Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
881/10.0TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
FORMA
VINCULAÇÃO DE PESSOA COLECTIVA
ABUSO
Data do Acordão: 09/24/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA – 1º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 410º, NºS 2 E 3 DO C.CIVIL; 260º, Nº 1 DO C.S.COMERCIAIS.
Sumário: I – Da mesma forma que uma sociedade se vincula perante terceiros com os quais contrate, não obstante as limitações constantes do contrato social ou resultantes de deliberação dos sócios (artigo 260º, nº 1 do CSC), também os terceiros que contratam com a sociedade se vinculam perante esta não obstante essas mesmas limitações, designadamente, quando as conheciam à partida e insistiram pela celebração do contrato nesses exactos termos.

II – A invocação pelo outro contraente (por quem contrata com a sociedade) da irregularidade da representação social, quando confrontado com o respectivo incumprimento pela sociedade, traduz um comportamento abusivo, que deve ser bloqueado no quadro das chamadas inalegabilidades formais (invocação de uma nulidade formal num quadro atentatório da boa fé).

III – O requisito de forma do contrato-promessa de compra e venda indicado no nº 3 do artigo 410º do CC (reconhecimento notarial presencial das assinaturas de ambos os promitentes) assenta numa lógica protectiva do promitente adquirente desse tipo de bem (edifício, ou fracção autónoma deste, já construído, em construção ou a construir) enquanto “consumidor” carecido de uma especial protecção através de algum tipo de exacerbamento dos requisitos de forma desse contrato.

IV – Ora, celebrando-se a promessa entre empresas do ramo da construção civil e da promoção imobiliária (que não são consumidoras) carece de justificação a exigência formal quanto ao reconhecimento das assinaturas pelos promitentes, bastando-se essa promessa, para que seja considerada válida, com os requisitos do nº 2 do artigo 410º do CC.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra
I – A Causa
            1. Em 12 de Fevereiro de 2010[1], T…0, Lda. (A., Reconvinda e Apelante nesta instância) demandou a sociedade E…, S.A. (R., Reconvinte e aqui Apelada) invocando a nulidade de um contrato-promessa de compra e venda, datado de 12 de Maio de 2005, referente à promessa de venda de um lote de terreno, contrato que está junto a estes autos a fls. 32/33 (no qual a R.[2] assumiu a posição de promitente vendedora e a A. a de promitente compradora). Esta nulidade resultaria da preterição nesse contrato das formalidades decorrentes do nº 3 do artigo 410º do Código Civil (CC), concretamente do reconhecimento presencial das assinaturas dos promitentes[3]:
“[…]
26.º
O que […] releva nestes autos é a circunstância de aquela promessa ser absolutamente nula e de nenhum efeito, uma vez que a validade formal daquele negócio, compra e venda de lote de terreno para construção urbana, obrigava ao reconhecimento presencial das assinaturas dos legais representantes outorgantes na promessa, ex vi artigo 410º, nºs 2 e 3, do CC.
27.º
Bem como, salvo sempre melhor opinião, a certificação, pela entidade que realiza aquele reconhecimento, da existência da respectiva licença de plano de loteamento.
27.º
Face à invalidade formal daquele título negocial, cuja consequência é a nulidade, e cujo efeito necessário nos termos do disposto no artigo 289º, nº 1 do CC, obriga à destruição do negócio com a consequente restituição em singelo de todas as contra-prestações prestadas…
29.º
Logo deve ser declarado nulo e nenhum efeito o contrato promessa de compra e venda de lote de terreno para construção celebrado em 12.05.2005 entre a A. e a R. (doc. nº 4)
30.º
E em consequência ser a R. condenada a restituir à A. a quantia de €50.000,00 montantes estes entregues em cumprimento da mesma promessa, acrescida de juros de mora a contar desde a data da sua citação até integral pagamento.
[…]”.
            [transcrição de trecho da p.i.].
1.1. A R. contestou afirmando a validade formal do contrato (pois está em causa a promessa de venda de um terreno rústico) e o incumprimento da promessa pela A. (que deliberadamente não compareceu na escritura visando a outorga do contrato definitivo, não obstante ter sido avisada da data e local da mesma). Assim, reconvencionalmente, peticiona a R., ora na veste de Reconvinte, que seja considerado validamente resolvido o contrato-promessa referido e, por incumprimento deste pela A., seja esta, ora como Reconvinda, condenada na perda do sinal prestado.
            1.2. Finda a fase dos articulados, foi o processo saneado e condensado a fls. 97/108, merecendo o despacho contendo tal condensação a reclamação da A. constante de fls. 110/112, apresentada nos termos do artigo 511º, nº 2 do Código de Processo Civil (CPC), na qual intentou – no que interessará à ulterior apreciação deste recurso – levar à base instrutória os artigos 26º e 27º da resposta à reconvenção de fls. 74[4].
            Foi esta pretensão negada pelo despacho de fls. 131/134 que indeferiu essa reclamação[5]este elemento decisório foi abrangido no recurso da decisão final pela A.
            1.3. Através da Sentença de fls. 160/179a decisão objecto do presente recurso – foi a acção julgada improcedente, na perspectiva da A. e procedente na perspectiva da R./Reconvinte[6].
            1.4. Inconformada, recorreu a A., concluindo o seguinte a rematar a motivação do recurso:
“[…]
II – Fundamentação
            2. Relatado o essencial do iter processual que conduziu à presente instância de recurso, cumpre apreciar os fundamentos da apelação, tendo em conta que as conclusões formuladas pela Apelante operaram a delimitação temática do objecto do recurso, isto nos termos dos artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do CPC[7]. Com efeito, fora das conclusões só valem, nesta sede, questões que se configurem como de conhecimento oficioso (di-lo o trecho final do artigo 660º, nº 2 do CPC). Paralelamente, mesmo integrando as conclusões, não há que tomar posição sobre questões prejudicadas, na sua concreta incidência no processo, por outras antecedentemente apreciadas e decididas. E, enfim – esgotando a enunciação do modelo de construção do objecto de um recurso –, distinguem-se os fundamentos deste (do recurso) dos argumentos esgrimidos pelo recorrente ao longo da motivação, sendo certo que a obrigação de pronúncia do Tribunal ad quem se refere àqueles (às questões-fundamento) e não aos diversos argumentos jurídicos convocados pelo recorrente nas alegações.
            2.1. Como já indicámos de passagem, o recurso apresenta dois referenciais: o despacho de fls. 131/134 (v. o item 1.2. deste Acórdão); a Sentença final de fls. 160/179. No primeiro caso (a) crítica a Apelante o despacho que decidiu as reclamações da A. quanto à não inclusão na base instrutória dos artigos 26º e 27º da resposta à reconvenção de fls. 74. No segundo caso (b), tratando-se do recurso referido à decisão final, pretende a Apelante o controlo por esta Relação das ratio decidendi cumulativas do julgamento da acção, quanto à improcedência da pretensão da A. e à procedência da pretensão reconvencional da R. Pretende a Apelante, pois, em vista da fundamentação da Sentença, que se considere a promessa nula, por invalidade do respectivo contrato, dado que as assinaturas dos promitentes teriam que ser notarialmente reconhecidas, aplicando-se quanto à forma o nº 3 do artigo 410º do CC, ou, pressupondo a validade da promessa, que se considere a mesma ainda não definitivamente incumprida, por irrelevância da interpelação admonitória realizada pela R.

            Note-se que, no caso do primeiro elemento decisório recorrido, existe uma crítica aos factos, no sentido em que a Apelante pretende um aditamento ao acervo fáctico e a consideração de uma nova circunstância de facto (o número de administradores da R. cuja assinatura poderia vincular a sociedade, enquanto introdução de um fundamento adicional de nulidade do contrato-promessa aqui em causa). No segundo elemento do recurso, afora esta incidência consequencial do primeiro (afora, portanto, a incidência da invocada incompletude dos factos decorrente da parte em que o recurso se reporta ao despacho de fls. 110/112), não existe qualquer crítica ao rol dos factos (a todos os outros factos) elencados na Sentença final.
            2.1.1. Ora, com o sentido acabado de indicar, aqui deixamos nota dos factos fixados na primeira instância (rectius, os feitos constar na Sentença):
“[…]
            2.2. (a) Seguindo a cronologia do processo, e a própria lógica de abordagem do julgamento da acção[8], interessa-nos primeiramente o recurso na sua referenciação ao despacho de fls. 110/112 (cfr. o item 1.2. deste texto). Este despacho, recordemo-lo, decidindo uma reclamação da A. quanto à base instrutória, formulada nos termos do artigo 511º, nº 2 do CPC, recusou integrar na selecção das questões de facto controvertidas e relevantes, aquilo que a A., em sede de resposta à reconvenção da R., incluiu nos artigos 26º e 27º desse articulado. Basta ler a transcrição destes dois artigos, feita acima neste texto na nota 7, para se perceber o carácter absolutamente imprestável dos mesmos, como asserções de facto que houvesse que incluir numa base instrutória para ulterior demonstração através da prova (desde logo por não conterem esses artigos 26º e 27º a afirmação de quaisquer factos, expressando antes dúvidas sobre determinada incidência colocada como hipótese).
            A questão relevante a este respeito prende-se com a circunstância do contrato-promessa, que a A. pretende seja considerado nulo através desta acção, estar assinado (cfr. fls. 33), na posição de promitente vendedora, apenas por um Administrador da U… (foi esta sociedade quem celebrou o contrato, antes da fusão com a ora R.), carecendo tal vinculação, para que fosse operante – é o que afirma a A., embora o faça sem uma base segura e só agora, já no recurso –, carece tal vinculação, dizíamos, da assinatura de dois Administradores da promitente vendedora U...
Este argumento da Apelante carece de razão.
Desde logo porque a U… (que foi, repete-se, quem celebrou o contrato-promessa de fls. 32/33 com a A.) não é certo que não se pudesse vincular só através da assinatura de um Administrador, como decorre da simples leitura da certidão do registo comercial, por sinal junta pela própria A. com a p.i. (consta essa certidão de fls. 22/31), na referência (v. fls. 23) à “Forma de Obrigar” a sociedade[9]. Seja como for, mesmo admitindo que a U… só se obrigasse pela assinatura de dois administradores, e que a subscrição do contrato-promessa aqui em causa carecesse de mais uma assinatura face à literalidade do pacto social, mesmo admitindo tudo isto, dizíamos, o contrato-promessa sempre seria válido, face à Apelante, subscrito nesses exactos termos. Esta, aliás, “viciado” que estivesse o contrato face ao pacto social da promitente vendedora, não deixou de o assumir como relevante e vinculante em termos que afastam o controlo a posteriori, já na fase patológica do contrato, da questão da efectiva vinculação da R. aos termos desse mesmo contrato, sob pena de descaso, em injustificado benefício de quem não quer cumprir, da materialidade subjacente e dos mais elementares ditames da boa fé comportamental exigível a qualquer contraente.
Com efeito, interessa aqui recordar, como argumento lateral mas relevante, por referência ao artigo 260º, nºs 1 e 2 do Código das Sociedades Comerciais (CSC), como se opera, no confronto com terceiros, a vinculação de uma sociedade:
Artigo 260º
(Vinculação da sociedade)
1 – Os actos praticados pelos gerentes, em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere, vinculam-na para com terceiros, não obstante as limitações constantes do contrato social ou resultantes de deliberações dos sócios.
2 – A sociedade pode, no entanto, opor a terceiros as limitações de poderes resultantes do seu objecto social, se provar que o terceiro sabia ou não podia ignorar, tendo em conta as circunstâncias que o acto praticado não respeitava essa cláusula e se, entretanto, a sociedade o não assumiu, por deliberação expressa ou tácita dos sócios. 

            Resulta desta disposição o que é usual chamar-se “regime da ilimitação dos poderes representativos da gerência perante disposições constantes do contrato ou resultantes de deliberações dos sócios”[10], directamente decorrente do transcrito nº 1 e completado pelo nº 2[11], regime este que é habitualmente caracterizado nos seguintes termos:
“[…]
[P]ara protecção dos terceiros que entrem em relação com a sociedade, por força da actuação dos gerentes, consagra-se, no artigo 260º, nºs 1 e 2, a regra da ilimitação nos poderes representativos dos gerentes, quando actuem «dentro dos poderes que a lei lhes confere». Ou seja: as limitações que resultassem para a actuação do gerente, quer do contrato de sociedade, quer de deliberação dos sócios, não impedem a vinculação da sociedade pelo acto praticado pelo gerente, até porque a capacidade da sociedade não é coarctada por essas circunstâncias.
[…]”[12].

            É certo – e por isso dissemos que o argumento do artigo 260º do CSC actua aqui lateralmente – que a facti species do preceito está formulada com um sentido literal que funcionará ao contrário da hipótese que aqui se considera, pressupondo a vinculação da sociedade perante terceiros (aqui o “terceiro” seria a A. que contratou com a antecessora da R.), não obstante a possível limitação estatutária (interna) dos poderes de representação de quem, mesmo exorbitando destes, contratou em nome da sociedade. Embora a situação aqui em causa funcione ao contrário – pois é o “terceiro” que contratou com a sociedade, eventualmente mal representada, quem se quer desvincular do acordo com essa sociedade, invocando a falta de poderes do administrador desta face aos termos do pacto social –, não obstante esta incidência ser distinta da descrita no artigo 260º do CSC, dizíamos, a razão de ser do princípio da ilimitação de poderes de representação face a terceiros, a teleologia da norma encarada num plano mais abrangente, pode ser referida à protecção da própria sociedade que contrata e actua de boa fé e quer cumprir o contrato celebrado assumindo a respectiva vinculação a esse contrato. À protecção da confiança do terceiro que contrata com a sociedade pressupondo relevantemente a efectiva vinculação desta, sucede aqui, com base nos mesmos valores fundamentais de protecção da confiança aqui intuídos em equilíbrio de posições, a protecção da própria sociedade que contrata “aligeirando” ou preterindo as formalidades (e fê-lo, aliás, a pedido da própria A.) pretendendo relevantemente assumir essa vinculação, num quadro de actuação impecavelmente de boa fé. Com efeito, se não se permite à sociedade fazer descaso – livrar-se – dos contratos celebrados por quem contrata em nome dela mas necessitaria (internamente) de mais formalidades, não se justifica que o terceiro com quem ela (a sociedade mal representada) contratou dispusesse de uma “munição de reserva” ou “trunfo” de desvinculação, quando, em última análise, pretendesse – só pretendesse – “ver-se livre” do contrato num quadro de fuga às obrigações assumidas e livrar-se assim das consequências desvaliosas do incumprimento. É este, não temos dúvidas, o caso da Apelante.
            Aliás, podemos observar aqui – e tem interesse projectivo e inteira aplicação a ulteriores passos argumentativos deste Acórdão na apreciação do caso concreto – uma relevante actuação da figura das inalegabilidades formais, enquanto resposta a um tipo concreto de acto abusivo: aquele que, na sua génese, se expressa na invocação da falta de forma legal, ou de formalidades de representação, num quadro em que o titular excede manifestamente os limites impostos pela boa fé (artigo 334º do CC)[13]. Valem inteiramente os pressupostos elencados por António Menezes Cordeiro[14], respeitantes ao actuar, ex bona fide, de uma situação de inalegabilidade formal: (a) existência de uma situação de confiança; (b) uma efectiva justificação para essa confiança; (c) um investimento comportamental assente nessa confiança; (d) a imputação de confiança ao responsável que irá, depois, arcar com as consequências. E a estes pressupostos, que são comuns ao venire contra factum proprium, acrescenta o mesmo Autor, enquanto elementos específicos da inalegabilidade formal, as seguintes três proposições, todas aqui presentes: (a) estarem em jogo apenas os interesses das partes envolvidas; nunca, também, os de eventuais terceiros de boa fé; (b) a situação de confiança deve ser censuravelmente imputável à pessoa a responsabilizar, designadamente quando esta não é estranha ao vício invocado: (c) o investimento de confiança do visado pela invocação da nulidade apresentar-se como sensível, sendo dificilmente assegurado por outra via[15].
            Valem estas considerações pela afirmação da improcedência do recurso na sua referenciação ao despacho de fls. 110/112. O mesmo sucede, como veremos já de seguida, quanto à impugnação da Sentença de fls. 160/179 que decidiu a acção.
2.3. (b) A respeito desta segunda referenciação da apelação (à Sentença final) anotaremos desde já que a argumentação tecida em torno da relevância in caso da figura da inalegabilidade formal – ou seja, do bloqueamento da invocação pela A. de nulidades do contrato promessa ligadas à forma – também se aplica neste outro contexto, propiciando, em última análise, a confirmação do entendimento do Tribunal a quo quanto à improcedência da pretensão da A. Com efeito, também neste caso o comportamento da promitente compradora (A. e aqui Apelante), ao pretender a declaração de nulidade de um contrato cujas características agora arguidas de irregulares lhe são imputáveis (cfr. ponto 19 do elenco fáctico), não passa num teste superficial de fidelidade aos mais elementares ditames da boa fé contratual por parte de quem invoca essa nulidade. Quer isto dizer que, independentemente da definição que for dada à questão dos requisitos de forma adequados ao contrato de promessa em causa nos autos (que aqui se coloca, em alternativa, por referência aos requisitos dos nºs 2 e 3 do artigo 410º do CC), sempre actuaria – e actuaria sempre contra a A. –, a inalegabilidade de um possível vício de forma desse contrato, existisse tal vício, projectando a ineficácia de qualquer pretensão desta contraente a destruir, neste momento, o acordo celebrado, livrando-se – e é o que a A. indisfarçadamente pretende – das consequências desvantajosas do incumprimento, consequências aqui correspondentes à perda do sinal.
É com este sentido que aqui damos por reproduzidas anteriores considerações deste texto quanto à inalegabilidade de eventuais causas de nulidade do contrato ligadas a requisitos de forma, quando essas causas sempre estiveram presentes mas só são invocadas neste contexto factual pela A. Nestas situações – e citamos de novo António Menezes Cordeiro a respeito da actuação da figura da inalegabilidade formal –, “[…] a tutela da confiança impõe […] a manutenção do negócio vitimado pela invalidade formal”, no sentido em que este, em termos práticos, “[…] passará a ser uma relação legal, apoiada no artigo 334º [do CC] e em tudo semelhante à situação negocial falhada por vício de forma”[16].
Esta solução, que se apoia numa argumentação com amplos pontos de contacto com a adoptada na primeira instância, sempre actuaria no sentido da improcedência da acção, fosse qual fosse o entendimento da questão da forma aplicável ao contrato-promessa aqui em causa, em função do respectivo objecto.
Não obstante, entendemos não se aplicarem a este contrato-promessa – ao contrato-promessa com este objecto celebrado entre os dois outorgantes aqui em causa – os requisitos de forma indicados no nº 3 do artigo 410º do CC, designadamente a necessidade de reconhecimento notarial das assinaturas de quem vinculou as duas sociedades como promitentes da venda e da compra do lote de terreno indicado na cláusula segunda do contrato.
Abordaremos de seguida esta questão.
2.3.1. (b) Interessa-nos ter presente o texto do artigo 410º do CC aqui relevante em função da data da celebração do contrato-promessa (Decreto-Lei nº 379/86, de 11 de Novembro):
Artigo 410º
Regime aplicável
1 – À convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato são aplicáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido, exceptuadas as relativas à forma e as que, por sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato-promessa.
2 – Porém, a promessa respeitante à celebração de contrato para o qual a lei exija documento, quer autêntico, quer particular, só vale se constar de documento assinado pela parte que se vincula ou por ambas, consoante o contrato-promessa seja unilateral ou bilateral.
3 – No caso de promessa relativa à celebração de contrato oneroso de transmissão ou constituição de direito real sobre edifício, ou fracção autónoma dele, já construído, em construção ou a construir, o documento referido no número anterior deve conter o reconhecimento presencial da assinatura do promitente ou promitentes e a certificação, pelo notário, da existência da licença respectiva de utilização ou de construção; contudo, o contraente que promete transmitir ou constituir o direito só pode invocar a omissão destes requisitos quando a mesma tenha sido culposamente causada pela outra parte.
[17]

            A Sentença apelada, citando (v. fls. 169/171) como precedente persuasivo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/11/2009 (Mário Cruz)[18], considerou que a definição do objecto da promessa de venda neste caso – “[…] um lote de terreno para construção de um prédio, com as áreas de 222 m2 de implantação e de 999 m2 de área total de construção, com quatro pisos acima da cota da soleira e oito fogos, designado por lote nº …, constando o mesmo agora em planta de loteamento individual com o nº …, como consta em planta de localização que faz parte integrante deste contrato […]” (transcrição da cláusula segunda do contrato-promessa, a fls. 32) –, considerou o Tribunal a quo, dizíamos, que neste caso os requisitos de forma do contrato se esgotariam na simples necessidade de assinatura do documento por ambos os promitentes indicada na previsão do nº 2 do artigo 410º do CC, sendo que este requisito foi observado neste caso. Vale tal entendimento pela exclusão da necessidade do reconhecimento presencial das assinaturas dos outorgantes[19], sendo que a primeira instância o disse expressamente na Sentença recorrida a fls. 171: “[…] não estando em causa qualquer edifício projectado, entendo que a previsão dos autos se enquadra no nº 2 do artigo 410º do CC, cujos formalismos foram observados”.
            Afigura-se-nos muito duvidosa esta asserção e, consequentemente, a caracterização do objecto desta promessa (um lote de terreno para construção perfeitamente definido em função dessa afectação funcional), quanto à natureza desse particular elemento do contrato (o seu objecto), como situado fora da previsão do nº 3 do artigo 410º do CC: ou seja, como não referido a uma “[…] promessa  relativa à celebração de contrato oneroso de transmissão ou constituição de direito real sobre edifício, ou fracção autónoma dele, já construído, em construção ou a construir […]”. Com efeito, estamos em crer que a efectiva (ostensiva) projecção no texto do contrato de uma afectação do bem objecto deste à construção de um edifício, logo, à específica intencionalidade que presidiu ao destaque, quanto à forma, da incidência da promessa sobre um edifício, ou fracção autónoma dele, associada ao que já existe construído, está a ser feito ou irá ser feito (já construído, em construção ou a construir)[20], estamos em crer, dizíamos, que esta intencionalidade vale inteiramente para a definição de uma realidade imobiliária como aquela que encontramos na cláusula segunda do contrato de fls. 32/33. Isto se – e sublinhamos a importância do que vamos referir de seguida – a cobertura teleológica subjacente ao nº 3 do referido artigo 410º se manifestasse – e entendemos que não se manifesta – na situação deste contrato-promessa.
Importa caracterizar, pois, a intencionalidade do nº 3 desse artigo 410º quando exige, naquele tipo de promessas, o reconhecimento presencial das assinaturas dos outorgantes.
A este respeito – e estamos a destacar a questão do reconhecimento das assinaturas, que é a que ora se coloca (v. nota 23, supra) – vem-se entendendo o seguinte:
“[…]
As exigências do reconhecimento presencial da assinatura do promitente ou dos promitentes e da certificação da licença de utilização ou de construção do edifício intentam, numa primeira linha, a protecção dos meros particulares adquirentes de direitos reais sobre edifícios ou fracções autónomas destes. É uma disciplina que se reconduz ao âmbito de defesa do consumidor. Mas, enquanto a finalidade do reconhecimento presencial se esgota aí, o escopo da […] certificação do notário vai mais longe: trata-se, ainda, posto que lateralmente, da protecção do interesse público que reclama o combate à construção clandestina. A referida lógica conduzirá a admitir que, ao contrário do que sucede com a inobservância do primeiro dos requisitos formais, a deste último seja invocável por terceiros interessados e de conhecimento oficioso pelo tribunal.
[…]”[21] (ênfase através do sublinhado acrescentado).

            Mais expressivamente ainda, esta dimensão teleológica da exigência do reconhecimento presencial das assinaturas (protecção do “consumidor adquirente de imóveis”) é sublinhada por João Calvão da Silva, depois de afirmar tratarem-se – os condicionamentos de forma previstos no nº 3 do artigo 410º do CC – “[…] de requisitos formais prescritos para tutela dos promitentes-adquirentes”:
“[…]
[N]ão são [estes requisitos] formalidades integrantes da chamada ordem pública de direcção – pela qual os poderes públicos realizam certos objectivos de interesse geral e dirigem a economia nacional –, a interessar directamente a sociedade, terceiros em geral, e a justificar a supremacia dos interesses gerais, sobre os interesses das partes contratantes.
Trata-se antes de formalismo informativo, constitutivo da dita ordem pública de protecção ou ordem pública social – modalidade de ordem pública que não cessa de aumentar, não raro a coberto «d’une politique contractuelle pás nécessairement dépourvue de quelque esprit à la fois technocratique et démagogique», através do intervencionismo legislativo destinado a proteger os mais variados «consumidores», sinónimo de «contratantes não profissionais», que habitualmente não concluem um contrato como o que concretamente celebram com um profissional que dia a dia firma contratos desta espécie –, cujo fim é tutelar a parte considerada contratualmente mais débil, julgada leiga e profana no sector.
Isto significa, noutra formulação, que o legislador, em face dos abusos contratuais, das imoralidades e das injustiças de que eram vítimas na conjuntura económica (caracterizada pela inflação e construção clandestina) os promitentes-compradores de edifícios, veio em auxílio e defesa desta categoria de contratantes particularmente vulnerável, instituindo um controlo notarial – controlo exigente, a requerer reconhecimento presencial (e não por mera semelhança) das assinaturas e certificação no documento, que titula o contrato, da existência de licença de construção ou utilização do edifício –, por julgar os promitentes-adquirentes impreparados e (mais ou menos) incapazes de sozinhos defenderem satisfatória e convenientemente os seus interesses.
[…]”[22] (sublinhado acrescentado).

Ora, correspondendo à teleologia da norma (artigo 410º, nº 3 do CC), no que tange à exigência de reconhecimento notarial presencial das assinaturas dos contraentes, a ideia de protecção do consumidor (que aqui é o consumidor adquirente, por via de promessa, de edifício), num quadro de consideração da intrínseca situação de assimetria informacional[23] deste no confronto com a outra parte, um vendedor/promitente profissional, falha o sentido – o propósito, o fundamento teleológico[24] – dessa especial exigência quanto a requisitos de forma, quando o contrato confronta como promitentes, como aqui sucede, duas empresas do ramo da construção e da promoção imobiliária, enfim, duas entidades profissionais dessa actividade. Note-se que esta ligação finalística dos requisitos de forma previstos no nº 3 do artigo 410º do CC à defesa do consumidor, pressupõe que o destinatário do bem se prefigure como tal (como consumidor), no quadro da correspondente definição legal, no sentido indicado no nº 1 do artigo 2º da Lei nº 24/96, de 31 de Julho, a Lei de Defesa do Consumidor: “[c]onsidera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios” (sublinhado acrescentado, no elemento que, a contrario, demonstra estarmos fora da previsão da norma nas situações de actividade profissional). A este respeito, interessa aqui sublinhar o entendimento, invariavelmente presente na nossa Doutrina, segundo o qual “[…] não há pessoas que, em absoluto, sejam consumidores”, sendo que tal conceito “[…] é apenas um instrumento técnico-jurídico destinado a demarcar a previsão de algumas normas jurídicas”[25]. Assim, a presença de duas empresas do ramo imobiliário na posição de promitentes (uma promitente compradora, a A., outra promitente-vendedora, a R.), exclui a razão de ser da exigência de forma aqui considerada, rectius, exclui a exigência da assinatura dos contraentes neste contrato-promessa ser presencialmente reconhecida, como condição de validade do contrato, por falta de cobertura teleológica desta situação no quadro racional do nº 3 do artigo 410º do CC.
Em rigor, recorremos aqui, no quadro interpretativo assim traçado, a uma redução teleológica[26] do âmbito literal da norma – que pareceria, na letra, exigir o reconhecimento presencial das assinaturas em todas as promessas respeitantes a edifícios – encarando-a aqui como actuante, verdadeiramente actuante no seu espírito. Este exclui, com efeito, os requisitos formais do nº 3 do artigo 410º do CC quando o promitente comprador não pode ser encarado como consumidor, sendo antes um actor profissional no quadro geral da actividade económica de promoção imobiliária.
Significa isto, em termos práticos, que o contrato-promessa que a Apelante pretende destruir por suposta inobservância da forma legal (dos requisitos formais previstos no nº 3 do artigo 410º do CC) se bastava, na forma, tratando-se de promessa bivinculante relativa à venda de imóvel, com a assinatura dos dois contraentes (artigo 410º, nº 2 do CC).
Improcede, pois, para além da questão referente à inalegabilidade formal, este argumento da Apelante.
2.3.2. (b) E o mesmo se dirá – também é improcedente… – do argumento da alegada falta de interpelação relevante para o cumprimento da promessa, através da celebração do contrato definitivo de compra e venda do lote de terreno, e, por associação a este argumento, a invocada falta de vencimento da obrigação com a entrada da A. em situação de incumprimento definitivo.
Com efeito, interessa aqui sublinhar o carácter ostensivo, evidenciado nesta acção, da recusa da A. em cumprir a promessa celebrando o contrato definitivo e entregando a parte final do preço, sendo que a A. não só considera que o contrato-promessa é nulo e, por isso, não tem de ser cumprido, como declarou expressamente à R., pela carta de fls. 80, o seu desinteresse definitivo em cumprir.
Atalhando argumentos numa exposição que já vai longa, diremos, secundando o observado pela primeira instância, que a declaração pela A. à R. de pretender pôr fim ao contrato e não celebrar o contrato definitivo, nos termos em que essa incidência foi logo apresentada e caracterizada no articulado inicial, e nos termos em que nos aparece recolhida no ponto 13 dos factos, no quadro de uma recusa expressa de cumprir, mesmo face à possível não verificação de outro tipo de vencimento da obrigação, uma recusa antecipada de cumprir nestes termos, dizíamos, legitima a R./Reconvinte a formular o pedido próprio do incumprimento da promessa (aqui a perda do sinal prestado).
Note-se, aliás, que esta incidência (a A. recusa-se definitivamente a celebrar o contrato prometido) foi, como dissemos, clara e inequivocamente transmitida à R., através da carta de fls. 80 (v. ponto 17 dos factos)[27] e vale como recusa antecipada de cumprir  e, enfim, em rigor, até tornaria desnecessária a interpelação para a escritura[28].
Seja como for, a interpelação aqui efectuada, nas circunstâncias em que ocorreu, até se configuraria como operante para efeito de desencadear, desconsiderada que foi pela interpelada, uma situação de incumprimento definitivo da obrigação de celebrar o contrato definitivo de compra e venda. Note-se que tal interpelação surgiu a culminar um processo negocial da iniciativa da A. tendente a obter da R. um distrate da promessa, negociação esta que se frustrou por falta de acordo entre os promitentes[29], abrindo a via do incumprimento da promessa (abrindo essa via aqui à promitente vendedora) face à assumida recusa de cumprir por banda da promitente compradora.
Improcede, assim, ponderando o conjunto das circunstâncias apontadas, o argumento da A./Reconvinda ora Apelante quanto à ausência de incumprimento por falta de interpelação relevante para cumprir: essa interpelação existiu e, mais que isso, a A. declarou inequivocamente a sua recusa a cumprir.
2.4. Aqui chegados, percorridos que estão os diversos fundamentos do recurso sem que tenha sido abalado o sentido da decisão apelada em qualquer das suas vertentes, resta-nos declarar (decidir) a improcedência do recurso, sumariando antes este Acórdão:
Sumário
I – Da mesma forma que uma sociedade se vincula perante terceiros com os quais contrate, não obstante as limitações constantes do contrato social ou resultantes de deliberação dos sócios (artigo 260º, nº 1 do CSC), também os terceiros que contratam com a sociedade se vinculam perante esta não obstante essas mesmas limitações, designadamente, quando as conheciam à partida e insistiram pela celebração do contrato nesses exactos termos;
II – A invocação pelo outro contraente (por quem contrata com a sociedade) da irregularidade da representação social, quando confrontado com o respectivo incumprimento pela sociedade, traduz um comportamento abusivo, que deve ser bloqueado no quadro das chamadas inalegabilidades formais (invocação de uma nulidade formal num quadro atentatório da boa fé);
III – o requisito de forma do contrato-promessa de compra e venda indicado no nº 3 do artigo 410º do CC (reconhecimento notarial presencial das assinaturas de ambos os promitentes) assenta numa lógica protectiva do promitente adquirente desse tipo de bem (edifício, ou fracção autónoma deste, já construído, em construção ou a construir) enquanto “consumidor” carecido de uma especial protecção através de algum tipo de exacerbamento dos requisitos de forma desse contrato;
IV – Ora, celebrando-se a promessa entre empresas do ramo da construção civil e da promoção imobiliária (que não são consumidoras) carece de justificação a exigência formal quanto ao reconhecimento das assinaturas pelos promitentes, bastando-se essa promessa, para que seja considerada válida, com os requisitos do nº 2 do artigo 410º do CC.    
III – Decisão
            3. Face a tudo o que se expôs, na total improcedência da apelação, decide-se confirmar inteiramente a Sentença recorrida.
            Custas do recurso a cargo da Apelante.

 (J. A. Teles Pereira)
(Manuel Capelo)
(Jacinto Meca)
***

[1] Trata-se da data da propositura desta acção. Marca ela a aplicação à presente instância de recurso do regime processual decorrente do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (v. os respectivos artigos 11º, nº 1 e 12º, nº 1). Não se aplica aqui, desta feita por estarem em causa, obviamente, decisões recorridas anteriores a 1 de Setembro de 2013, o texto do Novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho (v. os respectivos artigos 7º, nº 1 e 8º).
[2] Aliás, uma empresa que posteriormente foi incorporada na R., a U…, S.A., sucedendo a R. nas relações contratuais desta.
[3] Em 2005, na data da celebração do contrato, valia a redacção do artigo 410º do CC decorrente do Decreto-Lei nº 379/86, de 11 de Novembro, culminando a evolução iniciada pelo Decreto-Lei nº 236/80, de 18 de Julho (actualmente, mas sem interesse prático para a presente acção, vale a redacção introduzida no nº 3 deste artigo 410º pelo Decreto-Lei nº 116/2008, de 4 de Julho, que substituiu a referência “[…] certificação, pelo notário, da existência da licença respectiva de utilização […]”, por “[…] certificação, pela entidade que realiza aquele reconhecimento, da existência da licença respectiva de utilização […]”).
[4] Disse aí a A.:
“[…]
26.º
Sublinhe-se por fim que a falta do reconhecimento das assinaturas levanta ainda uma outra questão igualmente relevante, que é a circunstância de se desconhecer se porventura a assinatura que consta no contrato promessa relativamente à representação da R. corresponde efectivamente a órgão com poderes legais de representação para obrigar aquela promitente no negócio prometido…
27.º
Questão não despicienda e que apenas se levanta relativamente à assinatura do suposto legal representante da R.…. e já não quanto à assinatura do representante da A., que efectivamente tinha poderes para o acto.
[…]”
[5] Decidiu este o seguinte quanto ao ponto aqui focado:
“[…]
Nos art. 26º e 27º da réplica, como diz a R., não temos propriamente alegação de factos mas sim dúvida/questão suscitada pela autora quanto à assinatura que consta no contrato em causa nos autos no que respeita à R., dizendo ‘desconhecer se porventura a assinatura que consta no contrato promessa relativamente à representação da R. corresponde efectivamente a órgão com poderes legais de representação para obrigar aquela promitente no negócio prometido...’ (art. 26º), ‘Questão não despicienda e que apenas se levanta relativamente à assinatura do suposto representante da Ré....’ (art. 27º). Nada é afirmado/alegado de concreto quanto a quem interveio no contrato por parte da R. não ter poderes para a representar. Acresce que caso tal tivesse sido alegado, sempre estaria para além dos limites da réplica, nos termos previstos no art. 502º, nº1 do CPC.
Improcede, pois, na totalidade a reclamação da A.
[…]”.
[6] Disse-se no pronunciamento decisório de fls. 178/179:
“[…]
[O] Tribunal decide o seguinte:
1. Julgar improcedente por não provada a presente acção e, em consequência:
1.1. Absolve-se a R. do pedido;
1.2. Condena-se a Autora nas custas processuais referentes à acção.
2. Julgar procedente por provada a presente reconvenção e, em consequência:
2.1. Declara-se resolvido, por incumprimento da A., o contrato-promessa celebrado em 12.05.2005, que incidiu sobre um lote de terreno para construção de um prédio, com as áreas de 222 m2 de implantação e 999 m2 de área total de construção, com quatro pisos acima da cota de soleira e oito fogos, designado por lote nº… do …;
2.2. Declaram-se perdidas, a favor da Ré, as quantias que a A. lhe entregou a título de sinal e que ascendem a €50.000,00, condenando-se a A. a reconhecer tal perda de sinal a favor da R.;
2.3. Condena-se a Autora nas custas processuais referentes à reconvenção.

[7] V. o Acórdão do STJ de 03/06/2011 (Pereira da Silva), proferido no processo nº 527/05.8TBVNO.C1.S1, cujo sumário está disponível na base do ITIJ, directamente, no seguinte endereço:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f9dd7bb05e5140b1802578bf00470473:
Sumário:
“[…]
[O] que baliza o âmbito do recurso, tal sendo, afora as de conhecimento oficioso, as questões levadas às conclusões da alegação do recorrente, extraídas da respectiva motivação (artigos 684.º n.º 3 e 690.º n.º 1 do CPC), defeso é o conhecimento de questão não aflorada naquelas, ainda que versada no corpo alegatório.
[…]”.
[8] No sentido em que tal julgamento tem de pressupor a estabilização prévia do acervo dos factos a considerar na operação subsuntiva.
[9] Diz-se aí, quanto à U…, que ela se obriga – obrigava – “[p]ela assinatura de: a) dois administradores; b) do administrador delegado, dentro dos limites da respectiva delegação; c) dos mandatários dentro dos limites das respectivas procurações”. A Apelante parece confundir o pacto social da R. que esgota a questão da vinculação da sociedade na referência à “assinatura conjunta de dois administradores” (v. fls. 88), com o pacto social da U… (a sociedade que, já depois da promessa, se incorporou na ora R.).
[10] Diogo Pereira Duarte, anotando este artigo 260º do CSC, in Código das Sociedades Comerciais Anotado, coordenação de António Menezes Cordeiro, Coimbra, 2009, p. 680.
[11] Quanto a este último (nº 2), no sentido em que nele se estabelece uma espécie de “limitação da ilimitação”, devemos ponderar, tanto quanto à R. e à U…, como quanto à A., estarmos perante objectos sociais conhecidos dos dois contraentes, expressamente invocados no exórdio do contrato, e intuitivamente ligados à celebração normal de contratos daquele tipo.
[12] Diogo Pereira Duarte, Código…, cit., p. 680; v., neste mesmo sentido, o Acórdão do STJ de 23/09/2008 (Azevedo Ramos), proferido no processo nº 08A2239, disponível na base do ITIJ, directamente, no seguinte endereço:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/d35968f360b9977b802574cd003c4d6b:
“[…]
III – Quanto aos actos de representação vigora o princípio da ilimitação de poderes representativos dos gerentes, perante o qual são irrelevantes as limitações constantes do contrato social ou resultantes de deliberações dos sócios.
IV – Verifica-se uma forte corrente doutrinal e jurisprudencial no sentido de atribuir primazia aos interesses de terceiros de boa fé, relegando-se para as relações internas as consequências inerentes ao eventual desrespeito das regras de representatividade constantes do pacto social.
V – Aos interesses da sociedade ou dos titulares do respectivo capital social sobrepõem-se os de terceiros que com a sociedade se relacionam, mantendo-se a validade dos efeitos jurídicos dos actos outorgados em nome da sociedade apenas por um dos gerentes, ainda que sem a intervenção conjunta dos demais.
[…]” (sumário registado na base).
[13] “[C]hamaremos inalegabilidade formal à situação em que a nulidade derivada da falta de forma legal de determinado negócio não possa ser alegada sob pena de se verificar um «abuso de direito», contrário à boa fé” (António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, vol. I (Parte Geral), tomo IV, Coimbra, 2005, p. 299).
[14] Este Autor sublinha ter operado a revisão de posição anteriormente sustentada (impossibilidade de um bloqueio directo, com base na boa fé, da alegação de nulidades formais), “[p]erante a persistência da nossa jurisprudência e confrontad[o] com casos nos quais a via da inalegabilidade permite uma solução justa e imediata, enquanto o circunlóquio pela responsabilidade civil se apresenta problemático […]” (Tratado…, cit. tomo IV, pp. 311).
[15] Ibidem.
[16] Tratado…, cit. tomo IV, p. 312.
[17] No quadro da compreensão do sentido da norma, no trecho temporal aqui relevante, tenham-se presentes as versões anteriores à resultante do DL 379/86):
Artigo 410º
Regime aplicável
1 – À convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato são aplicáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido, exceptuadas as relativas à forma e as que, por sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato-promessa.
2 – Porém, a promessa relativa à celebração de contrato para o qual a lei exija documento, quer autêntico, quer particular, só vale se constar de documento assinado pelos promitentes.
               [Redacção original do Código Civil dada pelo Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de Novembro de 1966].
Artigo 410º
Regime aplicável
1 – À convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato são aplicáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido, exceptuadas as relativas à forma e as que, por sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato-promessa.
2 – Porém, a promessa relativa à celebração de contrato para o qual a lei exija documento, quer autêntico, quer particular, só vale se constar de documento assinado pelos promitentes.
3 - No caso de promessa relativa à celebração de contrato de compra e venda de prédio urbano, ou de sua fracção autónoma, já construído, em construção ou a construir, o documento referido no número anterior deve conter o reconhecimento presencial das assinaturas dos outorgantes e a certificação, pelo notário, da existência da respectiva licença de construção. A omissão destes requisitos não é, porém, invocável pelo promitente-vendedor, salvo no caso de ter sido o promitente-comprador que directamente lhe deu causa.
              [Redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 236/80, de 18 de Julho].
[18] Proferido no processo nº 8711/03.2TBVNG.S1, disponível na seguinte localização:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/6e5fcab6e6292fd480257673005df291.
Sumário (trecho):
“[…]
O contrato promessa de compra e venda de terreno rústico não loteado basta-se com os requisitos formais do art. 410.º, nº 2 do CC, ou seja, com a assinatura das partes contratantes.
[…]”.
[19] Note-se que a certificação da existência de licença de utilização ou construção não tem aqui sentido, em função do teor do ponto 9 dos factos.
[20] É consensual a caracterização do sentido da expressão edifício empregue no nº 3 do artigo 410º, quanto à circunstância de abranger, nas exigências de forma aí estabelecidas, os “[…] contratos-promessa relativos à celebração de contratos onerosos de transmissão ou de constituição de direitos reais sobre edifícios, ou suas fracções autónomas, construídos, em fase de construção ou apenas projectados […]” (Mário Júlio de Almeida Costa, Contrato-Promessa. Uma Síntese do Regime Vigente, 8ª ed., Coimbra, 2004, p. 31;); no mesmo sentido, até mais expressivamente, cfr. João Calvão da Silva:
“[…]
Era [já na redacção do DL 236/80] bem claro que e referência legal a prédio urbano ou sua fracção autónoma, já construído, em construção ou a construir exprimia o sentido normal e corrente nos usos do tráfico, que é como quem diz no sector da construção civil, em que a celebração de contratos-promessa tem, muitas vezes, por objecto mediato imóveis a construir simplesmente projectados, em terreno para construção já aprovada, concebidos sub specie de res futura, ou edifícios cuja construção se encontra ainda nos alicerces, de modo a permitir aos construtores civis a angariação de fundos monetários indispensáveis à construção ou edificação dos «prédios», na linguagem vulgar.
[…]” (Sinal e Contrato Promessa, 12ª ed., Coimbra, 2007, p. 66).
[21] Mário Júlio de Almeida Costa, Contrato-Promessa…, cit., p. 37. Note-se que este último aspecto (o conhecimento oficioso da falta de certificação da licença de utilização ou construção) foi decidido em sentido contrário – não pode a omissão de qualquer das formalidades ser invocada por terceiros – pelo Assento do STJ de nº 15/94, de 28/06/1994, asserção esta que reforça a ideia de um âmbito subjectivamente limitado ou restrito do sentido dos requisitos formais do contrato-promessa previstos no nº 3 do artigo 410º do CC.
[22] Sinal e Contrato Promessa, cit. pp. 72/74.
[23] V. a definição de informação assimétrica na Wikipedia, em Agosto de 2013, na entrada “Information asymmetry”, em http://en.wikipedia.org/wiki/Information_asymmetry; V., quanto à actuação das garantias, incluindo garantias de forma, num mercado assente em informação assimétrica, Klaus Wehrt, “Warranties”, na Encyclopedia of Law and Economics, Edward Elgar (ed.), Cheltenham, 2000, integralmente disponível em http://encyclo.findlaw.com.
[24] Estamos no quadro de uma interpretação ligada ao elemento racional ou teleológico, quadro em que “[…] o intérprete se apodera de um ponto de referência que ao mesmo tempo o habilita a definir o exacto alcance da norma e a discriminar outras situações típicas com o mesmo ou com diferente recorte” (J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao discurso legitimador, Coimbra, 1983, pp. 182/183; v. a definição de interpretação teleológica – em inglês purposive interpretation – em Ahron Barak, Purposive Interpretation in Law, Princeton, Oxford, 2005, pp. 86/88).
[25] Carlos Ferreira de Almeida, Direito do Consumo, Coimbra, 2005, p. 45. A noção de consumidor é tratada amplamente por António Menezes Cordeiro, no Tratado de Direito Civil Português, I, tomo I, 3ª ed., Coimbra, 2005, pp. 212/214 (cfr. João Calvão da Silva, Venda de Bens de Consumo, 3ª ed., Coimbra, 2006, pp. 43/46).
[26] “[Qualificamos] de lacuna «oculta» o caso em que uma regra legal, contra o seu sentido literal, mas de acordo com a teleologia imanente à lei, precisa de uma restrição que não está contida no texto legal. A integração de uma tal lacuna efectua-se acrescentando a restrição que é requerida em conformidade com o sentido. Visto que com isso a regra contida na lei, concebida demasiado amplamente segundo o seu sentido literal, se reconduz e é reduzida ao âmbito de aplicação que lhe corresponde segundo o fim da regulação ou a conexão de sentido da lei, falamos de uma «redução teleológica»” (Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, tradução portuguesa da 6ª ed. alemã por José Lamego, 5º ed., Lisboa, 2009, pp. 555/556).
[27] Diz aí o Exmo. Mandatário da A.:
“[…]
A minha cliente perdeu o interesse na realização do negócio […].
[…]”.
[28] V. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, vol. II (Direito das Obrigações), tomo IV, Coimbra, 2010, pp. 143/154; cfr. o Acórdão desta Relação de 14/07/2010, proferido pelo ora relator no processo nº 768/08.6TBAVR.C1, disponível na seguinte localização:
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/538965514c3ffd458025779a0039d9e.
Sumário:
“[…]
V – Uma declaração inequívoca do devedor, próxima da vencimento da sua obrigação e suscitada por uma interpretação do credor, de que “anula a encomenda” efectuada a este, consubstancia uma declaração definitiva de incumprimento e, tratando-se de prazo estabelecido em benefício do devedor, opera esta o vencimento imediato dessa obrigação.
[…]”.
[29] Acordo que sempre seria necessário. Trata-se – tratar-se-ia –, com efeito, de revogação do contrato, funcionando para alcançar esse efeito o mesmo tipo de consensualidade da conclusão do contrato (v. Pedro Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, 2ª ed., Coimbra, 2006, pp. 111/115).