Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
860/18.9T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
SUA AFERIÇÃO
Data do Acordão: 05/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JL CÍVEL DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 1311º C. CIVIL; 1º E 4º DO ETAF.
Sumário: I - A competência em razão da matéria afere-se em função dos termos em que a ação é proposta, concretamente em face da relação jurídica controvertida tal como configurada na petição inicial, relevando a identidade das partes, a pretensão e os seus fundamentos.

II – Pretendendo o A. que a R. seja condenada a reconhecer o seu direito de propriedade sobre o prédio rústico em que instalou o PT e que a mesma o remova por não dispor de «qualquer título que lhe confira o direito de manter esse equipamento no seu prédio», utiliza um esquema de pedido e de causa de pedir em tudo semelhante ao constante do art 1311º CC.

III – Segundo o A., o título de que a R. dispôs para instalar e manter na sua propriedade o PT advinha da autorização dele, gratuita e provisória, que se verificaria até ao momento em que ele ou os seus sucessores passassem a ter como inconveniente a implantação do mesmo no prédio em função do aproveitamento deste que entendessem levar nele a efeito, autorização essa com a que a R. concordou. Desde o momento em que o A. pretender urbanizar o prédio e a Câmara Municipal de ... já deu início aos trabalhos para a elaboração e aprovação do plano de pormenor, aquela autorização cessou.

IV - A existência de licença de exploração para a linha Subterrânea referente à PTD nº ... concedida à R. não implicou a constituição de qualquer servidão administrativa, e sendo subsequente ao acordo que a R. deu às condições em função das quais o A. admitia a colocação do PT na sua propriedade, em nada pode interferir nessas condições, não implicando actos administrativos que o vinculem.

V – Não estando em causa a responsabilidade civil extracontratual da R. advinda de um facto lesivo praticado pela mesma no exercício de poderes administrativos, tão pouco se pretendendo a fiscalização da legalidade dos actos jurídicos praticados pela R. no exercício de poderes públicos, mas estando apenas em causa saber se a conduta da R. ofende ou não o direito de propriedade do A. sobre o seu prédio, em função da aceitação pela mesma das condições impostas pelo A. para admitir a presença no seu prédio do referido PT, a competência para a acção pertence aos tribunais judiciais.

VI – Para a aferência da competência em razão da matéria não relevam os factos alegados pelo réu na contestação.

Decisão Texto Integral:


Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

               I – L..., em 20/2/2018, propôs acção de processo comum contra a E..., SA, pedindo a condenação da mesma a reconhecer e respeitar o direito de propriedade dele, A., sobre o prédio identificado no art 1º da petição e, consequentemente, remover o posto de transformação nele instalado.

               Alegou, em suma, que sendo dono de um determinado prédio rústico, em última análise por o ter adquirido por usucapião, foi contactado, em finais de 2011, pela R., que lhe solicitou autorização para colocar um posto de transformação tipo cabine pré-fabricado no limite nascente desse prédio, tendo o A., ultimados contactos nesse sentido, vindo a conceder tal autorização nos seguinte termos: «A presente autorização é concedida a título gracioso e precário, dela não resultando qualquer direito a v/favor, pelo que constitui v/obrigação proceder à remoção e deslocalização do equipamento se porventura a sua implantação se revelar inconveniente no futuro aproveitamento do prédio que o signatário ou qualquer dos seus sucessores vier a levar a cabo no referido prédio. Em tal caso a remoção será solicitada por escrito e deverá ser atendida no prazo de 180 dias». Alega o A. que a R. aceitou as referidas condições. Sucede que a Câmara Municipal de ... deu já início aos trabalhos para a elaboração e aprovação do plano de pormenor da área urbanizável na qual se insere o prédio do A, sendo que a presença do posto de transformação da R. prejudica o aproveitamento urbanístico de toda a frente do prédio, além de que prejudica a afectação do prédio pelo A. para outros fins, nomeadamente de locação, pelo que este solicitou, em 20/1/2016, da R. a remoção do referido posto em 180 dias, ao que a mesma nada respondeu. O A. insistiu e a R. recusa-se a proceder à remoção daquele equipamento, invocando que obteve o licenciamento da sua instalação junto da Direcção Geral de Centro do Ministério da Economia e que lhe assistia o direito de ocupar o prédio do A. enquanto não se encontrasse licenciada a execução de obra que colidisse com a presença do mesmo. Entende o A. que nada ter a ver com o licenciamento junto do Ministério da Economia a que a R. alude, pelo que a mesma carece de qualquer título que lhe confira o direito de manter o referido equipamento no seu prédio.

               A R. contestou, excepcionando a incompetência material do tribunal judicial, referindo que a linha e o PT estão devidamente licenciados pelo órgão do Governo com competência para tal e que tais licenças são concedidas ao abrigo do DL 26852, de 30/7/1936, que fixa as normas a seguir para o licenciamento de todas as instalações destinadas à distribuição de energia eléctrica, entendendo que estando em causa a implantação de uma instalação eléctrica levada a cabo pela R. e devidamente licenciada nos termos da legislação aplicável, verificando-se que a constituição da respectiva servidão administrativa exigiu um acto definidor da administração pública, sendo que só após este foi imposta, e atendendo que o pedido deduzido pelo A. pressupõe, antes de mais, a impugnação do processo administrativo que conduziu ao respectivo licenciamento, são competentes para a acção os tribunais administrativos e não os judiciais. No mais impugnou a pretensão do A.

               Notificado este para se pronunciar sobre a invocada excepção, fê-lo a fls 55  e ss, concluindo pela respectiva improcedência.

               Foi solicitada cópia ao Ministério da Economia a decisão administrativa que culminou com o licenciamento do posto de transformação cuja remoção o A. pretende, tendo sido junto aos autos os documentos de fls 67 a 94, sobre os quais o A. espontaneamente se pronunciou nos termos de fls 96 a 98, reiterando o seu entendimento  a respeito da competência dos tribunais judiciais.

               Foi então proferida a seguinte decisão:

               Da Incompetência em Razão da Matéria:

               Citada a ré E..., S.A. invocou, além do mais, a incompetência material deste Tribunal dizendo para o efeito, no essencial, que a linha e o posto de transformação em causa nos presentes autos foram licenciados pelo órgão do Governo com competência, licenciamento concedido ao abrigo do DL n.º 26852, de 30/07/1936, que fixa as normas a seguir para o licenciamento das instalações destinadas à distribuição de energia eléctrica. Mais diz que a constituição das servidões administrativas de passagem sobre os prédios e terrenos dos particulares assumem natureza especial, porquanto exigem um acto da administração. O pedido formulado pressupõe, pois e como disse, a impugnação do processo administrativo que conduziu ao licenciamento da instalação eléctrica, por eventual ilegalidade ou inexistência do mesmo. 

               Pronunciando-se o autor pugnou pela competência material deste Juízo Local dizendo, em súmula, que a licença de exploração atribuída à ré constitui acto administrativo de efeitos apenas aquela favorável sendo e ao qual foi completamente alheio, não produzindo tal licença qualquer efeito relativamente a si. Mais diz que a constituição de servidão administrativa sobre os prédios necessários para a instalação de equipamentos da concessionária depende de um acto a tanto destinado mas que não se confunde com a licença para aquela. Termina dizendo que a predita licença não envolve nem representa a constituição de uma servidão administrativa, nem o acordo celebrado com o autor representa uma relação ou contrato submetido a regime de direito público, estando-se apenas perante uma relação de direito privado, não dependendo o seu pedido da prévia impugnação do “processo administrativo que conduziu ao respectivo licenciamento”.

               Cumpre, pois, aferir da existência da invocada excepção em razão da matéria, importando para tanto conhecer dos fundamentos da acção e pedido formulado.

               Como bem refere Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, pág. 44, a competência dos Tribunais é a medida da sua jurisdição, ou seja, é o complexo de poderes atribuído por lei a cada um dos tribunais no exercício da sua função jurisdicional.

               A este propósito refere Ferreira Pinto, in Lições de Direito Processual Civil, Almeida e Leitão L.da, 1996/1997, 2ª edição, págs. 142/143, que “(…) é a parcela ou fracção do poder abstracto de julgar que é atribuído em concreto a cada uma das categorias de tribunais existentes no nosso ordenamento jurídico – competência abstracta – é o poder que o tribunal tem, não já em abstracto mas sim em concreto, para julgar uma certa acção – competência concreta” .

               Estabelece o art. 60º, n.º 2 do Código de Processo Civil que “Na ordem interna, a jurisdição reparte-se pelos diferentes tribunais segundo a matéria, o valor da causa, a hierarquia judiciária e o território”. Por sua vez o art. 64º do mesmo diploma dispõe que “São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”. Já o art. 94º do mesmo diploma prevê a possibilidade de as partes convencionarem a jurisdição competente, contudo tal possibilidade mostra-se afastada nos casos previstos no art. 95º n.º 1 do citado diploma que estabelece que “As regras de competência em razão da matéria (…) não podem ser afastadas por vontade das partes (…)”.

               As regras legais de competência em razão da matéria são imperativas e de ordem pública, pelo que, são nulas as disposições que as contrariem nos termos do citado normativo.

               A determinação da competência material versa sobre um conflito de jurisdição uma vez que se trata de decidir qual dos dois Tribunais de espécies diferentes é materialmente competente para conhecer do mérito da causa se, e in casu, os Tribunais Administrativos se os Tribunais Judiciais.

               Dispõe o art. 211º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa que “Os Tribunais são Tribunais comuns em matéria civil e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”.

               Compete aos Tribunais Judiciais julgar todas as acções que não estejam especialmente atribuídas a outra ordem jurisdicional (art. 40º n.º 1 da Lei de Organização do Sistema Judiciário, doravante apenas designada por LOSJ, aprovada pela Lei 62/2013, 26/08 e art. 64º do Código de Processo Civil) e, designadamente aos Tribunais Administrativos.

               Por seu turno, a estes Tribunais cabe “O julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir litígios emergentes de relações jurídico administrativas” (art. 212º, n º 3 da Constituição da República Portuguesa).

Também o art. 1º n.º 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, doravante apenas designado por ETAF, aprovado pela Lei 13/2002 de 19 de Fevereiro, estabelece que “os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto.”

Nos termos do art. 4º n.º 1 do ETAF, “Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a: (…); e) Validade de actos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas colectivas de direito público ou outras entidades adjudicantes; (…); j) Relações jurídicas entre pessoas colectivas de direito público ou entre órgãos públicos, reguladas por disposições de direito administrativo ou fiscal; (…)”

Importa assim analisar a causa de pedir e pedido em causa nos presentes autos, a fim de aquilatarmos da competência ou incompetência deste Tribunal em razão da matéria.

Na presente acção o autor invocou, em síntese, que a ré lhe solicitou autorização para colocar um posto de transformação de energia no prédio de que é proprietário, pedido que foi efectuado por escrito e no qual se comprometeu, além do mais, a deslocalizar o posto em causa na eventualidade do autor, ou futuros proprietários, pretenderem executar qualquer infra-estrutura que colida com aquele, tendo o autor concedido autorização nos termos alegados em 12., isto é, a título precário e sem que da mesma pudesse resultar qualquer direito a favor da ré e com a condição de se obrigar à remoção e deslocalização do equipamento caso a sua implantação se mostre inconveniente, remoção que nesse caso será solicitada por escrito, condições essas que a ré aceitou comprometendo-se a efectuar o desvio do posto de transformação em 180 dias após a sua solicitação. Invoca ainda que a existência do predito posto prejudica o seu prédio e que apesar de ter interpelado a ré para proceder à remoção em causa esta não o fez, recusando-se posteriormente a fazê-lo com o fundamento de ter obtido licenciamento da sua instalação junto da Direcção Regional do Centro do Ministério da Economia.   

               Não está em dúvida que a ré tem como objecto a actividade de distribuição de energia eléctrica e que essa actividade é exercida, no que respeita à distribuição em alta e média tensão, no âmbito de uma concessão decorrente de contrato celebrado com o Estado (cfr. art. 70º do DL n.° 29/2008, de 15 de Fevereiro e DL n.° 172/2006, de 23 de Agosto) e, quanto à baixa tensão, de contratos de concessão celebrados com os municípios.

               Também não está em dúvida que em ambos os casos se trata de concessões exercidas “em regime de serviço público” — n.º 2 do art. 34° e n.° 2 do art. 42° do DL n.° 172/2006, e DL n.° 344-B/82, de 1 de Setembro, Portaria n° 148/84, de 14 de Setembro, sobre os contratos de concessão celebrados com a EDP, alterada pela Portaria n° 90-A/92, de 10 de Fevereiro e posteriormente substituída pela Portaria n°454/2001, de 5 de Maio. Nem tão pouco se questiona que esteja em causa a manutenção ou não do posto de transformação no prédio do autor.

               Da nossa perspectiva, e diferentemente do que pugna o autor, em causa não está também uma pura e mera questão de direito privado, pois que o autor, além de invocar a titularidade do direito de propriedade sobre o prédio em causa nos autos para fundamentar o pedido de condenação da ré a reconhecer tal direito pede ainda a sua condenação a “remover o posto de transformação da ré nele instalado”. Note-se que se é certo que a colocação do posto de transformação teve origem no acordo/contrato com os moldes que o autor alegou também não é menos certo que esse acordo/contrato deu necessariamente origem a procedimentos legais (e administrativos) que culminaram com a colocação do posto em causa no prédio do autor. A qualidade com que a ré interveio no acordo firmado com o autor – pessoa privada de serviço público/entidade concessionária de direito público – não pode também deixar de assumir relevo, tanto mais que o objecto do acordo teve em vista finalidades de interesse público, concretamente a distribuição de energia eléctrica, dela emergindo, pois, relações jurídicas reguladas por disposições de direito administrativo.

               Na presente acção não está verdadeiramente em causa o reconhecimento da propriedade do prédio, que ninguém contesta, mas sim determinar se ao manter o posto de electricidade no prédio do autor, a ré actua ou não de acordo com a lei, no âmbito do regime (administrativo) aplicável, exercendo poderes (administrativos) que lhe são conferidos enquanto concessionária do serviço público de distribuição eléctrica.

               É pois, e por um lado, a validade e a execução do acordo firmado entre as partes, onde se inclui a ré na qualidade de entidade concessionária de interesse público, o qual é regulado nos termos do DL n.º 29/2006, 15/02 e demais disposições de direito administrativo (als. e) e j) do referido art. 4º n.º 1 do ETAF)

               Diferentemente seria, por exemplo, no caso do autor visar efectivar exclusivamente a pretensão indemnizatória fundada na obrigação de indemnização de danos causados por facto lícito, hipótese em que a competência material caberia a este Tribunal comum e que se distingue dos litígios em que se peticiona à cabeça, como na situação sub judice, o reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel afectado pela actividade da entidade demandada que, apesar de interpelada para remover o posto de transformação se recusa a fazê-lo, mantendo-o na propriedade do autor e pedindo que a mesma seja condenada a remover o posto de transformação.

               Note-se ainda que se à instalação do poste de electricidade não está subjacente “qualquer acto administrativo” a verdade é que, e com as devidas adaptações impostas pela circunstância de, aqui, se tratar de uma concessionária de um serviço público, vale o que se escreveu no acórdão do Tribunal de Conflitos de 2 de Março de 2011, proc. n.° 09/10 e disponível in  www.dgsi.pt), onde se escreveu: “não pode (...) afirmar-se que o exercício da função administrativa se resume à prática de actos administrativos de autoridade. A actuação da Administração Pública compreende também actuações materiais e muitas delas não correspondem necessariamente à execução de um acto administrativo. Essas actuações não deixam de ter natureza administrativa pelo facto de se apresentarem sob a forma de simples operações materiais. O que é necessário é que estejam enquadradas nas funções legais da entidade respectiva. Só uma voie de fait — ou seja, uma actuação material totalmente à margem das atribuições e competências da ré — abriria caminho à competência dos tribunais comuns.”

               Pelo exposto entendemos que a presente acção é da competência dos
Tribunais Administrativos — als. e) e j) do n.° 1 do art. 4° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

               Ao instaurar a acção nesta jurisdição – Tribunais comuns – o autor violou as regras relativas à competência em razão da matéria.

               A infracção destas regras importa a incompetência absoluta do Tribunal e implica a absolvição da ré da instância ou o indeferimento liminar quando o processo o comportar (arts. 96º e 97º n.º 1 ambos do Código de Processo Civil).

               Pelo exposto, e ao abrigo dos arts. 4º n º 1 al. d) do ETAF e arts. 99º n.º 1,  278º n.º 1 a), 576º n.º 2 e 577º a) todos do Código de Processo Civil, julga-se procedente a excepção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal, declarando-se materialmente incompetente o Tribunal de jurisdição comum para apreciação da presente acção e, em consequência absolvo a ré da instância.

               Custas a cargo do autor.

               Registe e notifique».

               II - Inconformado, apelou o A., tendo concluído as respectivas alegações, nos seguintes termos:

...

Não foram oferecidas contra alegações.

III – Para a apreciação do presente recurso importa ter presente o alegado na petição e os documentos com ela juntos.

De uma e de outros retira-se, no essencial:

- O A. é dono do prédio rústico a que os autos dizem respeito;

- A R. contactou pessoalmente o A. no dia 14/12/2011, solicitando-lhe autorização para colocar um posto de transformação tipo cabine, no limite nascente desse prédio, vindo, a pedido do A., a colocar por escrito esse pedido, o que a R. fez nos termos constantes do escrito junto a fls 16, datado de 15/12/2011, de que consta: «Conforme conversa havida com V. Excia no dia 14/12/2001, vimos por este o que fez solicitar autorização para colocação de um posto de transformação tipo cabine pré-fabricada conforme plantas anexas com as dimensões 4,50*2,50*2,70 m. Comprometemo-nos também a deslocalizar o referido posto de transformação, caso V. Excia, descendentes ou futuros proprietários do terreno pretendam executar qualquer tipo de infra-estrutura em que esta colida com as mesmas. Com os melhores cumprimentos».

- O A. respondeu nos termos do escrito junto a fls 20, datado de 5/1/2012, que aqui se reproduzem: «Na sequência dos contactos havidos por intermédio do v/ colaborador Sr Eng ... e respondendo à pretensão  exposta na v/ carta de 15 de Dez último, acima referenciada, autorizo a colocação do posto de transformação ali referido na m/propriedade, designada por Quinta de ..., em ...,  junto ao canto formado pela estrema nascente com a chamada Circular-Sul , melhor identificado na planta que acompanhou aquela v/carta. 

A presente autorização é concedida a título gracioso e precário, dela não resultando qualquer direito a v/favor, pelo que constitui v/obrigação proceder à remoção e deslocalização do equipamento, se porventura a sua implantação se revelar inconveniente no futuro aproveitamento do prédio que o signatário ou qualquer dos seus sucessores vier a levar a cabo no referido prédio.

 Em tal caso a remoção será solicitada por escrito e deverá ser atendida no prazo de 180 dias.

Deverão V/ Excias comunicar-me por escrito a aceitação das presentes condições.

Com os melhores cumprimentos».

- A R. por telecópia correspondente ao escrito junto a fls 22, datado de 6/1/12, referiu: «Em resposta à carta de V.Exa de 5/1/2012 e em complemento à nossa carta  1540/11/AOVIS de 15/12/2011, agradecemos a autorização e aceitamos as condições propostas por V.Exas, efectuando o desvio do referido posto de transformação no prazo de 180 dias após a solicitação do mesmo. Apresentando os nossos melhores cumprimentos, subscrevemos».

-  O A. dirigiu-se à R., por telecópia datada de 20/1/2016, correspondente ao escrito de fls  23/24, com o seguinte conteúdo: «Estarão v/ Exas recordados que, no inicio de 2012, autorizei a instalação de um posto de transformação na m/propriedade, denominada de quinta de ..., nesta cidade, a título gracioso e precário, comprometendo-se V. Exas a proceder à sua remoção no prazo de 180 dias, a contar da m/solicitação para tanto.

A presente comunicação representa precisamente o exercício dessa m/faculdade, pelo que solicito que procedam à remoção do equipamento instalado no prazo de 180 dias .

Com os melhores cumprimentos». 

- Não tendo recebido resposta, insistiu o A. por telecópia correspondente ao escrito de fls 25, datado de 21/12/2016, com os seguintes termos: «Tendo decorrido o prazo de 180 dias de pré-aviso ajustado para procederem à remoção do posto de transformação que, a título precário, foi colocado na m/ propriedade, renovo o pedido feito em 20 de Janeiro do corrente ano, a que essa empresa não se dignou responder .

A eventual manutenção por prazo limitado do PT pressuporá a previa celebração de acordo escrito.

 Com os meus cumprimentos»

- A R. recusa-se a proceder à remoção do seu equipamento, invocando que obteve para tanto o licenciamento da sua instalação junto da Direcção Regional do Centro do Ministério da Economia  e que lhe assistiria o direito de ocupar o prédio do A. enquanto não se encontrasse devidamente licenciada a execução de uma obra que colidisse com a presença do posto de transformação .

- O Ministério da Economia e do Emprego, Direcção Regional da Economia do Centro, dirigiu-se à R. pelo ofício correspondente ao escrito de fls 48, datado de 6/9/2012, informando-a que o projecto de instalação eléctrica mencionado em epígrafe - projecto PT 704 tipo CB de 630 KVA, Rede BT, em 1ª Circular Sul- 4ª Fase (ligação da EN 231 à EN 16), freguesia de ... - é considerado aprovado.

               IV – Do confronto entre as conclusões das alegações e da decisão recorrida  resulta constituir objecto do recurso saber se a competência para a apreciação e decisão da presente acção cabe aos tribunais judiciais ou aos administrativos.

Sabido como é, ser residual a competência dos tribunais comuns (art 211º/1 CRP [1], art 64º CPC e 40º/1 da LOSJ), há que verificar se o litigio que está em apreço será da competência dos tribunais administrativos.

Dispõe o art 212º/3 da CRP, que «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».

Dispõe na sua versão actual o art 1º/1 do ETAF (Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro) que «os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto». Remete-se hoje, pois, directamente, para o art 4º, não se fazendo apelo, como anteriormente, «aos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais». E, correspondentemente o art 4º em causa foi consideravelmente ampliado.

Isso não significa, porém, que o critério para aferir da competência dos tribunais administrativos tenha deixado de ser o da natureza da relação jurídica concreta subjacente ao litígio, mas apenas que essa relação jurídica deverá assumir a natureza administrativa e o litígio que lhe subjaz situar-se no âmbito da previsão do artº 4º do ETAF (na versão do Lei n.º 59/2008, de 11/09).[2] 

Com interesse para a situação dos autos importa convocar do art 4º as seguintes alíneas:

«Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a:

   d)- Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos;

h) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público».

Tais alíneas são hoje as correspondentes, respectivamente, às als d) e i) na versão anterior deste art 4º.

A E..., SA, R. na acção, tem por objecto a actividade de distribuição de energia eléctrica. Essa actividade é exercida, no que concerne à distribuição em alta e média tensão, no âmbito de uma concessão decorrente de contrato celebrado com o Estado a que se reporta o art 70º do DL 29/2008 de 15/2 e o DL 172/2006 de 23/8. 

Segundo o art 12º do referido DL 29/2008 de 15/2, as instalações de Rede Eléctrica de Serviço Público destinadas ao transporte e distribuição de electricidade são consideradas, para todos os efeitos, de utilidade pública. 

As empresas concessionárias que sejam, como a R., pessoas jurídicas de direito privado, podem exercer actividades materialmente administrativas, havendo por isso que delimitar o objecto da acção para saber se o A. pretende a efectivação da responsabilidade civil extracontratual da EDP Distribuição Energia SA enquanto sujeito privado que tenha cometido facto lesivo do seu direito de propriedade no exercício dos poderes administrativos que lhe foram conferidos no âmbito da referida função de interesse público; se assim for, natural é que tal facto lesivo implique que lhe seja aplicável um regime moldado sobre o específico da responsabilidade civil do Estado e dos demais entes públicos; ou se estamos na presença de acção destinada à fiscalização da legalidade de actos jurídicos praticados por esse tipo de entidades no exercício de poderes públicos.

 Quer dizer, importa verificar se são competentes para a acção os tribunais administrativos em função da referida al d) ou i) do art 4º do ETAF, ou se o são,  residualmente, os tribunais judiciais.

Sendo pacífico que a competência em razão da matéria se verifica em função dos termos em que a acção é proposta, concretamente em face da relação jurídica controvertida tal como configurada na petição inicial, relevando a identidade das partes, a pretensão e os seus fundamentos [3], devendo,  por isso, atender-se à concreta causa de pedir e ao  pedido formulado na acção, entende este tribunal que uma e outro nos permitem concluir que estamos na presença de uma acção de reivindicação de propriedade.

O que o A. pretende é que a R. seja condenada a reconhecer o seu direito de propriedade sobre o prédio rústico em que instalou o PT, e que a mesma o remova por não dispor de «qualquer título que lhe confira o direito de manter esse equipamento no seu prédio» - cfr art 29º da p i - num esquema de pedido e de causa de pedir em tudo semelhante ao constante do art 1311º CC.

Invoca que o título de que a R. dispõe para instalar e manter na sua propriedade o PT – que residia na mera autorização gratuita e provisória, dele,A., a verificar-se, apenas, até quando ele ou os seus sucessores, passassem a ter como inconveniente a implantação desse PT em função do aproveitamento  que entendessem levar  a efeito no prédio, autorização essa com a que a R. concordou – deixou de existir por ele, A., pretender urbanizar o prédio, tendo a Câmara Municipal de ... dado já início aos trabalhos para a elaboração e aprovação do plano de pormenor e a simples presença do PT prejudicar o aproveitamento urbanístico de toda a frente do prédio ao longo da Circular-Sul, sendo esta frente a mais relevante para potenciar um melhor aproveitamento e valorização do prédio, e ter já interpelado a R. para proceder à remoção do equipamento em 180 dias, sem que a mesma o tivesse feito. 

A existência de licença de exploração para a linha Subterrânea 15 KVA para a PTD nº 704 ... concedida à R. não implicou a constituição de qualquer servidão administrativa, ao contrário do que a R. sugere no art 11º da sua contestação, e sendo a mesma subsequente ao acordo que a R. deu às condições em função das quais o A. admitia a colocação do PT na sua propriedade, em nada pode interferir nessas condições, não implicando actos administrativos que o vinculem. 

O que está em causa na acção não é uma relação ou um contrato sujeito a um regime de direito público, mas meramente privado. Tal como o A. configura a acção, não está em causa a responsabilidade civil extracontratual da R. advinda de um facto lesivo praticado pela mesma no exercício de poderes administrativos, tão pouco se pretende a fiscalização da legalidade dos actos jurídicos praticados pela R. no exercício de poderes públicos. Apenas está em causa saber se a conduta da R. ofende ou não o direito de propriedade do A. sobre o seu prédio, em função da aceitação pela mesma das condições impostas pelo A. para admitir a presença no seu prédio do referido PT. 

Como se refere no voto de vencido no Ac. Tribunal de Conflitos de 10/7/2012 (de que é relatora Mª dos Prazeres Beleza), «neste tipo de acções (entenda-se de reivindicação de propriedade) o que essencialmente se discute é a questão puramente de direito privado, de saber se o direito real invocado pelo «dominus» existe e é oponível ao réu, por forma a tirar-lhe a detenção parcial da coisa; e só acidentalmente se colocará um problema ligado ao direito público – se o detentor se socorrer de regras desta ordem para titular e legitimar a detenção». Nesta circunstância e como é referido no Ac T Conflitos de 30/4/2014 (de que é relator Fernandes do Vale, e que, em situação semelhante à destes autos, decidiu pela competência dos tribunais comuns), «não se pode olvidar que nos termos preceituados pelo art 91º/1 CPC, o tribunal competente para a acção é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantem e das questões que o reu suscite como meio de defesa», concluindo o referido Acórdão no sentido de que, «a prévia determinação, a montante e nos termos que ficaram assinalados, da competência, em razão da matéria, legitima sempre, nos termos do disposto neste artigo e com a compressão constante do respectivo nº 2, a extensão da correspondente competência ao tribunal, originariamente tido por competente, retirando qualquer relevância, na perspectiva considerada, aos termos em que a R. possa contestar  a respectiva acção». [4]

Deste modo, entende-se procedente a apelação, devendo concluir-se pela competência dos tribunais judiciais para o conhecimento da presente acção.

V – Pelo exposto, julga-se procedente a apelação e revoga-se a decisão recorrida, decidindo-se que cabe ao tribunal judicial a competência em razão da matéria para a sua apreciação.

Sem custas.

                                                                                                       Coimbra, 28 de Maio de 2019

(Maria Teresa Albuquerque)

(Manuel Capelo)

(Falcão de Magalhães)


[1]- Nos termos do art 211º/1 CRP, «são da competência dos tribunais judiciais  as causas que não sejam atribuídas a outra jurisdição».
[2]- Cfr  Ac R C 7/11/2017 (Isaías Pádua)
[3] - Cfr Ac T. Conflitos, 20/9/2012
[4] -Veja-se ainda o Ac T Conflitos de 5/6/2008 (Adérito Santos)