Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1971/18.6T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: AÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS
HERDEIROS
CABEÇA DE CASAL
CABEÇA DE CASAL DE FACTO
Data do Acordão: 04/08/2019
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO LOCAL CÍVEL DE LEIRIA – JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 1014º E SEGS. DO CPC; 2080º E 2084º DO C. CIVIL.
Sumário: I – A inexistência de inventário para partilha de heranças não obsta a que haja cabeça de casal (nomeadamente, designado por acordo dos herdeiros, como foi o caso – cfr. artº 2084º do CC) que, integrando a figura do cabeça de casal de facto, administre os bens da herança e que, enquanto tal, já que administra bens alheios, está obrigado a prestar contas a quem tenha legitimidade para exigi-las, como será o caso de um herdeiro.

II - Tem sido entendimento da doutrina que a ação para prestação de contas do “cabeça-de-casal de facto” segue a tramitação geral plasmada no art. 1014º e seguintes do CPC, enquanto que a ação para prestação de contas do “cabeça-de-casal investido” aplica-se o disposto no art. 1019º do CPC, ou seja, está dependente do processo de inventário, no qual foi nomeado, o que significa que corre por apenso a este processo - cfr. art. 211º/2 do CPC (veja- se, neste sentido, Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Volume, III, pp. 55/56/57).

Decisão Texto Integral:




            Uma vez que, ponderada a questão suscitada no presente recurso, se afigura ser simples a respectiva resolução, passa-se a proferir decisão sumária (Art.º 656º, 652º n.º 1, al c), ambos do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26/06, doravante designado com a sigla NCPC, para o distinguir daquele que o precedeu e que se passará a referir como CPC).
I - Relatório:
A) – 1) - Por escritura de habilitação notarial de 1/8/2014, A... e sua irmã, F..., foram habilitados como únicos herdeiros dos pais de ambos, M... e B..., falecidos, respectivamente, em 7/1/2014 e em 18/6/2014;
2) - Em transacção efectuada em 2/9/2015 nos autos de procedimento cautelar n° ..., e homologada por sentença com a mesma data, os aludidos A... e F... acordaram, entre o mais, que esta última, a partir daquela data, assumia as funções de cabeça de casal relativamente às heranças abertas por óbitos de M... e de B...


3) – A... instaurou em 26/5/2018, no Juízo Local Cível de Leiria, contra a sua irmã, F..., acção de prestação de contas, pedindo que a Ré, que administra, desde Setembro de 2015, os bens que fazem parte das heranças deixadas pelos pais de ambos, de quem são os únicos universais herdeiros, preste contas  dessa sua administração, ao abrigo do disposto no artº 2093º, nº 1, do CC e 941º e seguintes do (novo) CPC.
Juntou certidões da escritura de habilitação, da transacção e respectiva sentença homologatória, aludidas supra;
4) - A Ré, contestando, veio, entre o mais, invocar o erro na forma do processo, erro esse que o Autor, na resposta que ofereceu para exercício do contraditório, defendeu inexistir.
B) – Após tais articulados, a  Mma. Juiz do Juízo Local Cível de Leiria (Juiz 3), por despacho de 30.09.2018, referindo  perfilhar  o  entendimento expendido no Acórdão da Relação de Lisboa de 30/3/2017 (Apelação 13079/16.4T8SNT.L1-6), afastou a existência do erro na forma de processo, mas, considerando “não ser legalmente admissível a instauração deste tipo de ação”, decidiu, invocando o art.º 590º, n.º 1 do C.P.C., indeferir liminarmente a petição inicial e “determinar o total arquivamento  dos autos”.
II – Inconformado, o Autor interpôs recurso dessa decisão, tendo, a findar a respectiva alegação, oferecido as seguintes conclusões:
...
Terminou assim: “Deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser a Decisão proferida revogada, prosseguindo os autos os termos do disposto nos art°s 590° e ss do CPC até final […]».
A Apelada, respondendo à alegação de recurso, pugnou pela improcedência deste.
- As questões:
Em face do disposto nos art.ºs 635º, nºs 3 e 4, 639º, nº 1, ambos do NCPC, o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 608º, n.º 2, “ex vi” do art.º 663º, nº 2, do mesmo diploma legal. Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que o Tribunal pode ou não abordar, consoante a utilidade que veja nisso (Cfr., entre outros, no domínio da legislação pretérita correspondente, Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586 2).
E a questão a solucionar consiste em saber se o Autor podia, para exigir a prestação de contas da cabeça de casal, lançar mão da acção com processo especial prevista nos artºs 941º e seguintes do NCPC.
III - Fundamentação:
A) - O circunstancialismo processual e os factos a considerar na decisão a proferir são os enunciados em I  supra.
B)- Como se vê da fundamentação do despacho recorrido, a Mma. Juiz do Tribunal “a quo” entende que, com inventário pendente (v.g., em Cartório Notarial), se deve pedir a prestação de contas ao cabeça de casal por apenso  a esse processo e só concebe que, sem inventário pendente, se peça  a prestação de contas em acção com processo comum na qual se deduzam “os factos que permitem fixar, previamente, o acervo patrimonial a  partilhar”.

2 Consultáveis na Internet, em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase, endereço este através do qual poderão ser acedidos todos os Acórdãos do STJ que abaixo se assinalarem sem referência de publicação.


Ora, para além do cabeça de casal nomeado e ajuramentado em inventário, existe a figura do cabeça de casal de  facto.
No caso em análise, não havendo qualquer evidência da existência de inventário para partilha dos bens das heranças dos pais dos ora litigantes, é claro que não se aplica a regra que manda que a prestação de contas se processe por apenso ao inventário [(v.g. artº 947º do NCPC e artº 45.º da Lei n.º 23/2013, de 5 de Março, que aprovou o regime jurídico  do  inventário (RJI)]. Daí que não seja legítimo trazer à colação o entendimento  expendido no Acórdão da Relação de Lisboa de 30/03/2017, citado na sentença, onde se versava situação em que havia sido instaurado inventário.  […]».
Mas a inexistência de inventário para partilha de heranças não obsta a que haja cabeça de casal (nomeadamente, designado por acordo dos herdeiros, como foi o caso cfr. artº 2084º do CC), que, integrando a figura do cabeça de casal de facto, administre os bens da herança e que, enquanto tal, já que administra bens alheios, está obrigado a prestar contas a quem tenha legitimidade para exigi-las, como será o caso de um   herdeiro.
Na verdade, a obrigação de prestação de contas, v.g. a obrigação de quem administra os bens que integram a herança indivisa, não pressupõe que este haja sido nomeado, em inventário, como cabeça de  casal.
Atente-se no que se  consignou, embora no âmbito do  pretérito CPC, quanto ao cabeça de casal de facto, no Acórdão desta Relação de Coimbra de 18/10/2011 (Apelação nº 4/08.5TBGRD.C1)3, relatado pelo ora  Relator:
«[…] a fonte primeira do cargo de cabeça-de-casal é a lei (cfr. art. 2080º do CC), pois o inventário judicial é apenas uma das formas que a lei prevê para a efectivação da partilha, que pode ser efectuada extrajudicialmente (cfr. art. 2102º do CC). Por conseguinte, a designação legal operada pelo art. 2080º do  CC garante a determinação do cabeça-de-casal desde o momento em que se inicia a

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administração da herança. Tem sido este o entendimento predominante da doutrina (veja-se, neste sentido, Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, 3ª edição, vol. I, pág. 264 e vol. III, págs. 54/55; Oliveira Ascenção, Direito das Sucessões, edição da Ass. Ac. da Fac. Direito de Lisboa, 1979, pág. 568; Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, vol. II, 2ª edição, pág. 55; e Domingos Silva Carvalho de Sá, Do Inventário, Descrever, Avaliar e Partir, 3ª edição, pág. 47., apud acórdão da Relação de Coimbra de 11-11-2003, proc. nº 1907/03, in www.dgsi.pt).
Fala-se, nestes casos, de “cabeça-de-casal de facto” por contraposição ao “cabeça-de-casal investido”, ou seja, aquele que é nomeado no processo de inventário (veja-se, sobre esta distinção, Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Volume, III, pp. 55/56/57, apud acórdão da Relação de Lisboa de 14-01-2010, proc. nº 2645/07.9TBTVD.L1-8, in www.dgsi.pt).
Esta distinção não deriva da diversidade de fontes do cargo num e noutro caso. Com efeito, mesmo quando o cabeça-de-casal é nomeado por decisão judicial, no processo de inventário, a fonte pode ser a lei, se o juiz se limitar  a  fazer aplicação do disposto no art. 2080º do CC. Já nas hipóteses em que o cabeça-de- casal é designado pelo tribunal nos termos previstos no art. 2083º do CC, a  fonte é a decisão judicial.
Em todo o caso, a referida distinção tem relevância justamente na acção para prestação de contas, pois tem sido entendimento da doutrina que a acção para prestação de contas do “cabeça-de-casal de facto” segue a tramitação geral plasmada no art. 1014º e seguintes do CPC, enquanto que a acção para prestação de contas do “cabeça-de-casal investido” aplica-se o disposto no art. 1019º do CPC, ou seja, está dependente do processo de inventário, no qual foi nomeado, o que significa que corre por apenso a este processo - cfr. art. 211º/2, do CPC (veja- se, neste sentido, Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Volume, III, pp. 55/56/57, apud acórdão da Relação de Lisboa de 14-01-2010, proc. nº 2645/07.9TBTVD.L1-8, in www.dgsi.pt). A diferença entre uma e a outra reside apenas na apensação ou não ao processo de inventário e na determinação da competência territorial, pois a demais tramitação coincide.
(…)
…o “administrador de facto” está obrigado a prestar contas, podendo esta obrigação ser forçada por via de uma acção especial de prestação de contas, seguindo-se o entendimento segundo o qual dos “preceitos legais que estabelecem tal obrigação [obrigação de prestar contas] extrai-se um princípio geral, já afirmado pelo Prof. Alberto dos Reis, e de que tais preceitos constituem afloramento ou revelação: quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses. A afirmação desse princípio geral encontra eco no disposto no art. 1014º do CPC: aí se refere que o processo de prestação de contas tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas efectuadas por quem administra bens alheios. (…) E nem é necessário que essa administração se funde em contrato: o que importa é o facto da administração de bens alheios, seja qual for a sua fonte” (acórdão da Relação de Lisboa de 27-05-2010, proc. nº 1101/09.5YXLSB.L1-8, in www.dgsi.pt). […]».
Do exposto resulta que se tem como  absolutamente  acertada  a doutrina do Acórdão da Relação do Porto de 3075/2018 (Apelação nº 22255/17.1T8PRT.P1)4, que se transcreve em  extracto:
«[…] Importa, desde logo, sopesar que o  desempenho das  funções de  cabeça de casal não depende da nomeação em  inventário.
Como o adverte Lopes Cardoso[...] não é verdade que a “entidade” cabeça de casal só tenha existência dentro do processo de inventário depois de aí reconhecida por despacho transitado, antes se devendo considerar que o cabeça de casal deve entrar de facto no exercício das funções de administração que  lhe  competem logo que  se  dê  a  abertura da  herança ou,

4  Consultável em “http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf?OpenDatabase”.


no caso de património conjugal, logo que ocorra o divórcio ou a separação judicial de bens.”[...]
Portanto, a circunstância de não existir qualquer decisão formal de nomeação de cabeça de casal não impede que ele detenha essa qualidade e, sobretudo, que exerça as funções correspondentes.[...]
No caso em apreço e como decorre do facto supra transcrito, desde  a abertura da sucessão por morte do seu marido a Ré tem estado a exercer de facto as funções de cabeça de  casal.
Por outro lado também está adquirido nos autos que não existe ou sequer que se tenha iniciado o inventário  notarial.
Nessa medida, a prestação de contas por parte do cabeça de casal de facto seguirá os trâmites previstos no artigo 941.º e seguintes do  CPCivil.
Como assim, e por cada ano em que as contas devam ser prestadas o autor, interessado nelas, pode recorrer, como recorreu, à acção especial prestação de contas a que se refere o normativo supra citado.  […]».
De tudo exposto resulta que o Recorrente observou, sem margem para dúvida, os ditames legais, ao pedir, à cabeça de casal de facto, ora Ré, a prestação de contas da administração desta, no período em causa, mediante a acção especial de prestação de contas, prevista nos artº 941º e ss. do NCPC. Assim, impõe-se a revogação da decisão recorrida,  para  que  o Tribunal  “a   quo”  faça   prosseguir  os   ulteriores  termos  do   processo   de prestação de contas em causa.
IV - Decisão:
Em face de tudo o exposto, na procedência  da  Apelação,  revoga-se  o despacho recorrido e determina-se que se dê seguimento aos normais termos do processo especial de prestação de contas, previsto nos artºs 941º e ss. do NCPC.


Custas pela Apelada (artºs 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº 6 e 663º, nº 2, todos do NCPC).
Coimbra, 8/4/2019
O Relator, Luiz José Falcão de Magalhães