Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
785/07.3TACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 11/16/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 3º JUÍZO CRIMINAL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 118º Nº 1, ALÍNEA C), 227º Nº 1 A) E B) CP
Sumário: 1.- Tendo em conta a moldura penal abstracta do crime de insolvência dolosa constante do artº 227º nº 1 a) e b) CP na redacção anterior à actual , o prazo de prescrição é de cinco anos.

2.- Tal prazo só se inicia com a declaração de insolvência que funciona como uma condição de procedibilidade ou punibilidade, pois que, sem declaração de falência ou insolvência, não pode ser instaurado procedimento criminal contra o agente nem este ser acusado de qualquer crime.

Decisão Texto Integral: 1. Nos autos de processo comum nº 785/07.3TACBR do 3º juízo Criminal de Coimbra, em que é arguido,

            A...,

 

            Sendo-lhe imputada a prática de um crime de falência dolosa, p. e p. no art.º 227º nº 1 al. b) e c) e nº 2 do CP, na redacção vigente à data da prática dos factos, ou p. e p. no artº 227º nº 1 al. b) e c) e nº 3 do CP, na redacção introduzida pelo CIR e actual, consoante o regime que, em concreto, se vier a revelar mais favorável aos arguidos art.º 2º nº 4 do CP e de um crime de denúncia caluniosa, p. e p. no art.º 365º nº 1 do CP
            Foi o mesmo julgado e a final proferida a seguinte decisão:

            Tudo visto, decide-se:

            a) Absolver o arguido da prática de um crime de falência dolosa, p. e p. no art.º 227º nº 1 al. b) e c) e nº 2 do CP, na redacção vigente à data da prática dos factos.

            b) condenar o arguido A..., pela prática como autor

            - por convolação jurídica do imputado crime de insolvência dolosa, p. e p. no art.º 227º nº 1 al. b) e c) e nº 2 do CP, na redacção vigente à data da prática dos factos, pela prática de um crime de insolvência dolosa, p. e p. no art.º 227º nº 1 al. a) e b) do CP, na redacção vigente à data da prática dos factos, na pena de 280 dias de multa, à taxa diária de €:10,00.

            - de um crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art.º 365º nº 1 do CP, na pena de 180 dias de multa, à taxa diária de €:10,00.

            - em cúmulo jurídico, na pena única de 370 dias de multa, à taxa diária de €:10,00, o que perfaz €:3700,00, fixando a prisão subsidiária em 246 dias.

2. Da decisão recorre o arguido que formula as seguintes conclusões:

            I – Foi o ora recorrente, em cúmulo jurídico, condenado na pena única de 370  dias de multa, à taxa diária de dez euros (10€), o que perfaz três mil e setecentos euros (3.700€), fixando a prisão subsidiária em 246 dias, pela condenação nas penas parcelares de 280 dias de multa, à razão de dez euros (10€) dia, num total de dois mil e oitocentos euros (2.800€), pela autoria material de um crime de insolvência dolosa, p. e p. no art. 227º, nº1, al. a) e b) do Código Penal, na redacção vigente à data da prática dos factos, e de 180 dias de multa, à razão de dez euros (10€), pela autoria de um crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art.º 365º, nº1 do CP.

 Foi ainda condenado no pagamento das custas criminais.

            II - Salvo o devido respeito que nos merece o Tribunal recorrido, algum reparo nos merece a Douta Sentença condenatória.

Da violação do art. 374º nº2 do C.P.P.,

            III - No que concerne ao crime de denúncia caluniosa a Douta sentença deu como provado que, o arguido, na qualidade de representante da sociedade …, apresentou queixa-crime contra A...  e UU... – Material Farmacêutico, Ldª, dando origem ao Inquérito nº 993/05.3 TACBR, tendo denunciado à Polícia Judiciária de Coimbra, no dia 21 de Março de 2005, o referido A...  enquanto gerente da sociedade UU..., porquanto este teria emitido em Janeiro de 2001, para pagamento de uma dívida daquela firma no valor de 15.840.000$00 para com a XX... – Material Médico – Laboratorial e Acessórios de Farmácia, Ldª, 36 cheques, pós – datados no valor de 440.000$00 cada um, sendo o primeiro datado de 31 de Janeiro de 2001 e os restantes datados com o último dia de cada um dos meses que se iam seguindo, o último datado de 29 de Dezembro de 2003, para que aquela sociedade desistisse da acção intentada contra a UU... em 26 de Junho de 2000, para cobrança da referida divida, acção ordinária que correu termos sob o nº 152/00 na 2ª Vara Mista de Coimbra, que, efectivamente, terminou por acordo estabelecido a 23 de Fevereiro de 2001 entre autora e Ré. Os primeiros seis cheques foram pagos. Os restantes, apresentados a pagamento, foram recusados por motivo de extravio. O não pagamento dos cheques teve na sua origem a comunicação efectuada por A... ., em 12 de Julho de 2001, às instituições bancárias em causa nesse sentido, considerando na denuncia que esta declaração integra a prática de um crime de falsificação. Considera assim, que o arguido, que A... ., na qualidade de representante da UU..., praticou um crime de burla qualificada, p. e p. no artº. 217º e 218º nº2 al a) do CP e um crime de falsificação de documento, p. e p. no artº 256º nº1 al b) e nº3 do CP. Tendo sido instaurado o inquérito, foi o denunciado constituído arguido, não se apurando no mesmo que tivesse havido qualquer tipo de transacção entre a UU... e a TT..., dando-se como provado que não havia qualquer crime de burla ou falsificação. Quando muito a questão seria subsumível ao crime de cheque sem provisão, ilícito que “in casu” não era punível porque todos os cheques eram pré-datados. Assim, os autos foram arquivados. O arguido requereu, então a abertura de instrução, mantendo-se anterior decisão, assim, considera o Juiz a quo que“Ao denunciar tais factos o arguido agiu conhecendo bem as circunstâncias supra descritas em que os cheques tinham sido emitidos – a pedido do arguido – e que inexistia a prática de qualquer crime de burla e falsificação.

Sabia que inexistiam negócios entre a UU...A e a TT... e que nenhuma burla ou falsificação tinha ocorrido.

Actuou no propósito conseguido de que contra o ali arguido A... fosse instaurado indevidamente procedimento criminal, como de facto veio a ser instaurado, ciente da falsidade da denúncia que efectuava, pretendendo atentar, como fez, contra a boa administração da justiça, conhecedor das circunstâncias supra descritas em que os cheques foram emitidos.

Agiu sempre o arguido livre, voluntária e conscientemente e sabia que toda a sua actividade lhe estava legalmente vedada por ser ilícita e criminalmente punível.”,

            IV – Fundamentando essa decisão, “Por outro lado, o arguido, ao apresentar queixa crime contra o filho, onde declara estar na posse de cheques por ser o responsável legal da sociedade cessionária dos créditos cedidos pela XX... e que foram revogados de forma ilegítima pelo filho, necessariamente está consciente da falsidade da imputação destes factos, e a esta conduta presidiu inequivocamente a intenção de que fosse instaurado procedimento criminal contra o denunciado”.

            V – Ora, O Juiz a quo deve indicar na sentença a fonte da sua convicção e o modo de formação dessa mesma convicção.

            VI - Considerando que o preenchimento do tipo objectivo exige que a denúncia seja, no seu conteúdo essencial, comprovadamente falsa, a Douta Sentença não indica um processo lógico e racional na apreciação da prova demonstrativa do tipo objectivo.

            VII – Muito menos do tipo subjectivo, porquanto a consciência da falsidade significa que, no momento da acção o agente conhece ou tem como segura a falsidade dos factos, sendo certo que não preenche o tipo o agente que actua convencido da verdade dos factos.

            VIII - O não cumprimento do disposto nos artigos 374º nº 2 e 379º al. c) do C.P.P., comina uma nulidade que desde já se argui.

            Da prescrição do crime de insolvência dolosa

            IX - O arguido foi condenado pela prática como autor de um crime de insolvência dolosa, p. e p. no artigo 227º nº1 al. a) e b) do Código Penal, na redacção vigente à data da prática dos factos, segundo o qual: “ 1. O devedor que com intenção de prejudicar os credores:

a) Destruir, danificar, inutilizar ou fizer desaparecer parte do seu património;

b) Diminuir ficticiamente o seu activo, dissimulando coisas, invocando dívidas supostas, reconhecendo créditos fictícios, incitando terceiros a apresentá-los, ou simulando, por qualquer outra forma, uma situação patrimonial inferior à realidade, nomeadamente por meio de contabilidade inexacta, falso balanço, destruição ou ocultação de documentos contabilísticos ou não organizando a contabilidade apesar de devida;

É punido, se ocorrer a situação de insolvência e esta vier a ser reconhecida judicialmente, com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.”

            X - Considerando a moldura penal abstracta do tipo de crime, verifica-se que o respectivo prazo de prescrição é de cinco anos (cfr. artigo 118º nº1, al. d) do C.P.).

            XI - Uma vez que os factos praticados pelo arguido, conforme resulta da Douta Sentença, ocorreram até dia 14/02/02 (fls. 120 dos autos),  que a constituição de arguido data de 25/07/07 (fls. 500 dos autos), que não se verificaram, entre a data da prática dos factos e a constituição de arguido quaisquer acontecimentos suspensivos do decurso do prazo prescricional (cfr. artigo 120º, nº 1 do CP), nem interruptivos desse mesmo prazo, conclui-se que o prazo prescricional do procedimento criminal contra o arguido pela prática do crime em apreço, havia já decorrido aquando a constituição de arguido.

            XII - Pelo que, deveria ter sido declarado extinto, por prescrição, o procedimento criminal movido contra o arguido, ora recorrente, pela prática do crime de insolvência dolosa.

            Erro na apreciação da prova quer documental quer testemunhal produzida em audiência de discussão e julgamento.

Da Denúncia Caluniosa

            XIII - Nenhuma das testemunhas inquiridas em sede de audiência de discussão e julgamento prestou declarações quanto a este crime, e mesmo o denunciado,

 A... ., cujo testemunho se encontra na gravação áudio do dia 7-10-2010, com início às 10:15:28, se recusou validamente a depor, nos termos da alínea a) n.º 1 do artigo 134.º do C.P.P., por ser filho do arguido.

            XIV - Pelo que, a prova produzida quanto a este crime consiste na prova documental junta aos autos a fls. 5 e ss., constantes da certidão extraída da Instrução n.º 393/05.3 TACBR, e das declarações do arguido, que se encontram na gravação áudio do dia 6-10-2010, com início às 10:20:44, referindo o ora recorrente que entende que efectivamente existiu uma burla e uma falsificação, porquanto o denunciado, seu filho não tinha motivos para cancelar os cheques emitidos pela UU...A, para pagamento à XX... e existiam recibos falsos.

            XV - Das suas declarações resulta, claramente, que o arguido estava convencido, e continuava a estar à data do julgamento, que lhe assistia razão na queixa apresentada.

            XVI - Das declarações do arguido e da queixa constante dos autos a fls. 5 e ss., resulta que, a testemunha A... . emitiu 36 cheques pós-datados, no valor de 440.000$00, com início de pagamento em 31 de Janeiro de 2001, que foram entregues ao arguido em 17 de Agosto de 2000, contra o recibo de 15.840.000$00, junto a fls. 68.

            XVII - Em 23 de Fevereiro de 2001, no âmbito da Acção Ordinária n.º 152/2000, foi celebrado um acordo, estando o arguido ausente, e sendo representada a XX... pelo Sr. Dr. …, cfr. fls. 87.

            XVIII - Tais cheques foram lançados na contabilidade da UU...A, cfr. fls. 283 e 284.

            XIX - Pelo que não restam dúvidas que o gerente da UU...A, A... ., tinha perfeito conhecimento que era devedor daquele valor, tendo inclusivamente pago 6 cheques nas datas acordadas, cfr. fls. 289.

            XX – Tendo-se deslocado a Paris para proceder à troca dos cheques em escudos, por outros em euros, ou seja, os cheques com datas posteriores a Janeiro de 2002 – 23 cheques de 440.000$00 – por 20 cheques de € 2 500,00, cheques de fls. 92 e ss.

            XXI - Tais cheques foram por si endossados à TT..., cfr. Relatório Pericial de fls. 324 e ss..

            XXI - A 4 de Junho de 2001, a autora XX... foi notificada, na pessoa da sócia,  …, cfr. fls. 89 do Despacho de Homologação da Transacção e para os termos do n.º 3 do artigo 301.º do C.P.P., extinguindo-se a instância por acordo de pagamento da divida pelas partes.

            XXII - A aqui testemunha, participada na referida queixa, em 12 de Julho de 2001, após o trânsito em julgado do Despacho de Homologação da Transacção, dirigiu duas cartas ao banco revogando os cheques, quer os em escudos, emitidos ao portador, cfr. fls. 112, quer os endossados, por si, à TT..., cfr. fls 114.

            XXIII - Na primeira carta, mencionava que já tinha liquidado por outra forma, o que sabia não corresponder à verdade, como supra referido, impedindo que, quer o arguido quer a XX... recebessem tal quantia.

            XXIV - Na segunda carta, cfr. fls. 114, refere que: “A revogação tem como fundamento o facto de a importância titulada por tais cheques corresponder ao pagamento indevido de um negócio não efectivado.”, o que, mais uma vez, sabia não corresponder à verdade, porquanto tais cheques, foram emitidos em substituição dos cheques iniciais em escudos para pagamento da dívida à XX....

            XXV - Não correspondendo tais factos à verdade, entendeu o arguido que o Sr. A... . cometeu uma falsificação intelectual, bem como com tal estratagema o enganou, conseguindo não liquidar a dívida.

            XXVI – O denunciado não podia ignorar que apondo a sua assinatura nos cheques, ficava obrigado aos respectivos pagamentos, ainda que nenhum negócio existisse entre ele e os portadores dos cheques, tanto mais que emitiu os cheques em nome da TT....

            XXVII - Pelo que entendeu ora recorrente, que lhe assistia razão na queixa apresentada, porquanto no seu entender comete o crime de falsificação de cheque o indivíduo que depois de emitir um cheque se dirige ao banco sacado e aí produz declarações, que sabia falsas, com o propósito de obstar ao pagamento do montante do cheque, como efectivamente conseguiu.

            XXVIII – Considerou também que, ao induzir o representante legal da XX..., a transaccionar na Acção Ordinária n.º 152/00, da 2ª Vara Mista de Coimbra, prometendo-lhe que honraria os seus compromissos, pagando, atempadamente, as quantias tituladas nos cheques pós-datados que emitiu, cometeu um crime de burla.

            XXIX - O ora recorrente, entende que face à prova documental junta aos autos e à prova testemunhal produzida no julgamento, não se encontra preenchido o tipo objectivo do crime e muito menos se encontrará o tipo subjectivo.

            XXX - Na verdade, conforme resulta das declarações do arguido este continua a sustentar que tinha razão na apresentação da queixa, pelo que nunca poderá concluir-se como na Douta Sentença que o arguido tinha consciência da falsidade da imputação, pelo que deverá, necessariamente, ser absolvido da prática do crime de denúncia caluniosa.

1. Insolvência dolosa

            XXXI - Considerando a fundamentação da Douta sentença condenatória, não pode o ora recorrente, compreender como foi possível a condenação pela prática de crime de insolvência dolosa.

            XXXII - No ponto 27. da Douta Sentença, foi considerado como facto provado, ter o arguido uma posição de ascendente na UU...A, por força da ligação aos seus sócios, no entanto o arguido, no seu depoimento, gravado no dia 6-10-2010, com início às 10:20:44, refere que estava em divergência com os filhos por causa do divórcio.

            XXXIII - Também a testemunha,  …, cfr. depoimento gravado no dia 7-10-2010, com início às 10:53:41, que foi contabilista na XX..., até esta deixar de laborar, refere que existiam quezílias entre o arguido e os seus filhos depois do desentendimento com a esposa.

            XXXIV - A testemunha …., ex-mulher do arguido, nada sabe de relevante acerca da matéria dos autos, conforme consta da Douta Sentença.

            XXXV - Os filhos, testemunhas - …., cfr. gravação de 6-10-2010, com início às 15:05:52, A... ., cfr. gravação de 17-10-2010, com início às 10:15:28, e …., cfr. gravação de 4-11-2010, com início às 11:32:39 – recusaram-se, validamente, a depor, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 134.º do C.P.P.

            XXXVI - Nenhuma outra testemunha se referiu a tais relações familiares e, considerando os referidos depoimentos, pelo que entendemos que não poderá ser considerado provado que o arguido tinha uma posição de ascendente na UU...A.

            XXXVII - Em Abril de 2000, conforme consta dos factos provados, data em que a sociedade XX... vendeu à UU...A mercadoria num valor superior a 40.000.000$00, o arguido não se encontrava em Portugal, situação corroborada pelo ora recorrente no seu depoimento aos 40:10 da gravação de 6-10-2010, com início às 10:20:44 e pelo depoimento da testemunha … , já referida anteriormente, cfr. gravação de 7-10-2010, com início às 10:53:41, pelo que, a Douta Sentença deveria ter dado como provado que à data da venda o arguido já não se encontrava em Portugal.

            XXXVIII - A Douta Sentença, no ponto 35 dos factos provados, descrimina quantias que foram recebidas pela XX... por pagamento da UU...A, embora da prova testemunhal e documental resulte que algumas das quantias não foram pagas.

            XXXIX – O ora recorrente afirma nas suas declarações que os recibos de fls. 63, 64, 65 e 66 não foram por si assinados, sendo notória a diferença de assinaturas por confronto com os recibos de fls. 67 e 68 assinadas pelo arguido.

             XL - Acresce que, o valor de 15.840.000$00, constante da alínea f) do ponto 35. da Douta Sentença, cujo recibo o arguido confirma conter a sua assinatura, na alínea h) encontra-se duplicado, constando aí, então, que tal quantia corresponde aos 36 cheques de 440.000$00/cada, e que estão descritos no ponto 36. da Douta Sentença.

            XLI – O ora recorrente não recebeu tal quantia de 15.840.000$00, tendo apenas recebido 2.640.000$00, referente a 6 cheques, conforme consta do ponto 35.

            XLII - Assim, no ponto 36., a Douta Sentença apenas descrimina os cheques já referidos na alínea h) do ponto 35., duplicando-os, fazendo crer, salvo o devido respeito que é muito, que existiram mais outros cheques que foram efectivamente recebidos.

            XLII - Na verdade, no ponto 37. da Douta Sentença, refere-se que os três primeiros cheques foram pagos nas datas acordadas – 31-1-2001, 29-2-2001 e 31-3-2001; quando estes cheques já tinham sido contabilizados no valor de 2.640.000$00, no final do ponto 35.

            XLIII - Apesar de todos os cheques emitidos pela UU...A e dos recibos constantes da Douta Sentença, o ora recorrente apenas recebeu as quantias descriminadas no ponto 35., ou seja, 2.640.000$00 (que resultou dos 6 cheques de 440.000.$00/cada), o cheque de 150.000$00, o cheque de 100.000$00 e a transferência no valor de € 17.862,98, num total de € 32. 278,23, valor constante também do relatório junto aos autos a fls. 739.

            XLIV - Conforme resulta do Relatório Pericial junto a fls. 710, o arguido era credor de 3.145.054$50 (cerca de € 15.000,00), o que resulta numa diferença de (€ 32.278,23 - € 15.000,00) € 17.278,28.

            XLV - Acresce que, o ora recorrente nas suas declarações refere que, aos 21:33 do seu depoimento, tinha créditos de vencimento, rendas em atraso, que constavam de acta, dividas confirmadas pela testemunha já referida,  …, cfr. gravação do dia 7-10-2010, com início às 10:53:41,

            XLVI - Resulta claro que tal valor em dívida para com o ora recorrente representava necessariamente um valor muito superior à diferença de 17.278,23€.

            XLVII - A Douta Sentença no ponto 56. considera que, “Nenhum dos exercícios económicos até ao ano de 2000 indiciava que a XX... pudesse estar insolvente”, também neste ponto, entende o recorrente, que existe prova em contrário.

            XLVIII - No Relatório do Especialista Superior …, a fls. 638, resulta provado que já desde 1995 a empresa apresentava problemas financeiros.

            XLIX - Por outro lado, os crimes previstos no artº 227º do C.P. são crimes exclusivamente dolosos.

            L - Face ao alegado, entendemos que andou mal o Tribunal a quo, ao considerar provado o elemento subjectivo, e, em consequência, condenar o arguido, ora recorrente, aliás, da prova produzida, resulta, em nosso entender, o contrário, que o arguido nunca teve intenção de prejudicar os credores.

            LI - Na verdade, ainda em 11/10/99, quatro meses antes da data da sua partida, para tentarem recuperar a empresa, o ora recorrente e mulher, a outra sócia, celebraram em nome da XX..., um contrato de financiamento com o BPN, tendo em 04/11/99 celebrado um contrato de abertura de crédito com o citado BPN, perfazendo no total a quantia de 55.000.000$00, cfr. fls. 919.

            LII - Para garantia desses créditos e porque sempre esteve de boa-fé, o ora recorrente constituiu, por escritura pública celebrada no 2º Cartório Notarial de Coimbra, em 11 de Outubro de 1999 (cfr. fls 919 e 949 e ss.), hipoteca voluntária da sua casa de habitação e comércio onde, nos anexos, funcionava a sede da XX..., avaliada à data em 125.600.000$00 (626.490,00€), cfr. doc. de fls. 891, tendo ainda subscrito avais pessoais para garantia de créditos dos bancos Santander (fls. 946), Banco Comercial Português, Finibanco e B.P.S.M. (fls. 919

            LIII - O arguido veio a ser declarado insolvente face a tais factos, e à impossibilidade posterior da sua liquidação, no dia 15-07-2003, no âmbito do Proc. Nº 473/2002 que correu termos no 1º Juízo Cível de Coimbra (fls. 925) e o BPN veio a arrematar tal bem, pelo que o arguido deixou de ser proprietário do seu único bem imóvel (fls. 934 e 944), situação a que se refere nas suas declarações, aos 31.30 da gravação do dia 06/10/10, com início às 10.20.44:, corroboradas pela testemunha Joaquim Martins (cfr. gravação do dia 07/10/10, com início às 10.53.41.

            LIV - Acresce que, a fls. 726, nos Mapas e Quadros Anexos da Informação Técnica elaborada por … , consta do Balancete do mês de Abril de 2001, que o passivo da XX... era de 171.530,00€, sendo certo que tinha a receber de clientes a quantia de 62.273,91€.

            LV – Considerando que a sua casa de habitação e comércio, onde estava sediada a empresa, estava avaliada em 626.490,00€, não restam dúvidas que o património, à data da sua partida, era mais que suficiente para liquidar todas as dívidas da empresa XX....

            LVI – Assim, considerando toda a prova produzida, o Tribunal a quo, fazendo uma apreciação global deveria necessariamente dar como provada a não intenção de prejudicar os credores e, em consequência, absolver o arguido, do crime de insolvência dolosa, pelo não preenchimento do tipo subjectivo, pois, caso pretendesse prejudicar os credores, poderia ter procedido à venda do seu património ausentando-se depois, com algum capital, ao invés de constituir uma hipoteca voluntária da sua habitação, em 11/10/99, e avais pessoais.

            LVI - Ao Tribunal a quo, fazendo uma apreciação global de toda a prova produzida, socorrendo-se de um raciocínio dedutivo ou indutivo, apoiado nos princípios da lógica e fundamentado nas regras do normal acontecer, não deviam restar dúvidas de que o ora recorrente nunca teve intenção de prejudicar os credores.

            LVII - Pelo que, entendemos que a Juiz a quo, com o devido respeito, não avaliou correctamente toda a prova produzida, pelo que estamos perante uma situação de apreciação arbitrária da prova.

            LVIII - As regras da experiência não permitem concluir com segurança no facto de ter o arguido, ora recorrente, praticado tais factos, pelo que existindo dúvidas teriam de redundar em prole do arguido, por caber à acusação o ónus da prova.

            LIX - A interpretação feita pela Meritíssima Juiz a quo da prova produzida é violadora dos Princípios Basilares do Estado de Direito Democrático, nomeadamente o artigo 32º da CRP, ferindo-a de inconstitucionalidade material, que desde já se invoca.

            Pelo exposto, deverá o recorrente ser absolvido dos crimes de denúncia caluniosa e insolvência dolosa.

            No entanto, e sem prescindir,

            Das medidas das penas aplicadas

      Do quantitativo de dias de multa elevado.

            LX - A determinação definitiva da pena é alcançada pelo juiz através de um procedimento que decorre em três fases distintas, na primeira deve investigar e determinar a moldura legal, dita também medida legal ou abstracta da pena, na segunda deve investigar e determinar, dentro da moldura legal, a medida concreta (dita também judicial ou individual) da pena que vai aplicar e na terceira (eventual) o juiz escolhe, dentro do elenco de penas postas à sua disposição no caso concreto, através dos mecanismos de penas de substituição, a espécie da pena que efectivamente deve ser cumprida.

            LXI - Tais critérios consubstanciam-se nos artigos 71° e 72° do Código Penal sendo que o procedimento em causa se traduz num actuação não discricionária de aplicação do direito.

            LXII - Ao colocar-se a questão da medida da pena concreta o julgador terá de respeitar os critérios que o citado artigo 72° refere, nomeadamente, a culpa e a prevenção geral e especial.

            LXIII - No caso vertente, temos que a conduta do arguido integrou a prática de um crime de insolvência p.p. no artigo 227° nº 1 al. a) e b) do Código Penal a que corresponde, em abstracto, uma pena de prisão até três anos ou com pena de multa e a prática de um crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo artº 365º, nº1 do CP, a que também corresponde, em abstracto, uma pena de prisão até três anos ou com pena de multa.

            LXIV - In casu a Meritíssima Juiz a quo, julgou adequado aplicar ao arguido, para ambos os crimes, uma pena de multa, tendo fixado para o crime de denúncia caluniosa 200 dias de multa e para o crime de insolvência dolosa a pena de 280 dias.

            LXV - Estabelecendo o artº 47º nº1 do Código Penal que: “A pena de multa é fixada em dias, de acordo com os critérios estabelecidos no nº1 do artº 71º, sendo, em regra, o limite mínimo de 10 dias e o máximo de 360 dias”, entendemos desajustadas as medidas concretas das referidas penas.

            LXVI - Na verdade, a pena de 280 dias de multa, para o crime de insolvência dolosa, está muito próximo do limite máximo, parece-nos desajustada considerando que a própria sentença refere “ que passaram já 10 anos desde a data da prática dos factos, o arguido tem 58 anos e não tem antecedentes criminais” e São pois ténues as exigências de prevenção especial e as exigências de prevenção geral positiva estão atenuadas pelo decurso do tempo”.

            LXVII - Também nos parece desajustada a pena de 200 dias de multa, superior ao meio da moldura abstracta, para o crime de denúncia caluniosa, porquanto, apesar de a Douta Sentença referir que as exigências de prevenção geral não são de menosprezar, também considera que: “Contudo, estas exigências são contrabalançadas pelas diminutas exigências de prevenção especial, considerando a ausência de antecedentes criminais, o lapso de tempo entretanto decorrido e a integração profissional e familiar do arguido.”.

            LXVIII - A medida concreta das penas, salvo o devido respeito, parece-nos francamente exagerada justificando-se penas concretas muito próximas do limiar mínimo da pena de multa.

            Da insuficiência da matéria dada como provada para o apuramento da situação económica concreta do arguido

            LXIX - Definida a pena concreta ter-se-á de determinar a taxa diária, assim, tudo quanto respeite à situação económico-financeira do condenado deve ser considerado nesta fase de fixação do quantitativo diário de multa, o facto do Código Penal se abster de pronunciar sobre os critérios que devem ser tomados em conta para determinar a condição económica e financeira do condenado só pode significar que o legislador quis oferecer ao juiz o maior campo possível de eleição dos factores relevantes.

            LXX - Processualmente, podendo o arguido recorrer ao seu direito ao silêncio, aliás legítimo, deve o juiz oficiosamente dentro dos seus poderes de investigação proceder às necessárias diligências para determinar os factores essenciais de fixação do quantitativo diário da multa, lançando mão das regras gerais de produção de prova aplicáveis - arts. 340º nos.1 e 2 e 371° CPP. Não sendo possível, sempre pode o juiz determinar aqueles factores por estimativa - prova por presunção natural - fundamentando-a sempre, nos termos do disposto no nº 2 do art. 374°, e fazendo constar tudo da sua sentença.

            LXXI - Ora, no caso concreto deu-se como provado que o arguido vive na Ucrânia, com a actual companheira, que é ucraniana, não constando qualquer referência à sua situação económica, parecendo-nos, assim, insuficiente tal factualidade para um adequado apuramento do montante diário da multa a aplicar.

            LXXII - Não tendo reunido quaisquer dados, poderia ter recorrido a uma presunção ou estimativa que deveria ficar devidamente fundamentada na sentença o que não aconteceu, assim, aplicou-se ao arguido o quantitativo diário de 10,00€, sem qualquer justificação.

             LXXIII - Pelo que, atenta a ausência total de prova da sua situação económica, o quantitativo diário da multa deveria ser fixado, no mínimo legal, ou seja em 5€.

            LXXIV - Violou assim, a sentença recorrida o artº 374º do CPP, os artºs 47º, 71º, 72º, 227º, 365º do Código Penal, o artº 32º, nº2 da CRP, bem como o princípio “ In dubio pro reo”

            Termos em que deve revogar-se a Douta Sentença recorrida, absolvendo-se o arguido dos crimes de insolvência dolosa e denúncia caluniosa.

            Subsidiariamente, caso assim não se entenda, deverá revogar-se a Sentença recorrida, substituindo-a, nesta parte, pela declaração de prescrição referente ao crime de falência dolosa.

            Mas ainda que assim não se entenda, deve revogar-se a Decisão recorrida, substituindo-se, nesta parte, por decisão que aplique pena concreta coincidente com o limiar mínimo da moldura penal da pena de multa.

            Assim se fazendo Justiça

            3. O Ministério Público respondeu ao recurso, dizendo em síntese:

            3.1. A sentença não enferma de qualquer vício, designadamente o invocado pelo recorrente e previsto nos artigos 374º, nº 2 e 379º, nº 1, al. a), do CPP.

            3.2. O crime de insolvência dolosa não se encontra prescrito.

            3.3. A prova produzida foi correctamente valorada.

            3.4. Não houve erro de julgamento.

            3.5. a pena única de 370 dias de multa à taxa diária de 10,00 euros traduz uma equilibrada e adequada aplicação dos critérios estabelecidos nos artigos 40º, 47º, 70º e 71º, do CP.

            3.6.. Não foi violada qualquer norma do CPP, da CRP nem o princípio do dúbio pró reo.

            Deve ser julgado negado provimento ao recurso.

           

            4. Nesta instância, o Exmº Sr. Procurador Geral Adjunto emitiu douto parecer sintetizado no seguinte:

            4.1. quanto ao alegado incumprimento do disposto no artigo 374º, nº 2, do CPP, encontra-se suficientemente explicitado o raciocínio lógico do julgador com base nas provas disponíveis, não se podendo censurar o mesmo.

            4.2. A prescrição no caso de falência dolosa, inicia-se apenas  tão só a partir do trânsito em julgado da sentença que a decretou, conforme jurisprudência superior. Tendo aquela ocorrido em 10.2.2003, não decorreu, assim, tal prazo de prescrição.

            4.3. Quanto ao erro na apreciação da prova, também é jurisprudência dos tribunais superiores que a apreciação da matéria de facto não visa a repetição do julgamento feito mas sim o reexame ou controlo de eventuais erros de procedimento que resultem da violação das regras da experiência comum e dos vícios do artigo 410º do CPP.

            4.4. A medida das penas encontra-se fundamentada e bem doseada.

            Quanto à apreciação da situação económica do recorrente com vista à fixação do montante diário da multa, aquela mostra-se insuficiente, pelo que se poderá admitir a existência do vício do artigo 410º, nºs 1 e 2 al. a), do CPP.

           

            5. Colhidos os vistos, teve lugar a conferência.


II
       São os seguintes os factos dados como provados e não provados na decisão recorrida:

            1. 1. Factos provados:

            1) A sociedade XX... –, L.DA foi constituída por escritura pública lavrada no Cartório Notarial do Centro de Formalidades das Empresas de Coimbra,  exercia a actividade de comércio por grosso de material médico, farmacêutico, laboratorial, acessórios de farmácia e produtos de higiene.

            2) Encontrava-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Coimbra sob o nº ….

            3) Tinha sede em  … e foi constituída com o capital social de 2.000.000$00.

            4) Possuía contabilidade organizada e enquadra-se para efeitos de IVA no regime normal de periodicidade trimestral pelo exercício da actividade supra descrita e que constitui o seu objecto social e para efeitos de IRC no regime geral de determinação do lucro tributável.

            5) Eram seus sócios o arguido A... e sua esposa , sendo a gerência assegurada por ambos os sócios, obrigando-se apenas a sociedade com a assinatura de um deles.

            6) A sociedade XX..., Ldª foi constituída em 11/11/1986, com sede em …, com o capital social de 2.000.000$00, que se dividiu em duas quotas de 1.000.000$00 para cada um dos sócios e gerentes da empresa, concretamente A... e a mulher.

            7) Em 30/06/1999 e 02/11/1999 procederam ao aumento do capital social da empresa, respectivamente para 5.000.000$00 e 6.000.000$00, dividindo-se as quotas, no primeiro caso em 2.500.000$00/sócio e no segundo em 3.000.000$00/sócio e em 09/07/2002 foi averbada a cessão das funções, por renúncia, do gerente A..., a partir de 15/08/2001.

            8) Em 23/08/1999 foi passada uma procuração por parte de ….que, por aquele meio, constituía procurador o arguido A…, conferindo-lhe poderes para ceder a quota de que a mesma era titular, no valor nominal de três milhões de escudos.

            9) A Sociedade TT...,  foi constituída por escritura pública lavrada no Cartório do Estado de DELAWARE, Estados Unidos da América em Abril de 2000.

            10) A sua sede está situada no Estado de Delaware,  …– Couty of Sussex.

            11) A 04 de Abril de 2000 …, na qualidade de Presidente da  …fundou a TT..., cabendo ao fundador apenas os poderes de entregar a certidão de constituição, aprovar os estatutos da empresa e eleger os primeiros directores, tendo eleito como director o arguido A....

            12) Tinha como objecto esta sociedade dedicar-se a qualquer actividade legal para as quais as empresas são formadas de acordo com a Lei Geral das empresas de Delaware.

            13) Foi constituída como sociedade anónima com 1.500 acções, de $5.00 dólares por acção.

            14) A empresa era gerida pelo conselho de directores, sendo o fundador …, cuja direcção postal é … .

            15) O director eleito desta sociedade foi o arguido João, o qual tinha poderes absolutos para tomar decisões.

            16) A …, dedica-se à constituição de sociedades on-line, através do sítio próprio que mantém na Internet, mediante a cobrança de uma taxa, sediando em Delaware as sociedades que funda e permitindo-se, através de tal site, a constituição de sociedades anónimas por quem não necessita de se deslocar aos EUA, conforme se publicita no mesmo site (www. Delawareinc.com).

            17) A sociedade UU... –, foi constituída no Cartório Notarial do Centro de Formalidades das Empresas de Coimbra, em 03 de Fevereiro de 2000, e exercia a actividade de comércio por grosso de material médico, farmacêutico, de material químico e laboratorial, comércio de equipamentos para a saúde, sua importação e exportação e prestação de serviços.

            18) Encontrava-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Coimbra sob o nº ….

            19) Tinha sede em  …e foi constituída com o capital social de 5.100 euros, correspondente à soma de 3 quotas iguais dos valores nominais de 1.700 euros cada, cada uma pertencente a cada um dos sócios A... .,  …(irmãos e filhos do arguido e …, mulher de A... .).

            20) A Gerência ficou a cargo de A... ..

            21) Possuía contabilidade organizada e enquadra-se para efeitos de IVA no regime normal de periodicidade trimestral pelo exercício da actividade supra descrita e que constitui o seu objecto social e para efeitos de IRC no regime geral de determinação do lucro tributável.

            22) Para se obrigar bastava a assinatura de um gerente.

            23) No acto de constituição é declarado que a gerência fica autorizada a proceder ao levantamento do capital social para custear despesas de constituição, registo da sociedade, aquisição de equipamentos e instalação da sede, aquisição de móveis, etc.

            24) Nesse mesmo dia, na presença dos demais sócios, a terceira sócia doou a sua quota social a Carlos Tiago ., então menor de 16 anos.

            25) A... . renunciou à gerência da UU... a partir de Fevereiro de 2002.

            26) Os três sócios da UU... são filhos do arguido nestes autos.

            27) O arguido A... foi sócio gerente e Director, em simultâneo, das empresas XX... – e da TT... e tinha uma posição de ascendente na UU...a por força da ligação aos seus sócios.

            28) A gestão da XX... foi sempre exercida pelo arguido A..., mesmo após este se ter ausentado para França e para a Ucrânia no ano de 2000 e de ter deixado procurações em nome dos seus filhos A... . e …., a quem concedia os mais amplos poderes.

            29) Sendo que, neste caso, a prática de qualquer acto (ao abrigo da referenciada procuração) por parte destes seus filhos careceria da concordância do Advogado substabelecido pelo arguido, Dr. …, que caso a caso estaria instruído pelo arguido A… para tomar decisões.

            30) Em França, o arguido era Director Comercial da empresa TT... mas nunca existiu qualquer relacionamento mercantil entre esta sociedade e a XX..., sendo esta última criada apenas com os propósitos infra elencados.

            31) Com o propósito de prejudicar os credores da XX... e vir a

obter – como obteve – a sua falência o arguido engendrou, e colocou

em prática um plano e com ele logrou atingir os seus objectivos de

privar a XX... de créditos que detinha sobre devedores e ocultá-los

dos seus credores no processo de falência para que estes não

fossem ressarcidos dos mesmos em tal processo de falência.

            32) Assim, em Abril de 2000 a sociedade XX... vendeu à sociedade

UU... mercadoria num valor superior a 40.000.000$00 (incluídos os

juros): nos dias 1, 3, 4, 10, 14, 15 e 20 de Abril de 2000 a XX... vendeu à UU... 30.300.341$00 em material farmacêutico.

            33) A XX... não recebeu o valor total da mercadoria vendida.

            34) De acordo com o engendrado pelo arguido, a UU... efectuou pagamentos por conta do valor dessa mercadoria à TT...., empresa cujo director comercial era o arguido A..., com o falso argumento de que esta última seria credora da sociedade XX....

            35) Foram contabilizados como tendo sido recebidas pela XX... da

UU...a várias quantias, sendo que pagamentos a seguir referidos – e que se prendem com o valor de 2.640.000$00 que resultou dos 6 cheques de 440.000$00 cada um, que foram pagos, do cheque de 150.000$00 também pago e do cheque de 100.000$00 também pago e da transferência de 17.862,98€ - também foram valores pagos à TT... em vez de serem usados para ressarcir a XX... da dívida, como se discrimina :

a - Em 15/06/2000, o valor de 1.000.000$00, demonstrado através de recibo nº 4201 ( cfr fls. 63);

b- Em 20/06/2000, o valor de 700.000$00, demonstrado através de recibo nº 4202; (fls. 64)

c- Em 28/06/2000, o valor de 100.000$00, demonstrado através de recibo 4203; (fls. 64)

d- Em 06/07/2000, o valor de 265.070$00, demonstrado através de recibo nº 4105; (fls. 65)

e- Em 06/07/2000, o valor de 175.000$00, demonstrado através de recibo nº 4106 e da fotocópia do cheque; (fls. 66)

f- em 17/08/2000, o valor de 15.840.000$00, conforme Recibo nº 4204 ( fls. 68).

g- em 17/08/2000, o valor de 1.000.000$00, demonstrado através de recibo nº 4205; (cfr. fls. 67)

h- em 17/8/2000, o valor de 15.840.000$00, demonstrado através de recibo, era suposto ser pago em 36 prestações mensais de 440.000$00/cada, das quais só foram pagas as 6 primeiras prestações /meses, através de cheques emitidos ao “portador” e titulados pela empresa UU...a (com datas de Janeiro, Fevereiro, Março, Abril, Maio e Junho de 2001), totalizando esses pagamentos 2.640.000$00.

            36) Em Agosto de 2000 foram emitidos e entregues a A... por A... Simões Santos 36 cheques pós datados no valor de 440.000$00/cada, para pagamento do referido valor, concretamente:

1-cheque nº 400022315, datado de 31/01/2001, de 440.000$00 ( fls 69)

2-cheque nº 200022326, datado de 29/02/2001, de 440.000$00 ( fls 69)

3-cheque nº 6300022330, datado de 31/03/2001, de 440.000$00 ( fls 70)

4-cheque nº 6100022341,datado de 30/04/2001, de 440.000$00 ( fls 70)

5-cheque nº 5900022352 datado de 30/05/2001, de 440.000$00 ( fls 70)

6-cheque nº 57000022363, datado de 30/06/2001, de 440.000$00 ( fls 71)

7-cheque nº 5500022374 datado de 31/07/2001, de 440.000$00 ( fls 72)

8-cheque nº 5300022385 datado de 31/08/2001, de 440.000$00 ( fls 73)

9- cheque nº 5100022396 datado de 29/09/2001, de 440.000$00 ( fls 74)

10-cheque nº 1500022400 datado de 31/10/2001, de 440.000$00 ( fls 75)

11-cheque nº 1300022411 datado de 30/11/2001, de 440.000$00 (fls. 76)

12-cheque nº 1100022422 datado de 29/12/2001, de 440.000$00 (fls. 77)

13-cheque nº 900022433, datado de 31/01/2002, de 440.000$00 (fls. 78)

14-cheque nº 9520944772 datado de 29/02/2002, de 440.000$00 (fls. 79)

15-cheque nº 2320944780 datado de 3/02/2002, de 440.000$00 (fls. 79)

16-cheque nº 4620944799 datado de 30/04/2002, de 440.000$00 (fls. 79)

17-cheque nº 1920944802 datado de 30/05/2002, de 440.000$00 (fls. 80)

18-cheque nº 4420944810 datado de 30/06/2002, de 440.000$00 (fls. 80)

19-cheque nº 6720944829 datado de 30/07/2002, de 440.000$00 (fls. 80)

20-cheque nº 6720944837 datado de 30/07/2002, de 440.000$00 (fls. 81)

21-cheque nº 2020944845 datado de 29/09/2002, de 440.000$00 (fls. 81)

22-cheque nº 4520944853 datado de 30/10/2002, de 440.000$00 (fls. 81)

23-cheque nº 7020944861 datado de 30/11/2002, de 440.000$00 (fls. 82)

24-cheque nº 8620944870 datado de 29/12/2002, de 440.000$00 (fls. 82)

25-cheque nº 2120944888 datado de 31/01/2003, de 440.000$00 (fls. 82)

26-cheque nº 4620944896 datado de 29/02/2003, de 440.000$00 (fls. 83)

27- Cheque nº 1020944900 datado de 30/03/2003, de 440.000$00 (fls. 83)

28-cheque nº 4220944918 datado de 30/04/2003, de 440.000$00 (fls. 83)

29-cheque nº 6720944926 datado de 30/05/2003, de 440.000$00 (fls. 84)

30-cheque nº 9220944934 datado de 30/06/2003, de 440.000$00 (fls. 84)

31-cheque nº 2020944942 datado de 30/07/2003, de 440.000$00 (fls. 84)

32-cheque nº 4520944950 datado de 30/08/2003, de 440.000$00 (fls. 85)

33-cheque nº 6820944969 datado de 20/09/2003, de 440.000$00 (fls. 85)

34-cheque nº 6820944977 datado de 30/10/2003, de 440.000$00 (fls. 85)

35-cheque nº 2120944985 datado de 30/11/2003, de 440.000$00 (fls. 86)

36-cheque nº 4620944993 datado de 30/12/2003, de 440.000$00 (fls. 86)

            37) Destes, os 3 primeiros cheques foram pagos nas datas acordadas (cfr. fls. 8 e 9).

            38) Os cheques indicados de 7 a 13 encontram-se preenchidos à ordem de TT....

            39) Os cheques restantes (os de 14 a 16) foram todos emitidos ao portador.

            40) Em 26 de Junho de 2000 a XX... instaurou contra a UU... a acção ordinária 152/00, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe 30.300.341$00 de capital e 676.712$00 de juros de mora, relativos a fornecimentos efectuados em 1, 3, 4, 10, 14, 15 e 20 de Abril de 2000.

            41) Esta acção veio a terminar por transacção lavrada em 23 de Fevereiro de 2001, judicialmente homologado por sentença transitada em julgado, com o seguinte conteúdo: “A autora reconhece que forneceu mercadoria obsoleta no valor de 9.000.000$00 (nove milhões de escudos) e, nessa medida, face aos pagamentos efectuados pela Ré, após a propositura da acção, reconhece que, neste momento, nada tem a receber da Ré, desistindo da presente acção devido ao referido pagamento superveniente”.

            42) Em Abril de 2001, A... deslocou-se a Paris,

tendo efectuado a troca dos 23 cheques de 440.000$00, supra

referidos, pós datados com datas posteriores a Janeiro de 2002 por

20 cheques no valor de 2.500,00€ cada, emitidos pela UU... à ordem de TT....

Tais cheques então emitidos são os seguintes:

1)Cheque nº 2539465193, datado de 29/02/2002, de 2,500€ (fls. 92 ).

2)Cheque nº 2339465204, datado de 31/03/2002, de 2,500€ (fls. 93)

3)Cheque nº 2839465322, datado de 28/04/2002, de 2,500€ (fls. 94)

4)Cheque nº 2139465215, datado de 28/04/2002, de 2,500€ (fls. 95)

5)Cheque nº 1939465226, datado de 31/05/2002, de 2,500€ (fls. 96)

6)Cheque nº 8039465230, datado de 31/06/2002, de 2,500€ (fls. 97)

7)Cheque nº 7839465241, datado de 31/07/2002, de 2,500€ (fls. 98)

8)Cheque nº 7639465252, datado de 31/08/2002, de 2,500€ (fls. 99)

9)Cheque nº 7439465263, datado de 29/09/2002, de 2,500€ (fls. 100)

10)Cheque nº 7239465274, datado de 31/10/2002, de 2,500€ (fls. 101)

11)Cheque nº 7939465381, datado de 30/11/2002, de 2,500€ (fls. 102)

12)Cheque nº 7039465285, datado de 29/12/2002, de 2,500€ (fls. 92)

13)Cheque nº 6839465296, datado de 31/01/2003, de 2,500€ (fls. 104)

14)Cheque nº 3239465300, datado de 29/02/2003, de 2,500€ (fls. 105)

15)Cheque nº 3039465311, datado de 31/03/2003, de 2,500€ (fls. 106)

16)Cheque nº 2639465333, datado de 31/05/2003, de 2,500€ (fls. 107)

17)Cheque nº 2439465344, datado de 31/06/2003, de 2,500€ (fls. 108)

18)Cheque nº 2239465355, datado de 31/07/2003, de 2,500€ ( fls. 109).

19)Cheque nº 2039465366, datado de 31/08/2003, de 2,500€ ( fls. 110).

20)Cheque nº 8139465370, datado de 29/09/2003, de 2,500€ ( fls. 111)

            43) O pagamento dos referidos cheques foi recusado por extravio, de acordo com indicação dada por A... .

            44) A 12/07/2001 na qualidade de representante da sociedade sacadora, A... . enviou ao banco sacado as declarações constantes de fls. 107 e 109, informando que revogava os 20 cheques em causa e 8 passados em benefício da XX..., por não ter efectuado qualquer negócio com a TT... e por a importância titulada já ter sido paga à XX....

            45) Em 14/08/2001 foi efectuado um pagamento no valor de 150.000$00, através de um cheque da UU..., emitido ao “portador” e com o nº 9721489513 do BES;

            46) Em 15/10/2001, foi efectuado um pagamento do valor de 100.000$00, através de um cheque da UU..., emitido ao “portador” e com o nº 4721672245 do BES;

            47) Em 14/02/2002, foi pago o valor de €:17.862,98, relativo aos cheques 374, 385, 396, 400, 411, 422, 433 e 193 supra referidos, através de uma transferência bancária a débito de uma conta com o NIB 001900400020003442372, da empresa UU... e a crédito da conta com o NIB 001900400020003674105 em nome de TT..., ambas sedeadas no Banco Bilbao Vizcaya Argentaria (BBVA), agência de Celas - Coimbra;.

            48) Tais cheques tinham sido emitidos por A...   a pedido do arguido e sem que este soubesse para que se destinavam, já que nenhuma dívida existia entre ambas.

            49) O dinheiro que deveria ir ter às contas da XX..., por força do estratagema de que seria a XX... credora da UU..., ou não foi ter na sua íntegra ou foi desviado para fora da XX..., o que contribuiu para a sua descapitalização e para não serem pagos os credores da XX..., designadamente os que reclamaram créditos na falência.

            50) Por sentença datada de 10/1/2003 e transitada em julgado em 10 de Fevereiro de 2003, foi declarada a falência da XX..., no âmbito do processo 474/2002 do 2º Juízo Cível de Coimbra.

            51) Em 18 de Março de 2003 foi entregue na Secretaria dos Juízos Cíveis de Coimbra a relação de todos os credores reclamantes da XX..., não constando em tal listagem nenhum credor com a designação de TT... ou o nome de algum dos sócios e gerentes da falida, a quem tais créditos tivessem sido cedidos ( cfr fls 479 e 480 ).

            52) Tais credores - a quem a XX... devia as importâncias a seguir referidas - que aí reclamaram créditos foram:

-  ………………………………………………………………………………….

            53) Em 02 de Dezembro de 2003, devido à inexistência de bens susceptíveis de apreensão no património da falida, foi declarada extinta a instância por inutilidade superveniente da lide (cfr. fls. 492) e arquivado o processo.

            54) A gestão da XX... foi exercida predominantemente pelo arguido João, apesar de ter renunciado à gerência da falida em Julho de 2002 com retroactividade a 15/8/2001.

            55) Através de procuração datada de 23/08/1999, a outra sócia e gerente da falida,  …, conferiu ao arguido A...o poder para ceder a quota dela, sendo que esta procuração só foi revogada em Fevereiro de 2005; (cfr. fls. 561 e 572)

            56) Nenhum dos exercícios económicos até ao ano de 2000 indiciava que a XX... pudesse estar ou que poderia vir a estar insolvente.

            57) A contabilidade de 200 não foi totalmente organizada e, relativamente a 2001 e 2002 os elementos disponíveis são escassos. Após o mês de Abril de 2000 a empresa deixou de declarar as remunerações dos empregados à Segurança Social. A XX... encerrou a actividade ainda no ano de 2000.

            58) Estão inscritos na contabilidade da XX..., em Abril de 2000, movimentos a débito (vendas) da XX... à UU..., que totalizaram o valor de 43 831 001$00 e um crédito no valor de 9.044.206$00, dos quais 6.998.420$00 resultam de notas de crédito por devolução de mercadoria e o restante valor -2.045.786$00 – da emissão de recibos.

            59) Enquanto sócio da XX..., o arguido A...era detentor naquela empresa, em Abril e Maio de 2000, de um crédito no valor de 3.145.054$00 e não existiu qualquer documento a ceder tal crédito a terceiros, concretamente à empresa TT..., nem o seu nome ou o desta última empresa constam na relação de credores da XX...;

            60) Nunca se verificou a existência de qualquer relação comercial entre a TT... e a falida.

            61) Os pagamentos supra referidos feitos pela UU...a à TT... foram efectuados em virtude de uma suposta cedência de créditos que o arguido A…, enquanto sócio gerente da XX... –, efectuou ao arguido A...enquanto Director da TT...., de forma fictícia e de forma a diminuir o património da XX... e conduzir à sua falência.

            62) Tal dinheiro, que deveria ir ter às contas da XX..., por força desse estratagema ou não foi ter na íntegra ou foi desviado para fora da XX..., o que contribuiu para a sua descapitalização e subsequentemente para a sua declaração de falência, já que não dispunha de capital para solver as suas dívidas.

            63) Em virtude do supra referido, o arguido não pôde pagar aos credores da XX..., que reclamaram créditos no processo de falência em causa.

            64) O arguido agiu do modo descrito com o propósito conseguido de privar a XX... –, de créditos que detinha sobre seus devedores e com isso conseguir, o que efectivamente sucedeu, ocultar esses mesmos créditos aos credores para que os não viessem a reclamar – como não vieram - após a falência desta empresa e no âmbito do processo que correu termos no 2º Juízo Cível de Coimbra, assim prejudicando tais credores, como pretendia e conseguiu.

            65) O arguido, na qualidade de representante da sociedade TT..., apresentou queixa crime contra A... . e UU...-, que deu origem ao inquérito 993/05.3TACBR, queixa essa apresentada na Polícia Judiciária de Coimbra, no dia 21 de Março de 2005, pelos seguintes factos: O aí denunciado – A... - enquanto gerente da sociedade UU..., gerência à qual renunciou em 26 de Fevereiro de 2002, em Janeiro de 2001, para pagamento de uma dívida daquela firma no valor de 15.840.000$00 para com a XX... –, emitiu 36 cheques, pós-datados no valor de 440.000$00 cada um, sendo o primeiro datado de 31 de Janeiro de 2001 e os restantes datados com o último dia de cada um dos meses que se iam seguindo, o último datado de 29 de Dezembro de 2003. Na sequência disso – afirma na queixa – a XX... entregou o recibo daquele montante à UU.... Para cumprimento dessa obrigação a firma credora tinha instaurado contra a UU... em 26 de Junho de 2000, uma acção ordinária que correu termos sob o nº 152/00 na 2ª Vara Mista de Coimbra. Essa acção terminou por acordo estabelecido a 23 de Fevereiro de 2001 entre autora e Ré. Os seis primeiros cheques referentes aos meses compreendidos entre Janeiro e Junho de 2001 foram pagos. Os restantes, apresentados a pagamento, foram recusados por motivo de extravio. O não pagamento dos cheques teve na sua origem a comunicação efectuada por A... ., em 12 de Julho de 2001, às instituições bancárias em causa nesse sentido (declaração que a seu ver integra a prática de um crime de falsificação que denuncia). Refere então, o arguido, que A... ., na qualidade de representante da UU...,

praticou um crime de burla qualificada, p. e p. no artº 217º e 218º nº 2 al a) do CP e um crime de falsificação de documento, p. e p. no artº 256º nº 1 al b) e nº 3 do CP.

            66) Por tal queixa foi instaurado o mencionado inquérito e foi o aí denunciado constituído arguido.

            67) Porque em tal Inquérito não se apurou que tivesse havido qualquer tipo de transacção entre a UU... e a TT... – nada lhe devendo – entendeu-se – e deu-se como provado que não havia qualquer crime de burla ou falsificação.

Quando muito a questão seria subsumível ao crime de cheque sem provisão, ilícito que “in casu” não era punível porque todos os cheques eram pré-datados. Decidiu-se, então, o Ministério Público pelo arquivamento dos autos.

            68) Insatisfeito com tal decisão do Ministério Público que encerrou o Inquérito, veio o arguido requerer a abertura da Instrução, tendo aqui obtido igual resultado.

            69) Ao denunciar tais factos o arguido agiu conhecendo bem as circunstâncias supra descritas em que os cheques tinham sido emitidos – a pedido do arguido – e que inexistia a prática de qualquer crime de burla ou falsificação.

            70) Sabia que inexistiam negócios entre a UU...A e a TT... e que nenhuma burla ou falsificação tinha ocorrido.

            71) Actuou no propósito conseguido de que contra o ali arguido A...  fosse instaurado indevidamente procedimento criminal, como de facto veio a ser instaurado, ciente da falsidade da denúncia que efectuava, pretendendo atentar, como fez, contra a boa administração da justiça, conhecedor das circunstâncias supra descritas em que os cheques foram emitidos.

            72) Agiu sempre o arguido livre, voluntária e conscientemente e sabia que toda a sua actividade lhe estava legalmente vedada por ser ilícita e criminalmente punível.

            73) O arguido vive na Ucrânia, com a actual companheira, que é ucraniana.

Não tem antecedentes criminais.

            1.2. Factos não provados:

            a - o arguido intentou procedimento criminal contra A... porque ambos se desentenderam;

            b- os cheques foram emitido por A...  sem que este soubesse a que se destinavam

            c- a actuação do arguido contribuiu decisivamente para a declaração de falência e a insolvência veio a ser declarada por causa do esquema supra descrito.        


III

Questões a apreciar:

1. A prescrição do crime de insolvência dolosa.

2. A violação do disposto no artigo 374º, nº 2, do CPP.

3. Erro na apreciação da prova.

4. A medida das penas de multa e a taxa diária desta.


IV

Apreciando:

1ª Questão: a prescrição do crime de insolvência dolosa.

1. Resulta dos autos o seguinte:

- A Insolvência da “XX...” foi decretada por sentença de 10.1.2033, que transitou em julgado em 10.2.2003.

- O interrogatório do arguido ocorreu a 25.07.2007.

- O crime de insolvência dolosa é punido com prisão até 3 anos ou multa.

2. Tendo em conta a moldura penal abstracta do crime de insolência dolosa, o prazo de prescrição é de cinco anos – artigo 118º, nº 1, alínea c), do Código Penal.

Por sua vez, o prazo de prescrição só se inicia na sua contagem para aqueles efeitos, com a declaração de falência que funciona como uma condição de procedibilidade ou punibilidade, pois que, sem declaração de falência ou insolvência, não pode ser instaurado procedimento criminal contra o agente nem este ser acusado de qualquer crime – v. ac. do STJ de 19.12.1996, in CJ, Acs. do STJ, ano IV, tomo III, fls. 222..

É que esta declaração de falência depende da decisão de um tribunal não penal, pelo que a prescrição do procedimento criminal suspende-se durante o tempo em que o procedimento “não puder ser legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal ou sentença a proferir por tribunal não penal ou por efeito da devolução de uma questão prejudicial a juízo não penal” – artigo 120º, nº1, alínea a), do Código Penal.

 Sendo assim, entre a data de declaração de insolvência e o interrogatório do arguido, não decorreram os necessários 5 anos para que se considere verificada a prescrição reivindicada pelo recorrente.

Também ainda não decorreu o prazo a que se refere o artigo 121º, nº 3, do CP, que é de 10 anos e meio, a saber: 5 anos correspondentes ao prazo normal de prescrição; três anos correspondente ao prazo máximo admissível para a suspensão, ao abrigo do artigo 120º, nº 1 alínea b) e nº 2; dois anos e meio correspondente a metade do prazo normal de prescrição de cinco anos – art. 121º, nº 3, do CP. Ou seja, 5+3+2,5 = 10,5 anos.

Improcede, pois, esta pretensão do recorrente.

2ª Questão: a violação do disposto no artigo 374º, nº 2, do CPP.

            1. Exige efectivamente o artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal que, na elaboração da sentença, ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

            Em acórdão da Relação do Porto de 10.12.2003, proferido no processo nº 0311906, consultável em www.dgsi.pt/jtrp.nsf/, decidiu-se a propósito da motivação de facto da matéria provada e não provada:

            “ Não basta, assim, que o tribunal forme uma convicção sobre os factos, impondo a lei que essa convicção seja exteriorizada e explicitada através de um “exame crítico das provas”. Devem, assim, quer os destinatários da decisão, maxime, os sujeitos processuais, quer o tribunal de recurso, ficar a conhecer o percurso “lógico ou racional que lhe subjaz”, (MARQUES FERREIRA, Meios de Prova, Jornadas de Direito Processual Penal, pág. 228) ou seja, ficar a saber quais os motivos e porque razões é que aqueles concretos meios de prova convenceram o julgador quanto aos factos dados como provados “.

            Igualmente em acórdão da mesma Relação de 10.1.2004, processo nº 0414155, in http:/www.dgsi.pt/jtrp.nsf/, decidiu-se:

            “ … A sentença há-de conter “os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituíram o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse no sentido de considerar provados e não provados os factos da acusação, ou seja, ao cabo e ao resto, um exame crítico sobre as provas que concorrem para a formação da convicção do tribunal colectivo num determinado sentido” – cfr. ac. Trib. Constitucional de 2-12-98, DR IIª Série, de 5-3-99“.

            Vejamos então a fundamentação do tribunal a quo quanto aos factos que deu como provados quanto ao crime de denúncia caluniosa mas não antes sem se referir que a motivação quanto aos concretos factos deste crime deve ser vista de uma forma global quanto à motivação quer para este crime quer para o crime de insolvência dolosa, na medida em que o julgador explicita todo o desenrolar dos acontecimentos que levaram à prática de ambos os crimes, existindo uma relação muito estreita entre si, pelo que o crime de denúncia caluniosa representa como que um enxerto nos demais factos. Deste raciocínio dá o julgador conta ao longo da sua pormenorizada análise da prova produzida que, como refere e que se considera natural, face às circunstâncias concretas, resulta muito da prova documental que existe nos autos – corroborada ou complementada com muitos depoimentos testemunhais de que o julgador vai dando conta – e sobretudo de muitas ilações que têm que ser tiradas segundo as normais regras da experiência.

            É neste contexto que o tribunal a quo fundamenta os factos:

            Como é sabido, na formação da sua livre convicção, e em face da frequente impossibilidade de a apoiar nos chamados elementos de prova directa, pode o Tribunal fazer uma apreciação global e correlativa de toda prova produzida e retirar ilações dos factos probatórios, socorrendo-se de um raciocínio dedutivo ou indutivo, apoiado nos princípios da lógica e fundamentado nas regras do normal acontecer. Nesse raciocínio pode o Tribunal inferir, a partir dos factos cuja prova resulta da prova directa, outros factos que são sugeridos por um critério de experiência comum ou pela lógica subjacente aos normais acontecimentos da vida.

            Ora, no presente caso (como aliás não raras vezes sucede no universo da criminalidade em que nos situamos), foi precisamente com recurso a tal prova, correlacionada com os documentos juntos aos autos e com os depoimentos prestados pelas testemunhas que o Tribunal deu como provados os factos supra descritos, como infra se irá expor.

            De qualquer forma, os primeiros e mais decisivos elementos probatórios considerados pelo Tribunal foram os documentos juntos aos processo.

            E não poderia deixar de ser de outra forma já que a actuação do arguido está objectivada naqueles documentos.

            Assim, considerou-se desde logo o teor dos documentos de fls. 53 a 55, 560 e 561, 14 a 34, 36 a 48, 562 a 572 e a perícia que foi feita à contabilidade da XX....

            Relativamente às vendas de mercadorias pela XX... à UU... e aos pagamentos que por esta sociedade foram feitos à XX... e à …., foi valorado o teor dos documentos de fls. 58 a 62, 63 a 68, 69 a 86, 87 a 89, 92 a 106, 107 a 110, 111 a 114, 120.

No que concerne à acção intentada pela TT... contra a UU..., valorou-se o teor dos documentos de fls. 87 a 89

            Relativamente à declaração de falência da sociedade XX..., valorou-se o teor de fls. 453 a 457 e 469 a 492.

            Valoraram-se ainda as declarações modelo 22 de IRC e respectivos anexos dos exercícios de 1995 a 1998, respeitantes à sociedade XX..., de fls. 509 a 557, de onde resulta que em 1997, esta sociedade teve um lucro tributável de 3017646$00 (cfr fls. 512), em 1996, um lucro tributável de 2974081$00 (cfr fls. 527), em 1997 um lucro tributável de 1259237$00 (fls 538), em 1998, um lucro tributável de 2263286$00 (fls. 550), bem como a declaração modelo 22

e respectivos anexos do ano fiscal de 1999 de fls. 618 a 625, de onde resulta um lucro tributável de €:1.103.131$00.

            Valorou-se também o documento de fls. 90 e 91 para dar como provado o facto referido em 44, conjugado com o depoimento do arguido, que reconheceu ter recebido cheques do filho quando se encontrava em Paris.

            O facto referido em 16) deu-se como provado considerando a pesquisa feita pelo Tribunal na internet ao site ….

            Para além dos documentos, valorou ainda o Tribunal os diversos depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento.

            E mais adiante:

            Ouviu-se também o arguido acerca dos factos de que vem acusado, tendo este negado ter tido qualquer participação na venda de bens feita pela XX... à UU... e na forma como os pagamentos desse bens foram feitos, dizendo que tudo sucedeu na sua ausência.

            Contudo, não conseguiu oferecer explicações consistentes para os factos em que aparece envolvido, tendo-se refugiado na responsabilização do filho A...e do seu advogado, a testemunha Carlos Gonçalves em tudo o sucedido.

            Não conseguiu designadamente o arguido justificar cabalmente o facto de ter recebido cheques emitidos pela UU... ou a razão pela qual esta sociedade emitiu cheques à ordem da …, chegando mesmo a dizer que o filho terá querido dar dinheiro à empresa para a qual o pai trabalhava para que esta ficasse economicamente mais sólida e assim beneficiar o pai.

            Quanto ao seu papel na …., sustentou ter sido contratado por uma pessoa de que não se recorda para trabalhar para esta sociedade, desconhecendo a identidade dos accionistas e do Conselho de Administração, declarações estas que, pela sua inverosimilhança, não mereceram qualquer credibilidade.

            Embora na queixa crime que apresentou contra o filho A...em nome da ..., e que se encontra junta a fls. 2 e ss., diga que a ... é credora da XX..., não conseguiu explicar em Tribunal a origem de tal crédito, referindo apenas que ele próprio, em nome pessoal, é credor da UU…, uma vez que não lhe pagaram rendas e vencimento. Disse que cedeu à .... esse crédito pessoal sobre a XX... mas não conseguiu indicar um motivo razoável para tal cedência do crédito.

Reconheceu ainda o arguido que entre a ..., a UU... e a XX... nunca existiu qualquer relação comercial.

            Por outro lado, na própria participação crime que fez contra o filho, o arguido, ali denunciante, descreveu com detalhe as causas da emissão pela UU... de diversos cheques pós datados, que foram entregues ao arguido para serem apresentados a pagamentos entre os meses compreendidos entre Janeiro de 2001 e Dezembro de 2003, e juntou documentos, o que demonstra que o arguido conhecia o teor da venda feita pela XX... à … . Tais factos, conjugado com os depoimentos supra referidos, levam-nos mais uma vez a concluir que continuava a ser ele a controlar as decisões importantes da XX..., através do advogado.

            Mais: conjugando os documentos supra referidos com os depoimentos a que supra se aludiu, num juízo lógico-dedutivo apoiado nas regras da experiência e do normal acontecer, concluiu o Tribunal que: a UU... foi constituída com o mesmo objecto que a XX... e tratava-se de uma sociedade sobre a qual o arguido tinha ascendente, considerando que os sócios eram seus filhos, sendo aliás um deles menor; quando a UU... foi constituída os empregados da XX... passaram a trabalhar para esta sociedade, com o conhecimento do arguido; a XX..., com o conhecimento do arguido, vendeu todo o seu stock à UU..., deixando por isso de ter mercadoria para vender; a clientela da UU... era no essencial a mesma clientela da XX...; a UU... efectuou pagamentos da dívida que tinha perante a XX... através de cheques emitidos à ...., sem que entre esta sociedade e a UU... ou entre a ... e a XX... tenha existido qualquer relação comercial; o arguido pagou os bilhetes de avião para os filhos e a nora se deslocarem a Paris para lhe entregarem os cheques da UU...;.

            Culminando com uma referência mais expressa a este crime:

            Por outro lado, o arguido, ao apresentar queixa crime contra o filho, onde declara estar na posse de cheques por ser o responsável legal da sociedade cessionária de créditos cedidos pela XX... e que foram revogados de forma ilegítima pelo filho, necessariamente está consciente da falsidade da imputação destes factos, e a esta conduta presidiu inequivocamente a intenção de que fosse instaurado procedimento criminal contra o denunciado.

            Sendo a intenção, o dolo, do foro íntimo de cada pessoa, só é possível afirmá-lo, através de factos objectivos e das devidas presunções ou ilações naturais, segundo as regras da experiência.

            Desta forma de ajuizar dá também conta o tribunal a quo ao fundamentar o seguinte:

            Conforme é sabido a prova da generalidade dos factos do foro íntimo ou subjectivo, é normalmente uma prova indirecta sendo essencial o recurso às regras da experiência comum e reflectir em termos de normalidade das relações pessoais e negociais.

Ora, o sentido a que conduz a análise da prova documental junta aos autos e os depoimentos supra referido, para além do dito e do “não dito” pelo arguido, e concretamente os factos supra descritos conduzem, em processo mental indutivo filiado nas máximas da experiência comum, a que se conclua, para além de qualquer dúvida à qual possam ser dadas razões, que toda a conduta do arguido, descrita nos factos provados, contribuiu de forma relevante para o encerramento da actividade da XX..., que tudo se tratou de um esquema engendrado pelo arguido para transferir património para a UU...a, que era uma sociedade constituída pelos filhos, um dos quais menor e que lhe permitia também desviar o dinheiro resultante da venda para uma sociedade terceira que ele controlava: a TT...,  uma off shore.

Com tal actuação o arguido necessariamente quis impedir que os credores da XX... obtivessem o pagamento dos seus créditos.

            2. Perante esta exaustiva fundamentação, não tem ápio a observação do recorrente de que o tribunal a quo não procedeu a um exame crítico da prova e não esclareceu os verdadeiros motivos por que considerou os factos referentes a este crime como provados.

            Uma coisa é o recorrente discordar da fundamentação, pois tendo em conta a sua posição processual, é natural que tenha, como tem, uma versão dos factos diferente daquela que o tribunal deu como provada.

            Mas no que respeita a este crime de denúncia caluniosa, o tribunal apoiou-se, como explicita, sobretudo em prova documental que analisou, pois o filho do arguido, A..., que poderia ajudar o Tribunal com alguns esclarecimentos, recusou-se a depor atento o parentesco com o arguido, faculdade que a lei lhe concede.

            Pois se é certo que, conforme resulta dos autos e o próprio arguido o referencia, em dado momento, a quando do divórcio do arguido, existiam alguns atritos com este filho, a verdade é que com o decorrer do tempo possivelmente esses conflitos dissiparam-se, a relação mudou e esta testemunha não pretendeu depor para não prejudicar o pai. Pelo que restava ao julgador apoiar-se na prova documental dos autos e valorá-la como valorou, objectivamente – pois a queixa crime existe, o inquérito também, o A... foi constituído arguido e existe ainda o despacho de arquivamento do Ministério Público – recorrendo necessariamente às regras da experiências para concluir como concluiu.

É desta forma que entendemos dever improceder a pretensão do recorrente.

3ª Questão: erro na apreciação da prova.

1. Cotejando o teor da motivação de recurso bem como o teor das conclusões, estas supra transcritas, verifica-se que, sob a designação de erro na apreciação da prova, o que o recorrente pretende efectivamente é impugnar o teor dos factos que foram dados como provados e que sustentam a sua condenação por ambos os crimes. Ou seja, o recorrente alega erro de julgamento[1] da prova produzida.

A forma processual idónea de atacar este eventual vício é impugnar a matéria de facto dada como provada.

            E segundo o teor da motivação de recurso, é esta a pretensão do recorrente, pegando em alguns factos dados como provados e confrontando-os com alguns depoimentos prestados em audiência e valorados segundo a versão ou convicção do recorrente.

            Mas formalmente não deu o recorrente cumprimento às exigências legais para validamente impugnar a matéria de facto pretendida consignadas no artigo 412º, nºs 3 e 4, do CPP.

            Outrossim, o recorrente manifesta-se contra a valoração/apreciação que o tribunal a quo fez da prova produzida e que o levou a dar como assentes, os factos que deu.

           

            O recorrente faz uma impugnação da matéria dada como provada fazendo uma apreciação e valoração de alguma prova produzida em audiência de julgamento, mas segundo a sua convicção e versão dos factos.

                       

            Ora, a apreciação da matéria de facto não pode ser colocada nestes termos. Os termos exactos em que o recorrente coloca a questão da impugnação da prova, obrigaria ou traduzir-se-ia numa clara transferência para este Tribunal de recurso a tarefa de apreciar e valorar toda a prova produzida, sem excepção, fazendo-se por esta ínvia via, um verdadeiro segundo julgamento[2].

            Não é esta a função deste tribunal de recurso.

            Se assim não fosse entendido, seria subverter os princípios que subjazem à apreciação e valoração da prova em 1ª instância – da oralidade, imediação e livre apreciação -, maxime o da imediação, pois o que existe na 1ª instância, falha por completo na 2ª: a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e as testemunhas (ou outros participantes processuais), que permita a percepção própria e natural do material a valorar.

            Pelo que vem entendendo a generalidade da doutrina e jurisprudência, que o recurso sobre a matéria de facto para o Tribunal da Relação não configura um novo julgamento a fim de reapreciar toda a prova produzida perante o Tribunal de primeira instância e que se mostre documentada no processo, como se o julgamento ali realizado deixasse de valer. Destina-se antes a remediar erros pontuais de procedimento ou de julgamento, que devem ser indicados ponto por ponto e com menção das provas que demonstram esses erros. Ver, neste sentido, o teor dos acórdãos do STJ de 17-02-2005, 16-06-2005 e 15-12-2005, publicados em www.dgsi.pt/jstj.nsf/, procs. nº 05P058, 05P1577 e 05P2951, respectivamente; o acórdão do Tribunal Constitucional nº 59/2006, de 18-01-2006, publicado no D.R. II Série, nº 74, de 13-04-2006; e PAULO SARAGOÇA DA MATTA, in “A livre apreciação da prova e o dever de fundamentação da sentença”, em Jornadas de Direito Processual penal e Direitos Fundamentais, Almedina, p. 253.

           

Neste sentido se pronuncia igualmente o acórdão desta Relação de Coimbra de 6.12.2000, consultável em www.dgsi.pt.jtrc, onde se decidiu:

«o tribunal superior só em casos de excepção poderá afastar o juízo valorativo das provas feito pelo tribunal a quo, pois a análise do valor daquelas depende de atributos (carácter; probidade moral) que só são verdadeiramente apreensíveis pelo julgador de 1.ªinstância».

 

Mais se entende que o juízo feito pelo Tribunal da Relação é sempre um juízo distanciado pois não é “ colhido directamente ao vivo”, como acontece com o juízo formado pelo julgador em 1ª instância.

           

            Pelo que, em princípio, a imediação da prova, deve levar a que o Tribunal da Relação – sem que busque uma nova convicção – aceite como correcta a decisão de 1ª instância em matéria de facto, sempre que a mesma não seja arbitrária e corresponda a uma das soluções possíveis a extrair da prova documentada.

            Tendo mesmo em ac. de 7.1.2004, proferido no processo nº 3644/03, este TRC decidido que “assentando a decisão recorrida, relativa à questão de facto, na credibilidade atribuída a determinado meio de prova em detrimento de outro, com base na oralidade/imediação, não pode o tribunal de recurso alterar a decisão, salvo se se revelar inadmissível face às regras da experiência comum”.

            O que não significa, de modo algum, que o tribunal de recurso não exerça a sua sindicância quanto ao decidido em termos de matéria de facto, não só quando se verifique qualquer dos vícios do artigo 410º, nº 2, do CPP, o que poderá fazer mesmo oficiosamente, quer quando seja apontado outro vício qualquer pelo recorrente, quando qualquer concreto ponto da matéria de facto esteja devida e legalmente impugnado ao abrigo do artigo 412º, nºs 3 e 4 do CPP.

            2. Mas nenhuma destas situações se verifica no caso concreto.

            O recorrente contrapõe, sim, à valoração feita pelo tribunal a quo, uma valoração própria, baseado numa interpretação que entra em colisão com a feita pelo julgador em 1ª instância.

            Mas se se analisar toda a motivação feita pelo tribunal recorrido, constata-se que estamos perante uma valoração quer dos documentos quer dos depoimentos testemunhais, feita à luz das regras da experiência, daquilo que se deve inferir perante determinados e muitos actos tidos pelo arguido, na constituição das empresas “TT...ORPORATION” – qualificada como sociedade offshore – e “UU...”, com todos os negócios que mais são “negociatas”, entre as três empresas, com o fornecimento de mercadoria pela “XX...” à “UU...” e o pagamento feito por esta à “TT...ORPORATION”, descapitalizando-se a “XX...” .

            Trata-se efectivamente de uma teia de transacções comerciais e de entregas e de emissões de cheques, de todo “inexplicáveis” num comércio jurídico normal e sério, que teve como epílogo a declaração de insolvência da “XX...”. E por detrás de todos estes actos esteve sempre o arguido, atenta a sua qualidade de gerente da “XX...” e da “TT...” e especial relacionamento com a “UU...” .

            É pois, assim, para além do que já se transcreveu da motivação do tribunal, a propósito da fundamentação do crime de denúncia caluniosa, que o julgador explicita o seu raciocínio:

            A testemunha …, que era advogado do arguido e da sociedade XX... à data dos factos, relatou que o arguido, quando se ausentou para França, deixou procurações emitidas aos filhos e a ele próprio, sendo através dele que as ordens sobre a gestão da XX... seriam dadas.

            A testemunha  … é técnico oficial de contas e trabalhou para a XX... durante cerca de 2/3 anos, até 2000. Disse que quem tomava decisões acerca desta empresa era o arguido e que durante todo este período a sociedade tinha as dívidas controladas, nada fazendo supor que iria falir.

            A testemunha  … foi vendedor da XX... durante 10 anos e relatou que, logo quando a UU...a foi constituída, foi trabalhar para esta sociedade, que era do filho do arguido, com a testemunha João ., também como vendedor. O objecto da UU..., a clientela, os fornecedores e os empregados são os mesmos que os da XX..., segundo relatou.

            A testemunha  … foi contabilista da XX... até esta deixar de trabalhar e, por isso, tem conhecimento da situação financeira desta sociedade. Prestou um depoimento credível e descomprometido, relatando que, quando a XX... vendeu mercadoria à UU..., aquela sociedade ficou sem mercadoria para vender e por isso cessou a sua actividade. O principal vendedor da XX... era a testemunha …. A contabilidade continuou a ser organizada até Julho mas já sem actividade. Sabe ainda que o armazém onde funcionava a XX... estava arrendado ao arguido, sendo o arrendamento de cerca de 100.000$00 por mês, que o arguido nunca recebeu.

            Julga que quando a XX... vendeu mercadoria à UU... o arguido não se encontrava em Portugal.

            Esclareceu que a UU... tinha o mesmo objecto, a mesma actividade que a XX..., que exercia com os mesmos funcionários e com a mesma clientela, mas sem os encargos financeiros que a XX... suportava.

            Acrescentou que, segundo julga, se a XX... tivesse recebido o dinheiro da venda dos produtos da UU..., a empresa teria continuado a trabalhar, pois era suficiente para pagar a fornecedores e para comprar mais mercadoria.

            A testemunha  … foi empregado de armazém da XX... durante cerca de 10 a 15 anos e relatou credivelmente que foi trabalhar para a UU... logo que esta foi criada, juntamente com a testemunha José Salgado. Nesta altura o arguido trabalhava na XX..., embora se ausentasse durante alguns períodos e foi ele quem determinou que ele passaria a trabalhar para a UU...a. A venda do stock da XX... à UU... ocorreu depois desta conversa com o arguido.     Sabe que o arguido teve conhecimento da venda, que nesta altura andava pela empresa. Quando passou a trabalhar para a UU..., continuou a vender a mesma mercadoria para a mesma clientela.

            A testemunha …, que foi inquirido e posteriormente acareado com a testemunha  …trabalhou como vendedor da TT… e também ele passou a trabalhar para a UU... quando esta foi constituída, tendo saído ao mesmo tempo que a testemunha  … e que a testemunha …. Contou que foi falar com o arguido e que lhe disse que ia trabalhar para a UU..., já depois da venda de mercadoria à UU....

            Esclareceu que, já na UU..., passou a vender para os mesmos clientes. Sabe também que a mercadoria que entregou na UU... não foi devolvida.
            …

            Ouviu-se também o arguido acerca dos factos de que vem acusado, tendo este negado ter tido qualquer participação na venda de bens feita pela XX... à UU... e na forma como os pagamentos desse bens foram feitos, dizendo que tudo sucedeu na sua ausência.

            Contudo, não conseguiu oferecer explicações consistentes para os factos em que aparece envolvido, tendo-se refugiado na responsabilização do filho A...e do seu advogado, a testemunha  … em tudo o sucedido.

            Não conseguiu designadamente o arguido justificar cabalmente o facto de ter recebido cheques emitidos pela UU... ou a razão pela qual esta sociedade emitiu cheques à ordem da ..., chegando mesmo a dizer que o filho terá querido dar dinheiro à empresa para a qual o pai trabalhava para que esta ficasse economicamente mais sólida e assim beneficiar o pai.

            Reconheceu ainda o arguido que entre a ..., a UU... e a XX... nunca existiu qualquer relação comercial.

            Ora, o certo é que o arguido foi nomeado director da .... no próprio dia em que esta foi constituída, e que a constituição da ... coincidiu com a cessação da actividade da XX... e também com a constituição da UU... (tudo ocorreu em datas muito próximas), o que nos leva a concluir, por recurso às regras da experiência e do normal acontecer e na ausência de qualquer outra justificação válida, que foi o arguido a constituir esta sociedade offshore.

            Por outro lado, embora se tenha ausentado para o estrangeiro, o arguido emitiu procurações aos filhos e ao advogado e assinou, em Agosto de 2000, recibos da XX..., como ele próprio reconheceu.

            Por outro lado, na própria participação crime que fez contra o filho, o arguido, ali denunciante, descreveu com detalhe as causas da emissão pela UU... de diversos cheques pós datados, que foram entregues ao arguido para serem apresentados a pagamentos… Tais factos, conjugado com os depoimentos supra referidos, levam-nos mais uma vez a concluir que continuava a ser ele a controlar as decisões importantes da XX..., através do advogado.

            Mais: conjugando os documentos supra referidos com os depoimentos a que supra se aludiu, num juízo lógico-dedutivo apoiado nas regras da experiência e do normal acontecer, concluiu o Tribunal que: a UU... foi constituída com o mesmo objecto que a XX... e tratava-se de uma sociedade sobre a qual o arguido tinha ascendente, considerando que os sócios eram seus filhos, sendo aliás um deles menor; quando a UU... foi constituída os empregados da XX... passaram a trabalhar para esta sociedade, com o conhecimento do arguido; a XX..., com o conhecimento do arguido, vendeu todo o seu stock à UU..., deixando por isso de ter mercadoria para vender; a clientela da UU... era no essencial a mesma clientela da XX...; a UU... efectuou pagamentos da dívida que tinha perante a XX... através de cheques emitidos à ...., sem que entre esta sociedade e a UU... ou entre a ... e a XX... tenha existido qualquer relação comercial; o arguido pagou os bilhetes de avião para os filhos e a nora se deslocarem a Paris para lhe entregarem os cheques da UU...;.

            Conforme é sabido a prova da generalidade dos factos do foro íntimo ou subjectivo, é normalmente uma prova indirecta sendo essencial o recurso às regras da experiência comum e reflectir em termos de normalidade das relações pessoais e negociais.

            Ora, o sentido a que conduz a análise da prova documental junta aos autos e os depoimentos supra referido, para além do dito e do “não dito” pelo arguido, e concretamente os factos supra descritos conduzem, em processo mental indutivo filiado nas máximas da experiência comum, a que se conclua, para além de qualquer dúvida à qual possam ser dadas razões, que toda a conduta do arguido, descrita nos factos provados, contribuiu de forma relevante para o encerramento da actividade da XX..., que tudo se tratou de um esquema engendrado pelo arguido para transferir património para a UU...a, que era uma sociedade constituída pelos filhos, um dos quais menor e que lhe permitia também desviar o dinheiro resultante da venda para uma sociedade terceira que ele controlava: a TT...,  uma off shore.

            Com tal actuação o arguido necessariamente quis impedir que os credores da XX... obtivessem o pagamento dos seus créditos.

            3. Estamos, pois, perante uma apreciação criteriosa, bem fundamentada, em que é reconstruído todo um puzzle assente da documentação junta aos autos e complementada, no seu enquadramento e compreensão, nos depoimentos testemunhais prestados, tendo o julgador recorrido com sentido sábio de oportunidade processual, às regras da experiência para retirar daí todas as ilações conducentes aos factos que deu como provados.

            Nenhuma censura merece, pois, a matéria fáctica provada nem a fundamentação que sobre a mesma foi exteriorizada nos autos.

            O que significa que também aqui não existe razão do recorrente, improcedendo a sua pretensão.

            4ª Questão: a medida das penas de multa e a taxa diária desta.

            1. Começando pela medida das penas parcelares e da pena conjunta de multa:

            Num primeiro momento o tribunal a quo fez opção pela aplicação de pena de multa em detrimento da pena de prisão. Opção esta não impugnada por nenhum sujeito processual com legitimidade para o fazer. Nada pois, a dizer quanto à mesma.

            Dentro da pena de multa aplicável, o tribunal fez depois a comparação dos regimes aplicáveis, face à sucessão de leis no tempo, quanto ao crime de insolvência dolosa, tendo considerado mais favorável o regime em vigor à data da prática dos factos. Também não foi impugnada esta opção. O que o recorrente contesta é a pena encontrada de 280 dias numa moldura entre 10 e 360 dias. Bem como, dentro da mesma moldura penal, a pena de 200 dias para o crime de denúncia caluniosa.

            Analisada a fundamentação de ambas as penas parcelares, verifica-se que o julgador levou em conta todas as exigências legais, nomeadamente o grau de culpa (sempre um limite inultrapassável, segundo o artigo 40º, do CPenal), bem como as exigências de prevenção geral e especial e demais circunstâncias, onde se inclui a integração social e familiar do arguido e aos não antecedentes criminais.

            É, de resto, a seguinte, a fundamentação das penas encontradas:

            Dentro das molduras penais que cabem aos crimes de denúncia caluniosa e de falência dolosa, deverá a pena ser concretamente determinada em conformidade com o sistema dos dias de multa proposto pelo legislador no n.º2 do art.47º daquele diploma legal, procedendo-se à fixação, em primeiro lugar, do número de dias de multa de acordo com o princípio regulador formulado no art.40º e, seguidamente, do quantitativo diário a achar dentro dos limites definidos na lei considerando, para o efeito, a situação económico-financeira do arguido, bem como os encargos pessoais que ficaram demonstrados.

            No que ao número de dias de multa diz respeito, importa considerar que, nos termos que resultam do art.71º do CP, deverá a pena ser concretamente determinada, dentro dos limites da lei, em função da culpa do agente e das exigências da prevenção.

            Tendo, pois, em conta o princípio geral que acaba de ser formulado, deverão ser neste momento consideradas todas aquelas circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal convocado nem tendo sido já atendidas para efeitos de agravação, sejam expressivas da culpa do arguido e da medida das necessidades de prevenção.

            Relativamente ao crime de denúncia caluniosa, depõe contra o arguido o facto dos motivos que presidiram à sua actuação não serem de modo algum compreensíveis, o dolo directo com que agiu e ainda as já enunciadas exigências de prevenção geral, que são elevadas.

            Já a favor do arguido, depõe o facto de estar profissional e familiarmente inserido e de não ter antecedentes criminais.

Assim, atentas todas estas circunstâncias, julgo adequada a aplicação ao arguido de uma pena de 200 dias de multa.

            No que concerne à determinação do quantitativo diário, considerando as suas condições económico-financeiras, julgo adequado fixá-lo em €:10,00.

           

            a) À luz do regime vigente à data dos factos[3]:

            Contra o arguido será valorado o dolo directo com que agiu e as elevadas exigências de prevenção geral positiva sentidas, bem assim como o montante do prejuízo causado aos credores da sociedade XX..., considerando o dinheiro que não foi pago à TT… pela UU...a na sequência do esquema montado pelo arguido e que, assim, não pode ser utilizado pelos credores da XX... para pagamento dos seus créditos.

            Em seu favor será sopesado o facto de estar familiar e socialmente inserido.

            Assim, julga-se adequado fixar a pena de multa em 280 dias.

            Quanto ao quantitativo diário da pena de multa aplicada ao arguido, considerando as condições económicas deste, é fixado em €:10,00.

            Ponderando, pois, o efectivo grau de culpa, a censura que merece toda a conduta do arguido e as consequências que, quanto ao crime de insolvência, advieram para os credores da XX..., que deixaram de ver os seus créditos ressarcidos, não merece qualquer censura a dosimetria destas penas. O mesmo se diga quanto à pena conjunta que foi fixada em 370 dias numa moldura entre 280 e 480 dias.

            2. O montante diário ou taxa fixada para a multa.

            O tribunal a quo fixou uma taxa diária de 10,00 €, considerando as condições económico-financeiras do arguido.

            Em termos abstractos, tem o recorrente razão ao dizer que a taxa diária da multa deve ser fixada de acordo com a situação económica do arguido e que esta deve ser apurada pelo tribunal.

            Com certeza que lei permite ao julgador lançar mão de alguns expedientes, com vista a apurar com maior exactidão, a real situação económica dos agentes de crimes. Por vezes esta tarefa está facilitada quer pela colaboração do arguido, quer pela situação em que o mesmo se encontra, nomeadamente quando são exteriorizáveis os seus rendimentos, ou porque traduzidos em bens imóveis ou em rendimentos por conta de outrem, facilmente quantificáveis mensalmente. Pode também o tribunal mandar realizar um relatório social para apurar esta situação económica, com todas as debilidades que se conhecem quanto ao modo de obtenção desses elementos e dificuldade em apurá-los. Na maioria reproduzindo o que o agente lhes diz ou alguns vizinhos, tendo sempre que ser filtradas estas declarações.

Pode o tribunal oficiar a algumas entidades tais como Repartição de Finanças para averiguar quais os rendimentos declarados pelo agente para efeitos de IRS e IRC de alguma empresa, mas também se sabe que muitas destas declarações, no exercício de profissões liberais ou análogas, dificilmente traduzem a verdade, com clara fuga ao fisco. E também se sabe, as regras da experiência assim o ditam, que muitos cidadãos têm património mas não titulado ou registado em nome próprio,  na maioria das situações para obviar a eventuais execuções por dívidas. Pelo que tentar colher elementos junto das conservatórias quanto a determinados bens, pode ser tarefa inócua.

            Significa isto que, com a realização destas diligências, poderia apurar-se algo mais sobre a concreta situação económica e financeira do arguido. Mas sempre seria uma visão parcial, pois não se tem desde logo acesso a eventuais contas bancárias ou outros activos financeiros – substitutos actuais do património imóvel.

            Pelo que, perante uma antevisão destas dificuldades, faz todo o sentido o sugerido pelo próprio recorrente, a fls. 1222, quando afirma:

            “Não colhendo estas[4], sempre pode o juiz determinar aqueles factores por estimativa – prova por presunção natural – fundamentando-a sempre, nos termos do disposto no nº2, do artigo 374º, e fazendo constar tudo da sentença”.

            Sendo certo que o tribunal a quo não exteriorizou ou concretizou, ao fixar a taxa diária da multa, qual a exacta situação económica e financeira do arguido, tudo aponta para que o julgador levou em consideração a situação que emerge dos próprios autos, uma vez que o tribunal apreciou ao pormenor toda a actividade profissional e empresarial do arguido, incluindo as diversas transacções e montantes envolvidos bem como a natureza das próprias empresas.

            No entanto, aparentemente, assiste razão ao recorrente ao concluir que existe insuficiência da matéria de facto dada como provada  para a fixação da efectiva taxa de multa, o que poderia traduzir-se no vício do artigo 410º, nº 2, alínea a), do CPP.

           

            E seria fundamento para reenvio do processo para novo julgamento parcial quanto a esta questão – v. artigo 426º, nº 1, do CPP -, se não fosse desde já possível decidi-la como entendemos que pode e deve sê-lo.

            E pode sê-lo precisamente com os fundamentos que já se deixaram supra aflorados de que os autos, apesar de o julgador a quo não o ter explicitado, conter elementos suficientes para ajuizar, dentro das ditas presunções naturais, estimativas, regras da experiência, indícios relevantes, ou outra designação, quanto à situação económica para a fixação da taxa diária da multa.

            Esta determinação da situação económica não necessita de ser exaustiva e rigorosa, ao ponto de se saber ao pormenor qual é todo o património do arguido.

            O apuramento desta situação económico visa apenas a recolha de elementos para a fixação da dita taxa. Sem dúvida que se se conseguir apurar com todo o pormenor e discriminação os rendimentos do arguido, tanto melhor para uma mais ponderada e criteriosa fixação dessa taxa.

            E existe outro dado a ponderar, dentro do apuramento desta situação.

            Como se sabe, a taxa diária da multa pode ser fixada entre o montante de 5,00 e 500,00 euros – artigo 47º, nº 2, do CPenal. Tendo a taxa sido fixada, apesar desta moldura abstracta, em 10,00 € diários, é totalmente diferente da situação caso tivesse sido fixada uma quantia diária de 300, 400 ou o limite máximo de 500 euros!

            Significa que, caso o julgador pretendesse fixar uma taxa diária deste montante, teria de seguir uma maior exigência quanto à possibilidade económica e financeira de o arguido a poder pagar.

            Ora, o montante fixado de 10,00 €, está muito próximo do limite mínimo, que pode ser fixado para um titular com rendimentos a partir dos 1000,00 € mensais. Sem prejuízo, sempre, de uma ponderação entre os rendimentos e encargos efectivos, em cada caso concreto. Por uma questão de equidade e justiça material, a taxa mínima de 5,00€ justifica-se para as situações de rendimentos a rondar o salário mínimo nacional ou por volta desse valor.

            Regressando pois aos elementos que os autos fornecem para estes efeitos, dos mesmos resulta que o arguido tem exercido a actividade de director comercial; que exercia o cargo, como gerente, das duas sociedades, “XX...” e “TT...”; que os negócios e transacções das empresas envolviam muitas dezenas de milhares de euros.; a “XX...” tinha vários trabalhadores que depois passaram a trabalhar para a “UU...”; que o arguido estava no estrangeiro e exercia a partir daí uma gerência fáctica sobre tais sociedades ou empresas; que actualmente continua a viver no estrangeiro.

            São factos que, não dando uma fotografia exacta do real estado financeiro do arguido, indiciam contudo claramente que o mesmo gozava de condições para se poder concluir por uma situação bem desafogada, comparada com o cidadão médio. Sobretudo se se tiver ainda em consideração que muitos montantes pagos pela “UU...”  foram pagos à “TT...” (quando o deveriam ser à “XX...”), sociedade offshore, significando tal facto que o arguido foi criando uma reserva financeira através desta sociedade.

            Decididamente, a taxa de 10,00 € fixada pelo tribunal a quo apenas poderá merecer censura por ser de valor inferior ao que, julgamos nós, poderia ser fixado, dentro da dita moldura que vai até aos 500,00 euros diários.

            Pelo que o arguido não tem razão ao impugnar este valor.

V

DECISÃO

Por todo o exposto, decide-se negar provimento ao recurso confirmando-se a decisão recorrida.

             

Custas a cargo do recorrente com a taxa de justiça que se fixa em 6 (seis) UCs.

Coimbra,

_______________________________________

            (Relator: Luís Teixeira)

            ______________________________________

            (Adjunto: Calvário Antunes)

           

           

[1] Referindo-se a propósito deste, no Ac. RG 5/6/06, proc. nº 765/05-1, o seguinte:

“o erro de julgamento verifica-se:

- ou quando é dado como provado um facto sobre o qual não tenha sido feita qualquer prova e que, por isso, deveria ser dado como não provado;

- ou quando é dado como não provado um facto que, perante a prova produzida, deveria ser dado como provado.

Dito de outro modo, há erro de julgamento quando o juiz decide mal – ou porque decide contrariamente aos factos apurados ou contra lei expressa.”
[2] Também esta afirmação cabe no espírito e teor do acórdão do STJ de 15.12.2005, proferido no processo 05P2951, consultável na base de dados documentais do ITIJ, onde se diz:

“O recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª Instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª Instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros”.
[3] Referente ao crime de insolvência dolosa.
[4] Diligências oficiosas realizadas pelo juiz, ao abrigo dos artigos 340º e 371º, do CPP.