Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2147/07.3TBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: CONTRATO DE EMPREITADA
TERCEIRO
INCUMPRIMENTO
CUMPRIMENTO DEFEITUOSO
Data do Acordão: 11/18/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE POMBAL – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 770º, AL.A), E 1207º C.CIVIL.
Sumário: I - O contrato celebrado entre uma Companhia de Seguros e uma empresa que explora uma oficina, tendo por objecto a reparação de um veículo seguro naquela Companhia, cobrindo o risco de danos próprios, em que se apure que a vontade dos contraentes foi a de considerar o proprietário desse veículo titular do direito à reparação da viatura, deve ser qualificado como um contrato de empreitada a favor de terceiro.

II - Não resultando da relação de valuta (contrato de seguro) que a obrigação do promissário (Companhia de Seguros) se extin­gue com a mera celebração do contrato a favor do terceiro (proprietário do veículo), se o promitente (oficina) incumpre ou cumpre defeituosamente a prestação que se obrigou a efectuar ao terceiro, este pode exigir o cumprimento efectivo quer da obrigação do promitente quer da obrigação do promissário, sendo que o cumprimento de uma delas extingue a outra.

III – Mas já relativamente aos prejuízos que resultaram para o proprietário do veículo do incum­primento ou do cumprimento defeituoso da prestação assumida pelo promitente no contrato a favor de terceiro, se na relação de valuta o terceiro assentiu no cumprimento da prestação do promissário, através do estabelecimento de uma relação de cobertura, mediante a celebração de um contrato a seu favor, só o promitente será responsável pelos prejuízos resultantes do incumprimento ou do cumprimento defeituoso.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

O Autor intentou contra as Rés a presente acção declarativa, de condenação, com processo comum, sob forma sumária, peticionando:

a) a condenação conjunta ou solidária das Rés a pagarem-lhe  a quantia de € 10.000, 00 (dez mil euros), acrescida de juros à taxa legal, desde a citação até integral pagamento e

b) a condenação conjunta ou solidária das Rés a pagarem-lhe a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, relativamente aos danos referenciados nos artigos 5º a 52º, 63º, 64º, 66º a 68º da petição inicial.

Para fundamentar a sua pretensão alegou, em síntese:

 - O veículo automóvel de matrícula …-SQ, sua propriedade, ficou sub­merso mais de 24 horas em virtude de inundação da garagem onde se encontrava estacionado.

- Por contrato de seguro celebrado com a Ré Seguradora esta responsabili­zou-se pela reparação dos danos próprios daquele veículo, incluindo a cobertura de “fenómenos da natureza”.

- Após a comunicação do sucedido à Ré Seguradora, esta assumiu a respon­sabilidade e providenciou pela realização da peritagem.

- O veículo deu entrada na oficina da Ré V… para reparação, tendo após a sua entrega o Autor verificado que o mesmo não tinha sido devidamente reparado e, por isso, reclamado das deficiências que descreve na petição inicial junto daquela, que aceitou a reclamação.

- O veículo regressou à oficina da Ré para eliminação de tais deficiências, tendo posteriormente sido entregue ao Autor, mantendo parte dos vícios anteriormente reclamados e apresentando outros, que identifica.

- O Autor reclamou tais deficiências mais uma vez junto da Ré V… que aceitou a reclamação, tendo o veículo regressado novamente à oficina.

- Porém, ao ser entregue ao Autor, este verificou que o veículo ainda não se encontrava devidamente reparado, tendo aquele comunicado tal circunstância à Ré seguradora, na sequência da qual foi realizada nova peritagem à viatura na oficina da Ré V…, na qual foram detectadas as anomalias referidas pelo autor na petição inicial, mas foram ignoradas outras existentes, tendo, por isso, solicitado à Ré seguradora a realização de uma peritagem definitiva em outra oficina, que na mesma fosse efectuada a reparação dos defeitos apresentados e que durante o período de reparação lhe fosse fornecido um veículo de substituição.

- A Ré Seguradora sustentou que a reclamação deveria ser apresentada junto da Ré V… e caso viessem a ser detectados danos não considerados, deveria ser solicitado um aditamento à peritagem.

- Face à repetida ineficácia das reparações solicitadas à Ré V… e à pouca clareza das peritagens efectuadas pelo perito da Ré Seguradora, o Autor perdeu a confiança no desempenho das Rés e optou por peritar o seu veículo em outra oficina, na qual foi verificado que muitas das peças descritas no relatório de peritagem não tinham sido substituídas, por ainda se encontrarem com lamas, que a alavanca do travão de mão havia sido substituída em momento anterior ao da reparação, a existência de defeitos na reparação e a falta de correspondência na marca de algumas das referências e preços constantes do relatório de peritagem.

 - Encontra-se impedido de circular com a sua viatura desde a data da inunda­ção, o que lhe originou diversos prejuízos cujo ressarcimento peticiona, designada­mente:

- o custo das reparações das deficiências ainda existentes a liquidar poste­riormente;

- a perda de lucros do seu negócio resultante da impossibilidade de utilizar aquele veículo, em montante a liquidar posteriormente;

- a despesa com transportes de alguns produtos necessários ao seu negócio, em montante a liquidar posteriormente;

-  a despesa com aluguer de veículo alternativo, no valor de € 7.000;

- e danos morais no valor de € 3.000.

Regularmente citadas, as Rés contestaram.

A Ré V…, Lda. impugnou a factua­lidade vertida na petição inicial, alegando em síntese:

- Aquando da entrada da viatura na sua oficina alertou a Ré seguradora para a circunstância de o orçamento inicialmente apresentado estar sujeito a altera­ções/aditamentos ao longo do tempo, por o facto de o veículo ter estado submerso durante um longo período de tempo, pelo que os componentes eléctricos e electrónicos poderiam apresentar problemas que só poderiam vir a ser detectados no futuro.

- Após a conclusão dos trabalhos de reparação, a viatura foi entregue e aceite sem reservas pelo perito da segunda Ré e pelo Autor.

- Após a apresentação de novas reclamações, foi realizada nova peritagem, tendo a Ré apresentado um aditamento ao orçamento inicial, que foi aceite pela Ré seguradora, que deu ordem de reparação.

- A viatura foi reparada pela Ré contestante sem vícios, e entregue por esta e mais uma vez aceite sem reservas pelo perito da segunda ré e pelo autor.

- Mais tarde, o Autor queixou-se de novas avarias, tendo a contestante mos­trado disponibilidade para efectuar as reparações que se revelassem necessárias, desde que a segunda ré aceitasse o orçamento e desse ordem de reparação. Porém, tais reclamações apresentadas pelo Autor não foram assumidas pela segunda Ré como resultado da inundação, pelo que a contestante ficou impedida de realizar a reparação.

- Invocou também que as reclamações apresentadas pelo Autor não têm razão de ser, por as reparações efectuadas pela contestante terem sido realizadas sem vícios e em cumprimento do orçamento previamente acordado com a Ré Seguradora.

- Sustenta ainda que o travão de mão foi substituído por si sem qualquer encargo para o Autor e que como este admite ter colocado a viatura numa outra oficina, desconhece a que reparações aquele foi submetido e o modo como foram efectuadas.

Na sua contestação, a Ré “Companhia de Seguros F…, S.A.” reconheceu a existência do seguro invocado pelo Autor, com o capital máximo garan­tido em caso de danos provocados por “fenómenos da natureza” no valor de € 14.156,00 e o valor da franquia de € 500,00.

Alegou ainda, em síntese:

- Mandou vistoriar o veículo para exacta avaliação dos danos, tendo sido apresentado um orçamento no valor de € 7.680,30, sendo que ao orçamento inicial acresceram valores de peças que também teriam de ser aplicadas, pelo que o valor da reparação ascendeu a € 10.347,49, sendo que a Ré “V…, Lda.” garantiu que reporia as partes danificadas no veículo seguro no estado anterior ao da inundação.

- O Autor admite que a Ré pagou todas as despesas inerentes à reparação do veículo, e que o fez directamente à primeira ré, tendo a Ré seguradora igualmente pago todas as despesas de aluguer da viatura com que o Autor circulou desde 31/10/2006 até 29/11/2006, sendo que os atrasos na reparação e as deficiências da mesma não lhe são imputáveis.

- Quanto à reclamação referente aos danos nas molas, entende que a mesma se deve a fadiga proveniente da utilização.

O Autor veio apresentar articulado a fls. 380 e seguintes, peticionando a ampliação do pedido no valor de € 10.621,68, que quantifica como sendo o valor necessário para efectuar a reparação do veículo, liquidando assim essa parte da indemni­zação peticionada

Regularmente notificada, a Ré “V…, Lda.” veio pronunciar-se, impugnando a factualidade invocada pelo Autor em tal articulado e o orçamento por este apresentado.

Por seu turno, a ré “Companhia de Seguros F…, S.A.”, sus­tentou que a peça processual apresentada pelo Autor configura um articulado superve­niente, sendo que os factos nela invocados não são supervenientes nem subjectiva, nem objectivamente, não constituindo um desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo mas sim uma liquidação do pedido genérico formulado na petição inicial, sendo que o autor já dispunha de elementos bastantes para o efeito aquando da apresen­tação daquela.

Mais impugnou parte da factualidade naquele invocada.

O Autor desistiu do pedido formulado quanto aos danos invocados no artigo 66º petição inicial, respeitantes à diminuição do volume de vendas e do lucro da sua actividade, desistência homologada por sentença proferida em acta a fls. 448 e seguin­tes.

Foi admitida a ampliação do pedido requerida pelo Autor.

Veio a ser proferida sentença que julgou a acção nos seguintes termos:

Pelo exposto, julgo a acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência, decido:

A) Absolver a ré “V…, Lda” da instância;

B) Condenar a ré “Companhia de Seguros F…, S.A.” a pagar ao autor a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros) pelos prejuízos resultantes da paralisação do veí­culo com a matrícula …-SQ, entre 30/11/2006 e o início de Janeiro de 2012, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde data da prolação da presente decisão, até efectivo e integral pagamento;

C) Condenar a ré “Companhia de Seguros F…, S.A.” a pagar ao autor a quantia de € 1500,00 (mil e quinhentos euros) correspondente ao custo actualizado da aplicação de fechadura da porta esquerda/frente e limpeza completa com desmontagem interior do veículo com a matrícula …-SQ;

D) Condenar a ré “Companhia de Seguros F…, S.A.” a pagar ao autor a quantia de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados da data da prolação da presente decisão, até efectivo e integral pagamento

E) No mais, absolver a ré “Companhia de Seguros F…, S.A.” do pedido.

A Ré Seguradora interpôs recurso da decisão, tendo o Autor interposto recurso subordinado da mesma, formulando as seguintes conclusões, respectivamente:

A Ré contra-alegou, defendendo a intempestividade das contra-alegações apresentadas pelo Autor e a improcedência do recurso.

1. Do objecto dos recursos

A Ré F… visa, além do mais, com o seu recurso, a reapreciação da matéria de facto, pretendendo a alteração das respostas dadas aos quesitos 13º a 20º, 24º, 25º, 31º a 34º, 36º a 44º, 48º a 50º, 52º, 53º, 57º a 60º e 63º, formulados na base instrutó­ria.

O Autor no recurso subordinado por si interposto pretende também a reapre­ciação da matéria de facto contida nos quesitos formulados na base instrutória sob os n.º 17º, 18º, 24º, 25º. 30º e 32º.

Para a alteração das respostas dadas aos quesitos a Ré invoca os depoimentos testemunhais de...

A Ré identifica os tempos de gravação em que se inicia e finda cada um des­tes depoimentos, transcrevendo as passagens dos mesmos em que fundamenta a modificação pretendida. No entanto, quanto às passagens da gravação que, na sua perspectiva, são fulcrais para inverter o sentido das respostas dadas aos quesitos objecto de impugnação, limita-se a transcrever as mesmas, não as localizando no intervalo temporal do depoimento.

Por sua vez o Autor invoca em defesa da sua posição, do mesmo modo que a Ré, os depoimentos das testemunhas …, transcrevendo excertos dos mesmos, sem, no entanto os localizar na gravação.

Nos termos do art.º 685º-B, n.º 1 e 2, do C. P. Civil, o recorrente que impugne a decisão da matéria de facto em processos onde foi efectuado o seu registo, tem o ónus de, nas alegações, especificar os pontos de facto concretos que considera incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios constantes dos autos ou do registo da prova que considera determinantes da alteração pretendida, indicando com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição, sob pena de rejeição do mesmo.

A especificação dos concretos meios probatórios constantes da gravação deve, pois, ser acompanhada da indicação do local onde na gravação constam aqueles, com referência ao assinalado na acta, nos termos do art. 522º-C, n.º 2, do C. P. Civil.

Deste modo, não basta aos recorrentes atacar a convicção que o julgador for­mou sobre cada uma ou sobre a globalidade das provas para provocar uma alteração da decisão da matéria de facto, mostrando-se necessário que cumpra os ónus de especifica­ção impostos pelos n.º 1 e 2 do art.º 685º-B, do C. P. Civil, devendo ainda proceder a uma análise critica da prova de molde a demonstrar que a decisão proferida sobre cada um dos concretos pontos de facto que pretende ver alterados, não é possível, não é plausível ou não é a mais razoável.

No caso em apreço os Recorrentes, juntando transcrição da parte de todos os depoimentos prestados em audiência de discussão e julgamento, limitaram-se a discor­dar das respostas dadas sem cumprirem o ónus de especi­ficação imposto pelo n.º 2 do art.º 685º-B do C. P. Civil, ou seja, não indicam as passa­gens exactas da gravação em que se funda a sua impugnação, sendo certo que tendo a mesma sido efectuada digital­mente, no sistema H@bilus Media Studio conforme da acta consta, tal era possível, nem faz qualquer análise crítica dos meios de prova que, em seu entender, provocam as alterações por si pretendidas.

Assim, considerando que as alegações dos Recorrentes não dão satisfação às mencionadas exigências legais, nos termos expostos, rejeitam-se ambos os recursos no que se refere à impugnação da matéria de facto.

Por este motivo e, considerando que o objecto dos recursos interpostos é delimi­tado pelas conclusões das respectivas alegações, devem ser apreciadas as seguin­tes questões colocadas pelos Recorrentes:

a) A reparação do veículo em causa insere-se num contrato de empreitada celebrado entre o Autor e a Ré V…, não podendo a Ré F… ser responsabili­zada por um deficiente cumprimento desse contrato por parte da empreiteira?

b) A Ré F… só está obrigada perante o Autor nos termos do contrato de seguro, tendo cumprido todas as prestações que dele decorrem em razão da verifica­ção do sinistro?

c) A Ré F… deve ser condenada a pagar ao Autor € 10.621,68 para pagamento do custo das reparações que ainda é necessário realizar?

Subsidiariamente:

b) O Autor não tem direito a ser indemnizado por prejuízos resultantes da não utilização da viatura na sua actividade comercial, uma vez que desistiu da instân­cia quanto a essa parte do pedido?

c) O Autor não tem direito a ser indemnizado por danos morais?

Ainda, subsidiariamente:

d) Os valores arbitrados a título de indemnização são exagerados?

2. Os factos

3. O Direito aplicável

O Autor e a Ré F… celebraram entre eles um contrato de seguro atra­vés do qual a segunda se responsabilizou pela reparação dos danos do veículo com a matrícula …-SQ, incluindo a cobertura dos danos próprios causados por fenóme­nos da natureza, até ao valor máximo de capital garantido de € 14.156,00.

Não se provou que tenha sido estabelecida qualquer cláusula que regulasse o modo como se operaria essa reparação.

Na sequência de chuvas torrenciais que inundaram a garagem onde aquele veículo se encontrava estacionado, o mesmo ficou submerso, tendo por isso sofrido diversos danos.

Tendo sido accionado o referido contrato de seguro, foi contratada com a Ré Vimoter a reparação do veículo nas suas oficinas.

Se não suscita dúvidas que esse contrato, que teve por objecto a reparação do veículo é um contrato de empreitada - art.º 1207º do C. Civil -, está em discussão se o contraente, na posição de dono da obra, foi o Autor ou a Ré Seguradora.

No que respeita à celebração deste contrato, consta o seguinte da matéria de facto provada:

- O autor optou por reparar o veículo nas oficinas da “V…, Lda.” por esta ser uma distribuidora oficial da Chrysler para o distrito de Leiria.

- No final de Outubro de 2006, a Ré “V…, Lda.” foi contactada pela Ré “F…, S.A.” no sentido de elaborar um orçamento de reparação de uma viatura da marca Chrysler, modelo Voya­ger, matrícula …-SQ que havia estado submersa em água e lamas durante um largo período de tempo.

- Na sequência da peritagem a Ré “V…, Lda.” elaborou e apresentou à Ré “F…, S.A.” o orçamento junto a fls. 65 a 66, cujo teor aqui se dá integralmente por reproduzido.

- O mencionado orçamento foi aceite pela Ré “F…, S.A.”, que deu ordem de reparação da viatura.

- De acordo com tal peritagem, o valor da reparação ascendia à quantia € 9.975, 00, quantia que a Ré Seguradora pagou à Ré V...

Desta descrição resulta que, apesar de ter sido o Autor a escolher a oficina onde deveria ser efectuada a reparação do seu veículo, foi a Ré F… quem solicitou a V… a elaboração de um orçamento da reparação da viatura do Autor e que foi ela quem deu a respectiva ordem de reparação, tendo pago o preço orçamentado, pelo que, sem margem para qualquer dúvida, apurou-se que foi ela que, respeitando a escolha do Autor, contratou com a V… a reparação da viatura daquele.

Mas este contrato de empreitada tem a particularidade da coisa a reparar per­tencer a um terceiro (o Autor) que é o beneficiário da prestação a efectuar pela V… (o empreiteiro).

Quando o beneficiário da prestação contratada é um terceiro não interve­niente no contrato, tanto podemos estar perante uma situação em que o titular do crédito à prestação da reparação do veículo é apenas o promissário dessa prestação (neste caso a Ré F…), não se constituindo na esfera jurídica do terceiro qualquer direito de crédito, o qual é apenas um mero destinatário da prestação - sendo tais contratos apelidados de “contratos com prestação a terceiro” ou de “falsos contratos a favor de terceiro” ou ainda de “contratos a favor de terceiro impróprios” -, em resultado de convenção prevista no art.º 770º, a), do C. Civil; como podemos estar perante um verdadeiro contrato a favor de terceiro, previsto e regulado nos artigos 443º e seg. do C. Civil, sempre que o terceiro fica investido na posição de titular do mesmo direito de crédito do promissário, relativamente à prestação que o beneficia, podendo ambos exigi-lo, embora seja o terceiro que recebe o objecto da prestação  [1].

O enquadramento do caso numa destas duas figuras é missão particularmente espinhosa, principalmente em contratos não reduzidos a escrito, uma vez que é difícil apurar a vontade dos contraentes quanto à posição em que colocam o terceiro benefi­ciado.

Apesar de não resultar directamente da matéria de facto provada o conteúdo do acordado entre a Ré F… e a V… quanto a este aspecto, tendo em conside­ração os comportamentos apurados de ambos os contraentes e do Autor, no que respeita às reclamações sucessivamente apresentadas por este após a entrega do veículo, depreende-se que a vontade comum foi a de considerar o Autor, a par da Ré F…, titular do direito à reparação da viatura, perante a V…, nos termos do contrato de empreitada celebrado pela Ré F...

Na verdade, algumas das reclamações foram efectuadas directamente pelo Autor à V… que as aceitou e, quando o Autor se dirigiu à Ré F…, esta foi bem clara no sentido de, caso não se tratassem de novas deficiências, as reclamações deveriam ser feitas directamente à V…, pelo que o Autor foi sempre encarado e ele próprio assim se considerou, como sendo também titular do direito à reparação do seu veículo pela V...

Perante estes comportamentos das partes na fase da execução do contrato, reveladores da sua vontade negocial, neste aspecto, o contrato de empreitada celebrado entre a Ré F… e a V… deve ser interpretado, nos termos do art.º 237º, n.º 2, do C. Civil, com o sentido do mesmo atribuir ao Autor o direito à prestação da repara­ção do seu veículo, ou, para a hipótese de se entender nada ter sido acordado, nessa matéria, o contrato deve ser integrado com igual sentido, nos termos do art.º 239º do C. Civil, uma vez que essa é a vontade presumível das partes, extraída do seu comporta­mento posterior.

Por isso concorda-se com a sentença recorrida quando qualifica o contrato celebrado entre a Ré F… e a V… como um contrato de empreitada a favor de terceiro  [2].

Com a presente acção, na parte ainda sob recurso, o Autor - o terceiro - pre­tende que a Ré F… - a promissária - o indemnize dos seguintes prejuízos:

- custos da reparação de deficiências que o seu veículo continua a apresentar após as reparações efectuadas pela V… - a promitente -;

- prejuízos resultantes da paralisação do veículo entre 30/11/2006 e o início de Janeiro de 2012;

- danos morais resultantes da reparação do veículo não ter sido efectuada adequada e atempadamente.

Estes prejuízos são imputados pelo Autor a um cumprimento deficiente pela V… da prestação de reparação do veículo a que se obrigou.

Mas neste recurso já só está em discussão a responsabilidade da Ré F… pelo ressarcimento desses prejuízos, uma vez que a Ré V… foi absolvida da instância pela sentença recorrida, sem que essa parte tenha sido objecto de recurso pela Autora.

Neste tipo de contratos a favor de terceiro com função de troca [3], em que a prestação a efectuar pelo promitente a favor de terceiro visa o cumprimento de obriga­ção devida pelo promitente a esse terceiro, existe uma conexão com outra relação jurídica que o antecede e lhe está subjacente, criando um quadro inter-relacional desenhado pela doutrina do seguinte modo [4]:

- relação de cobertura ou de provisão que corresponde à relação entre promissário e promitente, estabelecida pelo contrato a favor de terceiro;

- relação de valuta ou de atribuição que corresponde à relação entre o promissário e o terceiro, da qual resultou a obrigação do primeiro efectuar uma prestação ao segundo, sendo o cumprimento dessa obrigação realizado através do cumprimento pelo promitente do contrato a favor de terceiro;

- relação de execução que corresponde à relação entre o promitente e o ter­ceiro em cumprimento da obrigação assumida por aquele no contrato a favor de terceiro.

Não resultando da relação de valuta que a obrigação do promissário se extin­gue com a mera celebração do contrato a favor do terceiro, se o promitente incumpre ou cumpre defeituosamente a prestação que se obrigou a efectuar ao terceiro, reflexamente a obrigação do promissário para com esse terceiro, assumida na relação de valuta, também não é cumprida, pelo que este pode exigir o cumprimento efectivo quer da obrigação do promitente quer da obrigação do promissário, sendo que o cumprimento de uma delas extingue a outra [5].

Mas, já relativamente aos prejuízos que resultaram para o terceiro do incum­primento ou do cumprimento defeituoso da prestação assumida pelo promitente no contrato a favor de terceiro, se na relação de valuta o terceiro assentiu no cumprimento da prestação do promissário, através do estabelecimento de uma relação de cobertura, mediante a celebração de um contrato a seu favor, só o promitente será responsável pelos prejuízos resultantes do incumprimento ou do cumprimento defeituoso [6]. Na verdade, esses prejuízos resultam de conduta apenas imputável ao promitente, não existindo razões que justifiquem que o promissário também seja responsável pela sua ocorrência perante o terceiro, uma vez que este concordou que o cumprimento da obrigação de valuta fosse efectuado através da prestação a realizar pelo promitente, assumindo os riscos dessa opção.

No presente caso, em que apenas se apurou que o Autor e a Ré F… celebraram entre eles um contrato de seguro, através do qual a segunda se responsabili­zou pela reparação dos danos do veículo com a matrícula …-SQ, incluindo a cobertura “dos danos próprios” causados por “fenómenos da natureza”, até ao valor máximo de capital garantido de € 14.156,00, sem que se tenha provado o estabeleci­mento de qualquer cláusula que regulasse o modo como se operaria essa reparação, não resulta que a obrigação de reparação dos danos sofridos pelo veículo seguro se conside­rava cumprida com a simples celebração de um contrato de empreitada que tivesse por objecto essa reparação. Assumindo a seguradora, em resultado da celebração do contrato de seguro, a responsabilidade pela reparação dos danos sofridos pelo veículo, essa obrigação só pode considerar-se cumprida com a efectiva reparação dos mesmos.

Daí que, tendo-se provado que, após as sucessivas reparações que foi objecto o veículo do Autor, ainda subsistem, como trabalhos de reparação a realizar, a aplicação de fechadura da porta esquerda/frente e limpeza completa com desmontagem interior, é a Ré F…, nos termos do contrato de seguro, responsável por essa reparação.

A sentença recorrida condenou a Ré F… a pagar € 1.500,00, quantia que, num juízo de equidade, a que recorreu com invocação do disposto no art.º 566º, n.º 3, do C. Civil, considerou equivalente ao custo dessas reparações.

Provou-se que a reparação do veículo implica a aplicação de fechadura da porta esquerda/frente e limpeza completa com desmontagem interior, com valores não concretamente apurados.

Dispõe o art.º 566º, n.º 3, do C. Civil, que se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados.

Apesar de não se terem apurado nesta fase da acção os valores dos custos dos trabalhos de reparação por realizar, isso não significa que tal elemento não possa ser averiguado, contemplando a tramitação processual a possibilidade do tribunal efectuar esse apuramento posteriormente - art.º 358º, n.º 2, do C. P. Civil -, devendo entretanto o tribunal condenar no que vier a ser liquidado, nos termos do art.º 609º, n.º 2, do C. P. Civil, com o limite do remanescente disponível do capital seguro que é de € 3.311,95 - € 14.156,00 – (€ 9.975,00 + € 869,05).

Daí que a sentença recorrida deva ser alterada neste sentido.

Já quanto aos prejuízos que resultaram para o Autor da privação do uso daquele veículo, em resultado da demora verificada na sua reparação, assim como aos danos morais daí resultantes, os mesmos apenas podem ser imputáveis à V…, pois, era sobre ela que recaía a obrigação de proceder à reparação do veículo do Autor no prazo contratado. A circunstância de assistir à Ré F… o direito de fiscalizar a realização da obra contratada, nos termos do art.º 1209º do C. Civil, apenas lhe confere a oportunidade desta verificar se ela está a ser realizada sem vícios, não podendo nela intervir. Em primeiro lugar, o direito de fiscalização é um direito e não um dever, e, em segundo lugar, não é um direito de intervenção, dado que não existe qualquer relação de subordinação entre o dono da obra e o empreiteiro, mas um simples direito de observa­ção que lhe permite acompanhar o desenrolar dos trabalhos de realização da obra, sem perturbação da actividade do empreiteiro.

Daí que não seja possível, como fez a sentença recorrida, imputar à Ré F… a responsabilidade pelos prejuízos resultantes do cumprimento defeituoso da prestação do empreiteiro, com fundamento numa suposta, por que não apurada, defi­ciente fiscalização dos trabalhos de reparação.

Não se tendo apurado qualquer comportamento da Ré F… idóneo para lhe poder ser imputável esse cumprimento defeituoso, a mesma só poderia ser responsa­bilizada devido à sua posição de promissária, no quadro contratual complexo acima descrito. Contudo, uma vez que se provou que o Autor não se limitou a dar o seu assentimento a que a reparação do seu veículo fosse efectuada pela V…, tendo sido ele próprio que optou no sentido da reparação ser efectuada nas oficinas desta, por ela ser a distribuidora oficial da Chrysler para o distrito de Leiria, não pode a Ré F… enquanto promissária ser responsabilizada pelo cumprimento defeituoso da prestação contratada a favor de terceiro, uma vez que o Autor ao efectuar essa escolha concordou que a prestação da reparação fosse efectuada pelo promitente, assumindo os riscos de um eventual incumprimento ou cumprimento defeituoso da parte deste.

Por esta razão não pode o Autor exigir da Ré F… a indemnização dos prejuízos que teve com a indisponibilidade do seu veículo automóvel e consequentes danos morais, resultantes do cumprimento defeituoso da obrigação de reparação daquele por parte da V…, devendo a sentença recorrida ser revogada nesta parte.

Nestes termos, devem os recursos interpostos pelo Autor e pela Ré F… serem julgados parcialmente procedentes, alterando-se a sentença recorrida, passando-se a condenar a Ré F… a pagar ao Autor a quantia necessária para se proceder à aplicação de fechadura da porta esquerda/frente e limpeza completa com desmontagem interior do veículo com a matrícula …-SQ, a liquidar posteriormente, absolvendo-se a Ré F… do demais peticionado. 

Decisão

Pelo exposto julgam-se parcialmente procedentes os recursos interpostos pelo Autor e pela Ré Companhia de Seguros F…, S.A., e, em consequência, altera-se a sentença recorrida, passando-se a condenar a Ré Companhia de Seguros F…, S.A., a pagar ao Autor a quantia necessária para se proceder à aplicação de fechadura da porta esquerda/frente e limpeza completa com desmontagem interior do veículo com a matrícula …-SQ, a liquidar posteriormente, com o limite do remanescente disponível do capital seguro que é de € 3.311,95, absolvendo-se a Ré Companhia de Seguros F…, S.A., do demais peticionado.

Custas da acção, na proporção de 92% pelo Autor, sendo 8.%, a título provi­sório, e 8% pela Ré F…, igualmente a título provisório, definindo-se a responsa­bilidade definitiva das custas provisórias na decisão do incidente de liquidação e de acordo com essa decisão

Custas do recurso interposto pelo Autor na mesma proporção.

Custas do recurso interposto pela Ré F… na proporção de 88% pelo Autor, sendo 12%, a título provisório, e 12% pela Ré F…, igualmente a título provisório, definindo-se a responsabilidade definitiva das custas provisórias na decisão do incidente de liquidação e de acordo com essa decisão.

Coimbra, 18 de Novembro de 2014.

Sílvia Pires (Relatora)

Henrique Antunes

Artur Dias

[1] Sobre a distinção entre estas duas figuras, Vaz Serra, in Contratos a favor de terceiro. Contratos de prestação por terceiro, no B.M.J. n.º 51, pág. 45-46, Diogo Leite de Campos, in Contrato a favor de terceiro, pág. 51-53, ed. de 1980, Almedina, Antunes Varela, in Direito das Obrigações, vol. I, pág. 421-422, da 9.ª ed., Almedina, Almeida Costa, in Direito das obrigações, pág. 352, da 12.ª ed., Almedina, e Tiago Azevedo Ramalho, in O princípio da relatividade contratual e o contrato a favor de terceiro, pág. 71-77, ed. de 2013, da Coimbra Editora.

[2] Foi esta também a qualificação efectuada, em situação semelhante, pelo Acórdão do T. R.  L. de 6-12-2012, acessível no site www.dgsi.pt, relatado por Anabela Calafate.

[3] É esta a designação adoptada por Carlos Ferreira de Almeida, in Contratos II, pág. 52, ed. 2007, Almedina

[4] Dieter Medicus, in Tratado de las relaciones obligacionales, vol. I, pág. 353, trad. espanhola de 1995, BOSH, Antunes Varela, na ob. cit., pág. 429 e seg., Carlos Ferreira de Almeida, ob cit, pág. 51, Menezes Leitão, in Direito das obrigações, vol. I, pág. 239, 10ª ed., Almedina, e Tiago Azevedo Ramalho, ob. cit, pág. 23-24.

[5] Neste sentido, Diogo Leite de Campos, ob.cit, pág. 158.

[6] Neste sentido, Diogo Leite de Campos, ob cit., pág. 158.