Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
61101/20.1YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: COMPRA E VENDA MERCANTIL
TRANSPORTADOR RODOVIÁRIO
RISCO DE PERECIMENTO DA MERCADORIA TRANSPORTADA
RECLAMAÇÃO DA COMPRADORA
Data do Acordão: 03/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 463.º; 469.º E 471.º, DO CÓDIGO COMERCIAL
ARTIGOS 342.º, 2; 800.º, 1; 874.º E 879, A) A C), DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. - Celebrado entre duas sociedades anónimas, no âmbito da sua atividade comercial, contrato de compra e venda de morangos, com destino à sua revenda na Polónia, tal contrato tem natureza mercantil, com aplicação das normas previstas para a compra e venda no Código Comercial e, subsidiariamente, as normas do Código Civil, também as referentes ao cumprimento e incumprimento das obrigações.

2. - Tendo-se a compradora socorrido de transportador rodoviário, por si contratado, para receber a mercadoria da vendedora e a transportar para a Polónia, com entrega ali ao novo adquirente, tal transportador é um auxiliar da compradora, que mantém o domínio do transporte, cujo controlo escapa, por isso, à vendedora.

3. - Por isso, o risco de perecimento ou deterioração da mercadoria transportada, durante o transporte e entrega na Polónia, corre por conta da compradora, por ser esta quem tem o domínio do facto, tanto mais que não se provou que a vendedora garantiu o estado de conservação do produto no destino.

4. - Detetada deterioração do produto apenas no destino, com tempestiva reclamação da compradora, cabia a esta, na ação de cumprimento em que a vendedora pede o pagamento do respetivo preço, mostrar (com inerente ónus probatório) que os morangos foram fornecidos já com defeitos, ainda que ocultos, sem o que não se estabelece um nexo de causalidade entre a conduta da vendedora e os vícios sobrevindos no destino, implicando o decaimento da reclamação e da recusa de pagamento.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:


***
I – Relatório

A... S. A.”, com os sinais dos autos,

intentou ([1]) procedimento de injunção contra

B... S. A.”, também com os sinais dos autos,

pedindo que seja a demandada condenada a pagar-lhe a quantia de € 33.846,40, correspondendo € 32.145,99 a capital, € 1.547,41 a juros de mora e € 153,00 a taxa de justiça inicial,

para o que alegou que, dedicando-se à produção e comercialização, por grosso, de frutas, incluindo morangos, no âmbito dessa atividade forneceu à R., e a pedido desta, determinadas quantidades de morangos, cujo valor totalizava € 32.145,99, de acordo com as respetivas faturas, preço que a R. não pagou, apesar de instada para o fazer.

A R. deduziu oposição, com reconvenção, concluindo pela sua absolvição, para o que alegou:

- nada dever à A., sendo que, ao invés, é esta quem é devedora à R.;

- terem sido carregadas nas instalações da A. duas cargas de morangos, as quais, contudo, não foram aceites pelo cliente final da R., que reclamou da qualidade dos produtos;

- por isso, a R. comunicou de imediato à A. o sucedido, anexando fotografias e denunciando a falta de qualidade verificada;

- assim, a cliente da R. nada lhe pagou pela mercadoria, perante o que foi tentada a venda do produto rejeitado no mercado de retalho, o que se não mostrou possível;

- a R. deixou de receber do seu cliente o valor de € 43.056,00, a que acresce o valor do transporte, que ascendia a € 5.268,00, num total de € 48.324,00;

- a R. viu ainda prejudicados a sua imagem e o seu bom nome, pelo que deverá ser indemnizada no montante de € 2.500,00.

Por isso, pede, na via reconvencional, que, sendo operada a compensação entre o valor de € 32.145,99, pedido pela A., e o valor que reclama, de € 50.824,00, seja a A./Reconvinda condenada a pagar o valor de € 18.678,01.

Remetidos os autos à distribuição, com transmutação em ação de processo comum, a A. replicou, concluindo pela total improcedência da argumentação da contestação e, bem assim, da reconvenção.

Saneado o processo, com enunciação do objeto do litígio e dos temas da prova, prosseguiram os autos para a fase de julgamento, com produção de provas, a que se seguiu a sentença, datada de 16/05/2022, com o seguinte dispositivo:

«Na total procedência da acção e total improcedência da reconvenção decide-se

a) Condenar a R. B... S.A. a pagar à A. A... S.A. a quantia de € 33.693,40 - trinta e três mil seiscentos e noventa e três euros e quarenta cêntimos -.

b) Absolver a A. do pedido reconvencional deduzido pela R.» (destaques retirados).

Inconformada, recorre a R. para este Tribunal da Relação, apresentando motivação e as seguintes

Conclusões ([2]):

«Primeira- O presente recurso é interposto da douta sentença proferida, que julgou a acção totalmente provada e procedente e improcedente a reconvenção, e consequentemente, condenou a Ré, aqui Recorrente a pagar à Autora a quantia de 33.693,40€, e ainda decidiu absolver a A. do pedido reconvencional, ficando as custas da da acção e reconvenção a cargo da Ré, decisão que se discorda.

Segunda- O presente recurso versa, sobre a decisão do tribunal a quo quanto à matéria de facto, a qual é objeto de impugnação, nomeadamente o Ponto 8 e 14 dos factos Provados, e alíneas a), b) e c) dos Factos não Provados, que a nosso ver foram erradamente julgados, na medida em que entendemos que sobre os mesmos foi feita prova que impunha decisão diversa da que veio a ser proferida, e também versa sobre a apreciação que o tribunal a quo efetuou sobre a matéria de direito.

Terceira- Os concretos pontos dos Factos Provados que a Recorrente considera incorretamente julgados são:

“8- Pelo transporte rodoviário onde seguiam entre outros produtos, os morangos aludidos em 1, a R. liquidou o valor de € 10.000,00.

14- Os produtos não foram devolvidos nem à A. nem à R. ficando em local não apurado na Polónia.”

Quarta- A R. considera que foi incorretamente julgado o Ponto 8 dos Factos Provados, por da prova produzida, nomeadamente dos documentos n.º 12, 13 e 21, juntos com o requerimento datado de 20/04/2021 com a ref. 38613860 (ref. Citius 7614043) e requerimento datado de 18/10/2021 com a ref. 40177744 (ref. Citius 8091065), bem como da prova testemunhal, resultar claro que naqueles específicos transportes rodoviários não seguiam outros produtos quaisquer, seguiam framboesas fornecidas pela Ré ao mesmo cliente final.

Quinta- Neste sentido vejam-se as seguintes passagens do depoimento da testemunha AA (Gravação do dia 09/05/2022, gravado sob o Ficheiro com a ref.ª 20220509111327_4012702_2870938.wma)- Minutos 08:36 – 08:59; Minutos 40:28 – 08:16; da testemunha BB (Gravação do dia 09/05/2022, gravado sob o Ficheiro com a ref.ª 20220509115930_4012702_2870938.wma), Minutos 13:42 –14:03; e ainda, as seguintes passagens das declarações de parte da legal representante da Ré, CC, (Gravação do dia 09/05/2022, gravado sob o Ficheiro com a ref.ª 20220509143229_4012702_2870938.wma), Minutos 05:23- 05:29;

Sexta- Pelo que deve o facto em questão ser substituído por outro com a seguinte redação, ou de conteúdo semelhante:

“8- Pelo transporte rodoviário onde seguiam framboesas e os morangos aludidos em 1, a R. liquidou o valor de €10.000,00.”

Sétima- A R. considera ainda que foi incorretamente julgado o Ponto 14 dos Factos Provados, dado que os documentos n.º 11 e 21 (CMR) juntos pela Ré no com o requerimento datado de 20/04/2021 com a ref. 38613860 (ref. Citius 7614043) e requerimento datado de 18/10/2021 com a ref. 40177744 (ref. Citius 8091065), provam de forma indubitável que os morangos rejeitados pelo cliente final (Polaco), C... SA, foram posteriormente vendidos à empresa D..., pela módica quantia de 18,72€, em virtude do referido produto ter sido considerado impróprio para consumo pela falta de qualidade do mesmo, cuja responsabilidade se imputa à A.

Oitava-Pelo que deve o facto em questão ser substituído por outro com a seguinte redação, ou de conteúdo semelhante:

“14- Os morangos não foram devolvidos nem à A. nem à R., tendo sido vendidos à sociedade D..., pela quantia de 18,72€, pelo facto de terem sido considerados impróprios para consumo, por todos apresentarem bolores e podridão.”

Nona- Os concretos pontos dos Factos Não Provados que a Recorrente considera incorretamente julgados são:

a- A A. aquando da negociação que levou à encomenda aludida em 1, assegurou à R. que corria por sua conta e até à entrega dos mesmos na cliente final da R., a preservação dos morangos e a qualidade dos mesmos e que assumiria o prejuízo pela não aceitação deles por parte da cliente final.

b- Aquando do carregamento dos morangos por parte da R. os mesmos encontravam-se já deteriorados, parte deles podres e com bolor.

c- Quando chegaram ao destino os morangos encontravam-se na sua totalidade deteriorados, com bolor e poderes.

Décima- Relativamente à alínea a) dos factos não provados, andou mal a douta sentença ao considerar que não foi feita prova de que a A. aquando da negociação assegurou à Ré que corria por sua conta e até à entrega dos morangos na cliente final da Ré, a preservação dos morangos e a qualidades dos mesmos e que assumiria o prejuízo pela não aceitação deles por parte da cliente final da Ré, uma vez que a própria A. reconheceu, ou melhor confessou, que a garantia da qualidade do morango era da sua responsabilidade e que foi esse o compromisso que assumiu perante a R, vejam-se os pontos 29 e 30 da réplica (com a ref.ª: 37903169 e ref. Citius 7441232).

Décima primeira- Quanto à responsabilidade da A. no que diz respeito à qualidade da fruta, para além da confissão aduzida na sétima conclusão, vejam-se ainda as seguintes passagens das declarações de parte da legal representante da Ré, CC, (Gravação do dia 09/05/2022, gravado sob o Ficheiro com a ref.ª 20220509143229_4012702_2870938.wma), Minutos 04:32-04:38 e Minutos 09:14-09:33.

Décima segunda- Se as framboesas, que seguiram no mesmo camião que os morangos, chegaram ao destino final com qualidade, sendo até um fruto bem mais perecível e delicado, por maioria de razão também os morangos fornecidos pela Autora deviam ter chegado ao cliente final em bom estado, o que não aconteceu. Portanto não há dúvidas que não houve qualquer problema imputável ao transporte da fruta.

Décima terceira- A fruta fornecida pela A. não tinha a qualidade convencionada, que pressuponha a aptidão necessária para chegar ao cliente final na Polónia C... SA, pronta a ser colocada nas prateleiras dos supermercados e aí ser vista e adquirida pelo consumidor como fruta fresca, própria para consumo.

Décima quarta- Porém, o que se verificou no 5º dia após o seu carregamento foi que a fruta fornecida, afinal, não tinha a qualidade convencionada, uma vez que chegou ao destino final com bolores e podres, conforme documentos n.º 6, 7 e 8 juntos pela ré em 20/04/2021 com a ref. 38613628 (ref. Citius 7614033) e 38613860 (ref. Citius 7614043) e respetivas traduções juntas em 18/10/2021 no requerimento com a ref. 40176772 (ref. Citius 8091029) em que retratam a rejeição da totalidade dos morangos pelo cliente final.

Décima quinta- Relativamente à alínea b) dos factos não provados, como se disse, a A. garantiu a qualidade do seu produto “até duas semanas após o carregamento nas suas instalações”, pelo que, é totalmente irrelevante que se tenha provado ou não que os morangos já estariam deteriorados aquando do carregamento, pois o pressuposto do contrato não era esse.

Décima sexta- Os morangos tinham de ter qualidade não apenas no momento em que foram carregados nas instalações da A., mas sim no momento em que chegassem ao destino final.

Décima sétima - Relativamente à alínea c) dos factos não provados, entendeu o tribunal a quo que a Ré não logrou provar que “quando chegaram ao destino os morangos encontravam-se na sua totalidade deteriorados, com bolor e podres”, mas na verdade, a remessa de morango estava toda ela imprópria para consumo, razão pela qual foi rejeitada pelo cliente final C... SA, prova disso é o valor pago posteriormente por uma outra empresa, a D... que adquiriu a totalidade da mercadoria, conforme documento n.º 11 junto pela R. (requerimento ref 38613860 de 20/04/20/04/2021e ref. citius 7614043).

Décima oitava- Não obstante, também os documentos n.º 6, 7 e 8 juntos pela Ré pela ré em 20/04/2021 com a ref. 38613628 (ref. Citius 7614033) e 38613860 (ref. Citius 7614043) e respetivas traduções juntas em 18/10/2021 no requerimento com a ref. 40176772 (ref. Citius 8091029), onde figuram os relatórios de rejeição dos morangos, apresentados pelo seu cliente final C... SA, dizem expressamente “Rejeição de todo o fornecimento: sinais de deterioração/apodrecimento/bolor;”, o que prova que a totalidade dos morangos estava imprópria para consumo.

Décima nona- Assim, deve ser alterada a decisão relativa aos factos não provados vertidos nas alíneas a), b) e c) e substituída por outra que inclua essa matéria nos Factos Provados, nos termos supra referidos.

Vigésima- A douta sentença padece também de erro na determinação das normas jurídicas aplicáveis, cfr. disposto no art. 639º, n.º 2, al. c) do CPC, ao não ter aplicado as disposições constantes dos arts. 463º, 469º e 471º do Código Comercial.

Vigésima primeira- O contrato celebrado entre as partes é um contrato de compra e venda mercantil (comercial) sob a condição do produto transacionado ter a qualidade convencionada, aplicando-se, concomitantemente o disposto nos artigos 463º, 469º e 471º do Código Comercial.

Vigésima segunda- O pressuposto essencial do contrato era que a fruta chegasse ao cliente própria com qualidade para consumo humano, isto é, que pudesse ser colocada nas prateleiras e aí ser observada e comprada pelo consumidor como fruta fresca, cfr. garantia dada pela A.

Vigésima terceira- A mercadoria adquirida saiu diretamente das instalações da A. para o cliente final da Ré C... SA, e não foi examinada aquando do seu carregamento, nem tinham de o ser, dispondo a R. do prazo de oito dias para reclamar contra a sua qualidade, o que efetivamente fez, em prazo, por correio eletrónico e por contacto telefónico, conforme consta dos factos provados (cfr ponto 5 dos factos provados).

Vigésima quarta- Demonstrado e provado que a R. efetuou a reclamação do produto em prazo, o que nem sequer foi posto em crise pela A., é de concluir que pode a R. exercitar os direitos que a lei lhe confere, em virtude do incumprimento do contrato por parte da A.

Vigésima quinta-Tendo a Ré, dentro do prazo legal, comunicado à A. que a mercadoria não servia para o fim a que se destinava, a Ré distratou assim o contrato.

Vigésima sexta- Porque o contrato não chegou a tornar-se perfeito, é de concluir que a propriedade do produto, concretamente dos morangos, não se chegou a transferir para a esfera jurídica da R., correndo o risco do perecimento do morango por conta do vendedor, ou seja da A..

Vigésima sétima- Consequentemente, perecendo os morangos, como sucedeu, não é devido o pagamento do preço, conforme resulta do n.º 1, do artigo 795º do Código Civil.

Vigésima oitava- Na compra e venda comercial, a propriedade só se transfere para o comprador com a entrega e aceitação da coisa vendida, sem defeitos, dando-se assim o contrato como perfeito, o que não sucedeu in casu, pelo que não é devido o pagamento do preço.

Vigésima nona- Ao caso dos autos não são aplicáveis as disposições do código civil, no que diz respeito ao cumprimento defeituoso da prestação por parte da Autora, nomeadamente o artigo 913º e seguintes, bem como o artigo 905º a 912º do código civil, uma vez que estamos perante um contrato de compra e venda mercantil especial, sob a condição do produto ter a qualidade convencionada.

Trigésima- A R. demonstrou e provou que os morangos fornecidos pela A. padeciam de vícios, bolores e podres, que impediram que os mesmos tivessem o fim a que foram destinados, isto é que pudessem ser comercializados como fruta fresca própria para consumo humano. Prova essa cabalmente produzida pelos documentos n.ºs 6, 7, 8, 9, 10 e 11 juntos pela R. em 20/04/2021 com a ref. 38613628 (ref. Citius 7614033) e 38613860 (ref. Citius 7614043) e respetivas traduções juntas em 18/10/2021 no requerimento com a ref. 40176772 (ref. Citius 8091029).

Trigésima primeira- Demonstrado que a coisa foi vendida com defeitos, incumbia à A. provar que os morangos fornecidos à Ré não padeciam de defeitos, ou seja que a fruta foi fornecida com a qualidade convencionada e provar que os vícios não lhe são imputáveis, isto é, que os morangos não pereceram por culpa sua, o que a A. não logrou fazer.

Trigésima segunda- No mesmo sentido da matéria alegada, vejam-se o acórdão recentemente proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, sob processo n.º 15162/18.2YIPRT.L1-2, datado de 23-05-2019, do Tribunal da Relação de Lisboa, em 29-03-1974: BMJ, 235º- 342), Ac. TRL, de 15-06-1955: (JR, 1955º, 553), Ac. do STJ de 23/11/2006, sob o processo n.º 06B615, AC. RC, de 13-04-1999: Col. Jur., 1999, 2º- 32)

Trigésima terceira- Sem prescindir, A A. não cumpriu com a prestação a que se vinculou, uma vez que acordou com a R. o fornecimento de morangos com qualidade para serem entregues no cliente final na Polónia, e não o fez, razão pela qual foram rejeitados.

Trigésima quarta- A R. não pagou o preço em virtude da coisa vendida padecer de defeitos que impossibilitaram que os morangos tivessem o fim a que se destinavam. Ou seja, a R. invocou e provou o não pagamento do preço justificado pelo cumprimento defeituoso do contrato por parte da A., dentro do prazo legalmente estatuído.

Trigésima quinta- Ao contrário do referido pela douta sentença, a R. logrou provar nos termos do 799º do CC, que a fruta fornecida pela A. tinha defeito.

Trigésima sexta- Mesmo que se considerasse que já havia sido transferida a propriedade sobre os morangos em apreço, o que não se concebe e apenas por mera hipótese se aceita, sempre terá de se concluir que a R. efetuou a reclamação dentro do prazo legalmente estabelecido, lançando mão da exceção do não cumprimento do contrato, imputável à A. legitimando assim o não pagamento do preço.

Trigésima sétima- A A. incumpriu com a obrigação a que se vinculou, atuando de forma contrária aos bons costumes, à prática comercial habitual e sem o mínimo de bom senso, contrariando as expetativas da R. no cumprimento integral e perfeito do contrato.

Trigésima oitava- Foram porquanto, violadas entre outras disposições as normas contidas nos artigos 5º n.º 2, 46º, 465º e 607º, n.º 4 todos do CPC, as normas contidas nos artigos 469º e 471º do Código Comercial e ainda a norma contida no artigo 799º do CC.

Trigésima nona- Pelo douto suprimento, deve ser julgado procedente o presente recurso, e, consequentemente, alterada a douta decisão, declarando-se que a R. nada deve à A., e, ser ainda julgado procedente o pedido reconvencional formulado pela Ré.

Termos em que, com o douto suprimento, deve o presente recurso ser admitido e julgado totalmente procedente, e, em consequência ser a Sentença recorrida revogada e substituída por outra que absolva a Recorrente do pedido efetuado pela Recorrida e ser ainda julgado procedente o pedido reconvencional formulado pela Recorrente, e por via disso a Recorrida condenada a pagar à Recorrente a quantia 18.678,01€ para que se faça a costumada JUSTIÇA!».

Foi junta contra-alegação de recurso, pugnando a Recorrida pela integral confirmação do decidido.


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O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (apesar de a Recorrente pugnar pelo efeito suspensivo), tendo então sido ordenada a remessa do processo a este Tribunal ad quem, onde foi mantido o regime determinado, embora com atribuição, por despacho do Relator, de efeito suspensivo (por via da prestação de caução na Relação).

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.


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II – Âmbito recursivo

Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([3]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.) –, cabe decidir, sobre matéria de facto e de direito:

a) Se, caso não seja de rejeitar de imediato, deve proceder a impugnação da decisão de facto, por ocorrido erro de julgamento da matéria factual, na parte impugnada [pontos 8 e 14 dos factos dados como provados e, por outro lado, alíneas a), b) e c) dos factos não provados];

b) Se, ante a pretendida alteração fáctica, ou por razões de ordem jurídica, deve alterar-se a decisão de direito, revogando-se a sentença, de molde a julgar improcedente a ação e procedente a reconvenção.


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III – Fundamentação

A) Impugnação da decisão relativa à matéria de facto

Tendo ocorrido impugnação da decisão de facto, constata-se que a Recorrente observou suficientemente, no essencial, os ónus a seu cargo, tal como previstos no art.º 640.º do NCPCiv., razão pela qual haverá de empreender-se o conhecimento desta vertente da impugnação recursiva.

É bem sabido, todavia, que, se o Tribunal de 2.ª instância é chamado a fazer, em autónoma e fundamentada convicção, o seu julgamento da específica matéria de facto objeto de impugnação recursiva, o mesmo é comummente restrito a pontos concretos questionados – os objeto de recurso, no mesmo delimitados –, procedendo-se a reapreciação com base em determinados elementos de prova, concretamente elencados, designadamente certos depoimentos indicados pela parte recorrente, âmbito em que é à 1.ª instância – e só a ela – que assiste a plena/total imediação perante a prova pessoal produzida, sem olvidar, também por isso, que a Relação apenas deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente – prova documental esta inexistente no caso – impuserem decisão diversa (art.º 662.º, n.º 1, do NCPCiv.).

Começa a Apelante por impugnar o ponto 8 (do quadro dado como provado), com a seguinte redação:

«8- Pelo transporte rodoviário onde seguiam entre outros produtos, os morangos aludidos em 1, a R. liquidou o valor de € 10.000,00.».

Pretende que se substitua/altere o segmento «onde seguiam entre outros produtos, os morangos aludidos», de molde a obter-se a seguinte redação final:

«8- Pelo transporte rodoviário onde seguiam framboesas e os morangos aludidos em 1, a R. liquidou o valor de € 10.000,00.».

A questão é, então, a de saber se, para além dos morangos, apenas seguiam também – no âmbito do operado transporte internacional de mercadorias – framboesas.

O Tribunal recorrido ofereceu a seguinte justificação da convicção probatória:

«Facto 8º

Dado por provado pela análise aos primeiros dois documentos (facturas) juntos com o requerimento citius referência nº 40176772 emitida por entidade Holandesa e referente a transporte de mercadorias solicitado pela R. e transportados nos dias 23 e 27 de Setembro, conjugados com as notas de pagamento (documento com o número 18 – requerimento citius referência nº 40176772 de 18 de Outubro de 2021 e documento com o nº 19º requerimento citius referência nº 40177744 de 18 de Outubro de 2021).».

A Apelante invoca, por sua vez, prova documental e testemunhal.

Quanto à prova documental, começa por aludir aos documentos 12, 13 e 21, juntos com o requerimento datado de 20/04/2021 e requerimento datado de 18/10/2021, para além de prova testemunhal que identifica.

A contraparte refere que é inócua e desnecessária a pretendida alteração, sendo indiferente que se aluda, especificamente, a framboesas.

Ora, apreciando, é certo que os docs. de fls. 68 v.º e 69 do processo físico (ditos docs. 12 e 13, tratando-se de faturas da Recorrente emitidas a «C... SA», datadas, respetivamente, de 25/09/2019 e 04/10/2019) aludem a «morango» e «framboesa», sem referência a outros produtos.

Por sua vez, quanto à prova pessoal, a Recorrente indica – na motivação do recurso – os seguintes excertos/transcrição da gravação da prova:

a) «- depoimento da testemunha AA (Gravação do dia 09/05/2022, gravado sob o Ficheiro com a ref.ª 20220509111327_4012702_2870938.wma):

Minutos 08:36 – 08:59:

Mandatária da Ré: “(...) ele (o camião) vinha de Odemira porquê?”

Testemunha: “(...) no sentido de completar o camião, para que o camião não fosse vazio, nós fazíamos uma carga de framboesa em Odemira, depois o camião seguia para as A... para carregar o morango (...).”

A instâncias do Mm.º Juiz a testemunha é questionada do seguinte:

Minutos 40:28-40:32

Mm.º Juiz: “A framboesa que veio lá de baixo de Odemira foi comprada a quem?”

- depoimento da testemunha BB (Gravação do dia 09/05/2022, gravado sob o Ficheiro com a ref.ª 20220509115930_4012702_2870938.wma), a instâncias do Mm.º Juiz a quo:

Minutos 13:42 –14:03:

Mm.º Juiz: “A parte relativa à framboesa seria que montante?”

Testemunha: “A parte da framboesa num caso foram 29,28€ e noutro caso foram 3.267,96€.”»;

b) «- depoimento de parte da legal representante da Ré, CC, (Gravação do dia 09/05/2022, gravado sob o Ficheiro com a ref.ª 20220509143229_4012702_2870938.wma)

Minutos 05:23- 05:29:

Mm.º Juiz: “Neste caso em concreto, não só porque também venderam produto próprio, que eram as tais...?

Legal Representante: “Framboesa.”

Mm.º Juiz: “Framboesas.”».

A parte recorrida não põe em causa estas transcrições, nem a substância dos depoimentos e declarações de parte, apenas salientando o caráter inócuo e desnecessário da alteração pretendida.

Assim sendo, perante tal pendor da prova invocada, não contrariada pela Recorrida, será mais rigoroso, em termos de enunciação da factualidade provada, aludir concretamente a framboesas do que – mais genericamente – a “outros produtos”, suportando a prova convocada uma tal concretização e não se vendo, por outro lado, que a matéria em causa seja destituída de qualquer relevância para a decisão.

Termos em que procede, nesta parte, a impugnação, passando, por isso, o ponto 8 referido a assumir a seguinte redação concretizadora:

«8- Pelo transporte rodoviário onde seguiam framboesas e os morangos aludidos em 1, a R. liquidou o valor de € 10.000,00.».

Já o ponto 14, também objeto de impugnação, apresenta o seguinte teor:

«14- Os produtos não foram devolvidos nem à A. nem à R. ficando em local não apurado na Polónia.».

É a seguinte a justificação da convicção:

«Facto 13º e 14º

A prova destes factos resulta das declarações de parte produzidas pela legal representante da R. DD, que apenas foram consideradas isentas neste segmento factual, a qual de modo claro referiu ter sido prejudicada a imagem da R. junto do cliente polaco por causa da recusa de tal cliente em receber os morangos, e que por esse motivo esteve bastante tempo sem conseguir qualquer outro negócio com aquele cliente.

(…)

Por outro lado, a legal representante da R. confirmou também que os morangos não foram devolvidos à proveniência, que os tentou ainda revender a outra entidade na Polónia o que não foi conseguido.».

A R./Recorrente invoca prova documental, que discrimina – «os documentos n.º 11 e 21 (CMR) juntos pela Ré no requerimento datado de 20/04/2021 com a ref. 38613860 (ref. Citius 7614043) e requerimento datado de 18/10/2021 com a ref. 40177744 (ref. Citius 8091065)» –, e prova testemunhal, aludindo, apenas, nesta parte (quanto à prova pessoal), na sua motivação, à conjugação «com o depoimento das testemunhas» (cfr. ponto 2.1 do corpo alegatório).

E também no seu acervo conclusivo – cfr. conclusões 7.ª e 8.ª – a impugnante não identifica essa «prova testemunhal» ([4]), a dever ser valorada de forma conjugada com os documentos (estes não dotados de força probatória plena), mormente para os confirmar/corroborar.

Assim, se nem sequer indica quais as testemunhas que pretende convocar neste plano, muito menos procede à indicação exata das passagens da respetiva gravação áudio que devessem ser ponderadas/valoradas ou à respetiva transcrição.

Com o que a Recorrente deixa inobservados os ónus legais a cargo da parte impugnante da decisão de facto a que alude o art.º 640.º, n.ºs 1, al.ª b), e 2, al.ª a), do NCPCiv., votando esta parcela impugnatória, por imposição de norma imperativa, à imediata rejeição.

Assim, não podendo colher, nesta parte, a impugnação, persiste inalterada a redação daquele ponto 14.

Passando à impugnada factualidade julgada não provada, está em discussão todo o quadro dado como não provado (composto por três alíneas), a saber:

«a- A A. aquando da negociação que levou à encomenda aludida em 1, assegurou à R. que corria por sua conta e até à entrega dos mesmos na cliente final da R., a preservação dos morangos e a qualidade dos mesmos e que assumiria o prejuízo pela não aceitação deles por parte da cliente final.

b- Aquando do carregamento dos morangos por parte da R. os mesmos encontravam-se já deteriorados, parte deles podres e com bolor.

c- Quando chegaram ao destino os morangos encontravam-se na sua totalidade deteriorados, com bolor e poderes.».

Relativamente àquela primeira alínea, a 1.ª instância justificou assim o seu juízo negativo:

«Quanto ao facto a) refira-se que sobre o mesmo apenas se pronunciaram as legais representantes da R. confirmando-o, o que foi negado pelo legal representante da A.

Nenhuma prova testemunhal se produziu no sentido de confirmar os termos do acordo de fornecimento, tendo, portanto, quer a A. quer a R. feito valer os seus pontos de vista apenas e só recorrendo aos seus representantes legais, consabidamente com interesse directo no resultado da demanda.

Por outro lado, também não foi junto ao processo qualquer documento de onde resultassem os termos da negociação entre as partes, o que não deixa de se estranhar, quando se está perante entidades profissionais que laboram entre o mais para mercados internacionais.».

Perante isto, refere a R./Recorrente, desde logo, que foi a própria A./Recorrida quem confessou a «garantia», no âmbito dos art.ºs 29.º e 30.º da réplica.

Porém, nestes art.ºs apenas foi vertido que:

«29. A Reconvinda apenas poderia garantir a qualidade dos morangos à saída do seu armazém e, até duas semanas, desde que os mesmos fossem conservados à temperatura recomendada na ficha técnica.

30. Este foi o compromisso que a Reconvinda assumiu com a Reconvinte, tal como sempre assumiu com qualquer outro seu cliente.».

Ora, se a A. afirmou/alegou que apenas poderia garantir a qualidade dos morangos à saída do seu armazém e, até duas semanas, desde que os mesmos fossem conservados à temperatura recomendada na ficha técnica, daí não pode, logicamente, concluir-se que assegurou, sem mais, «à R. que corria por sua conta e até à entrega dos mesmos na cliente final da R., a preservação dos morangos e a qualidade dos mesmos e que assumiria o prejuízo pela não aceitação deles por parte da cliente final», quando é sabido que o produto foi submetido a longa e demorada viagem internacional, assegurada por transportador contratado pela R. (cfr. pontos provados 1 a 3, não impugnados), isto é, por entidade a que a A. era totalmente alheia, consabido, por outro lado, que dependiam de tal transportador as condições (mormente, de conservação) em que o produto (facilmente deteriorável ou perecível, se inobservadas as adequadas condições de conservação) era transportado, até à sua entrega na Polónia.

Assim, inexiste a invocada confissão/admissão em sede de articulados.

Também não colhe a invocação, simplesmente, das declarações de parte da legal representante da R., CC, posto que se imporia demonstrar, ante o sentido da justificação observada do Tribunal recorrido, os motivos pelos quais essas declarações deveriam ser tidas como mais credíveis e convincentes do que as de feição contrária, ante a veiculada negação por parte do «legal representante da A.», quando «Nenhuma prova testemunhal se produziu no sentido de confirmar os termos do acordo de fornecimento», e «não foi junto ao processo qualquer documento de onde resultassem os termos da negociação».

Ora, tais motivos (de credibilidade) não resultam demonstrados pela impugnante, termos em que incorreu a mesma em claro deficit de análise crítica das provas, na perspetiva da pretendida demonstração da existência de erro de julgamento.

Para tanto, também não bastaria invocar – em jeito de conclusão – que, se as framboesas transportadas não tiveram qualquer problema de conservação, então nenhuma falha houve por banda do transportador (conclusão 12.ª), ou que a fruta fornecida «não tinha a qualidade convencionada» (conclusões 13.ª e 14.ª).

Passando à al.ª b) dada como não provada, refere a Apelante que se trata ali de matéria irrelevante, por o pressuposto a atender ser o da garantia da qualidade do produto até duas semanas após o carregamento nas instalações da A. (cfr. conclusões 15.ª e seg.).

Assim, o que a Recorrente invoca é a irrelevância do facto, por via de uma invocada garantia que não foi dada como provada nos autos (e permanece como tal).

Ora, atenta a natureza dos interesses em discussão no pleito, e vistas as possíveis/plausíveis soluções da questão de direito, não se considera que a dita materialidade, levada àquela al.ª b), seja irrelevante para a decisão.

Com efeito, saber se, aquando do carregamento dos morangos por parte da R., os mesmos se encontravam já deteriorados, parte deles podres e com bolor, é matéria relevante para o desfecho da causa – sendo a própria Recorrente quem acaba por pretender ver essa matéria dada como provada (cfr. conclusão 19.ª) –, razões não havendo, tudo ponderado, para a alteração do juízo negativo da 1.ª instância a este respeito.

Resta a dita al.ª c), referente ao estado do produto no destino – saber se, quando chegaram ao destino, os morangos se encontravam totalmente deteriorados, com bolor e podres –, a que a Apelante dedica as suas conclusões 17.ª e 18.ª.

Exarou o Tribunal a quo:

«Uma coisa é o cliente da R. referir que os morangos estavam impróprios para comercialização e recusar a sua entrega, outra diferente, é se assim era na realidade e em relação a toda a carga.

É certo que existem fotografias no processo (veja-se o requerimento citius referência nº 40176772 de 18 de Outubro de 2021) onde é possível verificar que em algumas caixas os morangos aparecem com bolor e outro podres.

Mas tal não quer dizer:

- que toda a carga ou a maioria estivesse assim;

- que aqueles que estavam estragados o estivessem por causa de algum facto que se possa imputar à A.

Aventou é certo AA, que os morangos estariam estragados por causa de algo com a sua recolha ou embalagem, mas o seu depoimento foi especulativo pois que não viu com os seus olhos o produto transportado para a Polónia, o mesmo se podendo dizer do depoimento de EE a qual afiançou que o problema dos morangos só pode ter tido lugar no carregamento e não no transporte - mais uma vez especulando - tanto mais, refere, que outros produtos foram transportados e não se estragaram.

Neste conspecto diga-se que em momento algum dos autos foi alegado o transporte de outra mercadoria, mas não se pode sem mais concluir que os morangos se estragaram por facto imputado à A., pelo simples facto de na mesma carga seguirem outros produtos que não pereceram. E isto porque se desconhece as características desses outros produtos, como eles iam acondicionados, quando tinham sido colhidos e depois transportados.

De igual modo, e acriticamente a R. aceitou a reclamação da sua cliente, sem fazer qualquer análise do produto – disse-o a legal representante da R. DD – mas se assim é, só à R. pode ser imputada essa aceitação, já que não conseguiu demonstrar que o problema dos morangos era responsabilidade da A. e que todos ou a maioria dos morangos estavam estragados.

A mera exibição de fotografias demonstrativa que alguns não estariam próprios para consumo, não estende esse problema a toda a mercadoria, e se a R., repete-se sem por em causa a posição da sua cliente aceita a reclamação, por ela é responsável.

Finalmente, refira-se que sequer foi dada a possibilidade de a A. verificar o material (embora se afigure que tal fosse de difícil execução) pois que o mesmo ficou na Polónia e sendo perecível, actualmente não existe.».

Argumenta a impugnante com a rejeição de todo o produto pelo seu cliente (C..., S. A.), com a posterior venda a outra empresa da mercadoria e respetivo preço (irrisório) e com os relatórios de rejeição dos morangos apresentados pela dita C..., S. A., referentes à rejeição de «todo o fornecimento», o que, a seu ver, constitui prova cabal daquele factualismo, a dever, por isso, ser julgado provado.

Ora, ao assim esgrimir, a Apelante não logra – salvo sempre o devido respeito – abalar aquela justificação da convicção da 1.ª instância.

Com efeito, se é certo que houve rejeição dos morangos na Polónia, sendo causa da rejeição a invocação pelo cliente de que se encontravam podres e com bolor (factos 3 e 4, não objeto de impugnação), subsistem as interrogações do Julgador a quo, a que a Recorrente não logra dar resposta através da invocação das provas concretamente produzidas, não bastando a invocação, sem mais, de documentos não dotados de força probatória plena – como tal, submetidos à livre apreciação do Tribunal –, sendo que nenhuma prova pessoal foi convocada para sindicância recursiva neste horizonte, nem existe uma perícia independente que elucide sobre o estado do produto aquando da sua rejeição na Polónia e sobre a causa desse estado (se decorrente de deficiência do próprio produto e/ou embalagem, por as condições de conservação terem sido sempre as adequadas durante o transporte e entrega no destino, ou, diversamente, de falha naquelas condições de conservação, em transporte ou na entrega, sendo este, aliás, o aspeto fulcral da questão, cujas dúvidas a impugnante não logra dissipar através da prova por si convocada para sindicância recursiva).

Assim sendo, nada haverá a alterar neste particular, termos em que subsiste intocado o quadro fáctico julgado não provado.

B) Matéria de facto

1. - Ante a alteração ora efetuada, é a seguinte a factualidade julgada provada a considerar:

«1- Nos dias 23 de Setembro de 2019 e 27 de Setembro de 2019 a R. procedeu por intermédio de transportadora que contratou, ao carregamento nas instalações da A. em Salir do Porto de duas remessas de morango, morango esse da A.

2- O destino dessas duas remessas e que a A. tinha conhecimento, era a Polónia, sendo que os morangos saíram das instalações da A. directamente para o cliente final, tendo pelo menos uma das cargas feito uma paragem na Holanda.

3- Os morangos carregados nos dias 23 e 27 de Setembro de 2019, e que chegaram ao destino nos dias 27 de Setembro e 02 de Outubro, foram rejeitados pelo cliente final da R. nos dias 27 de Setembro e 02 de Outubro.

4- A causa da rejeição apresentada pelo cliente da R. à R. foi que os morangos estavam podres, bem assim tinham bolor.

5- A R. deu a conhecer à A. por correio electrónico, as rejeições indicadas em 3 nos dias 27 de Setembro e 02 de Outubro.

6- Por conta dos fornecimentos aludidos em 1 a A. emitiu e enviou à R que as recebeu:

i) o documento apelidado de “factura” com o nº ...00 datado de 07 de Outubro de 2019 e vencimento a 21 de Outubro de 2019, correspondente a 1104 embalagens de morango com o valor de € 17.884,40, acrescido de € 1.073,09 de IVA, totalizando € 18.957,89;

ii) o documento apelidado de “factura” com o nº ...01 datado de 07 de Outubro de 2019 e vencimento a 21 de Outubro de 2019, correspondente a 748 embalagens de morango com o valor de € 12.441,60, acrescido de € 746,50 de IVA, totalizando € 13.188,10.

7- A R. não liquidou à A. o valor referido em 6.».

«8- Pelo transporte rodoviário onde seguiam framboesas e os morangos aludidos em 1, a R. liquidou o valor de € 10.000,00.» [ALTERADO].

«9- A R. nada recebeu da cliente polaca por conta dos morangos recusados por esta.

10- E em 22 de Outubro de 2019 a R. emitiu a favor da C... S.A. uma nota de crédito no valor de € 25.421,28, correspondendo € 25.392,00 a morangos.

11- E em 24 de Outubro de 2019 a R. emitiu a favor da C... S.A. uma nota de crédito no valor de 20.931,96, correspondendo € 17.664,00 a morangos.

12- Os valores indicados em 10 e 11 e relativos a morango, correspondem aos valores que a R. receberia da cliente final, relativamente à encomenda efectuada por tal R. à A.

13- Por causa das rejeições indicadas em 4 a R. viu a sua imagem comercial prejudicada perante a cliente final e durante alguns meses não transacionou com a mesma quaisquer produtos.

14- Os produtos não foram devolvidos nem à A. nem à R. ficando em local não apurado na Polónia.».

2. - E subsiste julgado como não provado:

«a- A A. aquando da negociação que levou à encomenda aludida em 1, assegurou à R. que corria por sua conta e até à entrega dos mesmos na cliente final da R., a preservação dos morangos e a qualidade dos mesmos e que assumiria o prejuízo pela não aceitação deles por parte da cliente final.

b- Aquando do carregamento dos morangos por parte da R. os mesmos encontravam-se já deteriorados, parte deles podres e com bolor.

c- Quando chegaram ao destino os morangos encontravam-se na sua totalidade deteriorados, com bolor e poderes.».

   


***

C) O Direito

1. - Da qualificação do contrato celebrado

Importa, desde logo, qualificar adequadamente a relação contratual em termos jurídicos, sabido que ambas as partes aceitam tratar-se de compra e venda comercial – o que resulta incontroverso ([5]) –, embora discordem no mais.

Assim, enquanto a Apelante invoca que se trata de contrato de compra e venda mercantil sob condição – a condição de o produto transacionado ter a qualidade convencionada –, com aplicação do disposto nos art.ºs 463.º, 469.º e 471.º, todos do CCom. (cfr. conclusões 20.ª a 22.ª), a contraparte esgrime que estamos perante um contrato de execução instantânea, regulado pelo art.º 463.º daquele CCom. (cfr. conclusão K da Apelada), rejeitando que se trate de contrato sob condição, uma venda sobre amostra ou por designação de padrão (cfr. motivação da contra-alegação).

Na sentença qualificou-se o contrato como de compra e venda mercantil, a que aludem os art.ºs 463.º e segs. do CCom., um «contrato de execução instantânea», que se consome «com a entrega da coisa e o pagamento do preço», esgotando-se assim o «comportamento exigível do devedor (…) num só momento: o do pagamento do preço».

Na sequência, entendeu-se na decisão recorrida que a A./Apelada (vendedora) cumpriu a sua obrigação, posto ter entregue a mercadoria nos termos convencionados, não logrando a compradora, por seu lado, provar que a fruta fornecida fosse entregue «já defeituosa», enquanto a R./Apelante faltou ao pagamento devido, pelo que lhe competia provar que a sua falta de cumprimento não procedia de culpa sua, o que não logrou conseguir.

Vejamos, então.

Dispõe o art.º 463.º do CCom. (com a epígrafe «Compras e vendas comerciais»):

«São consideradas comerciais:

1.º As compras de cousas móveis para revender, em bruto ou trabalhadas, ou simplesmente para lhes alugar o uso;

2.º As compras, para revenda, de fundos públicos ou de quaisquer títulos de crédito negociáveis;

3.º A venda de cousas móveis, em bruto ou trabalhadas, e as de fundos públicos e de quaisquer títulos de crédito negociáveis, quando a aquisição houvesse sido feita no intuito de as revender;

4.º As compras e revendas de bens imóveis ou de direitos a eles inerentes, quando aquelas, para estas, houverem sido feitas;

5.º As compras e vendas de partes ou de acções de sociedades comerciais.».

Já o art.º 469.º (quanto a «Venda sobre amostra ou por designação de padrão») do mesmo Cód. estabelece:

«As vendas feitas sobre amostra de fazenda, ou determinando-se só uma qualidade conhecida no comércio, consideram-se sempre como feitas debaixo da condição de a cousa ser conforme à amostra ou à qualidade convencionada.» ([6]).

E o art.º 471.º preceitua (sobre «Conversão em perfeitos dos contratos condicionais»):

«As condições referidas nos dois artigos antecedentes haver-se-ão por verificadas e os contratos como perfeitos, se o comprador examinar as cousas compradas no acto da entrega e não reclamar contra a sua qualidade, ou, não as examinando, não reclamar dentro de oito dias.

§ único. O vendedor pode exigir que o comprador proceda ao exame das fazendas no acto da entrega, salvo caso de impossibilidade, sob pena de se haver para todos os efeitos como verificado.».

Relativamente à venda sobre amostra (aludido art.º 469.º), refere Menezes Cordeiro que «ela considera-se sempre feita debaixo da condição de a coisa ser conforme à amostra ou à qualidade convencionada», sendo que o «artigo 471.º dá um prazo de 8 dias para a consolidação das vendas por amostra ou a contento» ([7]).

E, como entendido pela jurisprudência, a «compra e venda sobre amostra não se basta com a exibição de uma amostra no acto da pré-contratação e com a celebração do contrato tendo-a por base, antes implica ainda que as partes apenas queiram ter como perfeito o contrato quando a mercadoria total entregue esteja de acordo com a mencionada amostra.» ([8]).

A aqui Apelante esgrime que o contrato celebrado é sob condição, a condição de o produto transacionado (morangos) ter a qualidade convencionada, concretizando tratar-se de a mercadoria/fruta ter (ao chegar ao destino, na Polónia) «qualidade para consumo humano», de modo a «poder ser colocada nas prateleiras», em termos de ser «observada e comprada pelo consumidor como fruta fresca», por ser essa a garantia dada pela A./vendedora (conclusões 21.ª e 22.ª).

Afastada fica, assim, a qualificação como venda sobre amostra, já que a factualidade provada não nos dá conta da existência de qualquer negociação/contratação mediante uma amostra do produto/morangos, em que a exibição da amostra, aquando da contratação, implicasse que as partes apenas queiram ter como perfeito o contrato quando a mercadoria total entregue estivesse de acordo com a mencionada amostra.

Veja-se, a propósito, o que consta provado sob os pontos 1 a 3 da parte fáctica da sentença, de cuja materialidade nada pode retirar-se quanto ao específico modo de negociação/contratação, apenas resultando a contratação de «duas remessas de morango», carregadas nas instalações da A., para a R., por intermédio de transportador contratado por esta última.

Nada se prova, pois, quanto a uma eventual venda sobre amostra (em que o produto entregue devesse ser conforme à amostra que houvesse estado presente na negociação/contratação).

E, do mesmo modo, nada se prova quanto ao estabelecimento de uma «qualidade convencionada», em que os morangos a entregar fossem determinados por «uma qualidade conhecida no comércio», ficando o negócio na dependência da conformidade a essa qualidade pré-convencionada, posto ser desconhecido o teor do contrato a este respeito.

Na verdade, dos factos provados nada resulta nesse sentido, desconhecendo-se os termos concretos do convencionado quanto às qualidades específicas da mercadoria.

O que afasta a aplicação do disposto no art.º 469.º do CCom., por não se mostrar que ocorra venda sobre amostra ou por designação de padrão ([9]).

Aliás, a condição a que alude a R./Recorrente é outra: traduz-se em a contraparte ter dado a garantia de que o produto chegaria ao cliente da R., na Polónia, com qualidade para consumo humano, isto é, em estado de conservação e frescura que permitisse a exposição dos morangos para venda ao consumidor como fruta fresca.

Assim, o cumprimento dessa garantia é que seria a condição do negócio, o qual ficaria, por isso, na dependência daquele bom estado de conservação e frescura dos morangos no destino – o que equivaleria à transferência do risco do transporte internacional da mercadoria para a A./vendedora, que teria assumido esse risco –, sem o que não haveria clientes/consumidores dispostos a comprá-los.

Ora, esta condição/garantia, alegadamente prestada pela A., teria de ser provada pela R./Apelante, enquanto pressuposto em que se fundou a negociação ou como elemento essencial convencionado, de que ficava a depender todo o negócio.

Porém, aquela R./Apelante não o logrou provar, nem após a sindicância recursiva da decisão de facto.

Com efeito, subsiste como não provado que a A., aquando da negociação da mercadoria/morangos, «assegurou à R. que corria por sua conta e até à entrega dos mesmos na cliente final da R., a preservação dos morangos e a qualidade dos mesmos e que assumiria o prejuízo pela não aceitação deles por parte da cliente final».

Donde que não se demonstre tal invocada garantia, nem que o contrato tenha sido celebrado sob uma tal condição ou tenha ficado sujeito ao regime da «venda sobre amostra ou por designação de padrão».

Em suma, concorda-se, no essencial, com a qualificação operada na sentença e defendida pela Recorrida, tratando-se de uma compra e venda comercial, não sujeita àquela invocada condição, por não provada, mas com ocorrida transferência de risco, pelo que, operando os seus efeitos legais (os que são próprios do contrato celebrado), cabia à parte vendedora a entrega da mercadoria contratada, em adequado estado para o efeito a que se destinava, e, por consequência, à compradora o pagamento do respetivo preço, não obstante a reclamação tempestivamente deduzida (pela R.), mas não vingada, matéria que se abordará seguidamente em pormenor ([10]).

2. - Dos defeitos do produto e inadimplemento

Entende a Recorrente que ocorreu «incumprimento do contrato por parte da A.» (conclusão 24.ª), já que os morangos vendidos chegaram ao destino (Polónia) em estado de imprestabilidade para o efeito visado na sua aquisição.

E, de facto, prova-se que o produto – de si frágil e facilmente perecível, se não for mantido nas condições de conservação e frescura de que carece – foi rejeitado pelo cliente final da R., sob invocação de os morangos estarem podres e com bolor, do que a R. deu prontamente conhecimento à A. (reclamação).

É certo que a R. procedeu ao carregamento do produto nas instalações da A. por intermédio de transportadora contratada, sendo que nesse momento da entrega do produto nada foi detetado que pusesse em causa o estado de conservação do mesmo ou a qualidade da mercadoria.

Tal transportadora foi contratada pela R. – e não pela A. –, devendo receber o produto e transportá-lo por estrada para a Polónia, pelo menos num caso com paragem na Holanda (factos provados 1 a 3), bem se compreendendo que tenha, por isso, sido a R. a pagar o custo do transporte rodoviário que contratara (facto 8).

Assim, o transportador era um auxiliar da R. e não da A., sendo sabido que quem utiliza os serviços de um transportador responde, perante terceiros, pelos factos geradores de responsabilidade cometidos pelo transportador tal «como se fosse ele próprio, a cometê-los, nos temos do art. 800.º, n.º 1, do CC», sendo ainda que o transportador, por seu lado, responde perante quem contratou os seus serviços ([11]).

Daqui se retira que a A. não é responsável pelo transporte, já que o transportador era um auxiliar da R. e não daquela A., sendo, pois, a A. alheia às vicissitudes do transporte rodoviário da mercadoria, que não podia controlar ([12]).

Ora, aqui chegados, concorda-se com a sentença quando conclui que a R. não logrou provar que «a fruta foi fornecida já defeituosa». Note-se que se mantém não provado que, «Aquando do carregamento dos morangos por parte da R., os mesmos encontravam-se já deteriorados, parte deles podres e com bolor», tal como não se prova que, «Quando chegaram ao destino, os morangos encontravam-se na sua totalidade deteriorados, com bolor e podres».

Não se mostra, pois, que ocorresse qualquer defeito na origem, isto é, aquando da entrega/carregamento do produto.

O que se sabe é que o produto, efetuado o transporte, chegou à Polónia em condições de (deficiente) estado de conservação que determinaram a sua rejeição pelo cliente final (comprador da R.).

Cabia à R., na economia da ação, deduzida tempestivamente a sua reclamação, mostrar os defeitos invocados do produto (cfr. art.º 342.º, n.º 2, do CCiv.), enquanto matéria de exceção tendente à improcedência da ação de cumprimento ([13]), para o que teria de evidenciar que a deterioração dos morangos não lhe era imputável, mas à A. (vendedora).

Para tanto, teria de se demonstrar que o transporte foi efetuado em cumprimento das condições necessárias ao adequado estado de conservação e frescura do produto, que não foi por deficiências surgidas no tempo do transporte que o produto sofreu deterioração, posto o risco do transporte ter de correr, como dito, contra a R., que se socorreu de um seu auxiliar (transportador por si contratado) para o fazer.

Ora, se a R./Recorrente não logra mostrar, como visto, qualquer defeito dos morangos na origem (um qualquer vício, aparente ou oculto, mas que já existisse aquando da entrega/carregamento do produto), também não mostra quais as condições em que a mercadoria foi transportada, ao longo de todo o trajeto até à Polónia, não deixando afastada a possibilidade da ocorrência de deterioração no tempo do transporte (até à entrega no destino), por falha – de si possível – nas condições necessárias ao adequado estado de conservação e frescura de um produto tão facilmente perecível/deteriorável ([14]).

Assim, se os morangos sofreram danos, não se apura que tenham sido fornecidos já com defeito, nem se mostra que esses danos não tenham sido sofridos em tempo de transporte, por falha nas condições necessárias ao adequado estado de conservação e frescura, ao que a A. era alheia.

Donde que, apesar da reclamação apresentada, não se demonstre incumprimento por parte da vendedora, sendo que o ónus da prova da factualidade necessária de suporte cabia à R./Recorrente.

Por isso, neste âmbito da relação contratual, decaindo aquela reclamação, tem de concluir-se que a A./vendedora cumpriu o convencionado quanto ao seu dever de prestar (entrega da mercadoria contratada), estando a contraparte, por seu lado, em falta quanto ao pagamento do preço.

Como refere ainda Menezes Cordeiro ([15]), a «compra e venda comercial funciona como efectivo contrato mercantil especial: ela pressupõe, subjacente, o regime civil, limitando-se a estabelecer especialidades», sabido que a «compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade – isto é: o direito de propriedade – de uma coisa ou outro direito, mediante um preço – artigo 874.º do Código Civil. O direito transmitido é-o por mero efeito do contrato – 879.º, a); além disso, este obriga a entregar a coisa e a pagar o preço – alíneas b) e c), do mesmo preceito, também do Código Civil.».

Quer dizer, não é por a compra e venda ter natureza mercantil que deixarão de ser aplicáveis, subsidiariamente, as normas do Código Civil, mormente, quanto ao que aqui importa, as referentes ao cumprimento e incumprimento dos contratos.

Neste âmbito, invoca a R. que provou que os morangos fornecidos padeciam de defeitos (vícios, bolores e podridão), impedindo a aplicação para o fim a que destinados (conclusão 30.ª), no que não se pode acompanhar a sua argumentação, posto apenas se provar que, efetuado o transporte, o produto apresentava vícios no destino, mas sem se demonstrar que tenham os morangos sido entregues (pelo vendedor, antes do transporte) com qualquer vício, já revelado ou de revelação posterior, faltando o imprescindível nexo causal que ligasse os vícios sobrevindos a uma conduta imputável à vendedora.

Na sua conclusão 31.ª, alude a R./Recorrente ao ónus da prova, referindo que cabia à A. provar que os morangos fornecidos não padeciam de defeitos.

Todavia, salvo o devido respeito, assim não é.

Na ação de cumprimento – em que a A./vendedora pretende o pagamento do preço da venda, no pressuposto de ter realizado a prestação a seu cargo –, cabe à parte demandante demonstrar ter cumprido a sua obrigação de entrega da coisa vendida, nos termos convencionados, cabendo à contraparte/compradora, uma vez recebida a mercadoria, e alegando defeitos da mesma, demonstrar a existência e amplitude desses defeitos, em termos de os imputar a conduta do vendedor.

No caso, a vendedora entregou a mercadoria vendida, que, recebida, até foi transportada para a Polónia – por auxiliar do comprador –, sem que se mostre que a fruta foi fornecida com qualquer defeito ([16]).

A deteção de defeitos na Polónia, após a longa viagem terrestre/rodoviária até ao destino, não permite imputar, sem mais, esses defeitos à A., que não é responsável pelo transporte, ao qual é até alheia, e no desconhecimento das condições e vicissitudes deste, pelo que inexistem factos provados que permitam responsabilizar a demandante (por ato causal seu) pelos vícios/defeitos sobrevindos.

Termos em que não pode assacar-se qualquer incumprimento à A., não logrando a R., sujeita ao ónus da prova respetivo, provar factos que mostrem que os vícios detetados resultam de conduta imputável à vendedora, com o que se queda insubsistente, como visto, a reclamação deduzida contra esta.

A esta luz, o que fica é a falta de pagamento do preço, obrigação que impende sobre a R., não demonstrando esta qualquer causa que justifique o não pagamento (a existência de defeito imputável à contraparte), para o que não poderia bastar aquela reclamação apresentada/documentada, que somente seria consequente se houvesse defeito imputável à A..

Em suma, inexistindo violação das normas invocadas pela Recorrente, falecem as conclusões desta em contrário, havendo de manter-se a sentença recorrida.


***

(…)

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V – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo, em consequência, a sentença recorrida.

Custas da apelação a cargo da R./Apelante – parte vencida no recurso (art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do NCPCiv.).

Coimbra, 14/03/2023

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).
Assinaturas eletrónicas.

Vítor Amaral (Relator)

Luís Cravo

                                      

Fernando Monteiro



([1]) Em 04/08/2020. 
([2]) Que aqui vão reproduzidas (com destaques subtraídos).
([3]) Excetuando questões de conhecimento oficioso, desde que não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([4]) Foram ouvidas cinco testemunhas em audiência final, como resulta do teor da respetiva ata (cfr. ata datada de 09/05/2022, a fls. 168 e segs. do processo físico).
([5]) Com efeito, trata-se de compra e venda entre sociedades comerciais (sociedades anónimas), no âmbito da respetiva atividade comercial e com destino à revenda (pela R./compradora), assim, em plena esfera mercantil.
([6]) Por sua vez, o art.º 470.º do CCom. reporta-se a «Compras de coisas que não estejam à vista nem possam designar-se por um padrão», não tendo virtualidade de aplicação ao caso dos autos.
([7]) Cfr. Manual de Direito Comercial, Almedina, Coimbra, 2.ª ed., 2007, p. 836.
([8]) Vide Ac. STJ de 01/07/2014, Proc. 5539/04.6TVLSB.L2.S1 (Cons. Maria Clara Sottomayor), em www.dgsi.pt, afirmando ainda que, «Na compra e venda sobre amostra o contrato apenas se tem como eficaz após exame sem reclamação ou decorridos oito dias sobre a entrega.». No mesmo sentido, inter alia, já o Ac. STJ de 23/03/2009, Proc. 09B0658 (Cons. Oliveira Rocha), em www.dgsi.pt, constando do respetivo sumário: «Para haver uma compra e venda sobre amostra não basta que ao comprador tenha sido apresentada, previamente, uma parcela ou um exemplar da mercadoria ou um protótipo; para além dessa apresentação, é indispensável que o vendedor se tenha obrigado a entregar, somente, uma coisa exactamente igual, sujeitando-se ao confronto dela pela ré ou pelos peritos».
([9]) Veja-se, todavia, o entendimento do STJ expresso no seu Ac. de 06/03/2012, Proc. 2698/03.9TBMTJ.L1.S1 (Cons. Moreira Alves), em www.dgsi.pt, exprimindo no respetivo sumário que «O prazo curto de 8 dias, a que se refere o art. 471.º do CCom, não foi estabelecido em benefício do vendedor comercial, e tem a ver, essencialmente, com a celeridade, segurança e certeza que o legislador quis imprimir à contratação comercial, tanto se verificando para a compra e venda condicional, dos arts. 469.º e 470.º do CCom, como para a compra e venda pura, sujeita ao regime comercial». Cfr. ainda o Ac. TRC de 11/01/2011, Proc. 1977/08.3TBAVR.C1 (Rel. Carlos Querido), também em www.dgsi.pt.
([10]) Não se ignora o defendido no Ac. TRL de 23/05/2019, Proc. 15162/18.2YIPRT.L1-2 (Rel. Vaz Gomes), em www.dgsi.pt, em cuja fundamentação se exarou assim: «A venda de produtos hortícolas como o brócolo em palotes que atingem várias toneladas ou a batata deve considerar-se uma venda feita debaixo da condição de a mercadoria ser conforme à qualidade convencionada (art.º 469 do CCom), a qualidade do bem e o estado do bem são conceitos jurídicos diferentes mas da deterioração que determina a alteração das características específicas do bem resulta a sua qualificação e pelo art.º 471 do CCom a condição do art.º 469 do mesmo código ter-se-á por verificada e o contrato por perfeito se o comprador examinando o bem comprado no acto da entrega ou não reclamar contra a sua qualidades, não a examinando dentro do prazo de 8 dias a partir do acto da entrega (cfr entre outros o Ac RLxa de 15/6/1955 JR 1955-553 a propósito da compra e venda de batata)». Todavia, o caso versado naquele aresto é distinto do aqui em análise – tendo-se chegado ali à conclusão no sentido de, ocorrida reclamação pela adquirente, não se ter transferido «a propriedade da mercadoria para a Ré, correndo os riscos do perecimento do bem vendido por conta do vendedor», pelo que, «perecendo a mercadoria, não é devido o preço dela» –, posto se ter provado ali que «Os produtos entregues pela Autora - brócolos encontravam-se deteriorados e estragados», vindo a carga «toda em mau estado», isto é, a existência de vícios aquando da entrega da mercadoria, embora só detetados posteriormente. Acresce que não estava ali em causa um transporte internacional da mercadoria, por transportador contratado pelo comprador (a que o vendedor fosse alheio), com deteção de vícios apenas no destino, não podendo considerar-se que o risco do transporte (e da deterioração ou perecimento no seu decurso, por via das condições do transporte) corra, em tais circunstâncias, por conta do vendedor.
([11]) Vide Ac. STJ de 20/02/2014, Proc. 10737/08.0TBVNG.P1.S2 (Cons. João Trindade), em www.dgsi.pt.
([12]) Assim, tratando-se de transportador da R., mal se compreenderia que fosse a A. a assumir o risco do transporte e da preservação da qualidade e estado de conservação do produto durante todo o tempo do transporte, quando aquela (A.) não podia determinar/controlar as concretas condições do transporte, já que nenhum contrato tinha celebrado com o transportador (o qual, por isso, lhe era alheio, não estando sujeito a ordens ou instruções suas). O que era lógico é que, tratando-se de transportador contratado pela R., por isso, um auxiliar desta no cumprimento da sua prestação para com o seu cliente na Polónia, o risco do transporte (e da mercadoria transportada) impendesse sobre tal R., a qual, socorrendo-se de auxiliar, mantinha o domínio do facto/transporte. 
([13]) Cfr., entre outros, o Ac. TRC de 12/10/2021, Proc. 527/19.0T8FND.C1 (Rel. Cristina Neves), em www.dgsi.pt, em cujo sumário pode ler-se: «Celebrado contrato de compra e venda mercantil, cabe ao comprador, adquirente da coisa, alegar e provar que esta era desconforme ao contrato ou sofria de defeito que a tornava inapta ao fim acordado (…), como forma de se eximir do pagamento da coisa vendida.».
([14]) Note-se que da factualidade provada nada resulta quanto às condições e adequação do transporte, em termos de manutenção do produto em adequado estado de conservação e frescura, sendo que cabia à R. mostrar que o transportador – um seu auxiliar – observou tais condições, de molde a afastar a ocorrência de prejuízos para a mercadoria durante o respetivo transporte.
([15]) Op. cit., p. 833.
([16]) Para um caso com alguma similitude com a situação dos autos, fundamentou assim o TRP, no seu Ac. de 22/10/2020, Proc. 30539/18.5YIPRT.P1 (Rel. Filipe Caroço), em www.dgsi.pt:
«Esta doutrina prende-se até com a doutrina do cumprimento, no sentido de que o incumprimento ou o cumprimento defeituoso da prestação constitui, como vimos, um ónus do comprador, sendo do vendedor o ónus de provar que agiu sem culpa (art.º 799º, nº 2, do Código Civil).
Ao não provar que a fruta foi fornecida já defeituosa, ainda que se tratasse de um defeito oculto, só mais tarde demonstrável, a R. não está a demonstrar, como lhe compete, que a A. não cumpriu a sua obrigação. Só mediante esta demonstração, estaria a A. adstrita ao dever de ilidir a presunção de culpa.
Excessivo seria exigir à A. vendedora que demonstrasse que a sua fruta foi entregue em bom estado, sem qualquer mazela ou vício, (…) quando a própria R. a recebeu (…).
Com a entrega dos mirtilos, a A. transferiu a sua propriedade para a R., perdeu o seu domínio e a sua posse, assim perdendo também a possibilidade de controlar o modo como passaram a ser prestados cuidados de conservação e o seu destino. Logo, também não lhe é exigível que demonstre que os defeitos surgiram depois da entrega e receção da fruta como forma de afastar o seu incumprimento. É a R. que tem de provar o incumprimento da A.
(…) Daqui decorre que a questão deve ser decidida contra a R., impondo-se o pagamento do preço dos fornecimentos de mirtilo efetuados pela A., como se decidiu na sentença.».