Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1380/19.0T8CTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
PROCEDIMENTO CAUTELAR
AUTORIDADE DE SEGURANÇA ALIMENTAR E ECONÓMICA
APREENSÃO
PROCESSO DE CONTRAORDENAÇÃO
Data do Acordão: 11/05/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - C.BRANCO - JL CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 110, 202, 212 CRP, 130 LEI Nº 62/2013 DE 26/8, 64, 65, 66, 362 CPC, 1, 4 ETAF, DL Nº 433/82 DE 27/10
Sumário: I - Tendo sido decretada pela «ASAE – Autoridade de Segurança Alimentar e Económica», no âmbito de um processo contraordenacional – Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro –, a apreensão de produtos que designou como «biocidas», o Juízo Local Cível é materialmente incompetente para conhecer de uma providência cautelar comum – artigos 362.º e seguintes do Código de Processo Civil –, destinada a obter a suspensão daquela apreensão e permitir a comercialização dos produtos, até ser obtida decisão final que reconheça que aqueles produtos não são produtos «biocidas», mas sim artigos «tratados» e, como tal, não dependentes de qualquer licenciamento ou autorização de venda, consoante o disposto no Regulamento (UE) n.º 528/2012, de 22 de maio de 2012.

II - O tribunal competente para conhecer das questões relativas à decisão administrativa que ordenou a apreensão dos bens no processo contraordenacional é o tribunal que for competente para conhecer da decisão que aplicou a contraordenação.

Decisão Texto Integral:












I. Relatório

a) O presente recurso vem interposto do despacho liminar através do qual o tribunal recorrido se declarou materialmente incompetente para conhecer do mérito da causa.

O despacho tem este teor:

«M(…), Lda., propôs contra a ASAE – Autoridade de Segurança Alimentar e Económica o presente procedimento cautelar comum peticionando que seja determinada, sem contraditório prévio, “suspensão da eficácia da medida restritiva de retirada de produtos, com o consequente desbloqueamento dos artigos ora apreendidos, até decisão final que reconheça que produtos comercializados pela Requerente são artigos tratados e, como tal, não dependentes de qualquer licenciamento ou autorização de venda conforme o disposto no Regulamento (UE) n.º 528/2012, de 22 de maio de 2012”.

Alegou, em síntese, que no âmbito de uma ação inspetiva levada a cabo pela requerida na farmácia A (…), sita em (...) da apreensão, como medida cautelar e preventiva, dos produtos elencados no artigo 3.º da petição inicial, por considerar os mesmos biocidas, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 48.º-A do RGCO e com base no despacho n.º 01/MR/2019, proferido pelo Sr. Inspetor Geral (…)

Mais alegou que no referido despacho se determinou a retirada mediata do mercado nacional de todos biocidas não autorizados ou com pedido de autorização junta da Direção Geral de Saúde.

Defende, por um lado a requerente que a punição embora imputável á arguida no âmbito daqueles autos de contraordenação, poderá reverte contra a requerente enquanto responsável pela distribuição dos produtos e colocação daqueles no mercado.

Por outro lado, defende a requerente que a ASAE fez uma incorreta interpretação do Regulamento (UE) n.º 528/2012, de 22 de maio de 2012 - Relativo aos Produtos Biocidas (doravante RPB), mormente dos Art. 17.º n.º 1 e Art. 53.º n.º 1, elo que tanto o ato de apreensão provisória dos produtos, como a medida restritiva de retirada imediata do mercado de produtos biocidas imposta pelo despacho n.º 01/MR/2019 carecem de fundamento legal porquanto tais produtos tratam-se, ao invés de produtos tratados, explanando fundadamente os argumentos em que assenta tal entendimento.

No que concerne à competência deste tribunal, escudando-se no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte proferido no âmbito do proc. n.º 02909/10.4BEPRT sustenta a requerente que a presente ação cautelar visa a suspensão da eficácia de atos que são administrativos uma vez que estamos perante atos de apreensão levados a cabo pela ASAE, ordenando-se a suspensão da medida restritiva de retirada de produtos, com o consequente desbloqueamento dos artigos apreendidos.

Porque tais atos administrativos foram desenvolvidos no âmbito de procedimento contraordenacional, a competência jurisdicional para apreciar da sua legalidade mostra-se conferida aos tribunais comuns e não aos tribunais administrativos.

Vejamos.

Consabido é que a função jurisdicional se encontra confiada aos Tribunais, como órgãos de soberania, que a exercem em nome do povo (cfr. artigo 110.º, n.º 1, e 202.º, n.º 1, ambos da Constituição da República Portuguesa).

A competência do tribunal é um pressuposto processual essencial para que o juiz possa proferir decisão de mérito sobre o fundamento da causa que lhe é apresentada, exercendo o seu dever de administração da justiça, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 156.º do Código de Processo Civil.

A competência ex ratione materiae consiste – nas palavras de Manuel de Andrade (in Noções Elementares de Processo Civil, 1976, pág. 94) – na repartição do poder jurisdicional “pelas diversas ordens de tribunais dispostas horizontalmente, isto é, num mesmo plano, não havendo entre elas uma relação de supra-ordenação e subordinação”, de acordo com a matéria da relação jurídica de direito substantivo que lhes cumpre apreciar e julgar.

Dispõe o artigo 64.º do Código de Processo Civil, em concretização do princípio da plenitude da jurisdição comum – constitucionalmente reconhecido no artigo 211.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e legalmente consagrado no artigo 18.º da LOFTJ –, que são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

Por força do disposto no artigo 212.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.

Por força da legal delimitação negativa, a regra da competência dos tribunais da ordem judicial segue o princípio da residualidade, ou seja, os tribunais judiciais, constituindo os tribunais regra dentro da organização judiciária, gozam de competência não discriminada, gozando os demais, ou seja, os tribunais administrativos, competência em relação às matérias que lhes são especialmente cometidas.

Ora, concretizando a referida disposição constitucional, a lei ordinária prevê, no n.º 1 do artigo 1.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), que “os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.”

Da conjugação deste artigo 1.º, n.º 1, do ETAF com o já citado artigo 212.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, decorre, de forma inequívoca, que se assume, como critério de delimitação da jurisdição administrativa, o da natureza administrativa das pretensões ou relações jurídicas que sejam submetidas à apreciação e julgamento dos tribunais.

Densificando tal preceito, dispõe o artigo 4.º, n.º 1, alínea l) do ETAF que lhes compete a apreciação de litígios emergentes da prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos em matéria de saúde pública, ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas e desde que não constituam ilícito penal ou contraordenacional.

Na verdade, como é também consabido, a competência jurisdicional em matéria contraordenacional está subtraída aos tribunais administrativos e conferida aos tribunais comuns.

É maioritário, senão unânime, o entendimento de que a competência para apreciar da validade de medidas cautelares tomadas no âmbito de um procedimento contraordenacional, mormente de apreensão, ou motivadas pela constatação de plúrimas atuações que preenchem o tipo objetivo de um ilícito contraordenacional, designadamente de retirada do mercado, compete aos tribunais comuns porquanto são estes os tribunais competentes para “Julgar os recursos das decisões das autoridades administrativas em processos de contraordenação, salvo os recursos expressamente atribuídos a juízos de competência especializada ou a tribunal de competência territorial alargada” (artigo 130.º, n.º 2, al. d) da LOFTJ).

Se nos afigura manifesto que o ato de apreensão configura uma medida cautelar adotada no âmbito de um procedimento contraordenacional nos termos do disposto no artigo 48.º-A do RCGO, tem-se igualmente entendido, posição que acolhemos, que pese embora a medida cautelar de retirada do mercado proferida pelo Sr. Diretor Geral da ASAE, que constitui um verdadeiro ato administrativo, preceda a decisão de aplicação de uma coima no âmbito de um concreto procedimento contraordenacional, não deixa por isso de configurar uma medida antecipatória e preventiva dos seus efeitos, tendo, pois, na sua génese a prática de um ou vários atos que configuram um ilícito contraordenacional (veja-se, em sentido idêntico e com inúmeras referências jurisprudenciais, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 18.03.2011, proc. n.º 02909/10.4BEPRT, disponível em www.dgsi.pt).

Aliás, face à notificação que a requerida fez à requerente, dúvidas não há de que a medida cautelar de retirada do mercado dos produtos em apreço, considerados por aquela entidade coobiocidas, foi adotada ao abrigo do poder público fiscalizador concedido por lei à requerida e no âmbito de alegadas infrações configuradas por lei como ilícitos contraordenacionais.

Como tal, esta última circunstância não altera as regras de competência para a apreciação da sua legalidade porque existe lei expressa a atribuir essa competência aos tribunais comuns.

Aqui chegados não poderá deixar de se questionar a competência material no âmbito dos Tribunais comuns.

Começando pela competência material do presente Juízo Local Cível, estatui desde logo o artigo 65.º do Código de Processo Civil que “As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada”.

Em consonância com tal disposição, nos termos do disposto no artigo 81.º, n.º 1 e 3, alíneas b) e d) do mesmo diploma, “os tribunais de comarca desdobram-se em juízos, a criar por decreto-lei, que podem ser de competência especializada, de competência genérica e de proximidade” constituindo os juízos locais cíveis e os juízos locais criminais juízos de competência especializada Ou seja, não ressaltam desde logo dúvidas de que a competência material do presente Juízo se cinge a matéria cível.

Por seu turno, dispõe o artigo 117.º da LOFTJ que “Compete aos juízos centrais cíveis:

a) A preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euro) 50 000,00;

b) Exercer, no âmbito das ações executivas de natureza cível de valor superior a (euro) 50 000,00, as competências previstas no Código do Processo Civil, em circunscrições não abrangidas pela competência de juízo ou tribunal;

c) Preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam ações da sua competência;

d) Exercer as demais competências conferidas por lei”.

Dispondo, em consonância com tal preceito o artigo 130.º, n.º 1 do mesmo diploma que “Os juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica possuem competência na respetiva área territorial, tal como definida em decreto-lei, quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada”.

Por seu turno, e porque estamos perante uma providência cautelar, importa ter presente que, nos termos do disposto no artigo 364.º do Código de Processo Civil, “o procedimento cautelar é dependência de uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurado como preliminar ou como incidente de ação declarativa ou executiva”.

Daí que, quanto aos procedimentos cautelares não enunciados nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 78.º do Código de Processo Civil seja competente o tribunal em que a ação respetiva deva ser proposta.

Ora, das normas até aqui enunciadas ressalta com manifesta clareza que o presente procedimento não depende de qualquer causa principal de natureza cível. Verdadeiramente, e como resulta de forma expressa do próprio pedido formulado pela requerente, esta pretende que seja proferida a final uma decisão que reconheça que os produtos que comercializa são artigos tratados e que, como tal, não dependentes de licenciamento ou autorização e, em consequência, acrescentamos nós à luz do já referido, que inexiste qualquer ilícito contraordenacional.

Ora, não se vislumbra no atual paradigma processual civil qualquer ação que possa sustentar o direito que a requerente pretende ver acautelado. De facto, tal pretensão terá se ser obtida em sede de processo contraordenacional ou, não se acolhendo o supra se expôs quanto a interpenetração das decisões tomadas com a matéria contraordenacional, em processo administrativo.

Por outro lado, sempre se dirá que, pese embora nos termos do disposto do já citado artigo 130.º, n.º 2, al. d) da LOFTJ a competência para julgar e apreciar os recursos de contraordenação se encontre indistintamente atribuída aos “juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica”, logo no n.º 4, al. b) de tal preceito se clarifica (se dúvidas houvesse) que comete aos juízos de pequena criminalidade apreciar os “recursos das decisões das autoridades administrativas em processo de contraordenação a que se refere a alínea d) do n.º 2, quando o valor da coima aplicável seja igual ou inferior a (euro) 15 000,00, independentemente da sanção acessória”.

Na verdade, não se mostra inócuo que nos termos do disposto no artigo 41.º do RGCO o direito adjetivo subsidiário seja o direito processual penal e não o civil Não suscita, pois, dúvidas, que “Inexistindo Juízo de pequena criminalidade na comarca (…), os processos de contraordenação são tramitados pelo Juízo Local Criminal (ou Juízo Local de competência genérica se não houver especialização) competente (…)” (Cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 20.09.2017, proc. n.º 258/17.6T8FND-A.C1, disponível em www.dgsi).

E nem se diga que a pretensão da requerente não encontra cabimento na legislação contraordenacional. De facto, tratando-se de um despacho que determinou a adoção de uma medida cautelar e de um ato de apreensão com base nesse despacho e no âmbito de um processo de contraordenação, afigura-se-nos que a possibilidade de reação a tal decisão/medida encontra respaldo precisamente no disposto no artigo 55.º, n.º 1 do RGCO.

Preceitua tal disposição que “as decisões, despachos e demais medidas tomadas pelas autoridades administrativas no decurso do processo são suscetíveis de impugnação judicial por parte do arguido ou da pessoa contra as quais se dirigem”.

Admitindo que a requerente não foi ainda constituída, não deixará de poder reagir judicialmente ao despacho do Sr. Inspetor Geral da requerida que a visa diretamente enquanto distribuidora nacional dos produtos em apreço porquanto tal despacho e a medida concretamente dotada se lhe dirige.

E para dirimir tal questão será competente, nos termos do n.º 3, o tribunal previsto no artigo 61.º do RGCO, ou seja, o tribunal com competência criminal em cuja área territorial se tiver consumado a alegada infração.

Em tal sentido se decidiu no recentíssimo Acórdão da Relação de Coimbra de 26.06.2019 (proc. n.º 1627/18.0T8CTB.C1, disponível em www.dgsi.pt) no qual se exarou, ainda que tendo por referência a propositura de uma providência cautelar nos tribunais administrativos que “o recorrente intentou uma providência cautelar e a acção que lhe corresponderia, quando o meio processual próprio seria a impugnação judicial da decisão administrativa nos termos previstos nos artigos do 55º, nº 1, 59º, 60º e 62º do RGCO (Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas)”.

E se tem decidido recorrentemente nos tribunais superiores administrativos, onde no acórdão citado pela própria requerente e no qual estava em causa também não só o desbloqueamento dos produtos apreendidos mas ainda a suspensão da eficácia da medida restritiva cautelarmente adotada se consignou que “estando-se em presença de impugnação de diversas actuações/decisões tomadas por uma autoridade administrativa no âmbito de processo(s) de contra-ordenação traduzidas na apreensão dos produtos foi feita ao abrigo do “… artigo 48º-A do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27/10, por estarem destinados a servir a prática de uma contra-ordenação …” e cuja eficácia se pretende ver suspensa com a restituição dos mesmos para sua ulterior comercialização, temos que a competência jurisdicional para discutir e decidir da legalidade daquelas actuações/decisões prolatadas no quadro de processo contra-ordenacional [destinado a apurar se aqueles produtos podem ou não ser considerados produtos «biocida» para efeitos do DL n.º 121/02 e da Directiva n.º 98/08/CE do Parlamento Europeu e do Conselho e se, nessa medida, se mostram ou não abrangidos pela “proibição” de comercialização preenchendo ou não os pressupostos da contra-ordenação inserta no art. 31.º daquele DL] cabe aos tribunais comuns e não aos tribunais administrativos.

Tais medidas de apreensão dos produtos tomadas pela ASAE no quadro e ao abrigo do art. 48.º-A do DL n.º 433/82 (diploma que contém e disciplina o regime geral das contra-ordenações) devem ser impugnadas juntos dos tribunais judiciais através dos mecanismos processuais próprios previstos conjugadamente naquele normativo e ainda nos arts. 55.º, 59.º, 60.º e 61.º do mesmo diploma” (cfr. o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 18.03.2011, proc. n.º 02909/10.4BEPRT, disponível em www.dgsi.pt).

Em suma, pese embora se concorde com requerente no que concerne à competência material dos tribunais comuns, é nosso entendimento que este Juízo Local Cível não é materialmente competente para apreciar a pretensão da requerente, atento o disposto nos artigos 65.º e 78.º doCódigo de Processo Civil e 130.º, n.º 1 e n.º 2, al. d) da LOFTJ.

Urge, assim, tirar consequências da conclusão a que ora se chegou.

A infração das regras relativas à competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal (artigo 96.º do Código de Processo Civil), que configura exceção dilatória (artigo 577º, al. a), do mesmo diploma legal), a qual pode ser arguida pelas partes e deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal em qualquer estado do processo (artigos 97.º, n.º 1, 578.º, 1.ª parte, ambos do Código de Processo Civil), e que determina a absolvição do réu da instância (artigos 99.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, al. a), e 576.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil).

Por ter dado causa à ação, deverá a requerente suportar as custas do processo de acordo com o disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil, fixando à ação o valor indicado pela requerente, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 297.º nº 1 e 306.º do Código de Processo Civil.

Termos em que julgo este tribunal materialmente incompetente para conhecer do mérito da causa e, em consequência, absolvo a requerida da instância.

Custas pela requerente. Valor da ação: € 30.000,00».

b) É, pois, como se disse, desta decisão que vem interposto o recurso, cujas conclusões são as seguintes:

«a) A decisão em crise foi proferida, na sequência da apresentação de procedimento cautelar comum, no qual a Apelante peticionou a determinação da suspensão da eficácia da medida restritiva de retirada de produtos, com o consequente desbloqueamento dos artigos ora apreendidos, até decisão final (no âmbito de ação principal constitutiva a propor);

b) Sendo que com a ação principal pretende a Apelante o reconhecimento de que os produtos por si comercializados são artigos tratados e não produtos biocidas e, como tal, não dependentes de qualquer licenciamento ou autorização de venda;

c) Sucede que o Tribunal a quo julgou-se materialmente incompetente para conhecer do mérito da causa;

d) Pois que, embora reconheça que a competência material é dos tribunais comuns, entende que o Juízo Local Cível não é materialmente competente para a apreciar a tal pretensão;

e) Invocando, para tal, que a providência cautelar não depende de qualquer causa principal de natureza cível;

f) Acrescentando que a pretensão da Apelante terá de ser obtida em sede de processo contraordenacional, sendo o direito adjetivo subsidiário o direito processual penal e não o civil;

g) Sucede que, sem prejuízo da decisão administrativa de apreensão ser suscetível de impugnação judicial, sendo esta sim dirigida aos juízos locais criminais – como, aliás, o fez a Apelante, não pode deixar de ser concedida à Apelante a tutela cautelar dos seus direitos nos termos do Artigo 362.º do Código de Processo Civil”;

h) Sob pena da decisão ora proferida pelo Tribunal a quo coartar todas as hipóteses alternativas de defesa dos interesses da Apelante;

i) A fundamentação apresentada pelo Tribunal a quo cingiu-se apenas à forma de reação através de impugnação judicial, desprezando outros meios de reação disponíveis na esfera jurídica da Apelante de forma a acautelar os seus direitos;

j) O que a Apelante pretende é, concomitantemente com a impugnação judicial, propor a competente ação constitutiva, afigurando-se no entanto necessário requerer a presente providência cautelar antecipatória com vista a acautelar, em prazo razoável, os seus direitos;

k) Sendo o julgamento da ação judicial constitutiva a propor da competência material dos tribunais comuns (cível), designadamente, da Instância Local Cível, é este igualmente competente para apreciar e decidir a providência cautelar;

l) Pelo que, por via do presente recurso, requer a Apelante a determinação da competência material do Tribunal a quo para julgar e decidir o procedimento cautelar ora apresentado.

Nestes termos e nos demais de direito deve o presente recurso ser procedente por provado e em consequência ser determinada a competência material do juízo local cível para julgar e decidir o procedimento cautelar ora apresentado, fazendo-se, assim, a habitual e necessária justiça!»

c) Não há contra-alegações porquanto a requerida ainda não foi citada.

II. Objeto do recurso.

Tendo em consideração que o âmbito objetivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (artigos 639.º, n.º 1, e 635.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o recurso coloca apenas a questão de saber se o tribunal recorrido é competente em razão da matéria para conhecer da causa.

III. Fundamentação

a) Matéria de facto

A matéria factual a ter em consideração é de natureza processual e resulta já do relatório que antecede.

b) Apreciação da questão colocada pelo recurso

Vejamos então se o tribunal recorrido é competente para conhecer da providência cautelar interposta pela recorrente.

Recapitulando, a recorrente sustenta o seguinte:

• Os produtos apreendidos foram-no no âmbito de um processo de contraordenação instaurado no decurso de uma ação inspetiva levada a cabo pela ASAE na farmácia (…), sita em (...) .

• A recorrente pretende obter uma decisão que suspenda a «…eficácia da medida restritiva de retirada de produtos, com o consequente desbloqueamento dos artigos ora apreendidos, até decisão final que reconheça que produtos comercializados pela Requerente são artigos tratados e, como tal, não dependentes de qualquer licenciamento ou autorização de venda conforme o disposto no Regulamento (UE) n.º 528/2012, de 22 de maio de 2012».

• O tribunal cível local é o competente para emitir tal decisão porque existe uma diversidade de meios de impugnação ao dispor da recorrente.

Pode, por um lado, opor-se no processo contraordenacional à decisão administrativa de apreensão, e, por outro, pode instaurar uma ação constitutiva, afigurando-se no entanto necessário requerer a presente providência cautelar antecipatória com vista a acautelar, em prazo razoável, os seus direitos, sendo o julgamento da ação judicial constitutiva a propor da competência material dos tribunais comuns (cível), designadamente, da Instância Local Cível.

Vejamos então.

 Não assiste razão à recorrente, por duas ordenes de razões:

Em primeiro lugar, porque estando a decorrer um processo judicial contraordenacional onde se ordenou uma apreensão de bens, não é viável instaurar outro processo com o fim de obter uma decisão que decida suspender ou levantar essa apreensão de bens.

Em segundo lugar, o juízo cível local não tem competência material para decidir se um produto que se encontra no comércio deve manter-se ou ser retirado do comércio por razões de segurança, de saúde pública ou outras.

Passando ao desenvolvimento destas questões.

(I) A administração da justiça tem em conta as diversas matérias judiciais e para cada matéria que pode ser distinguida de outras matérias, pela natureza das situações jurídicas que estão em causa (constitucionais, civis, penais, administrativas, fiscais, laborais, etc.), assim afeta o julgamento de tais matérias a tribunais determinados.

Teoricamente podia existir apenas um tribunal onde todos os conflitos fossem resolvidos, mas a celeridade e a adequação das decisões de direito aos factos concretos implicam que se criem arranjos que promovam o aperfeiçoamento daquelas finalidades

E isso obtém-se repartindo o poder de julgar por diversos tribunais, consoante a natureza das causas a julgar.

Como referiu o Prof. Alberto dos Reis, «As disposições legais sobre competência destinam-se a este fim: habilitar a pessoa que pretende propor uma ação a determinar em que tribunal há-de propô-la para ter a segurança de obter uma sentença de mérito (…).

Quando não haja razões para duvidar da competência internacional dos tribunais portugueses ou apurado que, nos termos do artigo 65.º, essa competência se verifica, surgem depois os problemas da competência interna. Pretende saber-se qual, dentre os tribunais portugueses, é competente para a ação. Ora este quesito demanda uma averiguação muito complexa, atendendo a que a competência se acha distribuída a cada um deles implica necessariamente um limite à competência de outros.

Logica e cronologicamente a primeira questão de competência interna que se põe é a determinação da espécie do tribunal. Os tribunais portugueses arrumam-se em duas classes: a) tribunais comuns; b) tribunais especiais. O problema da determinação da espécie consiste em saber se a acção deve ser proposta perante o tribunal comum ou perante algum tribunal especial.

Comos e resolve o problema?

O artigo 66.º fornece-nos o critério: as causas que não forem atribuídas por lei a alguma jurisdição especial são da competência do tribunal comum. Vê-se por este texto, que a competência dos tribunais especiais se fixa e conhece directamente, mediante a análise dos diplomas legais que lhes marcam a esfera de acção, ao passo que a competência dos tribunais comuns só se determina por via indirecta ou por exclusão de partes.

Quando a lei cria e organiza um tribunal especial, tem o cuidado de delimitar a sua competência, isto é, de designar a massa de causas de que ele pode conhecer: essas, e só essas, ficam dentro dos eu poder jurisdicional. Portanto, basta examinar com atenção a lei orgânica do tribunal para se verificar se uma certa causa está compreendida na zona da sua competência» ([1]).

Acerca dos elementos determinativos da competência dos tribunais, o Prof. Manuel de Andrade referiu:

«Constam das várias normas que provêem a tal respeito. Para decidir qual dessas normas corresponde a cada um deve olhar-se aos termos em que foi posta a acção – seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidades das partes)» ([2]).

Serve o que fica exposto para realçar como postulado o seguinte: a lei define que tribunal conhece de determinada causa e só esse tribunal pode conhecer dela.

Não existe, pois, competência concorrente entre dois ou mais tribunais para conhecerem do mesmo conflito de interesses concreto, sem prejuízo do sistema de recursos.

(II) Assente que a lei define sempre qual o tribunal que conhece de determinada causa e, em segundo lugar, que só esse tribunal pode conhecer dessa causa, verifica-se que a situação processual relativa ao presente caso se inclui no regime do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, relativo ao «Ilícito de Mera Ordenação Social», diploma este alterado pelos Decretos-Lei n.º 356/89, de 17/10, 244/95, de 14/09 323/2001, de 17/12 e pela Lei n.º 109/2001, de 24/12.

Ora, existe consenso nos autos no que respeita ao tribunal competente para conhecer do processo contraordenacional, no âmbito do qual foi proferida a decisão de apreensão dos bens, por se suspeitar que os mesmos não reunissem as características necessárias à sua comercialização.

Tal tribunal é o Juízo Local Criminal, nos termos previstos no artigo 130.º, n.º 1 da LOFTJ, onde se determina que «Os juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica possuem competência na respetiva área territorial, tal como definida em decreto-lei, quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada».

(III) A recorrente argumenta que as «medidas de apreensão dos produtos tomadas pela ASAE no quadro e ao abrigo do art. 48.º-A do DL n.º 433/82 (diploma que contém e disciplina o regime geral das contra-ordenações) devem ser impugnadas juntos dos tribunais judiciais através dos mecanismos processuais próprios previstos conjugadamente naquele normativo e ainda nos arts. 55.º, 59.º, 60.º e 61.º do mesmo diploma” (cfr. o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 18.03.2011, proc. n.º 02909/10.4BEPRT, disponível em www.dgsi.pt).

Vejamos estas normas do DL n.º 433/82, acabadas de indicar.

O artigo 55.º (Recurso das medidas das autoridades administrativas) dispõe, efetivamente que:
«1. As decisões, despachos e demais medidas tomadas pelas autoridades administrativas no decurso do processo são suscetíveis de impugnação judicial por parte do arguido ou da pessoa contra as quais se dirigem.
2 - O disposto no número anterior não se aplica às medidas que se destinem apenas a preparar a decisão final de arquivamento ou aplicação da coima, não colidindo com os direitos ou interesses das pessoas.
3 - É competente para decidir do recurso o tribunal previsto no artigo 61.º que decidirá em última instância»

O tribunal previsto no artigo 61.º do DL n.º 433/82 é «…o tribunal em cuja área territorial se tiver consumado a infração».

Ou seja, só há um tribunal competente para conhecer das decisões, despachos e demais medidas tomadas pelas autoridades administrativas no decurso do processo contraordenacional (só há um processo, só há um tribunal).

Por conseguinte, para conhecer das questões relativas à decisão administrativa que ordenou a apreensão dos bens no processo contraordenacional, ou de qualquer outra tomada no processo, o tribunal competente é o previsto no referido artigo 61.º; é «…o tribunal em cuja área territorial se tiver consumado a infração».

Nos termos do n.º 2 do artigo 130.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto ( Lei da Organização do Sistema Judiciário), compete aos «Os juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica possuem ainda competência para: (…); d) Julgar os recursos das decisões das autoridades administrativas em processos de contraordenação, salvo os recursos expressamente atribuídos a juízos de competência especializada ou a tribunal de competência territorial alargada, e, nos termos do n.º 4, al. b), compete aos juízos de pequena criminalidade julgar os «Recursos das decisões das autoridades administrativas em processo de contraordenação a que se refere a alínea d) do n.º 2, quando o valor da coima aplicável seja igual ou inferior a (euro) 15 000,00, independentemente da sanção acessória».

Ora, esse tribunal que é sempre o mesmo, porque só existe um processo, é, por isso, o tribunal competente para conhecer da decisão que aplicou a contraordenação.

No artigo 48.º (Da polícia e dos agentes de fiscalização) deste diploma, inserido no «Capítulo III», relativo à aplicação de coimas pelas autoridades administrativas, determina-se o seguinte:
«1. As autoridades policiais e fiscalizadoras deverão tomar conta de todos os eventos ou circunstâncias suscetíveis de implicar responsabilidade por contraordenação e tomar as medidas necessárias para impedir o desaparecimento de provas.
2 - Na medida em que o contrário não resulte desta lei, as autoridades policiais têm direitos e deveres equivalentes aos que têm em matéria criminal.
3 - As autoridades policiais e agentes de fiscalização remeterão imediatamente às autoridades administrativas a participação e as provas recolhidas».

E no artigo seguinte, o artigo 48.º- A (Apreensão de objetos) ([3]), acrescenta-se:
«1. Podem ser provisoriamente apreendidos pelas autoridades administrativas competentes os objetos que serviram ou estavam destinados a servir para a prática de uma contraordenação, ou que por esta foram produzidos, e bem assim quaisquer outros que forem suscetíveis de servir de prova.
2 - Os objetos são restituídos logo que se tornar desnecessário manter a apreensão para efeitos de prova, a menos que a autoridade administrativa pretenda declará-los perdidos.
3 - Em qualquer caso, os objetos são restituídos logo que a decisão condenatória se torne definitiva, salvo se tiverem sido declarados perdidos».

A situação prevista neste artigo 48.º-A foi a que ocorreu no caso dos autos, ou seja, a autoridade administrativa apreendeu os objetos que, no seu entender, materializavam uma contraordenação, ao mesmo tempo que elaborava o respetivo procedimento contraordenacional.

  Verifica-se, face ao disposto no referido artigo 48.º-A, que as autoridades administrativas podem apreender provisoriamente os bens ou objetos que serviram ou estavam destinados a servir para a prática de uma contraordenação, os quais, entre outras utilidades, poderão servir de prova.

Durante o tempo em que decorre a instrução do processo, o n.º 2 deste artigo prevê que os bens apreendidos sejam «restituídos logo que se tornar desnecessário manter a apreensão para efeitos de prova, a menos que a autoridade administrativa pretenda declará-los perdidos».

Em qualquer caso, continua o n.º 3 deste artigo, os objetos serão restituídos logo que a decisão condenatória se torne definitiva, salvo se tiverem sido declarados perdidos.

Verifica-se ainda, face a esta norma, que a apreensão dos objetos se encontra regulada de modo preciso; ordenada com o fim de servirem de prova; com vista ao seu eventual perdimento (seja para posterior destruição ou não) ou restituição ao seu proprietário ou até ao meio ambiente (no caso em que a contraordenação respeita, por exemplo, a animais selvagens capturados).

Concluindo este ponto, a apreensão dos objetos encontra-se regulada de modo preciso no DL n.º 433/82, o que mostra que é o tribunal criminal local que conhece da contraordenação, o competente para decidir todas as questões que se coloquem e possam ter repercussões efetivas sobre essa apreensão.

(IV) Estando o estatuto processual dos bens apreendidos assim definido, como está, no âmbito do procedimento contraordenacional, coloca-se a questão de saber se é viável instaurar uma providência cautelar, percursora de uma ação destinada a mostrar que a contraordenação não existe e a alterar o estatuto processual dos bens apreendidos.

A resposta, como resulta do exposto, é negativa.

Com efeito, a ordem jurídica carateriza-se pela sua harmonia, pela sua não contradição.

Ou seja, se existe um complexo de normas, digamos «A», que disciplina uma certa situação processual, como é o caso do artigo 48.º-A, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, não podem ser aplicadas outras normas de um complexo normativo «B», no caso as normas que definem as condições de comercialização dos produtos apreendidos e as normas dos procedimentos cautelares previstas nos artigos 362.º e seguintes do Código de Processo civil, para decidir o que quer que seja sobre a concreta apreensão de bens no processo contraordenacional.

Esta impossibilidade resulta da distribuição da competência entre tribunais, destinada precisamente a evitar a conflitualidade que poderia ocorrer entre duas ou mais decisões tomadas acerca de conflitos de interesses singulares.

Isto é, a partir do momento em que uma situação concreta é introduzida num tribunal, desde que seja o competente, todos os outros tribunais ficam impedidos de conhecer da mesma situação, salvo a título prejudicial, mas nunca de um modo que tenha pretensões a interferir no processo concreto que corre no tribunal competente ([4]).

Vejamos a situação conflituante em termos práticos, dinâmicos.

Que postura poderia adotar o tribunal onde corre o processo contraordenacional se lhe fosse remetida uma decisão de outro tribunal a ordenar a entrega dos bens apreendidos no processo contraordenacional ao proprietário, maxime, com fundamento em que se perspetivava fortemente que não existiria ilícito contraordenacional, porquanto os bens apreendidos eram bens qualificáveis como «bens tratados» e não como «bens biocidas»?

Certamente que o tribunal onde corre o processo contraordenacional não aceitaria a decisão porque se tratava de uma decisão exterior ao processo contraordenacional, alheia ao processo onde se estava precisamente a julgar se existia ou não existia contraordenação, se os bens apreendidos eram bens qualificáveis como «bens tratados» e não como «bens biocidas».

Estaríamos, nesta hipótese, a promover uma ingerência de um tribunal na competência de um outro em razão da matéria e até num dado processo concreto que se encontra pendente.

Se este procedimento fosse possível ([5]), poderia ocorrer então que um tribunal interferisse na produção de provas (bens apreendidos) recolhidas noutro processo pendente noutro tribunal; que fosse tomada uma decisão num outro processo, suscetível de impedir a eficácia de uma decisão tomada no processo contraordenacional que decretasse a perda dos bens apreendidos, etc.

Ou seja, depois de uma situação concreta, histórica, estar pendente no tribunal competente para conhecer dela, abria-se a porta à emissão de decisões diversas por parte de outros tribunais sobre a mesma questão concreta a resolver.

Bem se vê que isto não pode ser porque não só não seria um modo de produção de decisões potencialmente conflituantes, como, por isso mesmo, um modo desordenado de resolver questões judicias.

Verifica-se, por conseguinte, que estando disciplinado o regime da apreensão de objetos no processo contraordenacional, qualquer decisão que possa ter repercussões nesse estatuto processual de bens apreendidos só pode ser tomada no próprio processo onde se encontram apreendidos.

É esta a solução que vem implicada pelas normas de distribuição da competência interna em razão da matéria.

Isto mostra, por um lado, que não é permitido instaurar um procedimento cautelar cível destinado a interferir no estatuto processual dos bens apreendidos e, por outro, que qualquer outro tribunal não tem competência para decidir interferindo no estatuto processual dos bens apreendidos.

(V) Uma última questão.

A recorrente argumenta que pode instaurar uma ação constitutiva, da qual a presente providência cautelar seria dependente.

Se esta «ação constitutiva» se destinar a obter uma declaração judicial, no confronto com a ASAE, no sentido de que o produto apreendido obedece aos parâmetros legais de que depende a sua comercialização, neste caso, a competência para conhecer de tal ação não será a Instância Local Cível da Comarca de Castelo Branco, mas sim o tribunal administrativo territorialmente competente.

Com efeito, neste caso, já não estaríamos perante uma situação concreta contraordenacional, mas sim perante uma ação de simples apreciação desprendida de um caso concreto pendente num tribunal.

Ora, nos termos do n.º 3 do artigo 212.º da Constituição da República Portuguesa, «Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».

Nas palavras de Gomes Canotilho/Vital Moreira, «Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão do poder público (especialmente da administração), (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico-civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal» ([6]).

O n.º 1 do artigo 1.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Aprovado pela Lei n.º 13/2002 de 19 de Fevereiro) repete a mesma ideia, isto é, «Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».

E no artigo 4.º concretizam-se os casos de competência material, dispondo:

«1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objeto:

a) Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares diretamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de atos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;

b) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por pessoas coletivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, bem como a verificação da invalidade de quaisquer contratos que diretamente resulte da invalidade do ato administrativo no qual se fundou a respetiva celebração; ´

c) Fiscalização da legalidade de atos materialmente administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas, ainda que não pertençam à Administração Pública;

d) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos;

e) Questões relativas à validade de atos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público;

f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objeto passível de ato administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspetos específicos do respetivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que atue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;

g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa;

h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos;

i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público;

j) Relações jurídicas entre pessoas coletivas de direito público ou entre órgãos públicos, no âmbito dos interesses que lhes cumpre prosseguir;

l) Promover a prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas, e desde que não constituam ilícito penal ou contraordenacional;

m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas coletivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;

n) Execução das sentenças proferidas pela jurisdição administrativa e fiscal.

2 - Está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto a impugnação de:

a) Atos praticados no exercício da função política e legislativa;

b) Decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e fiscal;

c) Atos relativos ao inquérito e à instrução criminais, ao exercício da ação penal e à execução das respetivas decisões.

3 - Ficam igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:

a) A apreciação das ações de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como das correspondentes ações de regresso;

b) A fiscalização dos atos materialmente administrativos praticados pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça;

c) A fiscalização dos atos materialmente administrativos praticados pelo Conselho Superior da Magistratura e pelo seu presidente;

d) A apreciação de litígios emergentes de contratos individuais de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes de contratos de trabalho em funções públicas».

Acerca da noção de relação jurídica de direito administrativo, o Prof. Freitas do Amaral definiu-a como sendo «…aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a administração» ([7]).

Por sua vez, o Tribunal de Conflitos no seu acórdão de 8 de Dezembro de 2010 referiu-se a esta problemática, nos seguintes termos:

«…o conceito de relação jurídica administrativa é decisivo para determinar a repartição de competências entre os tribunais Administrativos e os Tribunais Judiciais, na medida em que essa repartição se faz em função do litígio cuja resolução se pede emergir, ou não, de uma relação jurídica administrativa. Nesta conformidade, para se saber qual o tribunal materialmente competente para conhecer da pretensão formulada pelo Autor – se o Judicial se o Administrativo – importará analisar em que termos foi desenhada a causa de pedir e qual foi o pedido formulado, pois será essa análise que nos indicará se estamos, ou não, perante uma relação jurídica administrativa. Sendo certo que para esse efeito é irrelevante o juízo de prognose que se faça relativamente à viabilidade da pretensão, por se tratar de questão atinente ao seu mérito» ([8]).

Sobre o conceito de relação jurídica administrativa o mesmo tribunal, no seu acórdão de 25-11-2010, considerou que, «Por relações jurídicas administrativas devem entender-se aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de interesse público legalmente definido» ([9]).

Sintetizando o que fica exposto, para podermos reconhecer e afirmar que estamos face a uma relação jurídica administrativa temos de isolar dois elementos: por um lado, um dos sujeitos há-se ser uma entidade pública ou se for privada deve atuar legalmente, no caso, como se fosse pública e, por outro, os direitos e deveres que constituem a relação hão-de emergir de normas legais de direito administrativo.

Ora, no caso hipotético de uma ação destinada a declarar, em abstrato, que um determinado produto obedece às características legais previstas para a sua comercialização, tendo como ré a ASAE, naturalmente para esta se abster de efetuar apreensões de tal produto, estaríamos perante apreciação de relações administrativas, porquanto a ASAE é, sem dúvida, uma entidade que integra a administração do Estado e atua revestida de poderes públicos e, por outro lado, a ação visaria uma atuação dessa entidade que se move no âmbito da realização de interesses públicos legalmente definidos, que consistem na fiscalização das condições em que são comercializados determinados bens de consumo público, no sentido de fazer cumprir os requisitos legais para a comercialização e reprimir as respetivas infrações.

Por conseguinte, a relação jurídica debatida em tal ação, pelas razões referidas, tem natureza administrativa, e para conhecimento dos conflitos que têm por base este tipo de relações são competentes os tribunais administrativos.

E, repetindo o já dito, no que respeita à intervenção no processo concreto onde foi feita a apreensão, tal intervenção, no sentido de suspender a decisão que determinou a apreensão, tal intervenção, por razões de competência processual concreta, só é possível no próprio processo onde foi decretada a apreensão, pelo que, também por esta razão, o tribunal recorrido sempre seria incompetente.

Concluindo.

Tendo sido decretada pela «ASAE – Autoridade de Segurança Alimentar e Económica», no âmbito de um processo contraordenacional – Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro –, a apreensão de produtos que designou como «biocidas», o juízo local cível é materialmente incompetente para conhecer de uma providência cautelar comum destinada a obter a suspensão daquela apreensão, e a permitir a comercialização dos produtos, até ser obtida decisão final que reconheça que aqueles produtos não são produtos «biocidas», mas sim artigos «tratados» e, como tal, não dependentes de qualquer licenciamento ou autorização de venda, consoante o disposto no Regulamento (UE) n.º 528/2012, de 22 de maio de 2012.

Improcede, por conseguinte, o recurso.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e mantém-se a decisão recorrida. Custas pela Recorrente.


*

Coimbra, 5 de Novembro de 2019

Alberto Ruço ( Relator)

Vítor Amaral

Luís Cravo


[1] Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2.ª Edição. Coimbra Editora, 1960, págs. 105-107.

[2] Noções Elementares de Processo Civil (Edição revista e atualizada por Herculano Esteves). Coimbra Editora, 1979, pág. 90-91.

[3] Aditado pelo DL n.º 244/95.

[4] Nos termos do artigo 92.º (Questões prejudiciais) do CPC, um tribunal pode conhecer de questão para a qual não é originariamente competente, quando esta surge como antecedente lógico da decisão para a qual é competente.

Nestes caso, a norma em questão determina que «1- Se o conhecimento do objeto da ação depender da decisão de uma questão que seja da competência do tribunal criminal ou do tribunal administrativo, pode o juiz sobrestar na decisão até que o tribunal competente se pronuncie. 2 - A suspensão fica sem efeito se a ação penal ou a ação administrativa não for exercida dentro de um mês ou se o respetivo processo estiver parado, por negligência das partes, durante o mesmo prazo; neste caso, o juiz da ação decidirá a questão prejudicial, mas a sua decisão não produz efeitos fora do processo em que for proferida».

Existem ainda os institutos da litispendência e do caso julgado destinados a solucionar conflitos que possam existir, apesar das proibições de repetição das causas.

[5] Note-se, como referem Gomes Canotilho/Vital Moreira, que, «Sendo independentes, em conjunto, dos demais poderes do Estado, os tribunais também são independentes entre si (pois cada um é órgão de soberania de per si), salvo relações de hierarquia ou supraordenação dentro de cada ordem ou categoria de tribunais (…) e sem prejuízo da cooperação que todos devem uns aos outros na administração da justiça» - Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª Edição. Coimbra Editora, 1993, pág. 794.

[6] Ob. Cit., pág. 815.

[7] Direito Administrativo, Vol. III (Lições aos alunos do curso de Direito em 1988/89), Lisboa/1989, pág. 439/440.
[8] Em http://www.gdsi.pt, processo n.º 020/10.

[9] Em http://www.gdsi.pt, processo n.º 021/10.