Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
146/16.3 PCCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRIZIDA MARTINS
Descritores: REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
TIPO SUBJETIVO DE CRIME
Data do Acordão: 09/13/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA (J L CRIMINAL –J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 311.º, N.º 2, AL. A), E Nº 3, AL. B) , DO CPP
Sumário: I - Nos elementos do tipo subjetivo de ilícito incluem-se os que se prendem com o dolo ou a negligência.

II - O dolo é composto por vários elementos, habitualmente designados de forma sintética como “o conhecimento e a vontade de realização do tipo objectivo de ilícito”.

III - Segundo a doutrina tradicional do crime, sufragada por Eduardo Correia, o dolo desdobra-se num elemento intelectual e num elemento volitivo ou emocional, ao passo que para uma nova corrente, defendida por Figueiredo Dias, este elemento emocional constitui um terceiro e autónomo elemento.

IV - O Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, através do acórdão n.º 1/2015 [in Diário da República, 1ª Série, n.º 18, de 27 de janeiro de 2015], fixou jurisprudência no sentido de a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime não poder ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do CPP.

V - Da fundamentação do acórdão uniformizador resulta que os factos integrantes da consciência da ilicitude, enquanto dolo da culpa, têm necessariamente de ser alegados na acusação.

VI - Limitando-se a assistente a alegar, na acusação particular deduzida e em termos de factos relativos ao preenchimento dos elementos subjetivos, que ao dirigir-lhe as palavras mencionadas, o arguido “visou e conseguiu humilhar e vexar a Assistente”, sendo que o mesmo “agiu voluntária e conscientemente, bem sabendo que as afirmações por si proferidas eram suscetíveis de atingir a honra e consideração da Assistente”, verifica-se completa omissão em relação aos elementos integrantes da consciência da ilicitude, o que torna a acusação manifestamente infundada e é causa de rejeição da mesma .

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

I – Relatório.

1. No processo comum com intervenção de juiz singular supra epigrafado, foi proferido despacho, ao abrigo do preceituado no art.º 311.º, n.ºs 2, al. a), e 3, al. b), do Código de Processo Penal, a rejeitar a acusação particular deduzida pela assistente, A... , contra o arguido, B... , imputando-lhe a prática de um crime de injúrias, previsto e punido pelo art.º 181.º, n.º 1, do Código Penal.

2. Desta decisão recorreu a assistente, motivando o recurso com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

1. O presente recurso é interposto do despacho que rejeitou a acusação particular deduzida pela Assistente, porque nula e manifestamente infundada, nos termos do disposto no art.º 311.º, 1, 2 a) e 3 b) do CPP, considerando que foram omitidos elementos constitutivos subjectivos do tipo, maxime a consciência da ilicitude criminal do facto.

2. Entendemos que não assiste razão ao tribunal ora recorrido, não se verificando a ausência de qualquer dos requisitos previstos no art.º 311.º do CPP que conduzam à rejeição da acusação por manifestamente infundada.

3. Seguimos o entendimento defendido pelo Tribunal da Relação de Évora, no Acórdão proferido a 24-02-2015 (Processo nº 1548/13.2TAFAR.E1, disponível em www.dgsi.pt):

 “ (…) Apesar de a acusação particular não fazer qualquer referência à fórmula consagrada na praxis judiciária, “o arguido agiu deliberada livre e conscientemente, bem sabendo ser proibida por lei a sua conduta”, ou outra equivalente, a mesma não respeita ao tipo objetivo ou subjetivo, contrariamente ao que se refere no despacho recorrido, e relativamente aos crimes do chamado direito penal clássico, como sucede no caso presente, a mesma não tem que constar da acusação e da sentença por respeitar à imputabilidade e à consciência da ilicitude, de que cuja verificação positiva em cada caso não cumpre fazer prova, ainda que indireta, por estar a mesma implícita no preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito.

Na verdade, tal como decidimos em acórdão de 05.03.2013, proferido no processo 5689-11.2TDLSB.E1 (acessível em www.dgsi.pt) o “conhecimento da ilicitude” não integra o tipo, não se encontrando abrangido pelo dolo, respeitando antes à culpa. (…) Daí que a consciência da ilicitude enquanto facto psicológico de conteúdo positivo não tenha que ser alegada e provada em cada caso, pelo menos nos chamados “crimes em si” do direito penal clássico onde se insere o crime de injúria aqui em causa – tal como não tem que ser alegada a ilicitude do facto indiciada pelo preenchimento do tipo legal -, contrariamente ao que sucede com os factos que correspondem ao dolo e, eventualmente, a outros elementos subjetivos do tipo, sem prejuízo da alegação e prova dos factos integradores de eventual causa de justificação ou de exclusão da culpa, quando estejam em causa. (…)

Também do ponto de vista processual esta perspetiva se confirma, em nosso ver, pois ao contrário da factualidade que integra os elementos do tipo legal, que deve constar necessariamente da acusação, conforme expresso no art.º 283º nº 3 al. b) do CPP, por imposição dos princípios do acusatório, do contraditório e da vinculação temática ao objeto do processo, estes princípios em nada são postos em causa com a falta de menção da apontada fórmula sacramental positiva (“o arguido agiu livre e conscientemente, bem sabendo ser proibida por lei a sua conduta”) ou equivalente. Na verdade, fora dos casos em que se discuta a realidade negativa correspondente, o tribunal não autonomiza o julgamento sobre factos que pudessem reconduzir-se a uma verificação positiva da imputabilidade e da consciência da ilicitude, pelo menos quando estão em causa crimes que integram o chamado direito penal clássico (…).”

4. A acusação particular deduzida pela Assistente tem todos os elementos necessários e imprescindíveis para assegurar a sujeição do Arguido a julgamento pelos factos constantes da mesma (prática do crime de injúrias).

5. Da mesma consta que o Arguido proferiu as expressões aí referidas com o intuito de humilhar (fazer perder o orgulho e amor-próprio; fazer sentir inferior, desprezível ou sem valor - cfr. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa) e de vexar (causar vergonha; fazer ficar envergonhado, constrangido ou magoado - cfr. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa) a Assistente, tendo a sua conduta sido voluntária (deliberada, intencional, que decorre da livre vontade e que não está sujeita a imposições exteriores - cfr. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa) e consciente, bem sabendo que aquelas afirmações eram susceptíveis de atingir a honra e a consideração da Assistente, o que veio a acontecer.

6. A fórmula “bem sabendo ser proibida por lei a sua conduta” – que não consta da acusação particular deduzida - não respeita ao tipo objetivo ou subjetivo, e relativamente aos crimes do chamado direito penal clássico, como sucede no caso concreto, a mesma não tem que constar da acusação por respeitar à consciência da ilicitude, de que cuja verificação positiva em cada caso não cumpre fazer prova, ainda que indireta, por estar a mesma implícita no preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito.

7. Na acusação particular refere-se que o Arguido proferiu as expressões aí identificadas no intuito de humilhar e vexar a Assistente, bem sabendo que aquelas expressões eram susceptíveis de atingir a honra e consideração da Assistente,

8. Daí se retirando que o Arguido não só conhecia o potencial ofensivo e humilhante das expressões em causa, como também conhecia o desvalor das mesmas.

9. A decisão ora recorrida parte da ausência da afirmação da consciência da ilicitude através de uma fórmula vulgarmente utilizada na prática judiciária, ou seja, da falta de uma imputação expressa.

10. Todavia, os factos pertinentes estão contidos na acusação particular, não se verificando a omissão de qualquer dos requisitos previstos no nº 3 do art.º 283.º do CPP

11. Ao dirigir à Assistente a expressão injuriosa “puta”, o Arguido quis ofender a honra e consideração da Assistente e tinha consciência da censurabilidade penal de tal conduta, pois com tal factualidade resulta integrada a correspondente componente subjectiva do tipo, ao nível da vontade e da representação do ilícito.

12. A acusação particular deduzida pela Assistente descreve factualidade temporal e espacialmente localizada, objectivamente lesiva da honra e consideração da Recorrente, aí se descrevendo com rigor as expressões ofensivas, as circunstâncias em que foram dirigidas à ora Recorrente, bem como qualifica a actuação do Arguido como voluntária e consciente.

13. A inexistência na acusação particular deduzida da expressão “bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei” não desencadeia de modo automático a impunibilidade da conduta de modo a justificar a rejeição da acusação.

14. Na situação descrita na acusação particular, estamos perante a prática de um crime – injúrias - cuja ilicitude é de todos conhecida, segundo as regras da experiência e de convivência social,

15. Não sendo racional admitir a possibilidade de desconhecimento por parte do Arguido de que as expressões por si proferidas constituíam um comportamento censurável e proibido por lei.

16. Face ao exposto, conclui-se que a acusação particular acompanhada pelo Ministério Publico nos termos em que o foi, deveria ter sido recebida, pois ela não é manifestamente infundada por omissão de elementos constitutivos do tipo, máxime a consciência da ilicitude criminal do facto.

17. A decisão de que se recorre violou o disposto nos arts. 311.º e 312.º do CPP, bem como o disposto no art.º 181.º n.º 1 do Código Penal.

Terminou pedindo que no provimento do recurso interposto se determine a revogação do despacho recorrido, devendo substituir-se por outro que receba a acusação particular deduzida, com o acompanhamento promovido pelo Ministério Público nos termos em que o foi, e, com designação de data para julgamento para apreciação da acusação e pedido de indemnização civil deduzidos.

3. O arguido e a Exma. Procuradora-Adjunta na primeira instância responderam ao recurso, opinando no sentido de lhe ser negado provimento, mantendo-se a decisão recorrida, por em síntese essencial conclusiva entenderem que, efectivamente, a acusação particular não indica factos que consubstanciem o elemento subjectivo do crime de injúria que a assistente imputa ao primeiro, o que constitui motivo da decertada rejeição.

4. Remetidos os autos para este Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral, no parecer que emitiu, sufragou da bondade da posição já assumida na primeira instância pelo recorrido Ministério Público, concordando inteiramente com a mesma, acrescentando que a questão, em tempos controversa, se encontra hoje resolvida pelo acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 1/2015, devendo, pois, o recurso ser julgado improcedente.

5. Acatado o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, sem que tenha sido apresentada qualquer resposta a esse parecer, foram colhidos os vistos, após o que o processo foi presente à conferência, de harmonia com o preceituado no art.º 419.º, n.º 3, al. c) do mesmo diploma.

*

II – Fundamentação.

1. Delimitação do objecto do recurso.

Sendo entendimento pacífico que o âmbito dos recursos é delimitado através das conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso [como sucede, nomeadamente, nos casos previstos nos art.ºs 119.º, n.º 1; 123.º, n.º 2, e 410.º, n.º 2, als. a), b) e c), do Código de Processo Penal, e resulta do acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I.ª Série-A, de 28-12-1995], no caso presente a única questão a decidir consiste em saber se a acusação é omissa quanto à descrição dos factos que permitam integrar os elementos subjectivos do crime de injúria, conduzindo tal omissão à rejeição da acusação por ser manifestamente infundada, pressuposto da sua rejeição ao abrigo do art.º 311.º, n.ºs 2, al. a), e 3, al. b), do Código de Processo Penal, diploma a que pertencem os demais preceitos citados sem qualquer menção.

2. Da decisão recorrida.

O despacho recorrido tem o seguinte teor (transcrição):

«A assistente A... deduz, atempadamente, acusação particular contra B... , imputando-lhe a prática de um crime de injúrias, p. e p. pelo art.º 181.º, 1, do Cód. Penal, fundada em factos (ocorrência) que descreve, verificados no dia 02.02.2016, pelas 18:00 horas e aditando aos mesmos que “O arguido com esta conduta – dirigindo-lhe em voz alta e em local público os transcritos insultos – visou e conseguiu humilhar e vexar a assistente, que se sentiu profundamente ofendida na sua honra, consideração e dignidade.

O arguido agiu voluntária e conscientemente, bem sabendo que as afirmações por si proferidas eram susceptíveis de atingir a honra e a consideração da assistente, o que efectivamente aconteceu.

Com a conduta descrita, cometeu o Arguido o crime de injúrias previsto e punível pelo art.º 181.º, 1, do Cód. Penal”.

O Ministério Público acompanhou a acusação particular.

Cumpre apreciar e decidir.

Vejamos o tipo legal de crime de injúria:

“Art.º 181.º do Cód. Penal

1. Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivas da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.

2………………………………………………………………………….................”

São elementos constitutivos deste tipo legal de crime:

- Injuriar outrem;

- Dirigindo-lhe palavras, ofensivas da sua honra ou consideração;

- O dolo, em qualquer das suas formas.

 “Injúria é a manifestação, por qualquer meio, de um conceito ou pensamento que importe ultraje, menoscabo, ou vilipêndio contra alguém, dirigida ao próprio visado. O bem jurídico lesado pela injúria é, prevalentemente, a chamada honra subjectiva, isto é, o sentimento da própria honorabilidade ou respeitabilidade pessoal.”[1] [2]

“Honra «é a essência da personalidade humana, referindo-se, propriamente, à probidade, à rectidão, à lealdade, ao carácter...».

Consideração é «o património de bom nome, de crédito, de confiança que cada um pode ter adquirido ao longo da sua vida, sendo como que o aspecto exterior da honra, já que provém do juízo em que somos tidos pelos outros».

Por outras palavras pode dizer-se que a honra é a dignidade subjectiva, ou seja, o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui. Diz assim respeito ao património pessoal e interno de cada um - o próprio eu.

A consideração será o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, a reputação, a boa fama, a estima, a dignidade objectiva, que é o mesmo que dizer, a forma como a sociedade vê cada cidadão - a opinião pública.”[3]

Como escreve JOSÉ DE FARIA COSTA[4] “...entre nós, BELEZA DOS SANTOS: “a lei não exige, como elemento do tipo criminal, em nenhum dos casos, um dano efectivo do sentimento da honra ou da consideração. Basta, para a existência do crime, o perigo de que aquele dano possa verificar-se.”

Será a factualidade imputada na acusação particular susceptível de preencher os elementos constitutivos do tipo legal de crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181.º, 1, do Cód. Penal? Entendemos que não, porque foram omitidos elementos constitutivos subjectivos do tipo, maxime a consciência da ilicitude criminal do facto.

O tipo legal de crime é conformado pelos elementos constitutivos objectivos e subjectivos. Integram os primeiros os factos concretos naturalísticos imputados aos arguidos e preenchem os segundos o conhecimento e vontade de realização do tipo de crime. Quanto a estes últimos, citando o Professor Doutor FIGUEIREDO DIAS,[5] “O dolo enquanto conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo, e a negligência enquanto violação de um dever de cuidado, são elementos constitutivos do tipo-de-ilícito. Mas o dolo é também e ainda expressão de uma atitude pessoal contrária ou indiferente, e a negligência expressão de uma atitude pessoal descuidada ou leviana, perante o dever-ser jurídico-penal; e nesta parte são elementos constitutivos, respectivamente do tipo-de-culpa doloso e do tipo-de-culpa negligente. É a dupla valoração da ilicitude e da culpa que concorre na completa modelação do dolo e da negligência.”

Assim, só a verificação dos elementos constitutivos objectivos e subjectivos é passível de integrar o preenchimento do tipo legal incriminador. Pelo que é imperioso, porque imprescindível, que constem da acusação, sem os quais não é a mesma fundada, porque insusceptível de suportar a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança ( art.º 283.º, 3 b), do CPP ), não sendo os elementos normativos subjectivos passíveis de serem considerados objectivamente resultantes dos elementos normativos objectivos.

Neste sentido, fixou a seguinte jurisprudência o Acórdão do STJ n.º 1/2015 [publicado no DR Série I, de 27.01.2015]:

«A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.»

Consequentemente, é de rejeitar a referida acusação particular, porque nula e manifestamente infundada (art.º 311.º, 2 a) e 3 b), do CPP).

Em idêntico sentido se pronunciaram, entre outros, os Acs. da Relação de Lisboa, de 30.01.2007, Proc.º n.º 10221/2006 – 5, e de 12.11.2008, Proc. n.º 5736/2008 – 3; da Relação do Porto, de 15.11.98, Proc. n.º 9840867; da Relação de Coimbra, de 01.06.2011, Proc. n.º 150/10.5T3OVR.C1; da Relação de Guimarães, de 07.04.2003, Proc.º n.º 84/03; e da Relação de Évora, de 01.03.2005, Proc.º n.º 2/05 – 1.

Face ao exposto, nos termos do art.º 311.º, 1, 2 a) e 3 b), do Cód. Proc. Penal, rejeita-se a referida acusação particular, porque nula e manifestamente infundada.

Custas pela assistente.

Taxa de justiça: 1 UC (art.ºs 515.º, 1 f), do CPP, e 8.º, 1, do RCP).

Not.»

3. O caso concreto.

3.1. A assistente e ora recorrente deduziu acusação particular contra o arguido (fls. 63/4), imputando-lhe a prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181.º do Código Penal, a qual foi acompanhada pelo Ministério Público nos termos e para os efeitos do art.º 285.º, n.º 4 (fls. 67, sendo que aí fez sobressair a menção segundo a qual “Mais se acrescenta que, com a conduta descrita, o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente com o propósito concretizado de ofender a honra, a consideração e o bom nome da assistente, resultado que representou.

Sabia igualmente o arguido que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.”).

No despacho de saneamento do processo (decisão recorrida), o Exmo. Juiz a quo concluiu que a factualidade vertida nessa acusação não é suficiente para configurar o crime imputado à arguida, por não conter os elementos integrantes do dolo, sendo, pois, manifestamente infundada, razão pela qual a rejeitou nos termos do art.º 311.º, n.ºs 2, al. a), e 3, al. b).

Em contraposição, no recurso defende a recorrente que a acusação particular descreve que o arguido tinha consciência que os seus actos eram aptos a ofender a honra da assistente, que agiu com essa intenção e que concretizou esse propósito, sendo que os factos relativos à consciência da ilicitude não carecem de ser alegados relativamente aos crimes cuja ilicitude é conhecida de todos, como é o caso da injúria.

Argumenta, em síntese, que a acusação particular por si deduzida, ao imputar à arguida a prática de factos objectivamente injuriosos e o intuito de praticar esse crime, contém todos os elementos elencados no n.º 3 do art.º 283.º, pedindo, assim, a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que receba tal acusação.

Vejamos se lhe assiste razão (seguiremos, por pertinente e com a devida vénia, o vertido no aresto do TRG, proferido no âmbito do processo n.º 430/15.3 GEGMR.G1, de 19-06-2017, acessível em www.dgsi.pt/jtrg).

3.2. A acusação, sendo formalmente a manifestação da pretensão de que o arguido seja submetido a julgamento pela prática de determinado crime e por ele condenado, constitui o pressuposto indispensável da fase de julgamento, por ela se definindo e fixando o seu objecto [cfr. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, 2.ª Edição, Revista e actualizada, pág. 113].

De acordo com o art.º 283.º, n.º 3, al. b), aplicável à acusação particular por força do n.º 3 do art.º 285.º, a acusação contém, sob pena de nulidade, “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada…”.

Decorre a imposição do princípio do acusatório e como forma de assegurar ao arguido todas as garantias de defesa, em respeito pelo art.º 32.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa.

O atual modelo, vigente desde o Código de Processo Penal de 1987, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro, estrutura-se no referido princípio do acusatório, embora mitigado com uma vertente investigatória, tendo, nessa parte, a respectiva autorização legislativa sido concedida com o sentido e extensão de estabelecimento da máxima acusatoriedade do processo penal, temperada com o princípio da investigação judicial [vd. art.º 2.º, n.º 2, 4), da Lei n.º 43/86, de 26 de setembro (autorização legislativa em matéria de processo penal)].

Um dos traços estruturais do princípio acusatório consiste na clara distinção entre, por um lado, a entidade que tem a seu cargo uma fase investigatória e, se for o caso, sustenta uma acusação, e, por outro lado, uma entidade distinta que julga, em audiência pública e contraditória, os factos objecto dessa acusação.

Por sua vez, o art.º 311.º, n.º 2, al. a), permite ao juiz, quando o processo é remetido para julgamento sem ter havido instrução, “rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada”.

A reforma processual penal operada pela Lei n.º 59/98 de 25 de agosto, introduziu determinadas alterações que vieram reforçar o referido modelo, nomeadamente explicitando as funções dos vários sujeitos processuais, afastando várias dúvidas e divergências jurisprudenciais, como sucedeu com o aditamento do n.º 3 do art.º 311.º, em cujos termos:

“…

3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:

a) Quando não contenha a identificação do arguido;

b) Quando não contenha a narração dos factos;

c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou

d) Se os factos não constituírem crime.

…”.

Ao prever-se, de modo claro e taxativo, as situações que podem levar à conclusão de se estar perante uma acusação manifestamente infundada, pressuposto da sua rejeição, limitaram-se os poderes do juiz sobre a acusação, antes do julgamento, confinando-os, no ponto de vista material, à valoração jurídica dos factos tidos como suficientemente indiciados pelo acusador. Mas, ainda assim, com uma margem de actuação bastante restrita, uma vez que apenas a pode rejeitar quando for manifestamente infundada, ou seja, quando for inequívoco e incontroverso que os factos nela descritos não constituem crime, pelo que, em face dos seus próprios termos, não tem condições de viabilidade, de nada servindo recebê-la e fazer prosseguir o processo, sujeitando o arguido inutilmente a julgamento, quando ela está votada ao insucesso.

3.3. Na situação em apreço, remetido o processo para julgamento, sem ter havido instrução, o Exmo. Juiz a quo, ao proferir o despacho a que alude o elencado art.º 311.º, rejeitou a acusação particular, na qual a assistente imputa ao arguido a prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181.º do Código Penal, considerando-a nula e manifestamente infundada, por entender que da mesma não constam os factos integrantes dos elementos subjectivos desse tipo de crime.

Em causa está, pois, a previsão da al. d) – embora, é verdade, no seu despacho o Mmo Juiz refira a “al. b)” - do n.º 3 do art.º 311º, ou seja, os factos descritos na acusação não constituírem crime, o que se traduz numa das quatro situações em que a mesma é manifestamente infundada e, por isso, o juiz pode rejeitá-la sem violar o princípio do acusatório.

Vendo-se a acusação particular constata-se que, em termos de descrição de factos, dela apenas consta que, nas circunstâncias de tempo e lugar mais aí descritas, o arguido, dirigindo-se à Assistente (e uma acompanhante), disse: “Suas putas. Vocês vão foder para os quartos ao lado do minipreço.” Com tais palavras, o arguido “… visou e conseguiu humilhar e vexar a Assistente, que se sentiu profundamente ofendida na sua honra, consideração e dignidade”, sendo que “O Arguido agiu voluntária e conscientemente, bem sabendo que as afirmações por si proferidas eram susceptíveis de atingir a honra e a consideração da Assistente, o que efectivamente aconteceu.”

Como mais refere o aresto que vimos citando, é sabido que nos elementos do tipo subjectivo de ilícito incluem-se os que se prendem com o dolo ou a negligência, dispondo o art.º 13.º do Código Penal que “só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”.

O dolo, única modalidade de culpa de que pode revestir o crime em questão, é composto por vários elementos, habitualmente designados de forma sintética como “o conhecimento e a vontade de realização do tipo objectivo de ilícito” (cfr. art.º 14.º do Código Penal).

Segundo a doutrina tradicional do crime, sufragada pelo Mestre Eduardo Correia, o dolo desdobra-se num elemento intelectual e num elemento volitivo ou emocional, ao passo que para uma nova corrente, defendida por outro distinto Mestre, Figueiredo Dias, este elemento emocional constitui um terceiro e autónomo elemento.

O elemento intelectual traduz-se no conhecimento (enquanto previsão ou representação), pelo agente, das circunstâncias do facto, ou seja, dos elementos materiais constitutivos do tipo objectivo do ilícito, incluindo eventuais circunstâncias modificativas agravantes.

Relativamente a elementos normativos do tipo [caso, nomeadamente, do carácter “alheio” da coisa nos crimes contra o património; a qualidade de “funcionário” nos crimes cometidos no exercício de funções públicas e, das noções de “documento”, “documento autêntico” e “vale do correio”, “letra de câmbio” e “cheque” nos crimes de falsificação], o conhecimento que se exige é apenas que a representação do agente, ao nível próprio das suas representações, corresponda, no essencial, ao conteúdo da valoração jurídica, cumprindo assim a função de orientar o agente para a ilicitude do facto [apud Figueiredo Dias, in Direito Penal - Parte Geral, Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime, Tomo 1.º, Coimbra Editora, 2.ª edição, 2007, págs. 352/3].

Há, no entanto, casos em que o uso de expressões jurídicas mais elaboradas impõe uma maior exigência de conhecimento, como sucede por exemplo no direito penal secundário, e outros em que, ao contrário, apenas se exige ao agente um conhecimento dos pressupostos materiais da valoração, como sucede em relação a noções como “ascendente”, “descendente”, “bons costumes”, “ilegitimidade”, “dever de garante”, etc. [Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 354].

Ou seja, o que o elemento intelectual exige é o conhecimento do sentido ou significado correspondente ao tipo de ilícito dos diversos elementos materiais e normativos que o compõem.

Por seu lado, o elemento volitivo do dolo consiste na especial direcção da vontade do agente na realização do facto típico, depois de ter representado (ou previsto) as circunstâncias ou elementos do tipo objectivo do ilícito. Em função da diversidade dessa atitude, são diversas as espécies de dolo previstas nos vários números do art.º 13.º do Código Penal: dolo directo (em que o agente tem a intenção de realizar o facto criminoso), o dolo necessário (quando o agente não quer o facto, mas prevê-o como consequência necessária da sua conduta) e o dolo eventual (quando o agente prevê o facto como consequência possível, conformando-se com o resultado).

Para a posição tradicional defendida por Eduardo Correia, o elemento volitivo não se confunde com o aspecto psicológico, traduzido num simples acto de volição, em que o agente quer praticar o facto (naturalístico), tendo representado todos os seus elementos. O que caracteriza o dolo é a vontade do agente revelar a sua personalidade contrária ao direito, ou seja, a sua determinação em sobrepor os seus próprios sentimentos e interesses aos valores tutelados pelo direito criminal. Daí que, para esta posição, o dolo do tipo legal de crime contivesse já o chamado elemento emocional, traduzido na consciência, por parte do agente, de que realizava um tipo objectivo de ilícito e que tal supunha a sobreposição dos seus interesses egoístas aos valores tutelados pela lei.

Já a posição defendida por Figueiredo Dias distingue entre dolo do tipo (de ilícito) e o dolo enquanto pertencente ao tipo de culpa. Segundo esta concepção, «o dolo não pode esgotar-se no tipo de ilícito (por consequência, não é igual ao dolo do tipo), mas exige do agente um qualquer momento emocional que se adiciona ao elemento intelectual e volitivo contidos no “conhecimento e vontade de realização”. (…); antes se torna indispensável um elemento que já não pertence ao tipo de ilícito, mas à culpa ou ao tipo de culpa. Com esse elemento se depara quando se atente em que a punição por facto doloso só se justifica quando o agente revele no facto uma posição ou uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal» [ob. cit., pág. 350], ou seja, uma qualquer posição ou atitude de contrariedade ou indiferença face às proibições ou imposições jurídicas, revelada pelo agente no facto e que justifica a punição a título de dolo.

Assim, em resumo, de acordo com os ensinamentos de Figueiredo Dias [ob. cit., pág. 529 e ss.], a culpa jurídico-penal revela-se através do tipo de culpa doloso e do tipo de culpa negligente, verificando-se o primeiro quando, perante um ilícito típico doloso, se comprova que o seu cometimento deve imputar-se a uma atitude íntima do agente contrária ou indiferente ao Direito e às suas normas.

Esta atitude íntima, de sobreposição dos interesses do agente do facto ao desvalor do ilícito pressupõe que este, para além de representar e querer a realização do tipo objectivo (dolo do tipo), actue também com consciência do ilícito isto é, representando que o facto era proibido pelo Direito.

A consciência da ilicitude é também momento constitutivo do dolo (não do tipo de ilícito mas do tipo de culpa), acrescendo, como seu momento emocional, ao conhecimento de todas as circunstâncias do facto (elemento intelectual) e à vontade de realizar o facto típico (elemento volitivo), que são elementos do dolo do tipo, traduzindo-se na indiferença ou oposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma (tipo de culpa doloso).

A acusação tem de descrever os elementos em que se analisa o dolo, ou seja: o conhecimento (ou representação ou, ainda, consciência em sentido psicológico) de todas as circunstâncias do facto, de todos os elementos descritivos e normativos do tipo objectivo do ilícito; a intenção de realizar o facto, se se tratar de dolo directo, ou a previsão do resultado danoso ou da criação de perigo (nos crimes desta natureza) como consequência necessária da sua conduta (tratando-se de dolo necessário), ou ainda a previsão desse resultado ou da criação desse perigo como consequência possível da mesma conduta, conformando-se o agente com a realização do evento (se se tratar de dolo eventual).

A esses elementos acresce o referido elemento emocional, traduzido na atitude de indiferença, contrariedade ou sobreposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma e fazendo parte, como vimos, do tipo de culpa doloso.

Este elemento emocional é dado através da consciência da ilicitude e integra a forma de aparecimento mais perfeita do delito doloso. Daí que só possa afirmar-se que o agente actuou dolosamente quando, nomeadamente, esteja assente que o mesmo actuou com conhecimento ou consciência do carácter ilícito e criminalmente punível da sua conduta.

Todos esses elementos, que constituem os elementos subjectivos do crime, são habitualmente expressos na acusação através da utilização de uma fórmula pela qual se imputa ao agente ter agido de forma livre (isto é, podendo agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou dever-ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude).

A questão de saber se, perante a omissão total ou parcial, na acusação, de elementos constitutivos do tipo subjectivo do ilícito, nomeadamente do dolo, o tribunal do julgamento pode, por recurso ao art.º 358.º do Código de Processo Penal, integrar os elementos em falta, dividiu a jurisprudência, tendo o Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, através do acórdão n.º 1/2015 [in Diário da República, 1ª Série, n.º 18, de 27 de janeiro de 2015], acabado por fixar a seguinte jurisprudência uniformizadora: “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e da vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.”

A oposição de julgados verificou-se entre dois acórdãos que versaram precisamente sobre a falta de descrição na acusação particular dos elementos subjetivos do crime de injúria, incluindo a consciência da ilicitude.

A propósito deste elemento, reconhecendo que modernamente o problema se coloca de forma diferente do que era usual colocar-se, o acórdão uniformizador refere o seguinte (no ponto 10.2.3.1):

«O conhecimento da proibição legal, que não é exatamente equivalente a “consciência da ilicitude” será de exigir em certos casos em que a relevância axiológica de certos comportamentos é muito pouco significativa ou não está enraizada nas práticas sociais e em que, portanto, o conhecimento dos elementos do tipo e a sua realização voluntária e consciente não é suficiente para orientar o agente de acordo com o desvalor comportado pelo tipo de ilícito. «Por isso, o desconhecimento desta proibição impede o conhecimento total do substrato de valoração e determina uma insuficiente orientação da consciência ética do agente para o problema da ilicitude. Por isso, em suma, neste campo o conhecimento da proibição é requerido para a afirmação do dolo do tipo […]» FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., pp. 363/364).

A necessidade de tal exigência faz-se sentir sobretudo a nível do direito contraordenacional, do direito penal secundário, relativamente a certas incriminações de menor relevância axiológica, mas também a nível de algumas incriminações do direito penal de justiça, principalmente no que toca à proteção de bens jurídicos cuja consciência se não encontra ainda suficientemente solidificada na comunidade social. Então, faz sentido exigir o conhecimento da proibição como forma de realização do dolo do tipo.

Na generalidade dos casos, porém, o sentido ou significação da ilicitude do facto promana da realização pelo agente da factualidade típica, agindo com o dolo requerido pelo tipo. Na verdade, em crimes como o de homicídio, ofensa à integridade física, furto, injúrias, pôr a questão de saber se o agente, que atuou conscientemente, representando todas as circunstâncias do facto, e querendo, mesmo assim, a sua realização, atuou ou não com conhecimento da proibição legal, isto é, se sabia que matar, agredir fisicamente uma pessoa, subtrair coisa alheia para dela se apropriar, ofender a honra de alguém, era proibido legalmente, seria o mesmo que questionar se ele efectivamente vivia neste mundo ou se não seria um extraterrestre acabado de aterrar neste planeta, como no filme de Steven Spielberg. (…)

Quanto à consciência da ilicitude, é evidente que ela é uma exigência da atuação dolosa do agente na realização do ilícito típico. Porém, a sua compreensão dogmática coloca-se a um outro nível e tem a ver com a questão da relevância do erro sobre a ilicitude, contemplada no art.º 17.º do CP. O erro sobre a ilicitude não exclui o dolo, ao contrário do erro sobre a factualidade típica, na qual se pode incluir, em certas circunstâncias, como as já referidas, o conhecimento sobre proibições legais. Fica, porém, ressalvada, quanto a este tipo de erro, a punibilidade da negligência nos termos gerais (art.º 16.º). O erro sobre a ilicitude exclui a culpa, se o erro não for censurável ao agente (sendo uma causa de exclusão da culpa), mas faz persistir o dolo, no caso de o erro ser censurável. Daí que o facto praticado sem consciência da ilicitude seja equiparável ao praticado com essa consciência, desde que não possa afastar-se a censurabilidade de tal erro.

Escreve FIGUEIREDO DIAS, que a razão de ser da diferença entre o regime do erro sobre proibições, cujo conhecimento seja razoavelmente indispensável para o agente tomar conhecimento da ilicitude (art.º 16.º), conduzindo à exclusão do dolo do tipo, e o erro sobre o carácter ilícito do facto (art.º 17.º), fundamentador do dolo da culpa, está em que «neste último caso, o erro não radica ao nível da consciência psicológica (ou consciência intencional […]), mas ao nível da própria consciência ética (ou consciência dos valores (…), revelando a falta de sintonia com a ordem dos valores ou dos bens jurídicos que ao direito penal cumpre proteger», ao passo que, no primeiro caso, trata-se da «falta de conhecimento necessário a uma correta orientação da consciência ética do agente para o desvalor do ilícito [Direito Penal, cit., pp. 356 e ss. e 531 e ss.]

Ainda de acordo com o mesmo Mestre, noutra passagem da dita obra, o que se visa com a exigência do conhecimento, representação ou consciência (psicológica ou intencional) de todas as circunstâncias do facto realizador de um tipo de ilícito objectivo, é que o agente conheça tudo quanto é necessário a uma correta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à ação intentada, para o seu carácter ilícito; porque tudo isso é indispensável para se poder afirmar que o agente detém, ao nível da sua consciência intencional ou psicológica, o conhecimento necessário para que a sua consciência ética, ou dos valores, se ponha e resolva correctamente o problema da ilicitude do comportamento (sublinhados nossos) [ob. cit., pág. 351].

E, continuando:

«Em conclusão: a acusação, enquanto delimitadora do objeto do processo, tem de conter os aspetos que configuram os elementos subjetivos do crime, nomeadamente os que caracterizam o dolo, quer o dolo do tipo, quer o dolo do tipo de culpa no sentido referido, englobando a consciência ética ou a consciência dos valores e a atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso; o conhecimento ou representação de todas as circunstâncias do facto, tanto as de carácter descritivo, como as de cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias, ou, na falta de intenção, a representação do evento como consequência necessária (dolo necessário) ou a representação desse evento como possível, conformando-se o agente com a sua produção (dolo eventual), atuando, assim, conscientemente contra o direito.

O problema da relevância ou pouco significativa relevância axiológica da conduta, aflorado no acórdão recorrido, tem relevo, como vimos atrás, em sede de conhecimento da proibição, ou seja, dos elementos do tipo legal, quando seja razoavelmente de exigir o seu conhecimento para uma correta orientação da consciência ética do agente no sentido do desvalor do facto.»

Também no ponto 11 da fundamentação do acórdão se fez constar o seguinte, sendo igualmente nossos os sublinhados:

«Conexionado com o problema anterior, coloca-se finalmente a questão de saber se a falta, na acusação, de todos ou de alguns dos elementos caracterizadores do tipo subjetivo do ilícito, mais propriamente, do dolo (englobando o dolo da culpa, no sentido atrás referido), pode ser integrado no julgamento por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do CPP.

Tal equivalerá a considerar essa integração como consubstanciando uma alteração não substancial dos factos.

11.1. Já vimos que esses elementos têm de constar obrigatoriamente da acusação, implicando a sua falta a nulidade do libelo (art. 283.º, n.º 3, alínea b) do CPP).

Por conseguinte, tendo o processo sido despachado para julgamento, sem ter passado pela instrução, o respetivo juiz (presidente) deveria rejeitar a acusação, não só por a mesma ser nula, nos moldes referidos, mas também por ser manifestamente infundada, nos termos do art. 311.º, n.ºs 2, alínea a) e 3, alínea b) do CPP – não conter a narração dos factos.

Claro que uma tal visão implica que os factos em falta na descrição constante da acusação (pressuposto que ela contém uma descrição relativa a outros factos) são essenciais, imprescindíveis, e o que falta corresponde à falta de narração a que se refere o normativo referido. Ou seja: a exigida narração dos factos é a de todos os factos constitutivos do tipo legal de crime, sejam eles pertencentes ao tipo objetivo do ilícito, sejam ao tipo subjetivo e ainda, naturalmente, na sequência do que temos vindo a expor, os elementos referentes ao tipo de culpa. A factualidade relevante, como factualidade típica, portadora de um sentido de ilicitude específico, só tem essa dimensão quando abarque a totalidade dos seus elementos constitutivos. Não existem puros factos não valorados, como vimos, a propósito, nomeadamente, das teorias do objeto do processo, e a valoração especifica que aqui se reclama, consonante com um tipo de ilícito, só se alcança com a imputação do facto ao agente, fazendo apelo à representação do facto típico, na totalidade das suas circunstâncias, à sua liberdade de decisão, como pressuposto de toda a culpa, e, envolvendo a consciência ética ou dos valores, à posição que tomou, do ponto de vista da sua determinação pelo facto. Sem isso, não está definida a conduta típica, ilícita e culposa.»

Da leitura dos transcritos segmentos da fundamentação do acórdão uniformizador, mormente daqueles que foram sublinhados, parece claro que, contrariamente ao defendido pela recorrente, os factos integrantes da consciência da ilicitude, enquanto dolo da culpa, têm necessariamente de ser alegados na acusação.

Neste sentido se pronunciaram, nomeadamente, os acórdãos desta Relação de Coimbra de 02-03-2016 [proferido no processo n.º 2572/10.2TALRA-C2, disponível em http://www.dgsi.pt.] e da Relação de Guimarães de 21-11-2016 [proferido no processo n.º 2644/09.6TABRG-G1].

Daí que também não se sufrague o entendimento expendido no acórdão da Relação do Porto de 26-04-2017 [proferido no processo n.º 8473/16.3T9PRT.P1, disponível em http://www.dgsi.pt.], no sentido de que a jurisprudência fixada constante do acórdão n.º 1/2015, não abrange a consciência da ilicitude, como causa excluidora da culpa.

Com efeito, parece-nos que da fundamentação desse aresto uniformizador parece resultar claro que sendo a consciência da ilicitude, como já referimos, uma exigência da atuação dolosa do agente na realização do facto típico, acrescendo, como elemento emocional, ao conhecimento e vontade de realizar o facto típico (elementos do dolo do tipo), traduzindo-se na indiferença ou oposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma (tipo de culpa doloso), não pode deixar de constar da acusação.

Assim, diferentemente do sustentado pela recorrente, a alegação de que a arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal não é inócua e desnecessária, não passando de um protocolo ou fórmula pré-determinada acolhida pela prática judiciária, sem qualquer valor funcional. Contrariamente, a alegação da consciência da ilicitude, seja com a utilização daquela fórmula ou através da descrição mais objectiva desse facto da vida interior, corresponde à necessidade de descrever um dos elementos do tipo subjectivo, traduzido no dolo da culpa, o qual, segundo as modernas concepções dogmáticas da teoria do crime, defendidas entre nós por Figueiredo Dias, constitui uma categoria autónoma, relativamente ao dolo do tipo, ao passo que na concepção tradicional não se distinguia entre os elementos do tipo subjectivo e os elementos do tipo de culpa.

3.4. Na acusação particular deduzida nos autos, a assistente limita-se a alegar, em termos de factos relativos ao preenchimento dos elementos subjetivos, que ao dirigir-lhe as palavras mencionadas, o arguido “visou e conseguiu humilhar e vexar a Assistente”, sendo que o mesmo “agiu voluntária e conscientemente, bem sabendo que as afirmações por si proferidas eram susceptíveis de atingir a honra e consideração da Assistente”.

Tal articulação apenas contém factos que integram o elemento volitivo do dolo (directo) de injúria, traduzido na vontade do agente de praticar o facto.

Em relação ao elemento intelectual do dolo, também sobressai o mesmo da alegação segundo a qual o arguido agiu de forma consciente, ou seja, sabendo o que estava a fazer, com conhecimento das circunstâncias da factualidade típica (elementos integrantes do tipo), contido na alegação de que pretendeu atingir a Assistente na sua honra e consideração, isto é, no pressuposto lógico e necessário de que tinha conhecimento do potencial ofensivo das palavras que proferiu, pois quem pretende deliberadamente ofender outrem na sua honra com determinadas palavras, conhece e pressupõe necessariamente o potencial ofensivo das mesmas.

Já porém em relação aos elementos integrantes da consciência da ilicitude (elemento emocional), enquanto tipo de culpa que supra ficou caracterizado, habitualmente traduzida pela expressão de que “o arguido atuou sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal”, ou por qualquer outra que comporte o respetivo conteúdo, a acusação omite toda e qualquer referência, o que, como vimos, não pode suceder.

Como é sabido, o dolo é um conceito jurídico que tem de ser preenchido por factos.

Embora, a nível probatório, o dolo, enquanto facto interno, se possa deduzir dos factos externos, objectivos, tal não dispensa que tenha de constar da acusação, sob pena de nunca estar preenchido o tipo de crime pelo qual se pretende levar o arguido a julgamento.

Com efeito, há que destrinçar entre a alegação de factos pertinentes (neste caso relativos ao elemento subjectivo) e a respectiva prova, ou seja, distinguir, por um lado, o que é facto concreto a provar (sendo imprescindível a sua alegação) e, por outro, quais são as provas desse facto concreto (o que interessa para a fundamentação da decisão da matéria de facto).

O facto de o dolo poder ser provado (e, portanto, inferir-se) com recurso a presunções naturais ou com recurso às regras da vida não significa que fica prescindida a alegação dos factos respectivos. Uma coisa é a presunção do dolo, absolutamente inadmissível, e outra coisa completamente diferente e aceitável, é a necessidade de o juiz comprovar a existência do dolo através de presunções naturais (não jurídicas) ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral ou às chamadas máximas da vida e regras da experiência.

A este propósito, consta também da fundamentação do referido acórdão uniformizador n.º 1/2015 que «De forma alguma será admissível que os elementos do dolo, quando não descritos na acusação, possam ser deduzidos por extrapolação dos factos objetivos, com «recurso à lógica, à racionalidade e à normalidade dos comportamentos, de onde se extraem conclusões suportadas pelas regras da experiência comum» (Acórdão recorrido).

Tal equivaleria a conceptualizar o dolo como emanação da própria factualidade objetiva, ou como inerente a essa factualidade, um dolus in re ipsa, que o mesmo Autor que se vem citando repudia vivamente como ultrapassado, nos moldes das antigas “presunções do dolo”. Isto, porém, não é impeditivo de «o juiz comprovar a existência do dolo através de presunções naturais (não jurídicas) ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral ou às chamadas máximas da vida e regras da experiência» (FIGUEIREDO DIAS, «Ónus de Alegar e de Provar em Processo Penal?», Revista de Legislação e Jurisprudência n.º 3474. P. 142).»

3.5. Por outro lado, de acordo a mencionada jurisprudência fixada por esse aresto, a omissão na acusação da descrição de algum elemento do tipo subjectivo de ilícito, onde se inclui a consciência da ilicitude, com a consequente absolvição, não pode ser integrada em julgamento com recurso ao mecanismo do art.º 358.º, n.º 1.

Refira-se que essa jurisprudência não tem exclusivamente por objecto a falta absoluta, na acusação, da descrição do tipo subjectivo do crime imputado, abrangendo a omissão de qualquer elemento dele constitutivo, conclusão que resulta da leitura dos segmentos da fundamentação supra transcritos, bem como da utilização, no texto da jurisprudência fixada, da expressão “a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem (…)”.

Como mais ainda se exarou no Acórdão que vimos citando, «Embora a solução assim encontrada seja radical e de consequências relevantes em termos de prevenção geral e especial, conforme refere o voto de vencido lavrado nesse aresto, que defende a aplicação do art.º 358.º nos casos em que há uma mera deficiência (e já não uma absoluta omissão) na alegação dos elementos subjetivos, o certo é que os argumentos relativos a esse alargamento da impunidade e à manifesta desproporção entre o vício detectado e a sua consequência não são novos em relação à ponderação então feita, não existindo razões nos levem a divergir dela nos termos do art.º 445.º, n.º 3.»

Concluindo-se, assim, que a acusação particular deduzida nos autos não contém a descrição dos factos integrantes da totalidade dos elementos subjetivos do tipo, necessária a verificação do crime imputado ao arguido, e que, por outro lado, tais elementos em falta não poderão vir a ser aditados em julgamento, não restava outra solução ao Exmo. Juiz a quo senão considerá-la como manifestamente infundada, por os factos nela descritos não constituíram crime, e, como tal, rejeitá-la ao abrigo do disposto nos art.ºs 283.º, n.º 3, al. b), e 311º, n.ºs 2, al. a), e 3, al. d).

Em conclusão, nenhuma censura merece o despacho recorrido, devendo ser confirmado, por não ter violado qualquer dos preceitos legais invocados pela recorrente.

III – Dispositivo.

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso interposto pela assistente A... , confirmando o despacho recorrido.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quantia correspondente a três unidades de conta (art.ºs 515.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último diploma).

*

Coimbra, 13 de Setembro de 2017

(Brizida Martins – relator)

(Orlando Gonçalves – adjunto)


[1] Vd. NELSON HUNGRIA citado por LEAL HENRIQUES e SIMAS SANTOS, in “Código Penal de 1982” 1986, Ed. Rei dos Livros, Vol. II, pág. 203.
[2] No mesmo sentido, vd. JOSÉ DE FARIA COSTA, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 629.
[3] Vd. LEAL HENRIQUES e SIMAS SANTOS, in obra citada, pág. 196.
[4] Obra citada, pág. 604.
[5] In “Jornadas de Direito Criminal”, CEJ, 1983, págs. 57 e 58.