Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
374/11.8TTVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MANUELA FIALHO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
INCAPACIDADE
JULGAMENTO
Data do Acordão: 04/26/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ARTºS 8º, Nº 1 DA LEI Nº 98/2009, DE 4/09; 111º, 112º, 126º E 138º, Nº 2 DO CÓDIGO DE PROCESSO DE TRABALHO
Sumário: I – O conceito de acidente de trabalho pressupõe a verificação de vários pressupostos entre os quais que do evento tenha resultado lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho (artº 8º, nº 1 da Lei nº 98/2009, de 4/09).

II - A determinação da incapacidade está dependente da prévia existência de lesões decorrentes do acidente de trabalho, determinantes de sequelas ou disfunções.

III – No âmbito do processo emergente de acidente de trabalho, a fixação das lesões e respectivas sequelas pode depender de produção de prova, ou do acordo que as partes façam incidir sobre as mesmas.

IV - Não se tendo registado acordo sobre as mesmas na fase conciliatória do processo, nem elas resultando da decisão final, fica inviabilizada a valoração da incapacidade, impondo-se a anulação do julgamento.

Decisão Texto Integral:    Acordam na secção social do Tribunal da Relação de Coimbra:

   A..., residente na ..., Viseu, interpôs recurso do despacho que, fixando a incapacidade, condenou no pagamento do capital de remição da pensão respectiva e despesas.

   Pede a respectiva revogação.

   Funda-se nas seguintes conclusões:

   […]

   Não foram proferidas contra-alegações.

   O MINISTÉRIO PÚBLICO junto deste Tribunal emitiu parecer segundo o qual a decisão deve ser anulada de forma a que se determine que os peritos esclareçam o fundamento da divergência de entendimento (grau de IPP diferente) em relação ao exame realizado pelo perito medido na fase conciliatória.


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   Eis, para melhor compreensão, um breve resumo dos autos:

   Na presente acção emergente de acidente de trabalho, não foi possível a conciliação em virtude de Autor e Ré discordarem da desvalorização arbitrada pelo Sr. Perito médico no exame médico que considerou o Autor curado com uma IPP de 16,0768%.

   Ambos desencadearam a fase contenciosa, apresentando requerimento para realização de exame por junta médica.

   Reunida a junta médica, os peritos foram de parecer, por unanimidade, que o Autor se encontra clinicamente curado mas afectado de uma incapacidade permanente e parcial de 12,58%, sendo a data da alta em 04-05-2011.

   Foi, após, proferida decisão que declarou que o Autor se encontra, por efeito do acidente dos autos, afectado de uma incapacidade permanente e parcial de 12,58% e condenou a Ré a pagar-lhe a quantia de € 10,00 (dez euros), relativa a despesas de transportes e o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de € 792,98 (setecentos e noventa e dois euros e noventa e oito cêntimos), devida desde 05/05/2011.


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   Das conclusões acima exaradas extrai-se uma única questão a decidir: a incapacidade não se mostra correctamente avaliada?


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   São os seguintes os factos relevantes para a presente decisão:

   1 – Na sequência de acidente, cuja qualificação como de trabalho as partes não discutem, foi dado início ao presente processo.

   2 – Procedeu-se a exame, durante a fase contenciosa, do qual decorre que o sinistrado apresenta marcado edema no membro inferior esquerdo, limitação da flexão dorsal até 10º e limitação na flexão plantar até 20º, o que lhe confere IPP de 16,0768%.

   3 – Realizada tentativa de conciliação, não foi proposto, pelo Ministério Público, qualquer acordo relativo às lesões e sequelas de que padece o sinistrado.

   4 – Neste acto, quer o sinistrado, quer a seguradora, discordaram da IPP.

   5 – Ambos requereram junta médica formulando quesitos, designadamente, acerca das sequelas e incapacidade.

   6 – A junta médica pronunciou-se no sentido de as sequelas se traduzirem em rigidez e edema do tornozelo esquerdo, propondo IPP de 12,58%.


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   Aquilatemos então se a incapacidade se revela incorrectamente valorada.

   O conceito de acidente de trabalho pressupõe a verificação de vários pressupostos entre os quais, e no que para aqui releva, que do evento resulte lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho (Artº 8º/1 da Lei 98/2009 de 4/09).

   Assim, a incapacidade relevante para o efeito que nos ocupa está dependente da prévia existência de lesões decorrentes do acidente de trabalho, determinantes de sequelas ou disfunções a que, por força da Tabela Nacional de Incapacidades, se atribui um coeficiente expresso em percentagem. Este coeficiente traduz a proporção da perda da capacidade de trabalho resultante da disfunção, como sequela final da lesão inicial.

   Daqui resulta como óbvio que não pode haver atribuição de incapacidade sem prévia definição de lesões e sequelas.

   Ora, no caso concreto, em parte alguma do processo se vê que tivessem sido definidas, quer umas, quer outras.

   No âmbito do processo emergente de acidente de trabalho, a fixação das lesões e respectivas sequelas pode depender de produção de prova, ou do acordo que as partes façam incidir sobre as mesmas.

   Para este efeito, é crucial a tentativa de conciliação que encerra a fase conciliatória do processo e que, conforme dispõe o Artº 111º do CPT, é titulada por um auto que conterá a descrição pormenorizada do acidente e dos factos que servem de fundamento aos direitos e obrigações atribuídos aos intervenientes processuais. E, não se registando acordo, dispõe o Artº 112º que o auto referirá os factos sobre os quais tenha havido acordo, entre os quais, aquele que incida sobre a caracterização do acidente, nexo de causalidade entre a lesão e o acidente, natureza e grau da incapacidade atribuída[1].

   O acordo assim consignado funciona, depois, como importante mecanismo de delimitação do subsequente objecto do processo, de forma que, incidindo o desacordo apenas sobre a incapacidade, haverá lugar ao subsequente incidente de fixação da incapacidade (Artº 138º/2 do CPT); registando-se discórdia sobre outros elementos, designadamente sobre as lesões e as sequelas, o processo a tramitar já será o processo especial emergente de acidente de trabalho (Artº 126º e ss. do CPT).

   Ora, no caso concreto, não se alcança, conforme já adiantámos, que se tivesse registado algum acordo relativamente ás sequelas decorrentes do acidente e nem elas se mostram fixadas nalgum dos termos do processo, ou, sequer, na decisão final.

   Tal circunstância, inviabiliza completamente a apreciação da questão que constitui objecto deste recurso – a incapacidade.

   E, nessa medida, não resta outra solução senão a de anular o julgamento efectuado, de modo a que o processo seja tramitado na forma adequada.

   Mas, para além disso, e como bem nota o Ministério Público em parecer junto aos autos, também não se vê que o parecer da junta médica seja isento de dúvidas. Bem pelo contrário!

   Neste parecer, muito embora se tenha concluído que o sinistrado está afectado de diversas sequelas, a saber, rigidez e edema do tornozelo (afinal as mesmas que o exame singular apontou), apenas se classifica a rigidez, sem que se justifique minimamente esta opção.

   Assim, ficamos sem saber qual a razão pela qual foi desconsiderado o edema que, contrariamente, o exame singular, contemplara na avaliação.

   Donde, o parecer em que se apoia a decisão sob recurso é tudo menos claro, e, por isso, fere-a de errada fundamentação.

   Termos em que, também por esta via, o julgamento efectuado tem de anular-se.


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   Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente (embora por diferentes fundamentos) e, em consequência, anular o julgamento efectuado e o processado seguido após a tentativa de conciliação, determinando-se que o mesmo siga a forma prescrita nos Artº 126º e ss. do CPT.

   As custas serão suportadas a final pela parte vencida.

   Notifique.


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   Elabora-se o seguinte sumário:

   1 – A determinação da incapacidade está dependente da prévia existência de lesões decorrentes do acidente de trabalho, determinantes de sequelas ou disfunções.

   2 – Não se tendo registado acordo sobre as mesmas na fase conciliatória do processo, nem elas resultando da decisão final, fica inviabilizada a valoração da incapacidade, impondo-se a anulação do julgamento.



MANUELA BENTO FIALHO (Relatora)

LUÍS AZEVEDO MENDES

JOAQUIM JOSÉ FELIZARDO PAIVA



[1] Sobre o assunto, pode ver-se Manuela Fialho, in Processo de Acidentes de Trabalho, Os Incidentes, Ideias para Debate. Prontuário de Direito do Trabalho 69, Coimbra Editora, 86 e ss.