Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1677/17.3T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: HERANÇA ILÍQUIDA E INDIVISA
CABEÇA DE CASAL
LEGITIMIDADE SUBSTANTIVA
ADMINISTRAÇÃO ORDINÁRIA
ARRENDAMENTO RURAL
ANULABILIDADE
Data do Acordão: 06/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE LEIRIA DO TRIBUNAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1024.º, 1404.º, 2079.º, 2088.º, 2089.º, 2090.º, 2091.º, DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGO 9º, N.º 4, DO DL N.º 294/2009, DE 13 DE OUTUBRO (LEI DO ARRENDAMENTO RURAL).
Sumário: I) Fora dos casos previstos nos artigos 2088.º, 2089.º e 2090.º, todos do Código Civil, o cabeça de casal só tem legitimidade substantiva para praticar os actos destinados a evitar a perda ou a deterioração dos bens da herança e os destinados a prover à sua frutificação normal.

II) O cabeça de casal não tem legitimidade substantiva para outorgar, na posição de locador, em representação da herança, em contratos de arrendamento por prazo superior a seis anos, por isso extravasar dos meros poderes de administração que a lei lhe confere, mesmo que esteja em causa um arrendamento rural com o prazo mínimo legalmente previsto de sete anos.

III) São anuláveis os contratos celebrado pelo cabeça de casal sem a legitimidade substantiva referida em II).

Decisão Texto Integral:





            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

Na presente acção declarativa de condenação, com processo comum, proposta por A… , viúvo, eng. civil, residente na Rua …., contra B… , casada, economista, residente na Rua …. e C…, S.A, com sede na Rua ….  pede o Autor que, na procedência da ação, as RR. sejam condenadas a:

“A – Verem declarada a anulação do contrato de arrendamento rural celebrado entre ambas e melhor identificado no Doc. 10 junto a esta p.i.

B – A 2ª R. a restituir ao A. enquanto herdeiro das heranças por óbito dos seus falecidos pais, os prédios melhor identificados naquele contrato de arrendamento rural – Artº 289º do Cód. Civil.

C – A 2ª R. a pagar ao A. a título de sanção pecuniária compulsória uma quantia nunca inferior a 100,00€ por cada dia de atraso no cumprimento das obrigações acima peticionadas – Artº 829º-A do Cód. Civil.”

Alega, em síntese, que é herdeiro das heranças ilíquidas e indivisas abertas por óbito de seu pai, D… , e de sua mãe E… , falecidos respetivamente em 7 de janeiro de 2014 e 18 de junho de 2014, com sua irmã, a 1ª R., F…  (Presidente do Conselho de Administração da 2ª R.), únicos filhos dos falecidos, sendo que desde 2 de setembro de 2015 é a irmã do A., quem exerce as funções de cabeça de casal, conforme consta da transação homologada por Sentença nos autos de Procedimento Cautelar que correram seus termos na Secção Cível - J1 do Tribunal da Comarca de Leiria - Pombal - Inst. Local sob o nº 2391/15.0T8LRA (Doc. 2).

Daquelas heranças fazem parte, entre outros, não só as participações sociais que os falecidos detiveram na 2ª R. desde a data da sua constituição, como também os 36 prédios, todos eles, sitos no concelho de Leiria, melhor identificados nas verbas nºs 1 a 36 da relação de bens apresentada para efeitos de Imposto de Selo na Repartição de Finanças de Leiria-2.

O A. e a ré  F… aceitaram as referidas heranças, como resulta desta ação e de vários outros processos pendentes em Tribunal nos quais se disputam os mais variados assuntos relacionados com a partilha das heranças, entre eles o Proc. nº 17/16.3T8LRA – Juiz 4 do Juízo Central Cível de Leiria e o Proc. nº 3023/16 Tribunal da Comarca de Leiria – Unidade Central – 1ª Secção Comércio – J1, conforme Docs. 4 e 9 que junta.

Mais alega que a ré F… , na qualidade de cabeça de casal, mancomunada com o Dr. F…, Vogal do Conselho de Administração da 2ª R., forjaram em 28 de dezembro de 2015 a celebração pelo prazo de sete anos dum contrato de arrendamento rural dos prédios rústicos que identifica, daquelas heranças, contrato que junta como Doc. 10, que dá por reproduzido, que diz estar ferido não só do vício de falsidade, porque nenhuma das Rés quis arrendar ou tomar de arrendamento os identificados prédios, antes pretenderam obstacularizar os direitos do A., como herdeiro das heranças abertas por óbito dos seus falecidos pais, mas também de nulidade porque nem os prédios objeto daquele arrendamento possuem desde há vários anos qualquer aptidão para fins agrícolas, florestais, de campanhas ou sequer atividades de produção de bens ou serviços associados à agricultura, pecuária ou floresta, conforme estipulado no Dec. Lei 294/2009 de 13/10 (Novo Regime do Arrendamento Rural), nem a 2ª R., cujo objeto social consiste exclusivamente no exercício de exploração e venda de argilas e produtos minerais não metálicos, destinados à indústria de cerâmica (Doc. 5), os explora para fins agrícolas, florestais ou outros ligados à agricultura, pecuária ou floresta, mas apenas no exercício da sua referida atividade. De igual modo, porque não assistem poderes ou sequer legitimidade à ré F… , enquanto cabeça de casal, para dar de arrendamento aqueles mencionados prédios – art.ºs 2079º e 2091º, do Cód. Civil - , nem assistem poderes ou sequer legitimidade ao identificado F… para, em nome e em representação da ré  C… , S.A., tomar de arrendamento tais prédios, não só por esta sociedade se obrigar em todos os seus atos e contratos pela assinatura do Presidente do Conselho de Administração, na situação em apreço a ré F… , conforme melhor consta da certidão junta como Doc. 5, como ainda por aquele  F… desempenhar na R. sociedade apenas o cargo de Vogal (m/Doc) – artº 405º, nº 2 do Cód. Soc. Comerciais.

Diz ainda que os prédios objeto do Contrato de Arrendamento Rural em causa, possuem a área global de cerca de 20.000 m2, conforme também melhor consta dos documentos que junta como Docs. 11 a 21, possuem aptidão industrial e/ou comercial atento sobretudo os bons recursos naturais e localização, encontrando-se localizados no interior das Pedreiras nº … denominada …. e nº … denominado …. nº 6 que a 2ª R. explora como extração de barros (Doc. 22 e 23), e foram locados pelo irrisório valor anual de 1.200,00€ estipulado a título de rendas. Assim, mostra-se à evidência que outra vontade não tiveram as Rés senão, mancomunadas, prejudicarem os direitos do A. enquanto herdeiro, em benefício delas próprias. Porque a 1ª R. só após solicitação do A. em carta datada de 8 nov. 2016 lhe deu conhecimento da existência do Contrato de Arrendamento Rural ora em discussão, conforme melhor consta dos documentos que junta (Doc. 24 e 25), vem o A. a juízo pedir a sua anulação por simulação e nulidade do mesmo - Artº 240º e 289º ambos do Cód. Civil.

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Citadas, as Rés apresentaram contestação, a fls. 100 e segs., em que começam por invocar o erro na forma do processo quanto ao pedido B do Autor - restituição dos prédios enquanto herdeiro -, pois que a ação declarativa de petição da herança, nos termos dos art. 2050º, 2075º e 2078º todos do CC, configura uma ação sob a forma especial e os presentes autos são configurados como ação de anulação de contrato de arrendamento celebrado. Não podem os autos de forma de processo comum cumular a ação de petição, sob pena de ineptidão e erro na forma do processo quanto àquele pedido. Citam vários acórdãos a propósito do erro na forma do processo.

Após, invocam a ilegitimidade o A., por estar desacompanhado dos restantes herdeiros, nomeadamente da cabeça de casal, e querer isoladamente que a 2ª Ré seja condenada a restituir-lhe a posse dos imóveis objeto do contrato de arrendamento que integram as identificadas heranças ilíquidas e indivisas abertas por óbito dos seus falecidos pais. Também aqui são citados acórdãos.

Mais dizem que, sem conceder quanto ao erro na forma do processo e à ilegitimidade, sempre se dirá que o cargo de cabeça de casal das heranças em causa é exercido, desde setembro de 2015, pela ré F… , sendo que os termos do nº2 do art. 2078º do Cód. Civil, a possibilidade do exercício da ação de petição por apenas um herdeiro não prejudica o direito que assiste ao cabeça de casal de pedir a entrega dos bens que deva administrar. Nos termos legais, mormente nos termos do art. 2079º do Cód. Civil, cabe ao cabeça de casal a administração da herança até à sua liquidação e partilha, pelo que, a proceder o pedido de restituição da posse dos bens em causa, a sua restituição sempre teria de ser à cabeça de casal e não ao Autor.

Após, defendem-se por impugnação dizendo, além do mais, que o verdadeiro móbil do Autor, como já demonstrado noutras lides processuais, mormente na ação de petição de herança que refere, não é mais do que o interesse de aceder aos imóveis que são instalações e/ou locais de atividade da 2ª Ré, para abusivamente intervir na gestão da mesma, sem que tenha legitimidade ou direito, sendo que a 2ª Ré não tem contra si instaurados quaisquer processos em que se disputem assuntos relacionados com a partilha das heranças, por tal matéria não lhe dizer respeito.

Aceitam alguns factos alegados pelo A. e impugnam outros. Assim, impugnam os art.ºs 7º, 11º a 17º, que dizem ser matéria em discussão noutros processos judiciais, sendo, como tal, irrelevante para a discussão da causa. A invocação de matérias em causa noutros processuais judiciais e a junção das petições iniciais como documentos são totalmente irrelevantes para a pretensa anulação/nulidade do contrato de arrendamento em causa nos autos.

Mais dizem que a 2ª Ré é comproprietária de vários dos imóveis identificados no contrato de arrendamento em crise nos presentes autos, que identificam no ponto 39.

As Rés não forjaram qualquer celebração de contrato de arrendamento rural, contrato que foi efetivamente celebrado, como resultado do documento de contrato assinado pelas partes – Doc. 10 junto com a p.i. – e que foi devidamente comunicado às entidades legais, nomeadamente à AT. As rendas vencidas têm vindo a ser pagas. (cfr. Docs. 6 a 9 que juntam e dão por reproduzidos).

Todos os imóveis objeto do contrato de arrendamento são utilizados há vários anos, nalguns casos há mais de vinte e cinco anos, pela sociedade Ré, tendo sido utilizados gratuitamente em vida dos pais do Autor e da 1ª Ré, bem como durante o período em que o Autor exerceu o cargo de cabeça de casal. Tal ocorreu no contexto do pai do Autor (e da 1º Ré) D… ter adquirido imóveis indiscriminadamente em seu nome pessoal e em nome da 2ª Ré, da qual era o Presidente do Conselho de Administração, fazendo-o com receitas provenientes da 2ª Ré, como é do perfeito conhecimento do Autor.

Foi a 1ª Ré, após assumir o cargo de cabeça de casal (em setembro de 2015), perante vários incidentes e acusações por parte do Autor de pretensos favorecimentos, que propôs no seio da 2ª Ré que a utilização dos imóveis em causa passasse a ser onerosa, celebrando-se assim o contrato de arrendamento em causa em dezembro de 2015. As partes quiseram efetivamente arrendar e tomar de arrendamento os prédios em causa. A atividade da 2ª Ré não se limita nem restringe à extração de argilas e produtos minerais, desenvolvendo todo o processo de extração, exploração, preparação e venda de argilas e produtos minerais, o que implica que, para além de terrenos de extração, necessite de terrenos de apoio à sua laboração, sendo certo que os imóveis em causa no contrato possuem natureza rural, localizando-se fora da área de exploração e a sua função é complementar, não integram as pedreiras nº 4512 e 4608.

O contrato de arrendamento foi realizado com prudência e zelo, quer quanto ao valor, quer quanto ao prazo, tendo sido celebrado pelo prazo mínimo legal dos contratos de arrendamento rural – vide cláusula 3º doc. 1 e art.9 nº1 do DL 294/2009 de 13/10 (Regime jurídico do Arrendamento Rural). O contrato de arrendamento em causa foi outorgado pelo Vogal do Conselho de Administração da 2ª Ré com poderes para tal vertido em Ata do Conselho que consagra precisamente esses poderes e legitimidade - cfr. documento 14 que juntam e dão por reproduzido. No que concerne ao preço do arrendamento corresponde ao valor de mercado. O preço consagrado (e pago) é de 1.200,00€ por ano, pago trimestralmente.

Mais alegam que o pedido de sanção pecuniária compulsória carece de fundamento, mormente de fundamento processual, porquanto o disposto no art. 829º - A do CC carece de prévia condenação judicial ao cumprimento, o que ainda não ocorreu nos presentes autos, sendo que considerando a renda anual de 1.200,00€ e valor de mercado na ordem dos 30.000,00€ sempre seria manifestamente excessivo uma sanção compulsória diária (injustificada) de 100,00€.

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Designada data para realização de audiência prévia, na mesma pelo Autor foi requerido prazo para apresentar resposta escrita à matéria de exceção invocada pelas Rés, o que foi deferido.

Por sua vez a Il. Mandatária das Rés pronunciou-se quanto às questões relativas aos poderes da Cabeça de Casal e do Vogal da Ré sociedade em termos semelhantes aos alegados na contestação.

Pelos Ils. Mandatários das partes foram prestados esclarecimentos, dizendo o Il. Mandatário do Autor que o alegado nos arts. 54º e 55º da p.i. se reporta aos factos alegados nos arts. 10º e segs. do mesmo articulado.

Por sua vez., a Il. Mandatária das Rés disse que o alegado nos art. 95º e segs. da contestação visa significar que os prédios em causa não são agrícolas, mas florestais, tendo uma função complementar à atividade de extração da 2ª Ré, localizando-se fora da área de exploração das pedreiras, servindo de barreira de proteção da zona explorada e para manutenção dos índices de reflorestação da zona.

O Autor veio responder, como consta a fls. 198 e segs., dizendo, em síntese, que não há erro na forma do processo, pois que o pedido de entrega que fez decorre do disposto no art. 289º do Cód. Civil. Quanto à invocada ilegitimidade diz que também não assiste razão às Rés, uma vez que se encontram na ação os únicos herdeiros de  D… e mulher.

Mais invoca abuso de direito por parte das Rés, quando alegam que não tem fundamento o pedido do Autor de entrega ao mesmo dos bens em causa no contrato de arrendamento, devendo sim ser entregues à cabeça de casal, a 1ª Ré, prosseguindo com a alegação de excertos de outros processos em que são partes o aqui Autor e a aqui Ré sociedade ou a aqui 1ª Ré e Outro, e factos relativos a tais processos, que nada têm a ver com a referidas exceções alegadas pela Rés.

No final pede a condenação das Rés por litigância de má fé em multa e indemnização a favor do A. em quantia não inferior a 10.000,00€.

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Notificadas, as Rés vieram dizer, a fls. 211 e segs., em síntese, que do alegado pelo Autor apenas é admissível o que que consta nos arts. 1º a 7º, respeitante às exceções invocadas na contestação. O mais alegado deverá considerar-se como não escrito, por inadmissibilidade processual. À cautela, segundo dizem, pronunciam-se quanto ao mais ali alegado pelo Autor.

Quanto ao pedido de litigância de má fé dizem que não litigaram de má fé, mas sim o Autor, pelas razões que invocam, concluindo que deve ser sancionado em multa e indemnização a pagar às Rés, não inferior a 12.000,00€.

Mais se pronunciam quanto aos documentos ali juntos pelo Autor.

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A fls. 228 e segs. o Autor veio pronunciar-se quanto ao pedido de condenação por litigância má fé formulado pelas Rés, dizendo que, pelos motivos que alega, deve ser indeferido – cfr. fls. 228 e segs.

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Notificadas vieram as Rés dizer, em síntese, que o ali vertido nos arts. 10º a final extravasa o objeto dos presentes autos, devendo ter-se por não escrito.

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Foi proferido despacho a fixar o valor da presente ação, despacho saneador, despacho a identificar o objeto do litígio bem como os temas da prova, tudo conforme fls. 240 e segs.

 Em sede de saneador foi julgado improcedente o invocado erro na forma do processo, bem como a exceção de ilegitimidade ativa.

Em sede de questão prévia foi apreciado o articulado de resposta do Autor à matéria de exceção invocada na contestação pelas Rés. Assim, conheceu-se do invocado “abuso de direito”, terminando-se por admitir o articulado em causa apenas na parte em que se pronuncia quanto às exceções.

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Foi requerida e realizada perícia, a que respeita fls. 286 e segs., que não chegou a ser concluída uma vez as partes não lograram indicar, por acordo, a localização da maior parte dos imóveis referidos no contrato de arrendamento em causa nos autos – cfr. ainda despacho de fls. 311 e fls. 312 a 314.

Foram prestados esclarecimentos pela Srª Perita, que constam a fls. 352.

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Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, com recurso à gravação da prova nela produzida, finda a qual foi proferida a sentença de fl.s 354 a 366, na qual se fixou a matéria de facto considerada como provada e não provada e respectiva fundamentação e, a final, se julgou a acção improcedente, por não provada e, em consequência, se absolveram as rés dos pedidos, ficando as custas a cargo do autor.

Inconformado com a mesma, interpôs recurso o autor A…, recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo – (cf. despacho de fl.s 933), rematando as respectivas motivações, com o que apelida de conclusões, ao longo de 28 páginas, ao arrepio do comando ínsito no artigo 639.º, n.º 1, do CPC “de forma sintética”, pelo que não se procede à sua transcrição, sem embargo de, no local próprio, se assinalarem quais as questões a decidir.

Contra-alegando, as rés, pugnam pela rejeição do recurso de facto, com o fundamento em que o autor não cumpriu o ónus de alegação tal como decorre do disposto no artigo 640.º, do CPC, por não indicar nem a matéria de facto que impugna, nem a matéria de direito que questiona, nem indica os meios de prova que impunham decisão diversa; assim não se considerando, pugnam pela manutenção da decisão recorrida, com o fundamento em que a prova foi bem apreciada, não devendo alterar-se a matéria de facto dada como não provada na decisão recorrida.

Defendem, ainda, a legitimidade da cabeça de casal para celebrar o contrato de arrendamento em causa, por se enquadrar num acto de mera administração, que lhe cabe, nos termos do disposto no artigo 2079.º do Código Civil.

Que o referido contrato não se pode qualificar como “negócio consigo mesmo”, porque foi celebrado pela ré em representação das heranças com a ré sociedade, esta, representada por vogal com poderes para tal.

Que a questão do abuso do direito já foi definitivamente decidida nos autos, no despacho saneador, reiterando, que tal não se verifica.

É inaplicável o disposto no artigo 393.º do CC, por estar em causa apenas a interpretação do âmbito do contrato.

Em consequência do que, não tendo o autor provado os pressupostos de facto em que assenta a sua pretensão, designadamente, o acordo simulatório que presidiu à outorga do referido contrato, nem a intenção de prejudicar o autor, por força da invocada natureza dos prédios em causa, deve manter-se a decisão recorrida.

Por último, defendem que não se mostram verificados os pressupostos para serem condenadas por litigância de má fé.

(…)

Colhidos os vistos legais, há que decidir.   

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, são as seguintes as questões a decidir:

A. Incorrecta análise e apreciação da prova, relativamente aos factos constantes do item 22.º dos factos provados, que devem passar a ter a seguinte redacção:

“Todos os onze prédios objecto do contrato de arrendamento possuem não só como é natural aptidão florestal como também aptidão explorativa de recursos geológicos e edificativo” e;

Itens 1.º e 2.º dos factos dados como não provados, que devem passar a considerar-se como provados;

B. Se a sentença recorrida viola o disposto no artigo 393.º do CC, por se ter permitido a produção de prova testemunhal para alterar o objecto do contrato de arrendamento (cláusula 2.ª), bem como viola o disposto no artigo 293.º do mesmo Código, ao aplicar ao dito contrato o regime do contrato de locação;

C. Se a ré F… , na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de seus pais, de que também é herdeiro o recorrente, não tinha poderes para celebrar o contrato de arrendamento em apreço, por nele ter sido fixado o prazo de 7 anos, automaticamente renováveis;

D. Se as rés agem em abuso do direito e;

E. Se as rés litigam de má fé.

É a seguinte a matéria de facto dada por provada na decisão recorrida:

1. O A. e a R. F… , são os únicos herdeiros, das heranças ilíquidas e indivisas, que aceitaram, abertas por óbito do seu pai, D… , falecido no lugar e freguesia da …, concelho de…, em 7 de janeiro de 2014, e de sua mãe,  E… , falecida no mesmo lugar, em 18 de junho de 2014.

2. Desde 2 de setembro de 2015, F… , exerce as funções de cabeça de casal, das heranças dos pais, conforme consta da “transação” homologada por Sentença nos autos de Procedimento Cautelar que correram termos na Secção Cível - J1 do Tribunal da Comarca de Leiria - Pombal - Inst. Local sob o nº 2391/15.0T8LRA.

3. Fazem parte de tais heranças, entre outros bens, as participações sociais dos falecidos na R. Sociedade, prédios rústicos e frações de prédios rústicos, sitos no concelho de Leiria, melhor identificados nas verbas nº 1 a 36 da Relação de Bens apresentada por óbito de D… , para efeitos de Imposto de Selo na Repartição de Finanças de Leiria-2

4. O A. instaurou Ação de Petição de Herança contra C… , S.A. - processo nº 17/16.3T8LRA – Juiz 4 do Juízo Central Cível de Leiria.

5. C… , S.A., matriculada sob o nº 500014396, tem por objeto social a “exploração e venda de argilas e de produtos minerais não metálicos destinados à industria cerâmica” e tem sede na …., concelho de Leiria.

6. Até 23/06/1997 tinha a denominação de “C… , Lda.” (Ap. 16/970623).

7. Em 1974 eram sócios de C… , Lda., o A., a ré F… e seus pais, tenho o A. e a irmã, cada um, uma quota no valor nominal de 250.000$00, que no ano de 1991 foram alteradas para o valor nominal cada de 750.000$00, aquando do aumento do capital social da 2ª R. para o valor de 40.000.000$00, mantendo-se a titularidade do restante capital na pessoa dos pais do A. e da ré F… .

8. Com a alteração no ano de 1997 (Ap. 16/970623 da matrícula 901/740223) da natureza jurídica da Ré sociedade para sociedade anónima manteve-se, o capital social desta, no valor de 40.000.000$00, distribuído por ações ao portador no valor nominal cada de 1.000$00, pela seguinte forma: o A. e a sua irmã com 750 ações cada,  E… com 7.500 ações, D… com 30.980 ações e G… , com 20 ações, com o valor nominal cada uma de 1.000$00.

9. Conforme Ap. 2/20070827 foi aumentado o capital para 200.000,00€ correspondente a 40.000 ações com o valor nominal de 5,00€.

10. Do capital da Ré sociedade 20.000 ações, constitui o capital, no montante de 1.521.975,00€, distribuído por 304.395 ações ao portador, com o valor nominal de 5,00€, de H… – Investimentos e Participações, SGPS, S.A., com sede na Rua …., sociedade esta, da qual é única acionista H… – Associates Europe Limited, com sede no Reino Unido.

11. Segundo a Ap. 29/20121213, a forma de obrigar a ré C…, S.A. é “a) Pela assinatura do presidente do conselho de administração b) pela assinatura de um ou mais mandatários. Estrutura da administração: Pertence a um conselho de administração composto por dois membros, eleitos em assembleia geral, um dos quais será eleito Presidente.”

12. De acordo com a Ap. 6/20160405 fazem parte do Conselho de Administração da ré sociedade, F… , com o cargo de Presidente, e F… , com o cargo de Vogal.

13. A sociedade Ré desde a sua fundação até ao falecimento de D… , foi considerada por clientes, fornecedores, uma empresa familiar, sendo gerida por aquele e depois pela filha.

14. As relações entre o A. e a irmã são conflituosas, principalmente desde o falecimento dos pais.

15.F… , na qualidade de cabeça de casal das “Heranças Abertas por óbito de D… e E… ” (1º outorgante), e “ C… , S.A.” (2ª outorgante), representada por F…, Vogal do Conselho de Administração da mesma, elaboraram e dataram de 28 de dezembro de 2015, “Contrato de Arrendamento Rural”, com o seguinte teor:

“A) Considerando que a Segunda encontra-se a ocupar gratuitamente os prédios objecto do presente contrato, tendo a posse dos mesmos, sendo que é comproprietária de parte deles;

B) Que a segunda efectuou nos prédio, durante mais de 25 anos, obras e benfeitorias a suas expensas;

É celebrado o presente contrato de arrendamento rural, que se rege pelas seguintes cláusulas:

(Imóvel)

1- O primeiro outorgante e senhorio é dono e legítimo proprietário dos seguintes prédios rústicos, doravante Prédios:

- 1/2 do prédio rústico denominado “…”, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 21577 da União das Freguesias de ….,

- 1/2 do prédio rústico denominado “….”, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 10751 da União das Freguesias de …., descrito na Conservatória do Registo Predial sob a descrição 10473 – freguesia de….

- 1/2 do prédio rústico denominado “….”, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 10742 da União das Freguesias de …., descrito na Conservatória do Registo Predial sob a descrição 10423 – freguesia de .…

- 1/4 do prédio rústico denominado “….”, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 10492 da União das Freguesias de …,

-1/4 do prédio rústico denominado “…”, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 10493 da União das Freguesias de …,

- prédio rústico denominado “…”, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 9983 da União das Freguesias de …,

- prédio rústico denominada “… inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 9981 da União das Freguesias de ….,

- prédio rústico denominado “…”, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 9979 da União das Freguesias de ….,

- prédio rústico denominado “…”, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 9975 da União das Freguesias de …;

- prédio rústico denominado “…” inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 9955 da União das Freguesias de ….,

- prédio rústico denominado “…”, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 9953 da União das Freguesias de …,

2-Pelo presente contrato, o primeiro outorgante dá de arrendamento os Prédios e o Segundo aceita o arrendamento dos Prédios supra referidos.

(Objecto)

1- O arrendamento é rural e destina-se ao exercício da atividade da Segunda.

2- O arrendamento inclui as infra-estruturas existentes no arrendado, com excepção das benfeitorias realizadas a expensas do arrendatário.

(Prazo)

O presente contrato é celebrado pelo prazo legal mínimo de 7 (sete) anos, renovando-se automaticamente por iguais períodos, tendo o seu início a 1 de Janeiro de 2016.

(Renda)

1-A renda anual base é de 1.200,00€ (mil e duzentos euros) sendo paga trimestralmente até ao ultimo dia do último mês de cada trimestre (…)

2 - O valor da renda acordado entre as partes teve em conta as despesas e encargos que o locatário venha a suportar com a realização no locado de obras de conservação, adaptação ou beneficiação que inclusive pela sua natureza venham a aumentar o valor locativo do arrendado, bem como pelo bom uso do locado.

3- A Renda será actualizada anualmente de acordo com os coeficientes legais estipulados na lei para os arrendamentos rurais ou por acordo das partes.

4- Em caso de cessação do contrato, o locatário não terá direito a indemnização por quaisquer benfeitorias ou alterações realizadas no Prédio considerando que na fixação do valor da renda atendeu-se a que as benfeitorias não serão indemnizáveis.

(Sublocação)

O locatário não pode sublocar ou ceder o Prédio no todo ou em parte, onerosa ou gratuitamente, salvo autorização expressa por escrito do primeiro outorgante e senhorio.

(Obras e Benfeitorias)

1 - Ao segundo outorgante e locatário não é permitido fazer obras de qualquer natureza, sejam de conservação ordinária, extraordinária ou de beneficiação sem autorização escrita do senhorio.

2 - Se o senhorio levar a efeito quaisquer obras no Prédio, nomeadamente ordenadas por autoridade administrativa ou com a finalidade de aumentar o valor locativo do mesmo, o locatário sujeitar-se-á a elas sem que possa exigir indemnização ou diminuição de renda seja a que título for.

(Obrigações)

O locatário compromete-se a fazer um uso prudente do locado e a valorizar significativamente os Prédios e a zona, pela presença da sua actividade, bem como, pelo seu bom nome.

(Resolução, Denuncia e Oposição à Renovação)

1 - As partes podem opor-se à renovação do contrato, por comunicação por escrito e com a antecedência mínima de um ano relativamente ao termo do prazo cio arrendamento ou da sua renovação, sem prejuízo do direito do arrendatário de oposição à renovação legalmente previsto.

2- O arrendatário pode denunciar o contrato, por escrito e com antecedência mínima de um ano, sem possibilidade de oposição por parte do senhorio, nos casos de abandono da actividade, ou quando o prédio ou prédios objecto do arrendamento, por motivos alheios à sua vontade, não permita o desenvolvimento das actividades de forma economicamente equilibrada e sustentável.

3- Em caso de denúncia, resolução, oposição à renovação ou caducidade, a cessação do contrato produzirá os seus efeitos no fim do ano agrícola em curso.

(Entrega do locado)

Findo o contrato, o segundo outorgante e locatário obriga-se a entregar o local objecto de arrendamento em bom estado de conservação, limpo e devoluto de pessoas e bens.

Por corresponder à vontade real declarada e depois de lido vão assinar e rubricar em triplicado o presente contrato e anexo, ficando um exemplar para cada um dos outorgantes, e destinando o terceiro exemplar ao cumprimento das obrigações de participação junto dos serviços da AT.

Leiria, 28 de Dezembro de 2015”.

16. Pelo Conselho de Administração da ré C… , S.A., foi deliberado, em 03/12/2015, além do mais, que o Vogal outorgaria o contrato referido em II.1.A) 15., em nome da sociedade, deliberação a que respeita a Ata 13, junta a fls. 190 e vº.

17. No contrato constitutivo da sociedade C… , S.A, mais precisamente no art. 16º do respetivo documento complementar – cfr. fls. 53 a 59vº - consta o seguinte:

“Um. Perante terceiros, e salvas as excepções legais, a sociedade é sempre representada pelo presidente do Conselho de Administração ou pelo administrador delegado nas matérias para que lhe tenha sido delegada a gestão.”

18. O referido contrato de arrendamento foi participado à Autoridade Tributária.

19. O A. teve conhecimento de tal contrato através da carta da ré B… , datada de 08/11/2016.

20. Os primeiros cinco prédios mencionados no art. 1º do contrato referido em II.1.A) 15. na matriz encontram-se inscritos 1/2 em nome de  D… e 1/2 em nome de C… , Lda.

21. Os prédios mencionados no art. 1º contrato referido em II) 1.A) 15. possuem na matriz área global, considerando quanto aos cinco primeiros o correspondente às quotas partes ali referidas, de cerca de 20.500 m2.

22. Alguns dos mesmos - os arts. 10492, 10493, 9955 e 9953 – possuem aptidão florestal.

23. A ré C… , S.A. no exercício da sua atividade industrial, para além dos terrenos (pedreiras) de extração de argilas e produtos minerais, mormente pedreiras nº … (“….”) e nº … (“...”), necessita de terrenos para apoio à respetiva preparação e venda.

24. C… , S.A. utiliza os prédios referidos no contrato de arrendamento referido em II.1.A) 15. no exercício da sua atividade industrial, situação que já acontecia, gratuitamente, vários anos antes da celebração daquele contrato, sendo uns utilizados para apoio à laboração da mesma e outros como barreira de proteção de zonas exploradas e/ou manutenção de índices de reflorestação.

25. As rendas do contrato têm vinda a ser pagas.

*

B) Factos não provados:

1. As intervenientes no contrato referido em II.1.A) 15. não quiseram arrendar ou tomar de arrendamento os prédios mencionados no mesmo, pretendendo apenas obstacularizar os direitos do A., como herdeiro das heranças abertas por óbito dos seus falecidos pais.

2. Os prédios mencionados no art. 1º do contrato referido em II.1. A) 15. encontram-se no interior das Pedreiras n.ºs … e …., sendo irrisório o valor anual de 1.200,00€ estipulado a título de rendas.

3. Tais prédios foram, tal como outros, adquiridos por D… com receitas provenientes da Ré sociedade, razão pela qual os alocou à atividade desta, tendo-os vendido à mesma no ano de 1998.

(…)

C. Se a ré F… , na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de seus pais, de que também é herdeiro o recorrente, não tinha poderes para celebrar o contrato de arrendamento em apreço, por nele ter sido fixado o prazo de 7 anos, automaticamente renováveis.

No que a esta questão respeita, o autor peticiona a anulação do contrato de arrendamento em apreço, por o mesmo ter sido celebrado pelo prazo de 7 anos, automaticamente renováveis, o que estava vedado fazer à 2.ª ré, por se tratar de bens da herança e extravasar os poderes de administração que a lei lhe confere, na qualidade de cabeça de casal da identificada herança.

Por seu turno, as recorridas defendem a validade de tal contrato, com o fundamento em o contrato ter sido celebrado pelo prazo mínimo que a lei prevê para tal tipo de contratos (7 anos), pelo que se terá de considerar que a respectiva outorga cabe nos poderes de administração ordinária da 1.ª ré, na qualidade de cabeça de casal, por se ter fixado o prazo mínimo legal.

Pelas razões a seguir expostas, somos de opinião que o negócio/contrato em causa é inválido. Vejamos.

Resulta dos artigos 2079.º e 2087.º, n.º 1, ambos do Código Civil, que a administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça-de-casal e que estão sujeitos à sua administração os bens próprios do falecido e, tendo este sido casado em regime de comunhão, os bens comuns do casal.

No caso, as partes laboram todas no pressuposto de que os prédios objecto do referido contrato de arrendamento fazem parte da herança aberta por óbito dos pais do autor e da 1.ª ré e, por isso, estão sujeitos à administração do cabeça-de-casal; ou seja, da 1.ª ré, F… .

Sobre o conteúdo da administração que cabe ao cabeça-de-casal, a jurisprudência e a doutrina têm entendido que, fora dos casos previstos nos artigos 2088.º, 2089.º e 2090.º, todos do Código Civil – os quais não têm relação com o caso dos autos -, a administração dos bens herança, a que se refere o artigo 2079.º, compreende apenas a chamada administração ordinária, ou seja, a prática de actos destinados a evitar a perda ou a deterioração dos bens da herança e os destinados a prover à sua frutificação normal [citam-se, a título de exemplo, na jurisprudência, o acórdão da Relação de Lisboa de 22 de Março de 1984, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano IX – 1984, tomo 2, páginas 111 e 112, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido em 5-07-2005, no processo n.º 2075/05, e o acórdão do STJ de 21-05-2009, proferido no processo n.º 08B2707, os dois últimos publicados em www.dgsi.pt; na doutrina citam-se, a título de exemplo, Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, II, Coimbra Editora, páginas 78 e 79, José de Oliveira Ascensão Direito Civil, Sucessões, Coimbra Editora, Limitada, páginas 452, e João António Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Volume I, Livraria Almedina, página 323].

A que se podem acrescentar os Acórdãos do STJ, de 22 de Maio de 2003, Processo n.º 03B1412; da Relação de Guimarães de 09 de Abril de 2019, Processo n.º 1581/17.5T8BGC.G; da Relação de Lisboa, de 08 de Junho de 2017, Processo n.º 4579/14.1T8FNC.L1-2 e da Relação do Porto, de 22 de Março de 2021, Processo n.º 2174/18.5T8VLG.P1, todos disponíveis no mesmo sítio dos anteriores.

Fora dos poderes do cabeça de casal está, pois, a prática de actos de administração extraordinária, de actos de oneração e de alienação. Em relação a eles, vale a regra do n.º 1 do artigo 2091.º do Código Civil, segundo a qual só podem ser exercidos em conjunto por todos os herdeiros.

O contrato em causa nos autos não se ajusta aos actos de administração ordinária, uma vez que, cf. disposto no artigo 1024.º, n.º 1, do Código Civil, a locação só constitui para o locador, um acto de administração ordinária, quando for celebrada por prazo inferior a seis anos, o que não é o caso, dado que o contrato em causa foi celebrado pelo prazo de 7 anos, automaticamente renovável por iguais períodos, com início em 01 de Janeiro de 2016 – cf. item 15.º dos factos provados (cláusula 2.ª do referido contrato).

É certo que os designados contratos de arrendamento florestal têm o prazo mínimo de 7 anos – cf. artigo 9.º, n. 4 da LARural.

No entanto essa fixação mínima legal do prazo não se sobrepõe ao que está estabelecido no artigo 1024.º, n.º 1, do Código Civil, em termos de que, em tais casos, a cabeça de casal adquire legitimidade, tem poderes, para celebrar um contrato deste tipo.

Verifica-se, precisamente, o contrário; isto é, ab initio a cabeça de casal “não tem legitimidade substantiva para outorgar, na posição de locador, em representação da herança, em contratos de arrendamento por prazo superior a seis anos, por isso extravasar dos meros poderes de administração que a lei lhe confere.” – como se refere no Acórdão do STJ, de 22 de Maio de 2003, acima já citado.  

Isto é, independentemente da natureza do arrendamento, a cabeça de casal, nos termos do disposto no artigo 1024.º, n.º 1, do Código Civil, só pode, na posição de locador, outorgar contratos com prazo não superior a seis anos.

Atento a que o contrato sub judice foi celebrado pelo prazo de 7 anos, automaticamente renovável, não se enquadra o mesmo nos poderes de administração ordinária – únicos conferidos à cabeça de casal – pelo que não vincula o aqui autor, nos termos do disposto no n.º 2, do artigo 1024.º do Código Civil, uma vez que este nisso não consentiu.

Segue-se do exposto que a celebração do contrato estava sujeito à regra do n.º 1 do artigo 2091.º do Código Civil, segundo a qual só podia ser celebrado em conjunto por todos os herdeiros.

Visto que, no caso, o ora recorrente não interveio no contrato, nem lhe deu o seu assentimento, a consequência é, nos termos expostos, a invalidade do mesmo.

Quanto à concreta invalidade que o atinge (nulidade, anulabilidade ou ineficácia), entendemos que se trata da anulabilidade, embora como resulta dos Arestos acima referidos, tal não seja consensual na jurisprudência, embora o sentido maioritário, seja o da aplicação do regime da anulabilidade.

Isto porque, o livro das sucessões não prevê a sanção para os actos praticados com violação do n.º 1 do artigo 2091.º, pelo que se impõe recorrer às disposições sobre compropriedade, pois segundo o artigo 1404.º do Código Civil “as regras da compropriedade são aplicáveis, com as necessárias adaptações, à comunhão de quaisquer outros direitos, sem prejuízo do disposto especialmente para cada um deles”.

Entre as disposições relativas à compropriedade, entendemos que é de aplicar, no caso, com as devidas adaptações, a do n.º 3 do artigo 1407.º do Código Civil, segundo a qual “os actos realizados pelo comproprietário contra a oposição da maioria legal dos consortes são anuláveis e tornam o autor responsável pelo prejuízo a que der causa”.

E assim os actos praticados com infracção do n.º 1 do artigo 2091.º são anuláveis a pedido do herdeiro que não interveio no acto nem lhe deu o seu assentimento, direito que o ora autor aqui veio exercer.

Só que o autor não tem direito a que os prédios objecto do contrato em apreço lhe sejam entregues a ele, como peticiona, uma vez que os mesmos não são de sua propriedade, pertencendo, ao invés, ao acervo hereditário de que o autor e a 1.ª ré são contitulares, pelo que a condenação a proferir terá de ordenar a restituição dos mesmos à herança indivisa aberta por óbito dos pais do autor e da 1.ª ré e não ao autor – neste sentido, ainda, o citado Acórdão do STJ, de 22 de Maio de 2003.

Pelo que, quanto a esta questão, procede o recurso.

(…)

E. Se as rés litigam de má fé.

No que a esta questão concerne, alega o autor, ora recorrente, que as mesmas simularam a celebração do contrato de arrendamento para explorarem ilicitamente os terrenos em causa e com abuso do direito, obstaculizando a que possa exercer os seus, questão que já foi apreciada e desconsiderada na sentença recorrida, por se considerar não se verificarem os pressupostos para considerar que as rés litigam de má fé.

Como acima já referido, não se demostrou nem que as rés tenham simulado a outorga do contrato de arrendamento que está na génese dos presentes autos, nem que apenas pretendessem obstaculizar os direitos do autor, na qualidade de herdeiro de seus pais, nem que as rendas sejam irrisórias.

Posto isto, impõe-se começar por clarificar, antes de nos debruçarmos sobre o “mérito” de tal consideração/condenação, que, para tal juízo de censura processual, relevam apenas e só os factos dados como provados; ou seja, no raciocínio lógico (silogismo judiciário) que conduz à condenação de alguém como litigante de má-fé, a premissa menor só pode ser composta pelo cotejo entre o que a parte alegou e o que, em oposição ao alegado, consta dos factos dados como provados.

Dito doutra forma, o tribunal não pode alicerçar um juízo sobre a má-fé no que se fez constar na motivação da decisão de facto (e, muito menos, na de direito); assim como não pode extrair um juízo de má-fé dum facto não provado, uma vez que, todos o sabemos, num processo, um facto não provado não é sinónimo da prova positiva do facto contrário.

Tendo isto presente, importa salientar que, no caso/apelação vertente, o recorrente alegou que as rés simularam a outorga do contrato de arrendamento, com o único fito de impedirem que o mesmo frua dos rendimentos dos prédios dele objecto e exerça quanto a eles os direitos de herdeiro e que a renda acorada é irrisória, por comparação com o real valor, tudo apenas para o prejudicar.

Nada disto se demonstrou.

Pelo que não se pode concluir que as recorridas alteraram a verdade de factos relevantes (essenciais, segundo o art. 5.º/1 do CPC) para a decisão de causa, limitando-se a impugnar a factualidade alegada pelo autor, com vista à procedência da acção, com base na fundamentação acima já referida, o que lograram (em termos de decisão da matéria de facto).

Pode/deve ser considerado litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave, tiver, designadamente, deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar ou quem tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa (cfr. art. 542.º/2/a) e b) do CPC).

Significa isto que a mera falta de razão – quer quando a parte não demonstra a sua versão factual quer ainda quando se demonstra a versão factual oposta – não é por si só suficiente para legitimar uma condenação como litigante de má-fé (em tal hipótese, a “sanção” está justamente na improcedência da sua pretensão ou oposição); sendo necessário, para poder ser proferida uma condenação como litigante de má-fé, que a oposição entre a versão alegada e a que resultou provada seja subjectivamente imputável ao litigante a título de dolo ou de negligência grave, ou seja, que tenha havido uma alteração intencional ou, pelo menos, consciente e voluntária da verdade dos factos (dolo) ou uma culpa grave (culpa lata), que não se basta com qualquer espécie de negligência, antes exige a negligência grave, grosseira.

Ora, é justamente esta última situação, em face do que se deu como provado, que não se pode ter como assente em face do comportamento processual das recorridas.

Efectivamente, estas limitaram-se a esgrimir argumentos de direito e de facto, no sentido da improcedência da acção, o que não lograram, por questões de direito, o que acarreta a procedência do recurso do autor, em consequência do que procede a pretensão deste (contrariamente ao decidido em 1.ª instância), mas sem que se possa considerar que as rés alteraram a verdade de factos relevantes (essenciais, segundo o art. 5.º/1 do CPC) para a decisão da causa.

Pelo que, não se profere a condenação das rés como litigantes de má fé.

Nestes termos se decide:      

Julgar procedente o presente recurso de apelação, em função do que se revoga a decisão recorrida, que se substitui por outra que declara a ineficácia do contrato de arrendamento referido no item 15.º dos factos provados e se condenam as recorridas a entregar os prédios identificados na sua cláusula 1.ª, à herança ilíquida e indivisa aberta pelos pais do autor e da 1.ª ré.

Custas pelas apeladas, em ambas as instâncias.

Coimbra, 15 de Junho de 2021.