdão do TRC de 30.09.2009 [cf. proc. n.º 910/08.7TAVIS.C1] “São elementos subjectivos do crime, com referência ao elemento intelectual (conhecimento do carácter ilícito da conduta) e ao momento volitivo (vontade de realização do tipo objectivo de ilícito) que permitem estabelecer o tipo subjectivo do ilícito imputável ao agente através do enquadramento da respectiva conduta como dolosa ou negligente e dentro destas categorias, nas vertentes do dolo directo, necessário ou eventual e da negligência simples ou grosseira.

Num crime doloso da acusação ou da pronúncia há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa – o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo – o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo)”.

Ainda a propósito do que se vem de dizer, por elucidativo, transcreve-se a seguinte passagem do acórdão do TRG de 22.11.2010 [proc. n.º 114709.GFRPT.G1]: “No que respeita à liberdade de decisão/acção aditada na decisão recorrida cumpre entender tratar-se de um facto novo não constante da acusação.

(…)

Em termos dogmático – penais, a liberdade de decisão/acção constitui elemento integrante do tipo de culpa ou da culpa tout court, sendo que a sua falta obsta à existência do crime.

Dito de outro modo, sendo uma tal liberdade pressuposto da punibilidade juspenal, sem aquela inexiste crime na medida em que considera-se “crime” o conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais” – cf. alínea a) do artigo 1º do Código de Processo Penal.

(…)

Vistos assim os autos, o apontado aditamento relativo à liberdade da arguida/recorrente configura-se como uma alteração substancial dos factos, atento o disposto na alínea f) do artigo 1º do Código de Processo Penal: o que está em causa é afirmar um crime onde ele não existia. Ao aditar que a arguida agiu de forma “livre”, a decisão recorrida acaba por concluir o cometimento pela arguida de um crime, o qual inexistia face ao que constava da acusação”.

Dito isto, é evidente que a sanação dos identificados vícios nunca poderia vir a ocorrer por acção subsequente do juiz, desde logo porque a introdução ex novo dos diferentes elementos do dolo traduzem uma verdadeira alteração substancial, na medida em que se converteria o que não era crime em crime.

Como impressivamente vem referido no acórdão do STJ de 18.06.2009 [proc. n.º 159708.9PQLSB.S1], numa situação em que na acusação não vinham descritos factos suficientes tendentes à condenação como reincidente, “Em caso de insuficiência factual da acusação, se o tribunal a quo alargar a investigação para além dos limites dos factos traçados por aquela estará a violar, além da garantia constitucional consagrada no art.º 32.º, n.º 5, da CRP, o art.º 339.º, n.º 4, do CPP e a tornar nula a decisão de procedência que vier a firmar, nos termos dos arts. 359.º e 379.º, n.º 1, al. b), do mesmo Código. Assim, nestes casos, é pois, na acusação que radica de forma processualmente relevante a insuficiência factual, quer para o completo e inequívoco preenchimento dos pressupostos formais da reincidência, quer para a integração do respectivo pressuposto material. E a consequência dessa insuficiência é a de ter de ser julgada manifestamente infundada (…)”.

É claro que, como já acima antecipamos, tudo o que se afirmou passa por uma correcta interpretação da real dimensão dos princípios da acusação, da vinculação temática e, não menos importante, do direito de defesa.

A acusação “é formalmente a manifestação da pretensão de que o arguido seja submetido a julgamento pela prática de determinado crime e por ele condenado … É um pressuposto indispensável da fase do julgamento e por ela se define e fixa o objecto do julgamento” – [cf. Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, pág. 118].

Já sobre o princípio da acusação discorre o Ilustre Professor “limita (…) o objecto da decisão jurisdicional e essa limitação é considerada como garantia da imparcialidade do tribunal e de defesa do arguido. Imparcialidade do tribunal na medida em que apenas terá de julgar os factos objecto da acusação, não tendo qualquer “responsabilidade” pelas eventuais deficiências da acusação, e garantia de defesa do arguido na medida em que a partir da acusação sabe de que é que se tem de defender, não podendo ser surpreendido com novos factos ou novas perspectivas dos mesmos factos para os quais não estruturou a defesa” – [cf. ob. cit., I, pág. 68].

Impõe-se, assim, concluir que, perante as deficiências apresentadas pelo requerimento de abertura de instrução – insusceptíveis, como vimos, de, sem ofensa dos supra enunciados princípios, serem sanadas, não sendo caso de «convite ao aperfeiçoamento» [cf. acórdão do TC n.º 389/2005, in DR, II Série, de 19.10.2005; acórdão do STJ n.º 7/2005, DR, I Série, de 04.11.2005] -, não merece censura o tribunal a quo ao ter decidido no sentido da sua rejeição por inadmissibilidade legal, considerando enfermar o requerimento apresentado da nulidade prevista no artigo 283º, nº 3, al. b) do CPP [cf. artigo 287º, nº 2], ao abrigo do disposto no artigo 287º, n.º 3 do mesmo diploma legal.

É que, convém não olvidar, a “inadmissibilidade legal”, causa de rejeição do requerimento de abertura de instrução, para além dos fundamentos mais óbvios – vg. ilegitimidade do requerente; decorrente da forma do processo não admitir tal fase processual – abrange os casos em que a instrução é inexequível por falta de objecto, o que ocorre quando, perante o respectivo requerimento, seja de concluir não conter, o mesmo, factualidade suficiente [realidade que não se compadece com uma visão simplista do que isso seja, tendo, antes, de ser visto à luz dos princípios que conformam a matéria] que permita a condenação do arguido em julgamento.

Afigura-se-nos, pois, não resultarem violados os artigos 287º e 283º do CPP, tão pouco que haja o tribunal a quo levado a efeito uma interpretação das invocadas disposições legais atentatória do artigo 20º da CRP, o qual não pode ser lido no sentido de o acesso ao direito e aos tribunais dispensar os diferentes sujeitos processuais do cumprimento dos ónus que lhes são impostos, designadamente pela lei processual, em concretização, aliás, dos comandos constitucionais - [cf. artigo 32.º da CRP].

III. Decisão

Nos termos expostos, acordam os Juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso.

Condena-se o recorrente em 3 [três] Ucs de taxa de justiça.

 (Maria José Nogueira - Relatora)

(Isabel Valongo)