Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
9/08.6TAMTA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: DOCUMENTAÇÃO DA PROVA
NULIDADE
Data do Acordão: 02/01/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - 3º JUÍZO CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.ºS 363º E 364º, DO C. PROC. PENAL
Sumário: A falta de documentação de declarações prestadas oralmente na audiência consubstancia nulidade, nada obstando a que esta seja arguida perante o tribunal de 1ª instância.
E, sendo tal nulidade suscitada, nesse tribunal, a mesma deve ser ali conhecida, podendo o requerente, em caso de indeferimento, recorrer do respectivo despacho.
Decisão Texto Integral: I. Relatório:

1. Após julgamento, em tribunal comum, com intervenção de tribunal singular, por sentença proferida, em 13 de Junho de 2011, no 3.º Juízo Criminal de Leiria, os arguidos A... e B..., devidamente identificados nos autos, foram absolvidos do imputado crime de descaminho de objectos colocados sob o poder público, p. e p. pelo artigo 355.º, do Código Penal.


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2. Após diversas vicissitudes processuais, adiante concretizadas, a assistente “W... - Móveis, Lda.” interpôs recurso, tendo extraído da motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

1.ª - Não é possível ouvir a sessão de julgamento de 13 de Maio de 2011, não se ouvindo, in totum, os depoimentos das testemunhas ….

2.ª - Tal facto, que constitui nulidade da audiência de julgamento, por violação do art. 363.º do Código de Processo Penal (CPP) e do art. 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), foi devidamente invocado no tribunal a quo, que remeteu tal apreciação/decisão para o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra.

3.ª - As testemunhas cujos depoimentos não se encontram gravados são as que foram apresentadas pela Recorrente.

4.ª - Quer a Recorrente quer o douto Tribunal Superior estão impossibilitados de se recorrerem dessas gravações.

5.ª - A inexistente gravação da prova produzida no decurso da audiência de julgamento impede a Recorrente de proceder à impugnação da matéria de facto fixada na sentença, em sede de motivação de recurso, tal como era sua intenção, em clara violação do disposto no art. 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP).

6.ª - Verificando-se a falta de gravação do depoimento de parte das testemunhas, deverá o julgamento ser parcialmente anulado e ordenada a sua repetição, para que as testemunhas  …prestem novas declarações/depoimentos, devendo, depois, ser proferida, em conformidade, nova sentença.

7.ª - Deverá ser declarada nula a audiência de julgamento, por violação do art. 363.º do Código de Processo Penal e, consequentemente, a sentença proferida em 13 de Junho de 2011.

8.ª - A falta de gravação do depoimento de parte das testemunhas tem como consequência a anulação parcial do julgamento, devendo ser ordenada a sua repetição, para que as testemunhas  … prestem novas declarações/depoimentos, devendo, depois, ser proferida, em conformidade, nova sentença.

9.ª - Outro deveria ter sido o despacho proferido pelo Meritíssimo Juiz a quo de fls. 2736, porquanto deveria ter conhecido imediatamente da nulidade da audiência de julgamento e, consequentemente, da sentença.

10.ª - Violou o Meritíssimo Juiz a quo o princípio da economia processual e da utilidade dos actos.

11.ª - Entendendo a Recorrente que o presente recurso, caso o Meritíssimo Juiz a quo tivesse exercido convenientemente a função jurisdicional, seria desnecessário.

Com a consequente violação das seguintes normas legais:

- Art. 412.º, n.º 4, do CPP, a contrario: quando a gravação da prova se achar ininteligível não pode o Recorrente cumprir a exigência legal;

- Art. 20.º da CRP: todos os requerimentos apresentados em tribunal deveriam ter por parte desse mesmo tribunal a consequente decisão;

- Violação dos princípios da economia processual e da utilidade dos actos.

Nestes termos, deve o presente recurso obter provimento e, em conformidade, deverá ser declarada parcialmente nula a audiência de julgamento e em conformidade, nula a sentença proferida pelo tribunal a quo.

Consequentemente, deverão os autos ser remetidos ao tribunal a quo para que repita a audiência de julgamento, limitada à prestação de novas declarações/depoimentos pelas testemunhas … , devendo, depois, ser proferida, em conformidade, nova sentença.


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3. O Ministério Público rematou a sua resposta ao recurso nos termos infra transcritos:

1. Tal como mencionado no recurso interposto pela assistente, verifica-se a impossibilidade de audição da sessão de julgamento do dia 13 de Maio de 2011 referente às testemunhas apresentadas pelo recorrente,  … , pelo que, não ficaram documentadas, na acta, as declarações prestadas.

2. A omissão (ou deficiência) de documentação da prova constitui, nos termos do artigo 363.º do CPP, na actual redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 48/2007, de 29/08, uma nulidade sanável, sujeita ao regime de arguição e de sanação dos artigos 120.º, n.º 1 e 121.º, ambos do CPP, em conjugação com o artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 39/95, de 16 de Fevereiro.

3. O vício da omissão ou deficiência da gravação da prova afecta o valor do acto de produção da prova, ou seja, o próprio julgamento, pelo que, incumbindo ao Tribunal de recurso reapreciar a prova, pode conhecer dela oficiosamente e determinar a sua reparação.

4. A reparação da nulidade implica a repetição parcial do julgamento realizado, na parte correspondente às declarações das testemunhas indicadas pelo recorrente, que não foram devidamente registadas, com a respectiva gravação e transcrição, bem como da elaboração de uma nova sentença, como acto dependente do julgamento.

5. Pelo que, concordando-se com a motivação apresentada, nesta parte, pelo recorrente, deverá ser concedido provimento ao recurso interposto pela assistente.

6. O douto despacho proferido a fls. 2736 encontra-se bem fundamentado, tendo seguido a posição adoptada no recente Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, de 01-06-2011, disponível na Internet em www.dgsi.pt.

7. Atenta a fundamentação e tomada de posição sobre a questão suscitada de acordo com o entendimento dominante na jurisprudência, bem decidiu o tribunal a quo ao remeter para o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra o conhecimento de tal questão.

8. Pelo que, inexiste qualquer violação do disposto no artigo 20.º da CRP e dos princípios da economia processual e da utilidade dos actos.

9. Nesta conformidade, não merece qualquer censura a douta decisão de fls. 2736.

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4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em parecer a fls. 2206, manifestou-se no sentido da procedência do recurso.
Notificados, nos termos e para os efeitos consignados no art. 417.º, n.º 2, do C. P. Penal, os arguidos não exerceram o seu direito de resposta.

Colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

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II. Fundamentação:

1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:

Conforme Jurisprudência constante e pacífica, são as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso, indicadas no art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (cfr. Ac. do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro, publicado no DR, 1-A de 28-12-1995).

As conclusões da motivação do recurso interposto no âmbito do presente processo demandam para apreciação a questão de saber: (i) se ao tribunal a quo competiria decidir da nulidade suscitada com fundamento na omissão parcial do registo de gravação da prova produzida em audiência de julgamento; (ii) nulidade parcial do julgamento, decorrente da inexistência de gravação do depoimento das testemunhas … .


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2. Elementos relevantes à decisão:

A) Na sessão de julgamento do dia 05-04-2011, prestaram declarações a arguida B... e depoimentos as testemunhas …, os quais ficaram devidamente registados em sistema integrado de gravação digital (cfr. fls. 2488 e ss.);

B) Na sessão de 26-04-2011, foi ouvida a testemunha … , cujo depoimento ficou, de igual modo, gravado através do referido sistema (cfr. fls. 2594 e ss.);

C) Na sessão realizada em 13-05-2011, foram ouvidos, na qualidade de testemunhas, arroladas, simultaneamente, pelo Ministério Público e pela demandante civil/recorrente “W... Móveis, Lda.”,  … (cfr. fls. 2641 e ss.). Porém, os respectivos depoimentos não ficaram gravados naquele sistema integrado digital;

D) Por fim, na sessão ocorrida no dia 03-06-2011, prestaram depoimento as testemunhas  … e, a final, prestou declarações o arguido A... (cfr. fls. 2662 e ss.), depoimentos e declaração que ficaram gravados in totum;

E) A sentença (absolutória) foi lida e depositada no dia 13-06-2011.

F) Na mesma data foi entregue ao mandatário da ora recorrente, Sr. Dr. …, CD contendo “a prova gravada de todas as sessões” (cfr. termo a fls. 2681);

G) No dia 30-06-2011, a assistente/demandante civil apresentou no processo requerimento, dirigido ao “Exmo. Sr. Juiz de Direito”, cujo conteúdo passamos a reproduzir:

«1. A Assistente não se conforma com a sentença proferida em 13 de Junho de 2011, à qual apenas teve acesso em 20 de Junho de 2011, após remessa pelo correio, já que na sua leitura V. Exa. detectou alguns lapsos que careceram correcção, motivo pelo qual a mesma não foi de imediato disponibilizada às partes.

2. Entre outros vícios, a Assistente considera que a decisão sobre a matéria de facto não respeita a prova produzida em audiência de julgamento, pelo que pretende impugnar a sentença também nessa parte.

3. Para esse efeito, a Assistente requereu que fosse entregue aos seus mandatários suporte digital com as gravações da prova testemunhal produzida no decurso da audiência de julgamento,

4. Requerimento que foi deferido, tendo-lhe sido entregue o respectivo suporte digital com cópia da prova produzida.

5. No dia imediatamente seguinte à recepção do suporte digital com cópia da prova produzida, a Assistente remeteu o mesmo para a sociedade Alphatrad Internacional Portugal, com sede na Av. da Liberdade, n.º 69 - 4.º D, 1250-140 Lisboa, para que fosse efectuada a respectiva transcrição.

6. Sucede, porém, que no dia 28 de Junho de 2011, pelas 17h44, é a Assistente, por intermédio dos seus mandatários, informada por aquela sociedade que, após (várias tentativas de) audição dos referidos ficheiros se constatou que ocorreram duas situações distintas:

- Impossibilidade de abrir os ficheiros (situação de tal modo grave que bloqueia o sistema informático, sendo necessário novo arranque do mesmo) e consequente impossibilidade de audição, in totum, das seguintes testemunhas: ………

Tudo conforme doc. n.º 1 que ora se junta para os devidos e legais efeitos.

7. Imediatamente após ter conhecimento de tal facto pela sociedade … , os mandatários da Assistente solicitaram o CD em causa para poderem constatar e verificar pessoalmente a situação supra referida,

8. Tendo tal CD chegado à posse dos mandatários da Assistente no dia 29 de Junho de 2011, pelas 17h00, tendo-se apercebido efectivamente da impossibilidade de audição da maior parte dos ficheiros constantes do CD.

Já na presente data (30/06/2011), logo de manhã, e antes de invocarem qualquer nulidade processual (porquanto poderia ser um mero problema informático na gravação do CD), os mandatários da Assistente entraram em contacto com a secretaria do Tribunal, falaram com a Escrivã do  … Criminal, que esclareceu que iria pedir informações ao departamento informático para saber o que se passava, solicitando que entrassem em contacto da parte da tarde.

10. Conforme solicitado, os mandatários da Assistente entraram em contacto novamente com a Sra. Escrivã que informou que, provavelmente, o CD foi mal gravado, conseguindo-se ouvir todas as sessões de julgamento com excepção da sessão de 15 de Maio de 2011.

Porém,

11. O que é certo é que o suporte digital com cópia da prova produzida que está, actualmente, na posse da Assistente não permite a audição da maior parte dos seus ficheiros (em 21 apenas consegue aceder a 10, sendo que 2 deles estão inaudíveis).

12. Ora, a deficiente (inexistente, na maior parte) gravação da prova produzida no decurso da audiência de julgamento impede a Assistente de proceder à impugnação da matéria de facto fixada na sentença, em sede de alegações de recurso, tal como era sua intenção, em clara violação do disposto no art. 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP).

13. A Jurisprudência é unânime no sentido de que a inexistência (bem como a deficiência, quando equiparada àquela) da gravação da prova importa a nulidade prevista no art. 363.º do Código de Processo Penal (…).

14. Acresce, ainda, que apesar da jurisprudência dominante entender que a nulidade decorrente da omissão ou deficiente gravação da prova produzida na audiência de julgamento poder ser suscitada até ao termo do prazo de interposição de recurso, podendo a arguição ter lugar na própria alegação de recurso (…), por mera cautela, uma vez que em teoria poder-se-á entender que o prazo de arguição da nulidade se inicia imediatamente após a disponibilização da gravação da prova, a verdade é que, nos termos supra referidos, existiu um justo impedimento para que tal nulidade não tivesse sido invocada antes da presente data.

15. Justo impedimento é o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários, que obste à prática do acto.

16. Tendo existido justo impedimento da Assistente que obstou a arguição da nulidade antes da presente data, que desde já se invoca, nos termos do art. 146.º do Código de Processo Civil, para os devidos e legais efeitos, requer-se a V. Exa. seja o mesmo deferido e, nessa conformidade, seja declarada a nulidade da prova produzida.

Termos em que, e nos mais de Direito aplicável que V. Exa. mui doutamente suprirá:

Deve ser declarada a nulidade da audiência de julgamento e, consequentemente, da sentença proferida em 13 de Junho de 2011, nos termos dos arts. 363.º e 118.º, n.º 1 do CPP, com as respectivas consequências legais.

Deve, ainda, caso se julgue necessário, ser considerado justo impedimento o facto que impediu a Assistente de invocar a nulidade dentro do prazo de dez dias após a disponibilização dos suportes digitais.

(…)»;

H) Consta do auto de fls. 2728:

«Em 01-07-2011, por me ter sido solicitado verbalmente nova gravação de outro CD fornecido pelo Mandatário da assistente, procedi a nova gravação, tendo de seguida ouvido o mesmo e verificado que se encontram audíveis todas as sessões com excepção da sessão do dia 13-05-2011, pelo que vou proceder à entrega do mesmo ao Dr. … , conforme substabelecimento que juntou aos autos»;

i) Em 01-07-2011, o assistente/demandante civil fez chegar ao processo novo requerimento, deste teor:

«1. No dia de hoje (01/07/2011) o mandatário da Assistente dirigiu-se pessoalmente à secretaria deste Tribunal, onde procedeu ao levantamento de um novo suporte digital com a gravação da prova, uma vez que, conforme referido no requerimento anterior (de 30/06/2011), não conseguiam os mandatários da Assistente ter acesso a 11 dos 21 ficheiros constantes do dito suporte digital, sendo que 2 dos ficheiros a que conseguiram ter acesso estavam inaudíveis.

2. Na posse do novo suporte digital, os mandatários da Assistente puderam confirmar que, efectivamente, conforme informado pela Sra. Escrivã, conseguem-se ouvir todas as sessões de julgamento com excepção da sessão de 13 de Maio de 2011, não se ouvindo, in totum, os depoimentos das seguintes testemunhas: ….

3. Assim, dúvidas não restam que a inexistente gravação da prova produzida no decurso da audiência de julgamento de dia 13 de Maio de 2011 impede a Assistente de proceder à impugnação da matéria de facto fixada na sentença, em sede de alegações de recurso, tal como era sua intenção, em clara violação do disposto no art. 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP).

4. Nestes termos, reitera-se a invocada declaração de nulidade da audiência de julgamento e, consequentemente, da sentença proferida em 13 de Junho de 2011, nos termos dos arts. 363.º e 118.º, n.º 1, do CPP, com as respectivas consequências legais, nomeadamente a repetição do depoimento das supra referidas quatro testemunhas»;

j) Proferiu, então, o Sr. Juiz do tribunal a quo o seguinte despacho:

«A falta de gravação ou a gravação deficiente dos depoimentos prestados oralmente em audiência constitui nulidade a invocar no decurso do prazo de recurso da sentença, pois só com a prolação desta surge na esfera jurídica dos sujeitos processuais por ela afectados o direito ao recurso, designadamente se o seu objecto for a reapreciação da prova gravada[1], devendo o conhecimento de tal questão ser apreciada pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, pelo que nada se determina, já que os suportes digitais de gravação da prova existentes já foram facultados à assistente.

Notifique»;

g) Interpôs então a demandante civil/assistente recurso, com o objecto acima transcrito.


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3. O conhecimento, pelo Tribunal da Relação, da impugnação ampla em matéria de facto, pressupõe e exige que este tribunal de 2.ª instância tenha acesso à prova produzida em audiência de julgamento.

Efectivamente, com a gravação das declarações orais prestadas em julgamento e com a opção de facultar às partes cópia do respectivo registo, a lei pretendeu consagrar um efectivo 2.º grau de jurisdição em matéria de facto, a exercer junto do Tribunal da Relação.

Daí que, em resultado das alterações introduzidas à lei adjectiva penal pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, a redacção então introduzida ao artigo 363.º tivesse imposto, no âmbito do julgamento em processo comum com intervenção de tribunal colectivo, a documentação na acta das declarações orais naquele produzidas, excepto quando o tribunal não pudesse dispor dos respectivos meios técnicos idóneos.

Quanto ao processo comum singular, processo sumário e processo abreviado, outras eram as regras: no primeiro, haveria lugar à documentação, salvo se o Ministério Público, o defensor ou o advogado do assistente declarassem unanimemente para a acta que dela prescindiam (cfr. artigo 364.º); nos outros processos, a documentação dependia de requerimento (cfr. artigo 389.º, n.º 2, e 391.º-E, n.º 2).

O Acórdão do STJ n.º 5/2002 (DR, I Série-A, de 17 de Julho de 2002) pôs termo às divergências jurisprudências até então havidas a propósito do concreto vício - e seu regime - decorrente da falta de documentação da prova oralmente produzida contra o disposto no artigo 363.º[2].

A alteração introduzida no artigo 363.º do Código de Processo Penal pela Lei n.º 48/2007, de 29-08, consagrou a imperatividade da documentação da prova oralmente recolhida na audiência, alargada a todas as referidas formas de processo.

Dispõe esse normativo, inserido no Capítulo IV (Da documentação da audiência) do Título II do Livro VII do CPP, «As declarações prestadas oralmente na audiência são sempre documentadas na acta, sob pena de nulidade».

Com esta alteração legislativa caducou a jurisprudência fixada no citado Acórdão de STJ n.º 5/2002.

Não sendo a nulidade em causa legalmente definida como insanável, tendo presente a disposição do artigo 120.º, n.º 1 do CPP, só pode ser tida como nulidade dependente de arguição.

E é precisamente aqui que começam as divergências jurisprudenciais dos tribunais da relação.

Sem a preocupação de sermos exaustivos, no sentido de percorrer todas as posições que têm sido sustentadas, duas se nos afiguram como mais marcantes.

Uma preconizando que a nulidade deve ser invocada, geralmente, perante o tribunal de 1.ª instância, no prazo de 10 dias, a contar do dia da entrega ao requerente das cópias das gravações, mas sempre a partir da data da leitura da sentença, podendo ainda ser arguida em sede de recurso se o referido prazo de 10 dias ainda se contiver dentro do prazo normal para recorrer[3].

A outra preconizando que a nulidade pode ser sempre arguida em sede de recurso e no prazo deste[4].

Todavia, também esta corrente jurisprudencial e as demais que conhecemos não vão ao ponto de impedir a arguição da nulidade perante o tribunal da 1.ª instância.

E sendo a nulidade suscitada nesse tribunal, deve ser ali conhecida, podendo o requerente, em caso de indeferimento, recorrer do respectivo despacho.

Efectivamente, diverso entendimento atentaria contra o próprio esquema normativo das nulidades ditas relativas ou sanáveis, previsto no artigo 120.º do Código de Processo Penal, e prejudicaria a boa ordenação e economia processual.


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Volvendo ao caso dos autos, e tendo em conta o que ficou escrito, o tribunal a quo omitiu pronúncia sobre a nulidade e o incidente, residual, de justo impedimento invocados pela assistente/demandante civil.

Ocorre, deste modo, irregularidade que afecta o valor do acto praticado, ou seja, o despacho  judicial de fls. 2736 (cfr. n.º 2 do artigo 123.º do CPP), devendo o julgador do tribunal de 1.ª instância titular do processo conhecer a nulidade e, eventualmente, o justo impedimento, depois de cumprir o contraditório, dando aos arguidos a devida oportunidade de se pronunciarem sobre o(s) respectivo(s) requerimento(s) apresentados pela assistente/demandante civil.


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III. Dispositivo:

Posto o que precede, os Juízes que compõem a 5.ª Secção Criminal da Relação de Coimbra, tendo por verificada a aludida irregularidade do despacho judicial proferido em 04-07-2011, a fls. 2736 dos autos, determinam que o tribunal a quo, depois de possibilitar o contraditório, se pronuncie sobre a nulidade suscitada pela assistente/demandante civil W... Móveis, Lda. e o (residual) incidente de justo impedimento.

Sem tributação.


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Alberto Mira (Relator)

Elisa Sales


[1] Conforme, por todos, o recente Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra de 01/06/2011, disponível no sítio da internet www.dgsi.pt., onde se sufraga tal entendimento, perfeitamente dominante senão mesmo pacífico entre a jurisprudência dos nossos Tribunais de Recurso.
[2] Foi fixada jurisprudência no sentido de que essa omissão constituía irregularidade, sujeita ao regime estabelecido  no artigo 123.º, pelo que, uma vez sanada, o tribunal já dela não podia conhecer.
[3] Cfr. Acs. da Relação de Coimbra de 21-10-2009, 09-10-2009 e 09-11-2011, proferidos, respectivamente, nos processos n.ºs Proc. n.º 298/07.3TAPBL.C1, 536/07.2JACBR.C1 e 2184/09.3TALA.C1, todos publicados, em texto integral, no sítio www.dgsi.pt.
[4] V.g., Ac. da Relação de Coimbra de 01-06-2011 (proc. n.º 1/06.5IDGRD.C1), in www.dgsi.pt, indicado no despacho judicial referido na al. j) do ponto 2. da fundamentação do presente acórdão.