Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
287/12.6JACBR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: ACTO URGENTE
Data do Acordão: 12/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MANGUALDE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 103.º DO CPP
Sumário: I - Se a diligência processual é designada por despacho proferido fora do período das férias judiciais e agendada para o mesmo período, entendemos não haver dúvidas que é respeitada a regra do n.º 1 do art.103.º do C.P.P.. Dito de outro modo, o despacho proferido fora do período das férias judiciais só é regular, nos termos do art.103.º, n.º 1 do C.P.P., se designar a diligência fora do período das férias judiciais.

II - Se a diligência processual é designada por despacho proferido fora do período das férias judiciais, mas é agendada para as férias judiciais, cremos que o despacho só observará a lei se ocorrer alguma das excepções de “urgência” tipificadas no n.º 2 do art.103.º do C.P.P..

III - Tem a natureza de urgente e a diligência pode ser agendada para férias judiciais dada a necessidade, premente, de reapreciação e eventual substituição das medidas coactivas a que os arguidos estavam sujeitos, uma vez que haviam sido confirmadas em 2.ª Instância as pesadas penas que lhe haviam sido aplicadas por crimes de homicídio qualificado e de profanação de cadáver, e a esta situação acresciam eventualmente os invocados sérios perigos de fuga, de continuação da actividade perigosa, de alarme social e de perturbação da ordem pública.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra

Relatório

Por despacho de 18 de Julho de 2014, proferido pela Ex.ma Juíza de turno, no 2.º Juízo, do Tribunal Judicial da Comarca de Mangualde – ora integrado na Comarca de Viseu – foi decidido indeferir as irregularidades processuais invocadas pelo arguido A... no seu requerimento apresentado de folhas 563 a 565 dos autos.

           Inconformado com o douto despacho de 18 de Julho de 2014, dele interpôs recurso o arguido A..., concluindo a sua motivação do modo seguinte:

1. Através de despacho datado de 15/07/2014 e de fls. 546 designou o tribunal recorrido o dia 23/07/2014 para que se procedesse à audição dos arguidos para a alteração do seu estatuto coactivo, conforme promoção do M.P. que antecedeu.

2. Por ter tal diligência sido agendada para as férias judiciais e ao arrepio do estatuído no art. 103°/1 do C.P.P., veio o ora Recorrente arguir a irregularidade do dito despacho.

3. O tribunal a quo entendeu não assistir razão à arguição do Recorrente por três distintos motivos: em primeiro lugar, o despacho de fls. 546 havia sido proferido antes do início das férias judiciais; em segundo lugar verificava-se a excepção à disciplina do n.º 1 do art. 103° C.P.P. prevista na parte final da alínea a) do n.º 2 do mesmo artigo; e, finalmente, também se verificava a excepção ao 103°/1 C.P.P. prevista na alínea f) do mesmo n.º 2.

4. Salvo o devido respeito, entende o Recorrente que qualquer das razões apresentadas pelo tribunal recorrido para indeferir a arguição de irregularidade apresentada pelo primeiro carece de sentido e de aplicabilidade ao caso concreto.

5. Desde logo, uma vez que não se arguiu a irregularidade do despacho de fls. 546 com fundamento na data em que o mesmo foi proferido (mas, antes, na data que aí se consignou para a realização da diligência de audição dos arguidos), é irrelevante se tal despacho foi proferido antes ou durante as férias judiciais (que se iniciaram a 16/07/2014).

6. Depois, parece-nos evidente que esta audição dos arguidos para alteração do seu estatuto coactivo - quando tal alteração (de acordo com a promoção do M.P. que a peticionou) é para que lhes seja aplicada medida mais gravosa do que aquelas a que estavam sujeitos (aliás, a mais gravosa de todas, a prisão preventiva) -, não cabe no conceito de actos processuais indispensáveis à garantia da liberdade das pessoas, sendo, por isso mesmo, inaplicável in casu a alínea a) do art. 103°/2.

7. Com efeito, a garantia da liberdade não pode senão ser encarada numa vertente positiva (digamos assim).

8. Ou seja, um acto é indispensável à garantia da liberdade das pessoas somente e sempre que o que se pretende com o acto é colocar o arguido numa situação mais benéfica do que aquela em que se encontra (por exemplo, revogando determinada medida de coacção ou sujeitando-o a medida menos gravosa do que a que esteja submetido).

9. Finalmente, cremos que também não é aplicável a alínea f) do dito n.º 2 do art. 103° C.P.P.

10. É verdade que, como sustentam parte da doutrina e jurisprudência, tal alínea se aplica a todos e quaisquer actos que sejam reputados de necessários (e, por isso, urgentes).

11. Não obstante, por ser uma excepção que opera ope judicis, tem, Obrigatoriamente, que ser expressamente alegada e também fundamentada.

12. Ou seja, se efectivamente o tribunal recorrido entendeu que a diligência que pretendia agendar era de considerar um acto necessário/urgente (que tinha que ser marcado durante as férias judiciais), tinha que o ter expressamente mencionado no despacho de fls. 546, justificando-o como exige o art. 97°/5 do C.P.P.

13. Pois, como exige este preceito normativo, Os Actos Decisórios São Sempre Fundamentados.

14. Ora, o que é facto é que no despacho de fls, 546 o tribunal a quo não indica considerar a diligência a cuja marcação procede necessária/urgente, limitando-se a proceder ao respectivo agendamento.

15. E não se pode admitir que para colmatar tal “falha” seja suficiente dizer-se posteriormente e na sequência de invocação, pelo aqui Recorrente, da irregularidade do dito despacho que se considera a mencionada necessidade/urgência do acto agendado (e continuando sem se explicar o porquê de tal entendimento).

16. Pelo que resulta evidente que seja qual for o prisma por que se encara a questão o despacho de fls. 546 é irregular - pois não cabe em qualquer das excepções que a lei prevê para a realização de actos judiciais em período de férias judiciais.

Nestes termos e nos melhores de Direito, deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por um outro que determine, nos termos do art 123°/1 do C.PP. a irregularidade do despacho de fls. 546 dos autos, com as devidas e legais consequências.

O Ministério Público na Comarca de Mangualde respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela sua rejeição, porque interposto de despacho irrecorrível, já que é mero expediente ou, assim não se entendendo, pela sua improcedência.

            O Ex.mo Procurador-geral adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que deverá ser negado provimento ao recurso e, consequentemente, confirmada a douta decisão recorrida.

Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do C.P.P., tendo o arguido na resposta ao douto parecer mantido a sua posição de que deve ser julgado procedente o recurso.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação

O despacho recorrido, de 18 de Julho de 2014, tem o seguinte teor:

« Por despacho proferido em 15.07.14 constante de fls. 546 foi designada data para audição dos arguidos tendo em vista a alteração do seu estatuto coativo.

Notificado de tal despacho, veio o arguido A... invocar a irregularidade de tal despacho e da própria diligência ali agendada caso a mesma tenha lugar, dando conta de que tal diligência foi agendada para férias judiciais e não se trata de ato urgente que tenha lugar em férias judiciais, referindo ainda que os autos não têm natureza urgente e que, como tal o despacho está ferido de irregularidade.

O Ministério Público pronunciou-se no sentido do indeferimento da invocada irregularidade nos termos que constam da promoção que antecede.

Desde logo, e como bem se refere na douta promoção que antecede, haverá que ter em conta que o despacho em causa não foi proferido em férias judiciais mas antes, pelo que, não se nos afigura qualquer irregularidade que o afete.

Nos termos do art. 103.°, n.º 1 do C.P.Penal, os atos processuais, em regra, têm lugar nos dias úteis, às horas de expediente dos serviços e fora das férias judiciais. Porém tal regra encontra exceção no n.° 2 do mesmo preceito legal onde se dispõe quais os atos que se podem praticar fora desse período, sendo que se prevê na alínea f) os atos de mero expediente, bem como as decisões das autoridades judiciárias, sempre que necessário.

Ora, no caso dos autos está precisamente em causa uma diligência tendente à eventual aplicação de medida de coação que, por despacho, e na sequência de promoção do Ministério Público, se entendeu necessário agendar para férias.

A este propósito escreve Paulo Pinto de Albuquerque, no Comentário ao C.P.Penal à luz da CRP e CEDH, 2.ª ed., p. 272, que, estão nesta situação, “os atos processuais indispensáveis á garantia da liberdade das pessoas, neles se incluindo os atos relativos a quaisquer medidas de coação e de garantia patrimonial (artigo 191.° do C.P.Penal). Esta exceção á regra do n° 1 funciona ope legis”.

Assim sendo, é também nosso entendimento tal como da promoção que antecede consta, que, em casos como o vertente, não há necessidade de declarar o processo urgente para que corra em férias, já que, como decorre do preceito legal atrás citado, a sua natureza urgente decorre da própria lei.

De salientar ainda, como bem se refere na douta promoção que antecede, ainda que assim não fosse, ao ser proferido despacho a agendar esta diligência para férias judicias, foi considerado, ope judicis, a sua natureza urgente, ou seja, considerou-se tal ato necessário e, por isso urgente - a.f) do n.° 2 do artigo 103.° do C.P.Penal

Pelo exposto, e pelos motivos acima constantes, indeferem-se as irregularidades invocadas a fls. 563 a 565.

Notifique utilizando os meios mais expeditos.».

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            O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , os acórdãos do STJ de 19-6-96 [1] e de 24-3-1999 [2] e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [3], sem prejuízo das de conhecimento oficioso .

No caso dos autos, face às conclusões da motivação do arguido A... a questão a decidir é a seguinte:

- se o despacho recorrido ser revogado e substituído por um outro que determine, nos termos do art 123°/1 do C.PP. a irregularidade do despacho de fls. 546 dos autos, com as devidas e legais consequências.


-

A questão que por intermédio do recurso é colocada ao Tribunal da Relação carece, para ser bem compreendida, de uma acertada contextualização.

Assim sendo, deve começar por recordar-se a sequência que deu causa à decisão recorrida tomada pela 1.ª instância.

1.º - O Ministério Público na Comarca de Mangualde, veio requerer ao Tribunal a quo, em 14 de Julho de 2014, a substituição das medidas coactivas a que os arguidos A... e B... se encontravam sujeitos nesse momento, pela medida de prisão preventiva, e se desse cumprimento ao princípio do contraditório, nos termos do disposto nos artigos 194.º, n.º4 e 61.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código de Processo Penal.

Aduziu para o efeito, e em síntese, o seguinte:

Os arguidos A... e B... foram sujeitos à medida coactiva de prisão preventiva por despacho datado de 26-4-2012.

Por acórdão do Tribunal Colectivo do 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Mangualde, de 8 de Julho de 2013, foram condenados, pela prática em co-autoria de um crime de homicídio qualificado e de um crime de profanação de cadáver, respectivamente e em cúmulo jurídico, nas penas de 17 anos e 4 meses de prisão, e 13 anos e 4 meses de prisão.

Por se ter esgotado o prazo máximo de prisão preventiva, foi determinado, em 24 de Abril de 2014, a restituição imediata dos arguidos à liberdade e a sua sujeição a novo TIR, à prestação de caução e às obrigações de apresentação à autoridade policial e, ainda, de não ausência para o estrangeiro e do concelho do seu domicilio. O arguido B... não veio comprovar nos autos, nem disse nada quanto à prestação de caução e o arguido solicitou a sua redução ou a prestação da mesma através de indicação de fiador.

O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 3 de Junho de 2014, ainda não transitado em julgado, rejeitou o recurso da assistente C... e improcedentes os recursos interpostos pelos arguidos A... e B..., pelo que podem estes voltar a serem presos por não se ter atingido o máximo global referido no n.º 6 do art.215.º do C.P.P..

Mantendo-se e saindo até reforçados, com a confirmação da condenação no Tribunal da Relação, o perigo de fuga e os perigos de continuação da actividade perigosa, de alarme social e de perturbação da ordem pública, a única medida que se revela adequada às exigências cautelares que o caso reclama, e proporcional à gravidade dos crimes e à pena que se prevê virem a cumprir, é a prisão preventiva. Assim, requer a aplicação desta medida coactiva cumprido que seja o contraditório. 

2.º - Em 15 de Julho de 2014, o Ex.mo Juiz do processo, no Tribunal a quo, proferiu o seguinte despacho: «1- Para audição dos arguidos A... e B..., sobre a promovida alteração do estatuto coativo, designo o próximo dia 23 de Julho, às 14h. 

Notifique, de forma expedita, solicitando à autoridade policial competente a notificação dos arguidos aquando da respectiva apresentação. D.N.. (…).».

- 3.º - Por requerimento de 17 de Julho de 2014, o arguido A... veio expor e requerer o seguinte:

« 1. Foi o Arguido notificado de despacho que designa o próximo dia 23 de Julho, às 14h, para a audição dos arguidos A... e B...sobre a alteração do estatuto coactivo que terá sido promovida pelo digno magistrado do Ministério Público.

2. Sucede que, nos termos do n.° 1 do art. 103° do Código de Processo Penal “os actos processuais praticam-se nos dias úteis, às horas de expediente dos serviços de justiça e fora das férias judiciais” (bold e sublinhado nossos).

3. Isto, precisamente, para permitir aos agentes judiciais - nomeadamente os advogados - que possam usufruir dum essencial período de descanso.

4. Ora, de acordo com o art. 12° da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, as férias judiciais decorrem entre 16 de Julho e 31 de Agosto - o que significa que a data designada o foi para dia em que já se encontram a decorrer as ditas férias judiciais

5. Não obstante o n.° 2 do referido art. 103° do C.P.P. mencionar as excepções à regra dos actos processuais se praticarem nos moldes enunciados no n.° 1 do art. 103° C.P.P., cremos que, in casu, não se verifica qualquer dessas excepções.

6. Assim, salvo melhor opinião, cremos que o despacho em causa (por agendar uma diligência judicial para data e hora na qual a mesma, por lei, não se pode realizar) se encontra ferido de irregularidade, nos termos do art. 123°/1 do C.P.P. - irregularidade que, desde já e para os devidos efeitos, se argui.

7. Tal como ferida estará de irregularidade a própria diligência agendada, caso venha efectivamente a realizar-se no dia 23 de Julho, às 14h e também os termos do art. 123°/1 do C.P.P. - irregularidade que também se argui.

8. Sem embargo da irregularidade que vicia o aludido despacho e, bem assim, a diligência agendada, entende o arguido que juntamente com o despacho lhe devia ter sido remetida cópia da douta promoção que, aparentemente, sustenta a alteração do estatuto coactivo dos arguidos.

9. Isto porque, em bom rigor, não só desconhece, como não compreende, qual possa ser o fundamento para tal alteração...

10. Por despacho datado de 24/04/2014 e após interrogatório judicial dos arguidos foi determinada a revogação da medida de coacção de prisão preventiva a que, até àquela data, os mesmos se encontravam sujeitos e, foi determinado que aguardassem os ulteriores termos do processo sujeitos às obrigações decorrentes do T.I.R. prestado, que prestassem caução no valor de € 5.000, que se apresentassem diariamente à autoridade policial da sua área de residência, que não se ausentassem para o estrangeiro (entregando à ordem do tribunal os passaportes) e que não se ausentassem do concelho do domicílio sem prévia autorização

11. Ora, o arguido A... tem cumprido escrupulosa e rigorosamente as medidas de coacção que lhe foram impostas, pelo que, na sua perspectiva, não se vislumbram quaisquer causas que justifiquem a alteração do estatuto coactivo que terá sido requerida pelo M.P.

12. Até   porque, nos termos do art. 212°/2 do C.P.P., as medidas revogadas só podem ser de novo aplicadas se sobrevierem motivos que legalmente o justifiquem!

13. Assim, crê o arguido ser da maior relevância, até para que se possa preparar para eventual diligência de alteração das medidas de coacção que, em data legalmente permitida, venha a realizar-se, que lhe seja notificada com a maior urgência a douta promoção do M.P. que antecede e motiva o despacho acima mencionado.

Nestes termos e nos melhores de Direito, deve, nos termos do art. 123°/1 do C.P.P., ser declarada a irregularidade do despacho datado de 15/07/2014 e, bem assim, da audiência agendada para o dia 23/07/2014.

Do mesmo passo deve ser notificada ao arguido a douta promoção do M.P. relativa à alteração do estatuto coactivo dos arguidos.».

4.º - Na sequência deste requerimento do arguido A... foi proferido, pela Exma Juíza de turno, o despacho recorrido.

O recorrente A... defende que o Tribunal a quo deveria ter declarado no despacho recorrido, ao abrigo do disposto no art.123.°, n.º1 do C.P.P., a irregularidade do despacho datado de 15/07/2014 e, bem assim, da audiência agendada para as férias judiciais, alegando para este efeito e em síntese o seguinte:

- Nos termos do art.103.°, n.º1 do C.P.P., os actos processuais praticam-se fora do período de férias judiciais, excepto nos casos mencionados no n.º2 daquele preceito;

- O Tribunal a quo entendeu, no despacho recorrido, não assistir razão à arguição do recorrente por três distintos motivos: em primeiro lugar, o despacho de fls. 546 havia sido proferido antes do início das férias judiciais; em segundo lugar verificava-se a excepção à disciplina do n.° 1 do art.103.° do C.P.P. prevista na parte final da alínea a) do n.° 2 do mesmo artigo; e, finalmente, também se verificava a excepção ao art.103.°, n.º1, do C.P.P. prevista na alínea f) do mesmo n.° 2;

- Porém, a primeira razão aduzida no despacho recorrido não colhe porquanto não se arguiu a irregularidade do despacho de fls. 546 com fundamento na data em que o mesmo foi proferido (mas, antes, na data que aí se consignou para a realização da diligência de audição dos arguidos), sendo irrelevante se tal despacho foi proferido antes ou durante as férias judiciais (que se iniciaram a 16/07/2014);

- Também a segunda razão para indeferir a arguição de irregularidade não procede, pois a audição dos arguidos para alteração do seu estatuto coactivo - quando tal alteração (de acordo com a promoção do M.P. que a peticionou) é para que lhes seja aplicada medida mais gravosa do que aquelas a que estavam sujeitos ( a prisão preventiva) -, não cabe no conceito de actos processuais indispensáveis à garantia da liberdade das pessoas, sendo, por isso mesmo, inaplicável in casu a alínea a) do art. 103.°, n.º 2 do C.P.P.. Com efeito, a garantia da liberdade não pode senão ser encarada numa vertente positiva, ou seja, para colocar o arguido numa situação mais benéfica do que aquela em que se encontra;

- Finalmente, cremos que também não é aplicável ao caso a alínea f) do n.° 2 do art.103.° C.P.P., pois se a alínea é aplicável a todos e quaisquer actos que sejam reputados de necessários (e, por isso, urgentes), a mesma é uma excepção que opera ope judicis, que tem de ser expressamente alegada e também fundamentada no despacho de fls. 546, como exige o art. 97°/5 do C.P.P. e, o tribunal a quo não indica considerar a diligência a cuja marcação procede necessária/urgente, limitando-se a proceder ao respectivo agendamento. E não se pode admitir que para colmatar tal “falha” seja suficiente dizer-se posteriormente e na sequência de invocação, pelo aqui Recorrente, da irregularidade do dito despacho que se considera a mencionada necessidade/urgência do acto agendado (e continuando sem se explicar o porquê de tal entendimento).

Vejamos.

O art.103.º, do Código de Processo Penal, sob a epigrafe « Quando se praticam os actos» processuais, dispõe na parte que aqui interessa, o seguinte:

« 1 - Os actos processuais praticam-se nos dias úteis, às horas de expediente dos serviços de justiça e fora do período de férias judiciais.

2 - Exceptuam-se do disposto no número anterior:

a) Os actos processuais relativos a arguidos detidos ou presos, ou indispensáveis à garantia da liberdade das pessoas; (…)

f) Os actos de mero expediente, bem como as decisões das autoridades judiciárias, sempre que necessário.».

Em termos gerais, diremos que resulta deste preceito que os actos processuais não podem ser praticados a qualquer momento, devendo respeitar algumas condições legais, que resultam desde logo da organização dos serviços de justiça.

Assim, como regra, os actos processuais praticam-se «nos dias úteis», «às horas de expediente dos serviços de justiça» e «fora do período de férias judiciais

No que respeita ao tempo do acto processual, em apreciação, o art.12.º da LOFT ( Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, com alterações), vigente à data da prolação do despacho recorrido na Comarca de Mangualde, estabelecia que as férias judiciais decorrem de 22 de Dezembro a 3 de Janeiro, de Domingo de Ramos a Segunda de Páscoa e de 16 de Julho a 31 de Agosto.

A regra geral, relativa à prática dos actos processuais comporta as excepções enunciadas nas diversas alíneas do n.º 2 do art.103.º, do Código de Processo Penal, tendo todas elas causas que justificam a sua existência.

Assim, podem ser praticados a todo o tempo, os actos processuais relativos a arguidos detidos ou presos, ou indispensáveis à garantia da liberdade das pessoas, nos termos da alínea a), n.º2, do art.103.º, do Código de Processo Penal.  

É a situação processual de arguido detido ou preso ou a urgência em garantir a liberdade da pessoa, que justifica a existência desta excepção, que funciona ope legis, à regra do n.º1.

Também quaisquer actos processuais, sejam de mero expediente ou decisórios, das autoridades judiciárias, podem ser praticados a todo o tempo, designadamente nas férias judiciais, se forem necessários, no sentido comum de urgentes.

Entende-se por actos de mero expediente os que se destinam a regular, em harmonia com a lei, os termos do processo.

Do n.º 1 do art.97.º do C.P.P. resulta, indirectamente, que actos decisórios são aqueles que dão solução ao processo, tomando as seguintes formas:

- de sentenças, “quando conhecerem a final do objecto do processo” ( alínea a); e

- de despacho, “ quando conhecerem de qualquer questão interlocutória ou quando puserem termo ao processo fora do caso previsto na alínea anterior.”( alínea b).  

Como assertivamente esclarece o Prof. Germano Marques da Silva, “ O acto decisório põe termo a uma questão, definitivamente ou num dado grau de jurisdição, optando o juiz por uma de entre duas soluções possíveis.”.[4]

Esta excepção, à regra do n.º1, funciona ope judicis.

Retomando a questão colocada pelo recorrente, começamos por anotar que temos como pacífico que o despacho proferido em 15 de Julho de 2014, pelo Ex.mo Juiz do processo, foi proferido fora da férias judiciais, mas a diligência tendo em vista a audição dos arguidos foi ali designada para as férias judiciais, uma vez que as férias judiciais se iniciaram a 16/07/2014 e a diligência foi agendada para o dia 23/07/2014.

A Ex.ma Juíza de turno, que indeferiu a irregularidade do despacho proferido pelo Ex.mo Juiz do processo em 15 de Julho de 2014, mencionou no despacho recorrido, como primeiro argumento para o não reconhecimento daquele vício processual, o facto do despacho não ter sido proferido em férias judiciais.

Com o devido respeito, cremos que este argumento não pode proceder.

O recorrente A... não se insurge contra a data em que o despacho de 15 de Julho de 2014 foi proferido; e nem o poderia fazer uma vez que foi proferido fora do período das férias judiciais, tal como o exige, como regra, o n.º1 do art.103.º do C.P.P..

Acontece que o despacho tem como fim o agendamento da prática de um outro acto processual.

Nestas circunstâncias de uma duas: ou a diligência é agendada fora do período das férias judiciais, e cai na regra do n.º1 do art.103.º do C.P.P., ou a diligência é agendada para o período das férias judiciais.

Se a diligência processual é designada por despacho proferido fora do período das férias judiciais e agendada para o mesmo período, entendemos não haver dúvidas que é respeitada a regra do n.º1 do art.103.º do C.P.P.. Dito de outro modo, o despacho proferido fora do período das férias judiciais só é regular, nos termos do art.103.º, n.º1 do C.P.P., se designar a diligência fora do período das férias judiciais.

Já se a diligência processual é designada por despacho proferido fora do período das férias judiciais, mas é agendada para as férias judiciais, cremos que o despacho só observará a lei se ocorrer alguma das excepções de “urgência” tipificadas no n.º2 do art.103.º do C.P.P..

Assim e para o caso presente, designando o despacho de 15 de Julho de 2014 o agendamento da diligência para o período das férias judiciais, aquele despacho apenas será regular se se verificar alguma das excepções de “urgência” tipificadas no n.º2 do art.103.º do C.P.P..

No despacho recorrido, a Ex.ma Juíza de turno defende que aquando da prolação do despacho de 15 de Julho de 2014 ocorriam duas das excepções previstas no n.°1 do art.103.° do C.P.P. , as alíneas a) e f), que permitiam o agendamento para férias judiciais.

Relativamente à excepção prevista na alínea a), n.° 1 do art.103.° do C.P.P., não cremos que ela se verifique no caso concreto pois o arguido A... não se encontrava detido ou preso quando foi proferido o despacho a determinar  a sua audição durante as férias judiciais e, por outro lado, com a audição agendada o Tribunal a quo visava decidir “sobre a promovida alteração do estatuto coactivo” dos arguidos, nomeadamente do ora recorrente, ou seja, a substituição das medidas cautelares a que estavam sujeitos - TIR, caução e às obrigações de apresentação à autoridade policial e de não ausência para o estrangeiro e do seu concelho de domicilio -, por uma medida que os privasse de liberdade, mais concretamente, a prisão preventiva.

O que está em causa na audição agendada não é, pois, garantir de modo urgente, indispensável, a garantia da liberdade dos arguidos: bem pelo contrário, o que estava em apreciação é a retirada da sua liberdade física após essa audição designada para ter lugar no período de férias judiciais.

Já bem diferente é a situação no que respeita à excepção prevista na alínea f), n.° 1 do art.103.° do C.P.P.. Adiantando a decisão diremos desde já que perante o caso concreto não temos dúvidas em sufragar o entendimento, do despacho recorrido, de que o despacho de 15 de Julho de 2014 agendou a diligência de audição dos arguidos, incluindo o ora recorrente, para as férias judiciais, por a haver considerado uma audição necessária, no sentido de urgente.

Pese embora o n.º 5 do art.97.º do Código de Processo Penal apenas imponha a fundamentação para os “actos decisórios” e o arguido/recorrente sustente que o despacho de 15 de Julho de 2014 não é um acto decisório, mas um “acto de mero expediente”, ainda assim não deixaremos de referir que o mesmo se mostra suficientemente “fundamentado”, em respeito pela al. f), n.º 2 do art.103.º do C.P.P., para efeitos de agendamento da audição do ora recorrente em férias judiciais.

Ao contrário do alegado pelo recorrente, o despacho de 15 de Julho de 2014, não se limita a agendar um acto; precedendo o agendamento para o dia 23 de Julho de 2014, que faz recair em férias judiciais, o Ex.mo Juiz do processo mencionou que a audição dos arguidos é “ sobre a promovida alteração do estatuto coativo”.

Nada obsta a que o despacho que determine a razão de ser da audição dos arguidos a fundamente por reenvio para os motivos invocados pelo Ministério Público na sua promoção. O que interessa, em termos garantísticos, é que através desse procedimento os sujeitos processuais percebam os motivos desse despacho para agendar uma diligência para férias judiciais e para a mandar notificar “de forma expedita” aos arguidos.  

Lendo-se conjugadamente o despacho de 15 de Julho de 2014 com a douta promoção do Ministério Público de 14 de Julho de 2014 para que aquele remete, entende-se suficientemente, em termos lógicos e racionais, que a diligência foi agendada para férias judiciais dada a necessidade, premente, de reapreciação e eventual substituição das medidas coactivas a que os arguidos A... e B... estavam sujeitos, uma vez que haviam sido confirmadas em 2.ª Instância as pesadas penas que lhe haviam sido aplicadas por crimes de homicídio qualificado e de profanação de cadáver, e a esta situação acresciam eventualmente os invocados sérios perigos de fuga, de continuação da actividade perigosa, de alarme social e de perturbação da ordem pública. 

Nestas circunstâncias de perigo descritas pelo Ministério Público e para obstar às mesmas, não era racional, nem legal, não agendar a audição do ora recorrente até que findassem as férias judiciais. A necessidade do agendamento para uma data o mais próxima possível da promoção de substituição das medidas coactivas torna legal o agendamento realizado nas férias judiciais.   

Adiantamos ainda que se a lei exigisse também para os actos de mero expediente, tal como para os actos decisórios, uma necessidade de “fundamentação”, então a falta desta constituiria igualmente uma irregularidade que teria de ser arguida nos termos e prazo a que alude o art.123.º. do C.P.P. . Ora, no caso, a irregularidade invocada no requerimento de 17 de Julho de 2014 pelo ora recorrente não foi por falta de fundamentação, mas sim porque “ cremos que, in caso, não se verifica qualquer dessas excepções” ( do n.º2 do art.103.º do C.P.P.).[5]  Assim, a existir tal irregularidade no despacho de 15 de Julho de 2014 – que não existe – também estaria sanada por não haver sido arguida atempadamente.

Por fim, não deixamos ainda de anotar, para reforçar a improcedência do recurso, que o despacho de 15 de Julho de 2014 transitou em julgado e, fazendo caso julgado, não poderia ser já alterado pelo Tribunal da Relação, mesmo que se reconhecesse nele a existência de uma qualquer irregularidade.

Por outro lado, pelas razões descritas, o despacho recorrido mostra-se suficiente e convenientemente fundamentado quando indefere ao abrigo do disposto na al. f), n.º2, art.103.º do C.P.P., a irregularidade arguida pelo ora recorrente no requerimento de 17 de Julho de 2014.

Assim, impõe-se manter o despacho recorrido.

Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido A... e manter o douto despacho recorrido.

             Custas pelo recorrente, fixando em 4 Ucs a taxa de justiça (art. 513º, nºs 1 e 3, do C. P.P. e art.8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa).

                                                                         *

Coimbra, 17 de Dezembro de 2014

           

(Orlando Gonçalves - relator)

              

(Inácio Monteiro - adjunto)


[1]  Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98.
[2]  Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.
[3]  Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350.

[4] Cfr. Curso de Processo Penal , Vol.II, edição Verbo, 2011, pág. 40.   

[5] Importa não confundir a não invocada falta de fundamentação do despacho com a não comunicação da promoção do Ministério Público juntamente com o despacho de 15 de Julho de 2014, que o Sr. Funcionário Judicial, penitenciando-se desse seu lapso a folhas 24, lhe enviou a seguir à apresentação do requerimento de 17 de Julho de 2014.