Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
96/12.2GBMIR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: CONFISSÃO DO ARGUIDO
ACORDO EM PROCESSO PENAL
Data do Acordão: 02/04/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 344.º E 357.º, DO CPP
Sumário: I - A questão da validade dos acordos em processo penal foi objecto de apreciação no Ac. do STJ de 10/04/2013, Proc. 224/06.7GAVZL.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt., que analisa a questão em face do direito constituído, a cuja argumentação se adere.

II - A resposta à questão é “frontalmente negativa pois que a letra e os actuais princípios que norteiam o processo penal não suportam uma interpretação que proclama a validade dos acordos negociados de sentença”.

III - A confissão exige a presença do arguido em audiência, ou constar de declarações validamente produzidas e que possam ser lidas em audiência, nos termos do art. 357.º do CPP.

IV - Carece de base legal, e como tal é nula e de nenhum efeito, a confissão, através de defensor, ainda que invocando a confirmação do arguido através do telefone.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra:

Nos presentes autos de processo comum - tribunal singular – realizada a chamada, de onde resultou estarem presentes todas as testemunhas arroladas e estar “ausente o arguido, o qual requereu a realização da audiência de julgamento na sua ausência”.

IMEDIATAMENTE após a abertura da audiência, antes de iniciada a produção de prova, o MºPº e o ilustre defensor do arguido requereram a palavra e ditaram para a acta o seguinte REQUERIMENTO:

“O Mº Pº e o ilustre defensor do arguido, ao abrigo do art. 334º, nº4 do CPP, chegaram a acordo sobre a moldura concreta da pena em relação a ambos os crimes imputados ao arguido. Assim e para esse efeito o arguido confessa os factos de forma integral e sem reservas, fixando-se a moldura concreta, dentro da moldura legal de 26 a 320 de multa entre 100 e 120 dias de multa por cada crime a uma taxa de € 5,00 a € 5,50, sem prejuízo da subsequente moldura de cúmulo jurídico a fixar. Na referida moldura teve-se em consideração os antecedentes criminais do arguido que resultam do seu CRC. (…) Consigna-se que a confissão supra referida é um pressuposto desde acordo e não mera parte componente do mesmo (…)”.

Seguidamente foi proferido despacho, exarado em acta, no qual, depois de expender sobre a admissibilidade e pressupostos do acordo em processo penal, foi decidido: “(…)Em face das razões que vimos de expender, por falta de fundamento legal que tutele o acordo proposto, não se admite o mesmo, devendo os autos prosseguir os seus termos com a produção da prova  em audiência de discussão e julgamento”.

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O MºPº interpôs recurso do aludido despacho, de imediato, por declaração exarada em acta. Mas, notificado da interposição do recurso o ilustre defensor do arguido, não prescindiu do prazo para se pronunciar, pelo que foi determinado que os autos aguardassem o decurso do prazo estabelecido no art. 413º, nº1 do CPP, para a resposta ao recurso e determinado o prosseguimento da audiência coma produção da prova.

A audiência prosseguiu então com a produção de prova e alegações orais, após o que foi designada a leitura da sentença.

A sentença tem o seguinte DISPOSITIVO:

“Pelo exposto, e atentos os fundamentos de facto e de direito invocados, julgo a acusação pública deduzida parcialmente procedente e em consequência: - condeno o arguido A..., pela prática de dois crimes de injúria agravada, p e p pelos artigos 181º e 184º com referência ao disposto no art. 132º, nº2, al. l), todos do C. Penal, na pena de 110 (cento e dez) dias de multa, à taxa diária de € 5,50, não condenando o mesmo pela agravação prevista no art.183º do C. Penal.

Inconformado com a sentença, dela recorre também o MºPº.

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No primeiro recurso o MºPº formula as seguintes CONCLUSÕES:

1- Ao entender a douta decisão que a confissão apresentada não pode ser valorada por o arguido não a ter feito presencialmente, viola a letra da lei, ou seja o art. 334º, nº4 do CPP, posto que o defensor representa o arguido para todos os efeitos possíveis.

2° - A interpretação feita do art. 334°, nº 4, do CPP, levaria à consagração de um modelo de audiência na ausência do arguido, amputado sistematicamente e pelo próprio legislador, do instituto da confissão, interpretação esta que configuraria uma violação da Constituição da República, por constituir um atentado ao princípio da proporcionalidade em sentido amplo consagrado o no art. 18º da Constituição.

3° - A douta decisão formulada, ao rejeitar o instituto do acordo sobre a sentença, fá-lo com base em errado pressuposto de limitação da liberdade de apreciação do julgador.

4° - O referido instituto ou figura jurídica, não só não limita, como agiliza o julgamento, com pleno respeito e obediência ao princípio da tutela judicial efetiva (art. 20º da CRP) princípio do favorecimento do processo, princípio da celeridade processual (art. 32º, nº 2, da CRP) e princípio do Estado de direito.

5° - O acordo apresentado deve ser apreciado, pois a confissão é nele um pressuposto, respeita o modelo de audiência, o princípio da indisponibilidade do objeto do processo penal e o princípio da investigação judicial e da verdade material, para além de existir em diversos pontos da regulamentação processual penal a figura do acordo sobre o decurso do processo e mesmo sobre o seu resultado, designadamente em matéria de Suspensão provisória do processo, processo sumaríssimo e arquivamento por dispensa de pena.

6° - Termos em que deve o acordo apresentado ser objeto de apreciação judicial, assim se cumprindo o principio da legalidade processualmente imposta.

Justiça!»

É este o recurso que se pretende ver também apreciado.

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No recurso da sentença, por sua vez, são formuladas as seguintes CONCLUSÕES:

1 - Ao entender a douta decisão que recusou o «acordo sobre a sentença» que a confissão apresentada não podia ser valorada por o arguido não a ter feito presencialmente, viola a letra da lei, pois não só o arguido pode confessar na contestação através do defensor, como também resulta do art. 334°, nº 4, do CPP que o defensor representa o arguido para todos os efeitos possíveis.

2 - A interpretação feita do art. 334°, nº 4, do CPP, levaria à consagração de um modelo de audiência na ausência do arguido, amputado sistematicamente e pelo próprio legislador, do instituto da confissão, interpretação esta que configuraria uma violação da Constituição da República, por constituir um atentado ao princípio da proporcionalidade em sentido amplo, na componente da proibição do excesso, consagrado no art. 18º da Constituição.

3 - A douta decisão formulada, ao rejeitar o instituto do acordo sobre a sentença, fá-lo com base em errado pressuposto de limitação da liberdade de apreciação do julgador, Na verdade, ou a Mmª Juiz aceitava o acordo concreto, a proposta conjunta de Ministério Público e do arguido, e procedia à fixação da pena concreta; ou o não aceitava, caso este em que a confissão do arguido deixava de ser vinculativa, devendo iniciar-se a audiência de julgamento para produção de prova.

4° - O referido instituto ou figura jurídica, não só não limita, como agiliza o julgamento, com pleno respeito e obediência ao princípio da tutela judicial efetiva (art. 20° da CRP) princípio do favorecimento do processo, princípio da celeridade processual (art. 32°, 11°2, da CRP) e princípio do Estado de direito,

5° - O acordo apresentado deve ser apreciado, pois a confissão é nele um pressuposto, respeita o modelo de audiência, o princípio da indisponibilidade do objeto do processo penal e o princípio da investigação judicial e da verdade material, para além de existir em diversos pontos da regulamentação processual penal a figura do acordo sobre o decurso do processo e mesmo sobre o seu resultado, designadamente em matéria de suspensão provisória do processo, processo sumaríssimo e arquivamento por dispensa de pena.

6° - Termos em que deve o acordo apresentado ser objeto de apreciação judicial, assim se cumprindo o princípio da legalidade processualmente imposta,

7° - E assim, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que, dando por provada a confissão livre, integral e sem reservas, com redução de taxa de justiça a metade, ao abrigo do art. 344°, nº 2, al. c), do CPP, fixe depois a pena de multa para cada crime provado na sentença e com a qualificação jurídica nela indicada, tendo em consideração essa mesma confissão, pena de multa essa que terá de ser inferior a 110 dias.

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Neste Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso, ponderando, além do mais:

“(…) pese embora seja louvável o esforço argumentativo apresentado pelo Exmo. MMP recorrente no extinto TJ da comarca de Mira, não se acompanha o mesmo. Com efeito, para além da duvidosa legalidade dos acordos sobre a sentença em processo penal, como decorre do Ac. do STJ de 10/4/2013, Proc. 224/06.7GAVZL.C1.S1, que teve eco na Directiva nº 2/14 de 21-02-2014 da PGR, parece-me que a lei não admite a confissão integral e sem reservas dos factos feita pelo defensor, ainda que com contacto do arguido pelo telefone, nos termos que vêm defendidos na motivação”.

Corridos vistos, cumpre decidir


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A questão suscitada em ambos os recursos é a mesma e única: saber se o acordo celebrado pelo MºPº e o ilustre defensor do arguido, na ausência deste, é válido e relevante à luz do ordenamento em vigor.

Da procedência do primeiro recurso resultará a invalidade dos actos subsequentes, com destaque para a sentença recorrida, assim prejudicando a apreciação do segundo recurso. E da sua improcedência resulta a inutilidade da apreciação do recurso da sentença que tem, precisamente, o mesmo fundamento. 

A questão da validade dos acordos em processo penal foi objecto de apreciação no Ac. do STJ de 10/04/2013, Proc. 224/06.7GAVZL.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt., que analisa a questão em face do direito constituído, a cuja argumentação se adere.

Como ali se refere “não está agora em causa a bondade das opções orientadas para soluções de consenso, ou para uma justiça negociada apresentada como solução alternativa, uma vez que esta deve ser decidida exclusivamente no diálogo do legislador com a sua perspectiva sobre a forma de atingir as finalidades do direito penal. Aqui, e agora, o que se pretende é única, e exclusivamente, saber se a lei processual penal vigente respalda o acordo negociado de sentença constante da decisão recorrida, e isto sem ter em conta considerações sobre a invocada ousadia jurídica e o fulgor interpretativo de todos aqueles que entendem que é tempo de inovar”.

Concluindo, com o dito aresto que a resposta à questão é “frontalmente negativa pois que a letra e os actuais princípios que norteiam o processo penal não suportam uma interpretação que proclama a validade dos acordos negociados de sentença”.

Acresce, no caso, que nunca a confissão do arguido seria relevante, dado que o arguido não estava presente, nem obtida em acto processual a que o tribunal de julgamento pudesse, validamente, ter acesso - como decorre do disposto no art. 344°, nº 3 b) do CPP bem como do art. 357°, n.º1 a) do CPP.

A confissão exige a presença do arguido em audiência, ou constar de declarações validamente produzidas e que possam ser lidas em audiência, nos termos do art. 357º do CPP.

Carece de base legal, e como tal é nula e de nenhum efeito, a confissão, através de defensor, ainda que invocando a confirmação do arguido através do telefone.

Neste sentido, o Ac. do STJ de 20/3/96, BMJ 455, 372 que a confissão efectuada na contestação não tem força probatória plena, sendo simples declaração a confirmar em audiência. E o Ac. TRP de 15/12/1999, Proc. 9911060, decidindo que a confissão do arguido só é relevante em audiência quando prestada nos termos e pela forma estabelecida no artigo 344º do Código de Processo Penal, sendo que as declarações do arguido só podem ser lidas em audiência nos termos do artigo 357º do mesmo Código.

Assim não pode ter o relevo pretendido a confissão efectuada pelo defensor, na ausência do arguido.

Tal solução não viola o invocado princípio da proporcionalidade, porquanto não inviabiliza a confissão do ausente – desde que realizada com o formalismo do julgamento ou em declarações susceptíveis de ali serem valoradas, nos ternos do art. 357º do CPP. E no eventual conflito de interesses entre a vontade de confessar e o direito de audição, genuíno, prevalece seguramente este último.

Por último, da improcedência do recurso interlocutório decorre a improcedência do recurso da sentença final, vista a identidade de fundamentos.


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III. Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se negar provimento aos dois recursos interpostos, com a consequente manutenção da sentença final.

Sem tributação.

Coimbra, 4 de Fevereiro de 2015

(Belmiro Andrade – relator)

(Abílio Ramalho - adjunto)