Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
496/11.5TXCBR-M.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA ALEXANDRA GUINÉ
Descritores: COMPETÊNCIA DO TEP
REVOGAÇÃO DO PERDÃO DE PENA
PENA DE SUBSTITUIÇÃO
Data do Acordão: 03/10/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO DE EXECUÇÃO DAS PENAS DE COIMBRA - JUIZ 2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.118.º DO CEPMPL; ART. 2.º, N.º 7.º, DA LEI N.º 9/2020, DE 10-04
Sumário: I – O tribunal de execução das penas não tem competência para alterar a pena imposta pelo tribunal da condenação, com execução em curso até ao momento em que foi perdoado o remanescente, nem para equacionar a sua substituição.

II – Apenas lhe compete decidir a modificação da execução da pena de prisão, verificadas que estejam as condições previstas na lei.

III – Perante o disposto no artigo 7.º, segunda parte, do artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10-04, o remanescente da pena perdoada não pode ser comutado por qualquer uma das penas de susbstituição legalmente previstas.

IV – Sendo assim, além do cumprimento da nova pena que lhe foi imposta, o condenado terá de cumprir o remanescente da pena de prisão objecto da referida medida de graça.

Decisão Texto Integral:







Acórdão deliberado em conferência na 5ª seção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra



RELATÓRIO

1.–No Proc. nº 496/11.5TXCBR-M do Juízo de Execução das Penas de Coimbra - Juiz 2, o arguido R., melhor identificado nos autos, viu revogado o perdão que lhe foi concedido por decisão datada de 13/4/2020, e consequentemente, determinada a execução do remanescente da pena de prisão perdoada, ao abrigo do previsto na Lei n.º 9/2020, de 10 de abril.

2.–Inconformado, o arguido interpôs o presente recurso, formulando as seguintes conclusões (transcrição):

A - A Douta decisão deve ser substituída por outra que aplique ao remanescente da pena a cumprir pelo arguido o regime de suspensão da execução de penas previsto no art,º 50º do Código Penal.

B - Porquanto o arguido foi condenado em dois anos de pena de prisão suspensa na sua execução, no âmbito do processo n.º 293/20.7GBAND.

C- Neste seguimento, ao abrigo do n.7 do art.º 2º da Lei n.9/2020, foi-lhe revogado o perdão que havia sido concedido ao remanescente da pena de 18 meses de prisão efetiva que lhe falta cumprir, no âmbito do processo n.º 281/16.8GBAND.

D - Nos termos daquele preceito legal, à nova pena aplicada ao arguido acresce o remanescente da pena que havia sido perdoada.

E - Assim, o arguido tem a cumprir dois anos de pena de prisão, suspensa na sua execução, e ainda o remanescente da pena que havia sido perdoada, cuja duração é, sensivelmente, um mês.

F - Não há impedimento legal que obste a que o modo de exequibilidade do remanescente da pena perdoada seja substituído.

G - Essa substituição mostra-se, inclusivamente imperativa, sob pena de estarmos perante uma incongruência insanável, no sentido em que estamos perante uma pena única, em que parte dela (um mês), será cumprida em regime de prisão efetiva, e o remanescente (dois anos) será suspensa na sua execução;

H - Mais acresce que, decorrendo a aplicação da nova pena de prisão da condenação do arguido pela prática do mesmo tipo de ilícito que motivou a aplicação da pena perdoada, os pressupostos que faz depender a aplicação do regime de suspensão da pena de prisão, previstos no art.º 50º do Código Penal, sempre se terão de considerar verificados relativamente à primeira condenação;

I - Assim, à nova pena de dois anos suspensa na sua execução, aplicada ao arguido, no âmbito do processo n.º 293/20.7GBAND, deverá acrescer o remanescente da pena perdoada, a qual deverá também ser declarada suspensa na sua execução;

J - Ao declarar-se suspensa na sua execução o remanescente da pena perdoada, tal não obsta a que se dê cumprimento às finalidades de prevenção geral e especial subjacentes à aplicação das penas;

K - Assim, o arguido entende não haver qualquer impedimento legal que obste a que se aplique ao remanescente da pena perdoada o regime de suspensão da execução de penas, previsto no art.º 50º do Código Penal;

- Face ao exposto deve a decisão a quão ser substituída por outra que aplique ao remanescente da pena perdoada, no âmbito do processo nº 281/16.8GBAND, o regime de suspensão de execução de penas.

– O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando no sentido de que a decisão recorrida não merecer qualquer reparo, devendo ser mantida, concluindo que (transcrição):

1. O despacho recorrido está devidamente fundamentado.

2. O decidido está conforme a lei.

3. O recurso deve ser julgado improcedente.

4.–Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Senhor Procurador-geral Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416.º, do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de C.P.P.), emitiu parecer em que adere à posição do Ministério Público na 1.ª instância.

5. Notificado, nos termos e para os efeitos consignados no art. 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o arguido exerceu o seu direito de resposta, pugnando que deve o recurso ser considerado totalmente procedente e, em consequência deverá substituir-se a decisão recorrida por outra que permita ao arguido cumprir o remanescente da pena de prisão aplicada no âmbito do processo n.º 218/16.8GBAND, em regime de pena suspensa na execução.

6. Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido a conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.


*

II. Fundamentação:

1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:

Como flui do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do CPP, e de acordo com jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do STJ), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação.

De acordo com as conclusões da motivação do recurso interposto nestes autos, a questão a que cabe dar resposta é a de saber se estão reunidos os pressupostos legais para que se aplique ao remanescente da pena perdoada decretado pela Lei n.°9/2020, de 10/04, o regime de suspensão da execução de penas, previsto no art.º 50º do Código Penal.


2.– Decisão recorrida

A decisão recorrida tem o seguinte teor (transcrição):

Dispõe o art.º 2º nº 7 da citada lei que “o perdão a que se referem os ns. 1 e 2 é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da presente lei e sob a condição resolutiva de o beneficiário não praticar infracção dolosa no ano subsequente, caso em que à pena aplicada à infracção superveniente acresce a pena perdoada” (sublinhado nosso).

Assim, o perdão é revogado desde que:

- o condenado pratique infracção dolosa;

- no ano subsequente à entrada em vigor da lei;

E é justamente esse o caso dos autos, visto que o condenado, em 26/7/2020 – ou seja, no ano subsequente à concessão do perdão -, praticou o crime de condução ilegal, a título doloso, pelo qual foi transitadamente condenado.

Pelo que se mostra verificada a condição resolutiva prevista na citada norma, assim se revogando o perdão que foi concedido.

E em consequência, tal como resulta igualmente previsto no mesmo dispositivo legal, à pena aplicada à infracção superveniente acresce a pena perdoada.

O sentido da lei é inequívoco: à nova pena acresce a pena perdoada, mas ambas são autónomas entre si, pois que se assim não fosse, a formulação legal especificaria outras consequências jurídicas.

Pelo que no presente caso, e ao contrário do pretendido pela defesa, terá o condenado que cumprir o remanescente da pena perdoada, que era de execução efectiva, e terá ainda de cumprir a pena de prisão suspensa que motivou a revogação do perdão.

Outra solução não só não encontra acolhimento da referida Lei, já que a mesma não prevê a substituição do remanescente da pena perdoada por pena não privativa da liberdade, como não teria qualquer sentido, já que a Lei do Perdão só é aplicável a penas de prisão de execução efectiva, pois o seu principal objectivo foi fazer face à situação de pandemia que se vive com a retirada do contexto prisional de reclusos que reunissem determinadas condições.

Como medida de excepção que é, seria, pois, injustificado que aqueles que dela beneficiaram, saindo do contexto prisional, incumprindo a condição resolutiva, não ficassem de novo submetidos ao regime de execução da pena que de início lhes fora imposta.

Termos em que igualmente se indefere a requerida suspensão da execução do remanescente da pena perdoada.


*

Face a tudo o exposto, e perante a condenação em crime doloso sofrida no proc. 293/20.7GBAND, por factos praticados em 26/7/2020, ao abrigo do disposto no art. 2o no 7 da Lei 9/2020 de 10 de Abril, revogo o perdão que ao condenado R. foi concedido por decisão datada de 13/4/2020, e consequentemente, determino a execução do remanescente da pena de prisão perdoada.

*
3.–Apreciando

*

A Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, criou um «regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19», nomeadamente, estabelecendo, naquilo que agora nos interessa, «um perdão parcial de penas de prisão» [art. 1.º, n.º 1, alínea a)].

No caso, o Tribunal a quo revogou o perdão concedido e, consequentemente, determinou a execução do remanescente da pena de prisão perdoada, ao abrigo do disposto no art.º 2º nº 7 da Lei de 10 de abril, que prevê a revogação desde que o condenado pratique infração dolosa no ano subsequente à entrada em vigor da lei.

No recurso interposto, defendeu o recorrente que a decisão a quo deve ser substituída por outra que aplique ao remanescente da pena perdoada o regime de suspensão de execução de penas.  Considera que, à nova pena de dois anos suspensa na sua execução, aplicada ao arguido, no âmbito do processo n.º 293/20.7GBAND, deverá acrescer o remanescente da pena perdoada, no âmbito do processo 281/16.8GBAND, a qual deverá também ser declarada suspensa na sua execução

Como argumentos recursivos invoca que não há impedimento legal à suspensão da execução da pena perdoada, a qual se mostra imperativa, sob pena de estarmos perante uma incongruência insanável, no sentido em que estamos perante uma pena única, em que parte dela (um mês), será cumprida em regime de prisão efetiva, e o remanescente (dois anos) será suspensa na sua execução. Além de que, decorrendo a aplicação da nova pena de prisão da condenação do arguido pela prática do mesmo tipo de ilícito que motivou a aplicação da pena perdoada, os pressupostos que faz depender a aplicação do regime de suspensão da pena de prisão, previstos no art.º 50º do Código Penal, sempre se terão de considerar verificados relativamente à primeira condenação.

O Ministério Público respondeu ao recurso sustentando que:

1. A pretensão do recorrente não encontra cobertura legal, sendo que o tribunal de execução de penas não tem competência para alterar a pena imposta pelo tribunal da condenação, que era a de prisão efetiva, com execução em curso até ao momento em que foi perdoado o remanescente, nem para equacionar a sua substituição; apenas lhe compete decidir a modificação da execução da pena de prisão, verificadas que estejam as condições previstas na lei, o que no caso não acontece - artigo 118/120 do do código da execução das penas e medidas privativas da liberdade.

2. O recorrente não indica as normas que considera violadas.

3. O recurso é claramente improcedente pelos fundamentos do despacho recorrente.

Vejamos.

Efetivamente, prevê-se no art.º 118º do Código de Execução de Penas que:

«Pode beneficiar de modificação da execução da pena, quando a tal se não oponham fortes exigências de prevenção ou de ordem e paz social, o recluso condenado que:

a) Se encontre gravemente doente com patologia evolutiva e irreversível e já não responda às terapêuticas disponíveis;

b) Seja portador de grave deficiência ou doença irreversível que, de modo permanente, obrigue à dependência de terceira pessoa e se mostre incompatível com a normal manutenção em meio prisional; ou

c) Tenha idade igual ou superior a 70 anos e o seu estado de saúde, física ou psíquica, ou de autonomia se mostre incompatível com a normal manutenção em meio prisional ou afecte a sua capacidade para entender o sentido da execução da pena».

E, acrescenta-se no art. 120º deste mesmo Código que:

1- A modificação da execução da pena reveste as seguintes modalidades:

a) Internamento do condenado em estabelecimentos de saúde ou de acolhimento adequados; ou

b) Regime de permanência na habitação.

2 - O tribunal pode, se entender necessário, decidir-se pela fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, com base em parecer médico e dos serviços de reinserção social.

3 - O tempo de duração do internamento ou do regime de permanência em habitação é considerado tempo de execução da pena, nomeadamente para efeitos de liberdade condicional.

4 - As modalidades referidas no n.º 1 podem ser:

a) Substituídas uma pela outra;

b) Revogadas, quando o condenado infrinja grosseira ou repetidamente deveres resultantes da modificação da execução da pena, cometa crime pelo qual venha a ser condenado ou se verifique uma alteração substancial dos pressupostos da sua aplicação, e se revele inadequada ou impossível a medida prevista na alínea anterior.

5 - Para os efeitos previstos no número anterior, o tribunal solicita anualmente às entidades de saúde competentes a actualização do parecer previsto na alínea aplicável do n.º 2 do artigo 217.º

Mas, se assim é, a pretensão do recorrente carece de cobertura legal, uma vez que o tribunal de execução de penas não tem competência para alterar a pena imposta pelo tribunal da condenação, que era a de prisão efetiva, com execução em curso até ao momento em que foi perdoado o remanescente, nem para equacionar a sua substituição. Apenas lhe compete decidir a modificação da execução da pena de prisão, verificadas que estejam as condições previstas na lei, o que no caso não acontece.

Por outro lado, fundamentou-se o Tribunal a quo no art.º 2º nº 7 da Lei n.º…. de 10 de abril, que prevê a revogação do perdão concedido desde que o condenado pratique infração dolosa no ano subsequente à entrada em vigor da mesma lei.

Precisamente o caso dos autos, uma vez que o recorrente, em 26/7/2020 – ou seja, no ano subsequente à concessão do perdão -, praticou o crime de condução ilegal, a título doloso, pelo qual foi transitadamente condenado.

Quer isto dizer que se verificou a condição resolutiva prevista na citada norma, razão pela qual foi revogado, e bem, o perdão que lhe fora concedido.

E em consequência, tal como resulta igualmente previsto no mesmo dispositivo legal, à pena aplicada à infração superveniente acresce a pena perdoada.

Como refere o Tribunal a quo, «o sentido da lei é inequívoco: à nova pena acresce a pena perdoada, mas ambas são autónomas entre si, pois que se assim não fosse, a formulação legal especificaria outras consequências jurídicas».

Mas se assim é, terá o recorrente que cumprir o remanescente da pena perdoada, que era de execução efetiva, e terá ainda de cumprir a pena de prisão suspensa que motivou a revogação do perdão.

Tal como refere o Tribunal a quo, outra solução não só não encontra acolhimento da referida Lei, já que a mesma não prevê a substituição do remanescente da pena perdoada por pena não privativa da liberdade, como não teria qualquer sentido, já que a Lei do Perdão só é aplicável a penas de prisão de execução efectiva, pois o seu principal objectivo foi fazer face à situação de pandemia que se vive com a retirada do contexto prisional de reclusos que reunissem determinadas condições.

Como medida de excepção que é, seria, pois, injustificado que aqueles que dela beneficiaram, saindo do contexto prisional, incumprindo a condição resolutiva, não ficassem de novo submetidos ao regime de execução da pena que de início lhes fora imposta.

Entende por isso este Tribunal que o juízo efetuado pelo Tribunal quo o levou a concluir pela necessidade de aplicação da pena detentiva intramuros é válida e totalmente irrepreensível.

Manifestamente, o recurso não merece provimento.


*

III–Dispositivo

Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido e confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC.

Coimbra, 10 de Março de 2021

Maria Alexandra Guiné (relatora)

Ana Carolina Cardoso (adjunta)