Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
231/08.5GBTMR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: PROVA TESTEMUNHAL
PROVA POR RECONHECIMENTO
Data do Acordão: 05/04/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE TOMAR - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 128º E 147º, DO C. PROC. PENAL
Sumário: A situação em que a testemunha, ou a vítima, é solicitada a confirmar o arguido presente como agente da infracção não se configura um acto processual, consubstanciando o reconhecimento pessoal. Pelo contrário, tal confirmação da identidade de alguém que se encontra presente, e perfeitamente determinado, apenas poderá ser encarado como integrante do respectivo depoimento testemunhal.
De facto, a identificação subjacente a um depoimento testemunhal esgota a sua eficácia - e a possibilidade de o juiz o valorar - no âmbito de um meio probatório não direccionado ao reconhecimento de uma pessoa e, assim, qualquer "individualização" ou "reconhecimento" - em sentido impróprio, diga-se - que aí se faça não pode deixar de ter como pressuposto uma situação de determinação subjectiva, e, por isso, só poderá ser valorada dentro da esfera probatória de onde emerge - a prova testemunhal -, não lhe podendo ser reconhecido um valor probatório autónomo e separado.
Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO
           
1. No processo comum colectivo n.º 231/08.5GBTMR do 2º Juízo do tribunal Judicial de Tomar, por acórdão datado de 14 de Dezembro de 2010, foi condenado o arguido HJ... na pena de oito anos de prisão.
Decidiu, assim, o Colectivo:
A- PARTE CRIMINAL
1º PROCESSO - Julgar a acusação deduzida nos presentes autos de comum colectivo nº 231/08.5GBTMR parcialmente provada e procedente e, em consequência, condenar o arguido como autor material, em concurso real:
De um crime de rapto, p. e p. pelo art. 161º nº 1 do CP, na pena de três anos de prisão;
De um crime de coacção sexual, p. e p. pelo art. 163º nº1 do CP, na pena de três anos de prisão;
De um crime de condução de veículo, sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3º nº 2 do D.L. 2/98 de 3.1., na pena de cinco meses de prisão;
2º PROCESSO - Julgar a acusação deduzida no comum singular nº 221/08.8TATMR do 1º Juízo deste Tribunal (apenso A) provada e procedente e, em consequência, condenar o arguido como autor material de um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido pelo artigo 11º nº 1 alínea a) do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, na pena de onze meses de prisão;
3º PROCESSO - Julgar a acusação deduzida no comum singular nº 232/08.3GBTMR do 3º Juízo deste Tribunal (apenso B) provada e procedente e, em consequência, condenar o arguido como autor material de um crime de condução de veículo, sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3º nº 2 do D.L. 2/98 de 3.1., na pena de cinco meses de prisão;
4º PROCESSO - Julgar a acusação deduzida no comum singular nº 67/09.6GBTMR que também teve o nº 221/08.8TATMR-A do 1º Juízo deste Tribunal (Apenso C) provada e procedente e, em consequência, condenar o arguido como autor material de um crime de furto simples, p. e p. pelo artigo 203º nº 1 do Código Penal, na pena oito meses de prisão;
5º PROCESSO - Julgar a acusação deduzida no comum singular nº 354/09.3GBTMR do 2º Juízo deste Tribunal (apenso D) provada e procedente e, em consequência, condenar o arguido como autor material de um crime de condução de veiculo sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º nº 1 e nº2 do DL 2/98 de 03.01., na pena de cinco meses de prisão;
6º PROCESSO - Julgar a acusação deduzida no comum singular nº 569/09.4GBTMR do 2º Juízo deste Tribunal (apenso E) provada e procedente e, em consequência, condenar o arguido como autor material de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelo artigo 153º nº 1 CP, com referência ao disposto no artigo 155º nº 1 al. c) e 132º nº 2 al. l) CP, na pena de um ano de prisão;
7º PROCESSO - Julgar a acusação deduzida no comum singular nº 615/09.1TATMR do 2º Juízo deste Tribunal (apenso F) provada e procedente e, em consequência, condenar o arguido como autor material de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º nº 2 do DL 2/98 de 03.01., na pena de cinco meses de prisão;
8º PROCESSO - Julgar a acusação deduzida no comum singular nº 700/09.0GBTMR do 3º Juízo deste Tribunal (apenso G) parcialmente provada e procedente e, em consequência, condenar o arguido como autor material e em concurso real, de dois crimes de furto simples, p. e p. pelo art. 203º nº 1 do Código Penal, nas penas parcelares de sete meses de prisão para cada um destes dois crimes; 
9º PROCESSO - Julgar a acusação deduzida no comum singular nº 374/09.8GBTMR do 1º Juízo deste Tribunal (apenso I) provada e procedente e, em consequência, condenar o arguido como autor material de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º nº 2 do DL 2/98 de 03.01., na pena de cinco meses de prisão;
· Em cúmulo jurídico de todas estas penas parcelares, condenar o arguido na pena única de oito anos de prisão.
            B- PARTE CIVIL
            Mais foi o arguido/demandado condenado a pagar:
            - ao lesado LL... a importância de € 526,80;
            - à lesada JS…, Lda a quantia de € 1.075,25, sendo € 968,00, referentes ao valor titulado no cheque e os restantes € 107,25, referentes aos juros de mora vencidos, bem como os juros de mora vincendos sobre a quantia titulada no cheque, até integral pagamento.

            2. Inconformado, o arguido recorreu do acórdão, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
«EM CONCLUSÃO, POR TUDO O EXPOSTO DEVE SER REVOGADA A DOUTA DECISÃO DO TRIBUNAL “A QUO”, ALÉM DO MAIS POR ERRO NA APRECIAÇÃO DA PROVA.
I- Aceitou o Tribunal “a quo” como prova bastante e suficientemente credível, para condenar o arguido, as declarações da vítima;
II- Em momento algum deu como credíveis as declarações do arguido;
III- Conjugados estes dois elementos estamos perante clara violação do princípio in dubio pro reo (n.° 2 do art. 32.° da Lei Fundamental, art.° 11º da DUHD e n.° 6 do art. 6.° da CEDH);
IV- Não atendeu o tribunal “a quo” ao facto de a filha do arguido ser mais nova do que a ocorrência dos factos, motivando alongadamente a credibilidade do depoimento da vítima na existência de uma filha do arguido facto, afinal, inexistente, o que em nosso entender constitui violação do n.° 1 do art. 124.° do C.P.P.
V- Foi completamente ignorada a conclusão da Inspecção Lofoscópica que não detectou vestígios que pudessem contribuir para identificação do autor.
VI- Também ao Exame Pericial que exclui a vítima como dadora dos vestígios recolhidos na viatura do arguido, não foi dado o devido relevo.
VII - Quanto aos sinais físicos característicos do arguido (dentes sãos e tatuagem notória) que claramente e conjugados com os factos anteriores, o devem afastar como autor dos factos, qualquer ponderação lhes foi dada, não tendo a prova sido apreciada da mesma forma quando procedente da vítima ou do arguido.
VIII- Temos de concluir que se a vítima vivenciou os factos descritos, não o foi decerto no veículo identificado nem com o autor em causa.
NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO, QUE DOUTAMENTE SERÃO SUPRIDOS, DEVERÁ SER REVOGADA A DECISÃO ORA EM CRISE E SUBSTITUÍDA POR OUTRA QUE ABSOLVA O RECORRENTE DAS ACUSAÇÕES QUE LHE SÂO IMPUTADAS, COM AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS».

            3. O Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso, assim dissertando (em transcrição):
            «I. No dia …2008, cerca das 17H30 , conduzindo, sem habilitação legal, o veículo automóvel, matrícula … , o arguido abordou a ofendida , DG…, na estrada que liga a localidade de X..., ..., à sede concelhia, na cidade de ....
II. E a pretexto de a ajudar e transportar à cidade de ..., onde residia, logrou convencê-la a entrar no referido veículo automóvel.
III. Não só o objectivo de lhe confinar os movimentos mas também de com ela vir a manter relações de sexo.
IV. Ficou na retina do julgador, como bem consta do texto do acórdão, a reacção espontânea da ofendida, DG…, quando, no decurso do julgamento e depois de ordenado o afastamento do arguido da sala de audiências, estremeceu mal o viu de relance, reconhecendo-o sem qualquer hesitação.
V. As declarações para memória futura prestadas pela menor lidas em audiência, os depoimentos das testemunhas e restantes elementos de prova permitiram formar a livre convicção do tribunal.
VI. Este mesmo princípio da livre apreciação da prova terá de funcionar relativamente aos sinais físicos característicos do arguido (dentes sãos e tatuagem notória) que não foram mencionados.
VII. A sua não menção não corresponde à inexistência e, assim, não se descortina como é que conjugada com os factos anteriores devem afastar o arguido da autoria dos factos.
VIII. O arguido e recorrente não pode retirar da inexistência da menor VB..., nascida no dia …, a comprovação de que não fez a afirmação de que tinha uma filha, quando é certo que nunca mencionou o respectivo nome e tão pouco se sabe se tal afirmação tinha qualquer correspondência com a realidade.
IX. Do mesmo modo, a circunstância de os exames efectuados e inspecções lofoscópicas não revelarem vestígios da presença da ofendida no veículo automóvel, matrícula …, não significa, sem mais, que os factos não ocorreram tal qual como foram dados como provados e que não esteve lá.
X. Além de tal argumentação se mostrar reversível e equívoca,
XI. O que se pode e deve dizer é que o arguido “desenfreado“não tem controle nos mais primitivos instintos sexuais e lascívia.
 XII. O grau de culpa do arguido é elevado e as exigências de prevenção, quer geral, quer especial, são candentes.
XIII. Assim, perante a gravidade dos factos e da culpa do agente, bem andou o tribunal ao condenar o arguido, como autor material e em concurso real, pela prática de
· um crime de rapto, p. e p. , pelo art.° 161º, n.° 1, do Código Penal, na
pena de três anos de prisão;

· um crime de coacção sexual, p. e p. , pelo art. ° 163.0 , n. ° 1 , do Código
Penal , na pena de três anos de prisão e

· um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. , pelo art.° 3º, n.º 2 do , do D.L. 2/98 de 3/1, na pena de cinco meses de prisão
· e  em cúmulo jurídico de tais penas com as aplicadas nos processos apensos , na pena única de oito anos de prisão,
XIV. Que se mostra bem doseada e equilibrada.
XV. Não se vê qualquer erro obscuridade ou contradição em toda a matéria de facto dada como provada, tal como inexiste qualquer falta de fundamentação, geradora de nulidades.
XVI. Não se mostra violado o princípio in dubio pro reo “ nem o disposto pelo art.° 32º, n.° 2, da CRP, art.° 11º da DUHD e art.° 6º, n.° 6, da CEDH, nem o disposto pelo art. 124º do CPP ou qualquer outra norma jurídica.
XVII. Merece inteira confirmação o acórdão recorrido».
  
4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se, a fls. 1028-1033, aderindo à argumentação do Colega de 1ª instância, peticionando a final a total improcedência do recurso.

           
5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (respondendo o arguido como consta de fls 1038-1040), foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea c) do mesmo diploma.
           
            II – FUNDAMENTAÇÃO
           
 1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).
             Assim, balizados pelos termos das conclusões[1] formuladas em sede de recurso, as questões a decidir prendem-se com o seguinte:
a)- houve ou não erro de julgamento quanto à factualidade do 1º PROCESSO (PROCESSO PRINCIPAL 231/08.5GBTMR) – FACTOS 1 a 102 do rol de factos provados?

            2. DO ACÓRDÃO RECORRIDO
            2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, com interesse para a decisão deste recurso (transcrição[2]):
«I – Comum Colectivo nº 231/08.5GBTMR:
1. No dia … de 2008, pelas 17 horas e 30 minutos, o arguido conduzia o veículo automóvel com matrícula …, na estrada que liga a localidade de X... a ...;
2. O arguido conduzia sem que para tanto se encontrasse habilitado com a respectiva carta de condução que lhe permitisse a circulação daquele veículo automóvel na via pública.
3. A dado momento do percurso, quando passou junto do Centro de Saúde de X..., área desta comarca, o arguido apercebeu-se da presença da ofendida DG…;
4. Nascida a … de 1992;
5. A qual se encontrava sentada num muro existente naquele local;
6. E estava a chorar;
7. Ao ver que a menor se encontrava sozinha e chorosa, o arguido formulou o propósito de convencer DG… a entrar no seu veículo;
8. E transportá-la para um local isolado;
9. A fim de com ela manter relações sexuais;
10. A ofendida DG… aguardava a chegada de um autocarro, no qual pretendia deslocar-se para sua casa, sita em ...;
11. E apresentava-se do lado direito da estrada, atento o sentido de marca seguido pelo arguido;
12. Ao passar junto do local onde a ofendida se encontrava sentada, o arguido imobilizou o veículo que conduzia;
13. Abriu o vidro da porta da frente do lado direito;
14. E, sempre com o intuito de a convencer a entrar na sua viatura, dirigiu-se àquela, dizendo «és mal empregada para estares aqui sentada. O que se passa contigo? Porque é que estás aqui sentada a chorar?”,
15. Ao que a ofendida DG… respondeu que não se passava nada e que se encontrava à espera do autocarro para se dirigir para casa, em ...;
16. O arguido perguntou ainda a DG… se a mesma queria uma boleia;
17. Dizendo-lhe que a levaria para casa;
18. Ao que a mesma respondeu que não queria;
19. Foi então que o arguido saiu do interior do seu veículo automóvel;
20. Aproximou-se da ofendida;
21. E segurou o braço esquerdo da mesma;
22. Dizendo em tom de voz calmo e simpático, simulando estar preocupado com ela, “anda, eu levo-te”;
23. O arguido fez, assim, crer à ofendida que estava preocupado por a ver chorar,
24. E que pretendia apenas dar-lhe boleia para casa;
25. De seguida, o mesmo arguido abriu a porta da frente, do lado direito do veículo que conduzia;
26. Onde a ofendida entrou e se sentou;
27. Porque, em resultado das expressões proferidas pelo arguido e a si dirigidas, se convenceu de que o arguido apenas pretendia ajudá-la e transportá-la para casa, por estar preocupado com ela, em virtude de ela estar a chorar;
28. O arguido entrou também no seu veículo;
29. E retomou a marcha;
30. Seguindo na direcção de ...;
31. Dizendo à ofendida “não te preocupes, eu vou levar-te para casa”;
32. Mantendo-a, assim, na suposição de que a sua intenção era só dar-lhe boleia para casa;
33. A dada altura do percurso, quando já tinham decorrido cerca de 10 minutos desde o momento em que iniciara a marcha acompanhado da ofendida, o arguido seguiu pela estrada situada por detrás da muralha do Castelo de ..., na direcção do Aqueduto de ..., área desta comarca;
34. Até que chegou a um cruzamento;
35. Ali chegado, ao invés de seguir na direcção de ... onde se situava a casa da ofendida, o arguido seguiu em frente, em direcção a ...;
36. E, após, mudou de direcção à esquerda, seguindo por um caminho em terra batida;
37. Neste momento, a ofendida apercebeu-se que o arguido não estava a seguir na direcção da cidade de ..., como lhe dissera que iria fazer;
38. E começou a ficar assustada;
39. O referido caminho em terra batida fica situado num local isolado, ladeado por pinhal e mato;
40. Não existindo ali qualquer habitação, nem iluminação;
41. Já no percurso pelo referido caminho em terra batida, o arguido disse à ofendida, em tom de voz sério e intimidatório, “agora vais ficar quietinha, que é para eu não te magoar”;
42. E, acto contínuo, trancou todas as portas do veículo onde seguiam;
43. O arguido continuou a marcha por mais alguns instantes;
44. Até que se dirigiu para as traseiras de uma casa em ruínas e isolada;
45. Ali, o arguido imobilizou o veículo que conduzia;
46. Nesse momento, a ofendida agarrou em dois sacos que levava consigo;
47. E, já muito assustada, puxou o trinco da porta da frente, do lado direito do veículo conduzido pelo arguido, logrando abri-la;
48. Em seguida, colocou a perna direita de fora do veículo;
49. Propondo-se fugir;
50. Contudo, ao aperceber-se que a ofendida pretendia fugir, o arguido agarrou no trinco da porta que DG… abrira;
51. E fechou-a;
52. Embatendo com a mesma no joelho daquela;
53. Dizendo em tom de voz sério e intimidatório «vais ficar quietinha, senão eu vou ter que te magoar. Portanto, dá-me cá os teus sacos»;
54. E, em seguida, inclinou para trás o banco onde a ofendida se encontrava sentada;
55. Fazendo com que a mesma ficasse deitada;
56. Ao aperceber-se que o arguido pretendia manter relações sexuais consigo, a ofendida pediu-lhe que parasse, «que não fizesse aquilo»;
57. Dizendo-lhe que não iria contar o sucedido a ninguém;
            58. Todavia, o arguido tirou o cinto das calças que vestia;
59. E desabotoou o respectivo botão;
60. Ao mesmo tempo que tentou, por diversas vezes, beijar a ofendida na boca;
61. O que só não conseguiu porque esta desviou sempre a respectiva face;
62. Seguidamente, o arguido sentou-se sobre a ofendida, que permanecia deitada;
63. Abriu o casaco que aquela vestia e agarrou-lhe as duas mãos, de forma a impedir que a mesma opusesse resistência às suas intenções;
64. Dizendo-lhe «isto não te vai custar nada. Faz tudo como deve de ser, senão eu magoo-te»;
65. Ao que a DG… lhe disse «não faças isso que eu estou menstruada»;
66. Contudo, o arguido abriu o fecho das calças que a mesma vestia e puxou-as para baixo, até aos joelhos;
67. E fez o mesmo com as cuecas que a ofendida usava;
68. Enquanto o arguido agia deste modo, DG… pediu-lhe insistentemente e chorosa, que não lhe fizesse mal;
69. E tentou, por diversas vezes, libertar-se do mesmo e impedir que o mesmo a despisse;
70. Ao que o arguido permaneceu indiferente, fazendo uso da sua superioridade física;
71. Sempre com o propósito de manter relações sexuais com DG…;
72. E apesar de se ter apercebido que o fazia contra a vontade desta;
73. Continuando sempre a tentar beijá-la na boca e a despir-lhe as calças e as cuecas;
74. Ao puxar para baixo as cuecas que a ofendida vestia, o arguido viu que a mesma se encontra efectivamente menstruada;
75. Nesse momento, o arguido deixou de puxar as calças e as cuecas da ofendida, abriu a porta da frente do lado direito do seu veículo e saiu para o exterior;
76. Pediu desculpa à DG…;
77. Acrescentando-lhe que tinha uma filha;
78. E que não queria que alguém fizesse à sua filha, aquilo que ele estava a tentar fazer-lhe a ela;
79. Referindo-se à tentativa de manter com a DG… relações de cópula completa;
80. E disse, ainda, à menor para se vestir;
81. Em seguida, o arguido sentou-se no lugar do condutor da viatura referida em 1.;
82. E disse à ofendida que a iria levar a casa;
83. Tendo-a deixado, numa das Avenidas do centro da cidade de ...;
84. Após o que DG… se dirigiu, a correr, em direcção ao skateparque, nesta cidade, perto do qual residia, à data;
85. Em consequência dos factos descritos em 47. a 52., DG… sofreu traumatismo e escoriação da face anterior do punho esquerdo;
86. Lesões que lhe determinaram um período de seis dias de doença;
87. Sem afectação da capacidade para o trabalho geral e sem afectação da capacidade para o trabalho profissional;
88. O arguido quis proferir e dirigir as expressões descritas em 14.; 16.; 17. e 22., à DG… ciente de que o propósito anunciado de que a ia transportar a casa e de que a postura que assumiu de que estava preocupado com ela por a ver a chorar não correspondiam à verdade;
89. O que fez, apenas para a convencer a entrar na viatura descrita em 1.;
90. E com o objectivo de a fazer seguir viagem consigo, para com ela vir a manter relações de sexo;
91. E obrigando-a a permanecer, fechada, no interior do Opel ...e a seguir com ele, pelos locais que escolheu, descritos em 35.; 36. e 44.;
92. O que quis fazer;
93. Sabendo que, desse modo, estava a privar a DG… da sua liberdade de movimentos;
94. E que actuava contra a vontade da mesma;
95. Ao tentar beijar DG… na boca e ao puxar as calças e as cuecas que a mesma vestia até aos joelhos, quando a ofendida se encontrava deitada e o arguido sentado sobre ela, o arguido agiu de forma deliberada;
96. Para se estimular sexualmente e para satisfazer os seus instintos sexuais;
97. Querendo e conseguindo, usar da força e da sua superioridade física sobre DG… para neutralizar a resistência que esta lhe opunha, obrigando-a a deitar-se, sentando-se, por cima dela, agarrando-lhe as mãos e anunciando-lhe que a magoava, caso reagisse;
98. Sabia que actuava contra a vontade daquela;
99. E que a compelia a sofrer no seu corpo actos que lesavam a liberdade e autodeterminação sexual de DG…;
100. Ao praticar os factos descritos em 1. e 2., o arguido sabia, ainda, que conduzia um veículo automóvel na via pública e que não estava habilitado para tal;
101. Todavia, quis conduzir o mesmo, apesar de saber que a condução de veículos com motor na via pública só é permitida aos titulares de documento que os habilite a tanto;
102. À data dos factos, DG… tinha 15 anos de idade;
(…)
212. O arguido agiu, em todos os momentos, acima descritos em 1. a 211., com vontade livre e consciente;
213. Bem sabendo que aqueles seus comportamentos eram e são proibidos e punidos pela lei penal;
214. O arguido HJ... sofreu as seguintes condenações:
Em 22 de Fevereiro de 2001, neste Tribunal, no processo comum singular nº 159/99 do 3º Juízo, numa pena de multa, por crime de condução de veículo, sem habilitação legal, praticado em 2 de Abril de 1999;
Em 23 de Outubro de 2001, no Tribunal Militar Territorial de Tomar, processo nº 3/2001, pela prática de dois crimes de deserção, praticados em 10 de Dezembro de 2000 e 22 de Fevereiro de 2001, na pena única de quatro meses de prisão militar;
Em 14 de Maio de 2002, no Tribunal Militar Territorial de Elvas, processo nº 7/2002, na pena de dois anos de presídio militar suspensa pelo mesmo período de tempo, pela prática, em 9 de Dezembro de 2001do crime de deserção;
Em 21 de Maio de 2002, no processo abreviado nº 281/01.2GBTMR do 1º Juízo deste Tribunal, pela prática, em 17 de Julho de 2001, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, numa pena de multa;
Em 27 de Dezembro de 2002, no processo abreviado nº 781/01.4PBTMR do 1º Juízo deste Tribunal, pela prática, em 8 de Dezembro de 2001, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, numa pena de multa;
Em 4 de Fevereiro de 2003, no processo comum colectivo nº 574/00.6GBTMR do 1º Juízo deste Tribunal, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, em 23 de Dezembro de 2000, na pena de dois anos de prisão;
Em 27 de Fevereiro de 2003, no processo comum singular nº 213/01.8TAACN do Tribunal Judicial de Alcanena, em pena de multa, pela prática, em 8 de Dezembro de 2001, de um crime de desobediência;
Em 13 de Novembro de 2003, no processo comum singular nº 28/02.6GBTMR deste 2º Juízo, na pena de seis meses de prisão, pela prática, em 4 de Janeiro de 2002, de um crime de furto simples;
Em 28 de Abril de 2004, no processo comum singular nº 777/01.6PBTMR do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Tomar, pena de cinco meses de prisão, substituída por igual tempo de multa, pela prática, em 29 de Novembro de 2001, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal;
Em 24 de Junho de 2004, no processo comum singular nº 773/01.3PBTMR do 2º Juízo deste Tribunal, na pena de sete meses de prisão, pela prática, em 4 de Dezembro de 2001, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal;
            Em 16 de Dezembro de 2004, no processo comum singular nº 444/03.6TATMR do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Tomar, pena de multa, pela prática, em 4 de Junho de 2003, de um crime de falsidade de declarações;
            Em 9 de Fevereiro de 2005, no processo comum singular nº 3/04.6TATMR do 3º Juízo deste Tribunal Judicial de Tomar, pena de quatro meses de prisão, pela prática, em 4 de Junho de 2003, de um crime de descaminho ou destruição de objectos colocados sob o poder público;
            Em 9 de Novembro de 2006, no processo comum singular nº 24/04.9PBTMR do 2º Juízo deste Tribunal Judicial de Tomar, na pena de um ano de prisão, suspensa na respectiva execução, pelo período de dois anos, pela prática, em 12 de Janeiro de 2004, de um crime de detenção ilegal de arma;
            215. Encontra-se preso, desde 19 de Dezembro de 2009, actualmente, no EP de Lisboa em cumprimento de uma pena de um ano de prisão que lhe foi imposta, no processo comum singular nº 335/09.7GBTMR do 1º Juízo deste Tribunal, que terminará no próximo dia 19 de Dezembro de 2010;
            216. Antes de preso, o arguido dedicava-se, por conta própria, à reciclagem de ferro e à compra e venda de sucata;
            217. Completou a 4ª classe, mas não sabe escrever;
            218. Apenas sabendo assinar o seu nome;
219. Vivia com a sua mãe, a sua mulher e uma filha de ambos que tem actualmente, cerca de dois anos de idade;
220. Tem um outro filho, com doze anos de idade;
221. Fruto de uma outra relação;
222. A mulher do arguido encontra-se desempregada;
223. A mãe do arguido vive, exclusivamente, de uma pensão de sobrevivência de cerca de € 150,00;
224. A sua família visita-o, todas as semanas, no estabelecimento prisional».
 
2.2. Quanto A FACTOS NÃO PROVADOS, temos os seguintes:
«Não se provaram quaisquer outros factos que não se compaginem ou não estejam incluídos, na matéria e facto acima dada como provada e, designadamente, os seguintes:
I – Comum Colectivo nº 231/08.5GBTMR:
Que, desde o momento em que iniciara a marcha acompanhado da ofendida, o arguido seguiu pela estrada situada por detrás da muralha do Castelo de ..., na direcção do Aqueduto de ..., área desta comarca, tenham decorrido vinte minutos porque o que resultou da discussão da causa, sobretudo, do relato de diligência externa de fls. 82, conjugado com o depoimento da testemunha FF... que fez com a vítima um reconhecimento dos locais dos factos, para o que reconstituiu o mesmo percurso seguido pelo arguido, no dia 3 de Junho de 2008, é o que consta do ponto 33. da matéria de facto provada;
A parte final do art. 31º da acusação, na acepção de que tenha sido apenas «por esse motivo» (o de DG… se encontrar menstruada) que o arguido viu que não podia manter com ela relações de sexo», porque o que se provou foi o que consta os pontos 74. a 83. da matéria de facto provada, do mesmo modo que, em resultado dessa mesma factualidade descrita nos pontos 74. a 83., é que também não se provou a alegação do art. 44º da mesma acusação, na parte em que é alegado que o arguido só não conseguiu manter relações sexuais com a vítima «(…) só por razões alheias à sua vontade, no caso a circunstância de a mesma se encontrar menstruada (…)»;
Também porque o que se provou foi apenas o que resulta descrito nos pontos 83. e 84. da matéria e facto provada, não resultou provada a circunstância alegada no art. 33º da acusação, de que o arguido, quando trouxe a DG… para ... a tenha deixado junto do skateparque;
Porque nenhuma prova foi produzida, nem se trata de factos notórios, nem tal resultou da observação directa do aspecto físico da vítima feita pelo Tribunal, aquando do depoimento prestado por ela, na audiência de discussão e julgamento, também não se provou que o facto de a DG… ter quinze anos, no dia 3 de Junho de 2008, fosse «facilmente perceptível pelo arguido, atento aspecto físico da mesma, designadamente, a sua compleição física de uma jovem com aquela idade», tal como alegado no art. 45º da acusação;
Consequentemente, também não se provou a matéria alegada no art. 46º da mesma acusação, ou seja, que «o arguido praticou os factos descritos apesar de saber que a ofendida tinha menos de 16 anos de idade e que, em razão da sua idade, a mesma estava particularmente indefesa e não podia oferecer-lhe resistência».

2.3. Para formar a sua convicção, argumentou assim o tribunal «a quo»:
«A convicção do Tribunal, quanto aos factos considerados provados, teve por base os seguintes fundamentos:
I – Comum Colectivo nº 231/08.5GBTMR:
No que se refere ao exercício da condução do veículo automóvel com matrícula …, nas circunstâncias descritas em 1. e 2., a análise das declarações das declarações do arguido que reconheceu que não tem carta de condução, articuladas com a informação do IMTT de fls. 415, de que resulta, justamente, que o mesmo não é titular de licença de condução ou qualquer outro documento legalmente válido que o habilite a conduzir veículos de circulação terrestre, tudo conjugado com a versão dos factos apresentada pela vítima DG…, com a razão de ciência e a credibilidade que adiante se referirá, de que resulta que, efectivamente, naquele dia 3 de Junho de 2008, o arguido foi a pessoa que conduziu tal veículo automóvel;
Ainda, no que se refere às características da mesma viatura, o depoimento da testemunha NR..., Militar da GNR de ..., que conhece o arguido há oito ou nove anos, em virtude do exercício da sua profissão, que recebeu a denúncia, cujo autor se encontra a fls. 12 e 13 e fez o auto de reconhecimento da viatura Opel ...identificada em 1., com a DG…, auto esse, que se encontra a fls. 17, bem como este auto de reconhecimento e as fotografias de fls. 18 a 20 e de fls. 73 a 75, sendo que, quanto a estas últimas, o arguido confirmou tratar-se do seu veículo automóvel que, por si era, regularmente conduzido, à data dos factos objecto deste processo;
No que se refere aos descritos em 100. e 101., porque o arguido quando confrontado com a necessidade de tirar a carta de condução para poder conduzir veículos de forma lícita, manifestou claramente, saber que se trata de uma conduta proibida e dos perigos acrescidos que a mesma envolve, para pessoas e coisas;
No que se refere à data de nascimento de DG… e à idade que tinha, aquando dos factos, a que se referem os pontos 4. e 102. da matéria e facto provada, a certidão de assento de nascimento de fls. 40 e 41;
Em relação aos factos descritos em 3.; 5. a 84., a análise crítica e comparada das declarações do arguido e das declarações para memória futura e do depoimento da testemunha DG…, por seu turno, conjugada com o relatório de perícia sobre a personalidade da vítima de fls. 52 e seguintes e com as declarações, como Perita, de FP..., Técnica Psicóloga da DGRS, tudo complementado com os depoimentos das testemunhas NR... e FF... e com o auto de reconhecimento de objecto de fls. 17; as fotografias de fls. 18 a 20; 73 a 76; 85 a 91 e 110 a 112 e o relato de diligência externa de fls. 82, nos termos que passam a expor-se:
NR..., Militar da GNR de ..., que conhece o arguido há oito ou nove anos, em virtude do exercício da sua profissão, que recebeu a denúncia, cujo autor se encontra a fls. 12 e 13 e fez o auto de reconhecimento da viatura Opel ...identificada em 1., com a DG…, auto esse, que se encontra a fls. 17 e tirou as fotografias anexas, cujas cópias estão a fls. 18 a 20, sendo que os originais dessas fotografias estão a fls. 110 a 112 e que também se apercebeu de que a menor estava muito nervosa, quando se dirigiu ao posto territorial de ..., para denunciar os factos, tal como consta de fls. 12 e 13.
FF..., Inspector da Polícia Judiciária há vinte anos, a prestar serviço no Departamento de ... há dez anos e que realizou uma deslocação aos locais onde a vítima referiu que os factos foram ocorrendo, sendo ele o autor do relato de diligência externa, que está a fls. 82 e das fotografias de fls. 85 a 91, que ilustram esses locais que DG… foi indicando e a própria vítima, que se posicionou de formas coincidentes àquelas em que se encontrava, quando os factos ocorreram.
Ambas estas testemunhas prestaram depoimentos lógicos, plausíveis e fizeram-no de forma rigorosa, manifestando distanciamento perante os factos e os respectivos protagonistas, tendo merecido toda a credibilidade por parte do Tribunal.
O arguido começou por dizer que nunca viu nem estabeleceu qualquer tipo de contacto com DG…, nem naquele dia 3 de Junho de 2008, nem antes ou depois dessa data.
Porém, quando confrontado com alguma circunstância que permitisse explicar o porquê de, eventualmente, por engano ou por intuito de vingança contra ele, ou por qualquer outro motivo, a vítima DG… ter dado notícia dos factos a que se referem os pontos 3.; 5. a 84. da matéria de facto  provada e ter imputado a autoria dos mesmos ao arguido, este não conseguiu dar qualquer explicação, apesar de, por diversas vezes, ter sido confrontado com essa questão, sempre dizendo que não conhece a vítima, nem sabe por que razão é que a mesma afirma que foi ele, arguido, quem praticou esses factos.
Ainda tentou fazer crer ao Tribunal que emprestava o veículo em causa, com frequência, ao seu cunhado, ao seu sobrinho, à sua irmã e à sua mulher, como que, para insinuar, se bem se compreendeu o alcance subliminar das suas declarações, nesta parte, que os factos descritos em 3.; 5. a 84. da matéria de facto provada, poderiam ter sido praticados ou por aquele seu cunhado, ou por aquele seu sobrinho.
Mas, além de ter reconhecido que era ele, quem, por regra, conduzia esta viatura, caso a sua versão tenha sido apresentada, para criar a dúvida na convicção do Tribunal quanto à ocorrência daqueles factos e à autoria dos mesmos ser do arguido, essa dúvida não existe. 
Desde logo, porque o arguido não acusou directamente ninguém da prática de tais factos, do mesmo modo, que nunca conseguiu dizer que os mesmos não aconteceram.
Depois, porque, a versão dos factos apresentada por DG… corresponde à verdade, pelas razões que passam e enunciar-se:
Foram lidas em audiência as declarações para memória futura que lhe foram tomadas em 25 de Setembro de 2009, no Tribunal Judicial da Comarca de Torres Novas, conforme auto de fls. 358 e 359 e transcrição de fls. 365 a 394;
Não obstante, porque havia sido arrolada como testemunha na acusação, voltou a ser inquirida em audiência de discussão e julgamento.
Já no decurso desta, na sessão realizada em 18 de Outubro de 2010, portanto, mais de dois anos depois dos factos, esta menina confirmou de forma mais genérica, mas, no essencial, coincidente, tudo quanto havia afirmado, em sede de declarações para memória futura.
Antes, em 9 de Junho de 2008, portanto, seis dias depois dos acontecimentos a que se refere o processo 231/08.5GBTMR, percorreu os locais por onde tinha andado com o arguido, naquele dia 3 de Junho de 2008, conforme relato de diligência externa de fls. 82 e fotografias anexas a fls. 85 e seguintes;
DG… reiterou em audiência de discussão e julgamento, o que já havia dito, nas suas declarações para memória futura, tendo apresentado a versão dos factos, tal como a mesma se encontra exarada nos pontos 3.; 5. a 84. da matéria de facto provada.
Também foram tomadas declarações, na qualidade de Perita, a FP…, Psicóloga e Técnica da DGRS, desde 1993, que fez entrevistas à DG…, em finais de Julho e Agosto de 2008, ou seja, cerca de um mês e cerca de dois meses depois dos factos objecto deste processo, com vista a avaliar a capacidade de testemunho desta última.
Mais tarde, quando já havia decorrido cerca de um ano, sobre a data mencionada na acusação, assistiu e acompanhou a DG..., na qualidade de técnica, na diligência de tomada de declarações para memória futura, cujo auto se encontra a fls. 358 e 359 e cuja transcrição de fls. 365 a 394 foi lida em audiência de discussão e julgamento;
Das observações, contactos e testes psicológicos que encetou a esta menina, FP… constatou que, apesar da possibilidade de ela distorcer a realidade, quando esta envolve situações mais complexas do ponto de vista emocional, apresentou sempre um discurso lógico e coerente, no que se refere aos factos objecto deste processo.
Esclareceu, ainda, que, em face dos pormenores que a DG...descreveu, relacionados com as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que a factualidade descrita na acusação aconteceu, só pode ter relatado factos que correspondem à realidade por si, efectivamente, vivida.
Esse relatório de perícia sobre a personalidade da vítima está a fls. 52 a 57 e foi, efectivamente, elaborado por esta Sra. Psicóloga.
Dos seus esclarecimentos, prestados na audiência de discussão e julgamento, de forma isenta, desassombrada e, por isso, absolutamente credível e de tal relatório, este, com o valor de prova pericial, que lhe é atribuído pelo art. 163º do CPP, resulta, desde logo, a capacidade de testemunho, por parte da DG....
Mas, deste mesmo relatório, que, no julgamento, foi corroborado, na íntegra, pela Sra. Perita que o elaborou, resulta, ainda, o seguinte:
            «Atendendo à inexistência de limitações graves no seu desenvolvimento intelectual, DG... revela, do ponto de vista instrumental, capacidade de testemunho. Além disso, o facto de, no presente processo, ter proferido um relato coerente, na forma e no conteúdo, com as declarações que efectuou anteriormente junto do órgão de polícia criminal poderá constituir um indicador de que estamos provavelmente perante um relato válido (proveniente da memória de uma experiência por ela vivida).»  
E, no que se refere à imaturidade apontada à vítima e a uma auto-imagem frágil e uma certa tendência para distorcer a realidade que são também mencionadas em tal relatório de fls. 52 a 57, a Sra. Perita, explicou que tal distorção da realidade não se refere aos factos que constituem o objecto deste processo, mas antes e só a circunstâncias de vida pessoal da vítima, atinentes a um relacionamento afectivo que estava a viver à data e à sua dinâmica familiar que a fizeram entrar num quadro depressivo, circunstâncias essas, aliás, que foram confirmadas quer pela própria DG..., quer pelo seu pai, a testemunha JM..., pelo que, não tendo qualquer relação com os actos praticados pelo arguido, na pessoa da vítima a que se refere a matéria de facto objecto do processo comum colectivo nº 231/08.5GBTMR, a imaturidade desta e a tendência que, em situações de maior complexidade emotiva, a levam a distorcer a realidade não afasta, nem abala a sua capacidade de testemunho.
E este foi totalmente credível, quer em pormenores como o que se refere ao facto de nunca antes destes factos ter visto o arguido (o que, dada a forma serena e firme como depôs, na audiência de julgamento, afasta qualquer hipótese de equacionar, como pretendeu o arguido, que tenha mentido ao tribunal, para o prejudicar ou para se vingar dele) quer à menção que o arguido lhe fez sobre ter uma filha, quando desistiu de a forçar a manter relações de sexo com ele (tendo o próprio arguido esclarecido, às perguntas sobre as suas condições pessoais, que tem uma filha com dois anos de idade), menção esta que tem, também, a virtualidade de neutralizar a possibilidade de a vítima estar a contar uma versão dos factos não coincidente com a realidade, por intuitos de vingança contra o arguido, pois foi ela própria que esclareceu que o arguido se arrependeu de levar por diante a consumação das relações sexuais, não tanto por ela se encontrar menstruada, mas, sobretudo, porque o arguido não queria que alguém fizesse à sua filha, o que ele estava a tentar fazer à DG....
Com efeito, foi a própria vítima que esclareceu que o arguido, a determinada altura se arrependeu, lhe pediu desculpa e lhe disse que também tinha uma filha e não gostava que alguém fizesse o mesmo à sua filha, o que revela a sua isenção e preocupação de rigor, na descrição da factualidade que protagonizou;
Acrescente-se que, logo, no dia imediato aos factos, a DG..., reconheceu o veículo Opel ...identificado no ponto 1. da matéria de facto, como aquele que o arguido conduzia, no dia anterior e no qual a transportou, nas demais circunstâncias relatadas na matéria de facto considerada provada, tal como resulta do auto de reconhecimento de objectos de fls. 17 e do depoimento da testemunha NR... e das próprias declarações do arguido que confessou ser seu aquele veículo e estar na sua disponibilidade;
Ora, a DG...não tinha como adivinhar, não conhecendo o arguido, que ele tinha uma filha, do mesmo modo, que se se comparar a descrição que consta do auto de denúncia de fls. 12 e 13, com o auto de reconhecimento de fls. 17 e com as fotografias de fls. 110 a 112, é evidente a enorme semelhança entre a descrição das características da viatura, feita antecipadamente e aquelas que o veículo realmente tem, o que também não poderia ser objecto de invenção ou de efabulação.
Por outro lado, em audiência de discussão e julgamento, aquando da saída do arguido para fora da sala do Tribunal, a DG...reconheceu-o como sendo o autor dos factos que relatou ao Tribunal, reconhecimento que fez, de forma serena e sem qualquer hesitação.
Em todo este relato, saliente-se a emoção e a incomodidade reveladas pela menor, que chorou de forma genuína, mais de uma vez, no decurso do seu depoimento prestado em audiência de julgamento, o que é perfeitamente consentâneo com a natureza invasiva e atentatória da sua intimidade e liberdade de dispor do seu corpo, que têm os actos descritos em 58. a 74., o que é mais uma circunstância que só faz reforçar a credibilidade do seu depoimento.
Essa mesma incomodidade e emoção foram constatadas, quer pela testemunha NR... que, quando recebeu a DG... no posto da GNR constatou o nervosismo e o abalo psicológico desta jovem; quer pela testemunha FF....
Esta última testemunha, a propósito da sua percepção acerca do estado em que DG..., enquanto foi levada a cabo a diligência de reconhecimento de locais, a que se refere relato de diligência externa, que está a fls. 82, esclareceu e passa a citar-se o que disse, que a vítima «evidenciava um desconforto tal que, ao chegar ao local, recordo-me perfeitamente, desatou a chorar» e, mais adiante, que «foi manifesto um trauma, um trauma de estar a viver aqueles momentos, de estar a viver aquele percurso, de estar a viver aquele sítio onde ela esteve e, ai sim, à medida que nos fomos aproximando, o desconforto e o nervosismo foi sendo cada vez maior e até chegar ao local em que ela desata num choro compulsivo», tendo, ainda, esclarecido que, por causa desse estado emocional da vítima, tiveram de cessar a diligência de investigação e foram levar a menor ao local por ela indicado.
Ora, a forma, ao mesmo tempo serena, mas emocionada, o conteúdo intrínseco do seu depoimento, lógico e coerente e consistente com anteriores descrições que fez dos mesmos factos, em datas diferentes, permite a conclusão inequívoca de que aquilo que a DG... relatou ao Tribunal foi aquilo que ela realmente viveu.
Tudo isto, para concluir que DG... disse a verdade, daí que se tenham provado os factos a que se referem os pontos 3.; 5. a 84. da matéria de facto provada;
No que se refere aos descritos em 85. a 87., o relatório médico-legal de fls. 34 a 36;      
Em relação aos escritos em 88. a 99., por presunção judicial, por aplicação das regras de experiência comum, aos factos conhecidos que são os que resultam descritos em 3.; 5. a 84. da matéria de facto provada e partindo da constatação retirada das declarações do arguido e da sua postura em audiência, de que é um homem medianamente inteligente e sagaz».

            3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

            3.1. Vem o arguido interpor recurso da parte do acórdão em que foi condenado pela prática de:
· de um crime de rapto, p. e p. pelo art. 161º nº 1 do CP, na pena de três anos de prisão;
· de um crime de coacção sexual, p. e p. pelo art. 163º nº1 do CP, na pena de três anos de prisão;
· de um crime de condução de veículo, sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3º nº 2 do D.L. 2/98 de 3.1., na pena de cinco meses de prisão.
Impugna, pois, a factualidade tida como ocorrida em 3 de Junho de 2008.
Recorre de facto e de direito.

3.2. RECURSO DE FACTO
3.2.1. É sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto pela seguinte ordem:
· primeiro da impugnação alargada, se tiver sido suscitada;
· e, depois e se for o caso, dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do C.P.Penal (a chamada impugnação restrita ou revista alargada da matéria de facto).
Não há que confundir estas duas formas de impugnação da matéria factual – por um lado, a invocação dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, alíneas a). b) e c), e por outro, os requisitos da impugnação – mais ampla - da matéria de facto a que se refere o artigo 412º, n.º 3, alíneas a), b) e c), todos do CPP.

3.2.2. O erro de julgamento – ínsito no artigo 412º/3 - ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância.
Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do CPP.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
Como bem acentua Jorge Gonçalves nos seus acórdãos desta Relação, «o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, cfr. os Acórdãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www. dgsi.pt)».
E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, já aqui aludida, prevista no artigo 412.º, n.º 3, do CPP.
A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Conforme jurisprudência constante, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, com base na audição de gravações, antes constituindo um remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados[3].
            A delimitação dos pontos de facto constitui um elemento determinante na definição do objecto do recurso relativo à matéria de facto. Ao tribunal de recurso incumbe confrontar o juízo sobre os factos que foi realizado pelo tribunal a quo com a sua própria convicção determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifique nas conclusões da motivação.
Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, os Acordãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www. dgsi.pt).
Nos termos do artº 428º do CPP, as relações conhecem de facto e de direito, podendo modificar a decisão de facto quando a decisão tiver sido impugnada nos termos do artº 412º, nº 3 do mesmo diploma – tal não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, como se a decisão da 1ª instância não existisse, mas apenas um remédio jurídico votado a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, expressamente indicados pelo recorrente.
Já o deixámos escrito - o recurso, no que tange ao conhecimento da questão de facto, não é um segundo julgamento, em que a Relação, agora com base na audição de gravações, e anteriormente com base na leitura de transcrições, reaprecie a totalidade da prova.
E se é certo que perante um recurso sobre a matéria de facto, a Relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, não é menos verdade que deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso como remédio e pelo facto de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo.

3.2.3. A este propósito, sempre se dirá que as conclusões do recurso do arguido não primam pela perfeição processual no que tange à elaboração das CONCLUSÕES.
Incidindo este recurso sobre matéria de facto, nos termos do artigo 412º, n.º 3 do CPP, incumbe ao recorrente o ónus de especificar
a)- os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b)- as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c)- as provas que devam ser renovadas.
Acentua depois o n.º 4 desse normativo que “quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do n.º 3 fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do artigo 364º, n.º 2, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
Sobre este último requisito importa ainda referir que ao recorrente é exigível que quando efectue a indicação concreta da sua divergência probatória, fazendo-o para os suportes onde se encontra gravada a prova, faça a remissão para os concretos locais da gravação que suportam a tese do recorrente (neste sentido, de forma claríssima cf. o Ac desta Relação de 24.02.2010, e Relação do Porto de 14.02.2000 in www. dgsi.pt). É essa imposição que decorre do artigo 412º, nº 4 do Código de Processo Penal refere que “as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º”.
 O artigo 417º, n.º 3 do CPP (na versão revista de 2007, levada a cabo pela Lei n.º 48/2007 de 29/8) permite o convite ao aperfeiçoamento da respectiva peça processual se a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.ºs 2 a 5 desse mesmo normativo.
Temos entendido o seguinte: se analisada a peça do recurso constatarmos que a indicação das especificações legais constam do corpo da motivação de forma assaz suficiente para se compreender o móbil do recorrente, não deveremos, assim, ser demasiado formalistas ao ponto de atrasar a tramitação de um processo quando existem conclusões e se consegue das mesmas deduzir, mesmo que parcialmente, note-se, as indicações previstas no n.º 2 e no n.º 3 do citado artigo 412º.
Convém lembrar que as “conclusões aperfeiçoadas” têm de se manter no âmbito da motivação apresentada, não se tratando de uma reformulação do recurso ou da apresentação de um novo recurso - por outras palavras: o convite ao aperfeiçoamento, estabelecido nos n.º 3 e 4 do artigo 417.º, do C.P.P., pode ter lugar quando a motivação não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos nºs. 2 a 5 do artº 412º do mesmo código, mas sempre sem modificar o âmbito do recurso.
Pelo que se o corpo da motivação não contém as especificações exigidas por lei, já não estaremos perante uma situação de insuficiência das conclusões, mas sim de insuficiência do recurso, insusceptível de aperfeiçoamento.
Ora, no nosso caso, apenas na motivação faz o recorrente uso do ónus de impugnação especificada, não o fazendo nas conclusões.
Ao estabelecer que o recorrente tem que indicar as provas que impõem uma diversa apreciação da matéria de facto o legislador quer sublinhar que «o recurso não é um novo julgamento, [mas] sim um mero instrumento processual de correcção de concretos vícios praticados e que resultem de forma clara e evidente da prova indicada. É que houve um julgamento em 1ª instância. E do que aqui se trata é de remediar o que de errado ocorreu em 1ª instância. O recurso como remédio jurídico (conforme se refere no Ac. RC de 3.2.2010, relator Gomes de Sousa).
Dada a gravidade dos factos imputados ao arguido e à delicadeza da questão, não nos ancoraremos em argumentos formais e ouviremos a prova gravada, SEM QUALQUER CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO DAS CONCLUSÕES.
E tal faremos até ancorados em recente e sábia decisão do STJ, datada de 1/7/2010 (Pº 241/08.2GAMTR.P1.S1).
Nesse aresto, assim se escreveu:
«O Tribunal da Relação, perante as falhas que apontou ao recurso quanto à impugnação da matéria de facto por confronto com as provas produzidas na audiência e documentadas em acta, falhas essas que revelariam um alegado mau cumprimento do disposto nos n.°s 3 e 4 do art.° 412.° do CPP, deveria ter mandado aperfeiçoar as conclusões do recurso antes de se pronunciar, corno tem sido jurisprudência constante deste STJ e do Tribunal Constitucional, para permitir um segundo grau de recurso em matéria de facto.
O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a considerar inconstitucional, por violação dos direitos a um processo equitativo e do próprio direito ao recurso, as normas dos n.°s 3 e 4 do art. 412.° do CPP na interpretação segundo a qual o incumprimento dos ónus aí fixados, conduz à rejeição do recurso, sem a possibilidade de aperfeiçoamento (cfr. Acs de 26-9-01, proc. n.° 2263/01, de 18-10-01, proc. n.° 2374/01, de 10-4-02, proc. n.° 153/00, de 5-6-02, proc. n.° 1255/02, de 7-10-04, proc. n.° 3286/04-5, de 17-2-05, proc. n.° 4716/04-5, e de 15-12-05, proc. n.° 2951/05-5).
Assim decidiu que “(5) se o recorrente não deu cabal cumprimento às exigências do n.° 3 e especialmente do nº 4 do art. 412º do CPP, a Relação não pode sem mais rejeitar o recurso em matéria de facto, nem deixar de o conhecer, por ter por imodificável a matéria de facto, nos termos do art. 431º do CPP. (6) Este último artigo, como resulta do seu teor, não toma partido sobre o endereçar ou não do convite ao recorrente, em caso de incumprimento pelo recorrente dos ónus estabelecidos nos n. s 3 e 4 do art. 412º, antes vem prescrever, além do mais, que a Relação pode modificar a decisão da 1ª instância em matéria de facto, se, havendo documentação da provei, esta tiver sido impugnada, nos termos  do artigo 412º, n.º 3,  não fazendo apelo, repare-se, ao n.º 4 daquele artigo, o que no caso teria sido infringido. (7)- Saber se a matéria de facto foi devidamente impugnada à luz do n.º  3 do art. 412º é questão que deve ser resolvida à luz deste artigo e dos princípios constitucionais e de processo aplicáveis, e não à luz do art. 431º, al. b), cuja disciplina antes pressupõe que essa questão foi resolvida a montante. (8) Entendendo a Relação que o recorrente não forneceu os elementos legais necessários para reapreciar a decisão de facto nos pontos que questiona, a solução não é “a improcedência”, por imodificabilidade da decisão de facto, mas o convite para a correcção das conclusões. (Acs de 7-11-02, proc. n.º 3158/02-5 e de 15-5-03, proc. n.º 985/03-5)”.
E que, face à declaração com força obrigatória geral da inconstitucionalidade da norma do art. 412.°, n.° 2, do CPP, interpretada no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas suas ais. a), b) e e) tem corno efeito a rejeição liminar do recurso do arguido, sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência (Ac. n.° 320/2002 do T. Constitucional, DR-IA, 07.10.2002), não pode manter-se a decisão da Relação que decidiu não tomar conhecimento dos recursos no que se refere à decisão de facto, por não terem os recorrentes dado cumprimento ao imposto nos n.° 3 e 4 daquele art. 412.°.
Em tal caso a Relação deve tomar posição sobre a suficiência ou insuficiência das conclusões das motivações e ordenar, se for caso disso, a notificação do recorrente para corrigir/completar as conclusões das motivações de recurso, conhecendo, depois, desses recursos. (Acs. de 12-12-2002, proc. n.° 4987/02-5, de 7-10-04, proc. n.° 3286/04-5, de 17- 2-05, proc. n.° 47 16/04-5, e de 15-12-05, proc. n.° 295 1/05-5).
Só não será assim se o recorrente não tiver respeitado, de todo, as especificações a que se reporta a norma legal em causa, pois o conteúdo do texto da motivação constitui um limite absoluto que não pode ser extravasado através do convite à correcção das conclusões da motivação (cfr. os Acs. do STJ de 11-1-01, proc. n.° 3408/00-5, de 8-1 1-01, proc. n.° 2453/01-5, de 4-12-03, proc. n.° 3253/03-5 e de 15-12-05, proc. n.° 295 1/05-5).
Mas, se o recorrente, como é o caso dos autos, tendo embora indicado os pontos concretos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados e as provas que impõem decisão diversa, com a indicação, nomeadamente, das testemunhas cujos depoimentos incidiram sobre tais pontos, que expressamente indicou (v.g., falta de vestígios de sangue na roupa, hora cm que ocorreu o homicídio e permanência do arguido no local de trabalho entre determinadas horas), só lhe faltando indicar “as concretas passagens das gravações em que funda a impugnação que imporia decisão diversa”, não se pode dizer que há uma total falta de especificações, mas, quanto muito, uma incorrecta forma de especificar. Tanto mais que, se o recorrente tem o ónus de indicar as concretas passagens das gravações, o tribunal tem o dever de atender a outras que considere relevantes para a descoberta da verdade (art.° 412.°, n.° 6, do CPP), sob pena do recorrente “escolher” a passagem que mais lhe convém e omitir tudo o mais que não lhe interessa, assim se defraudando a verdade material.
A Relação, ao proceder da forma como transcrevemos, não conheceu da impugnação da matéria de facto, já que a rejeitou por razões meramente formais e não deu oportunidade ao recorrente de corrigir os pequenos desvios em que, alegadamente, incorreu.
Portanto, omitiu pronúncia sobre questão de que deveria conhecer e incorreu na nulidade a que se reportam os art.°s 379.°, n.° 1, al. e) e 425.°, n.° 4, do CPP».

3.2.4. Vejamos então os vários pontos de facto invocados na motivação de recurso do arguido.
Entende ele que não foi ele a pessoa que raptou e coagiu sexualmente a vítima DG... no dia 3 de Junho de 2008.
Alega que tinha uma tatuagem bem visível no seu braço, o que não foi detectado pela vítima.
Referiu a vítima, ouvida em declarações para memória futura, que o seu algoz tinha um chapéu, o que é negado pelo próprio arguido, ouvido em audiência no dia 15/11/2010.
Referiu a vítima que o seu algoz tinha «os dentes estragados, não muito», explicando o arguido que não os tem podres.
Referiu a vítima que o seu algoz tinha barba, o que é negado pelo arguido.
Referiu a vítima que o seu algoz lhe disse que tinha uma filha, o que é negado pelo arguido pois alega que a sua filha só nasceu em 2009.
Aqui chegados, só há que dizer que o arguido não é obrigado a dizer a verdade, não estando apurada a sua versão dos eventos e os seus sinais particulares.
Quem nos garante que não deixou crescer uma barba em Junho de 2008?
Não seria a barba igual àquela que consta da fotografia de fls 897? E isso já seria alguma barba, detectável pela DG...no dia do evento.
Quem nos garante que não mentiu referindo a existência de uma filha, não sendo tal senão arrependimento?
Quem nos garante que aquela tatuagem estava feita no seu corpo em Junho de 2008? Note-se que a tatuagem no seu corpo ainda existia na sua vida em 2009, altura do nascimento da filha , podendo ter sido nele inscrito após a data dos eventos em causa neste recurso.
Quem nos garante que não teve os dentes estragados e que os compôs entretanto?
O facto de uma filha do arguido ter afinal nascido em 2009 – a referida a fls 969 - não significa que o arguido não tenha também aí mentido ou que não exista, na realidade, tal criança, não trazida à ribalta do julgamento[4].
Diga-se ainda que poderão razoavelmente algumas dessas características do arguido terem passado despercebidas à vítima, tal o impacto violento do acto que estava a sofrer…
Adiante-se que não nos perturba o facto de não terem sido encontrados vestígios lofoscópicos nos locais dos autos, sabendo nós que tantas – demasiadas – vezes não ficam «marcados» no terreno as marcas das passagens das pessoas…
E diga-se ainda que é inaceitável o alegado nos artigos 34º e 35º da motivação de recurso (deverão existir muitos carros parecidos mas a identificação da jovem foi peremptória e convincente).
Aqui chegados, só podemos dizer que não se percebe porque é que esta jovem iria inventar esta acusação solteira e gratuita contra alguém que não conhece e que nunca tinha antes visto.
Nada aponta para isso, estando muito bem explicada a perícia psicológica feita à Vanessa.
A versão da queixosa DG...foi tida como credível pelo tribunal recorrido.
Recordemos a forma como se deixou convencer o Colectivo de Tomar que foi o arguido que conduziu o Opel ...matrícula ...no dia 3 de Junho de 2008.
Assim:
- «Baseou-se no depoimento da vítima DG…, hoje com 18 anos de idade - «em relação aos factos descritos em 3.; 5. a 84., a análise crítica e comparada das declarações do arguido e das declarações para memória futura e do depoimento da testemunha DG..., por seu turno, conjugada com o relatório de perícia sobre a personalidade da vítima de fls. 52 e seguintes e com as declarações, como Perita, de FP..., Técnica Psicóloga da DGRS, tudo complementado com os depoimentos das testemunhas NR... e FF... e com o auto de reconhecimento de objecto de fls. 17; as fotografias de fls. 18 a 20; 73 a 76; 85 a 91 e 110 a 112 e o relato de diligência externa de fls. 82, nos termos que passam a expor-se:
- Baseou-se ainda no depoimento da testemunha NR..., «Militar da GNR de ..., que conhece o arguido há oito ou nove anos, em virtude do exercício da sua profissão, que recebeu a denúncia, cujo autor se encontra a fls. 12 e 13 e fez o auto de reconhecimento da viatura Opel ...identificada em 1., com a DG..., auto esse, que se encontra a fls. 17 e tirou as fotografias anexas, cujas cópias estão a fls. 18 a 20, sendo que os originais dessas fotografias estão a fls. 110 a 112 e que também se apercebeu de que a menor estava muito nervosa, quando se dirigiu ao posto territorial de ..., para denunciar os factos, tal como consta de fls. 12 e 13»;
- Baseou-se o tribunal no testemunho de FF..., Inspector da Polícia Judiciária há vinte anos, a prestar serviço no Departamento de ... há dez anos e que realizou uma deslocação aos locais onde a vítima referiu que os factos foram ocorrendo, sendo ele o autor do relato de diligência externa, que está a fls. 82 e das fotografias de fls. 85 a 91, que ilustram esses locais que DG... Domingos Gonçalves foi indicando e a própria vítima, que se posicionou de formas coincidentes àquelas em que se encontrava, quando os factos ocorreram.
Ambas estas testemunhas prestaram depoimentos lógicos, plausíveis e fizeram-no de forma rigorosa, manifestando distanciamento perante os factos e os respectivos protagonistas, tendo merecido toda a credibilidade por parte do Tribunal».
O tribunal não credibilizou a versão negatória do arguido, assente que nunca ficou explicada a razão da acusação gratuita a este homem desconhecido feito pela jovem de 15 anos de idade e que era ele o habitual e quase constante condutor do veículo Opel em causa, tido pela queixosa como sendo o local onde foi ilicitamente transportada.
Por outro lado, o tribunal acreditou na versão da Vanessa.
E explicou porquê, de forma razoável e convincente.
Ouçamos o acórdão, sendo da nossa autoria o sublinhado feito:
«Foram lidas em audiência as declarações para memória futura que lhe foram tomadas em 25 de Setembro de 2009, no Tribunal Judicial da Comarca de Torres Novas, conforme auto de fls. 358 e 359 e transcrição de fls. 365 a 394;
Não obstante, porque havia sido arrolada como testemunha na acusação, voltou a ser inquirida em audiência de discussão e julgamento.
Já no decurso desta, na sessão realizada em 18 de Outubro de 2010, portanto, mais de dois anos depois dos factos, esta menina confirmou de forma mais genérica, mas, no essencial, coincidente, tudo quanto havia afirmado, em sede de declarações para memória futura.
Antes, em 9 de Junho de 2008, portanto, seis dias depois dos acontecimentos a que se refere o processo 231/08.5GBTMR, percorreu os locais por onde tinha andado com o arguido, naquele dia 3 de Junho de 2008, conforme relato de diligência externa de fls. 82 e fotografias anexas a fls. 85 e seguintes;
DG... reiterou em audiência de discussão e julgamento, o que já havia dito, nas suas declarações para memória futura, tendo apresentado a versão dos factos, tal como a mesma se encontra exarada nos pontos 3.; 5. a 84. da matéria de facto provada.
Também foram tomadas declarações, na qualidade de Perita, a FP…, Psicóloga e Técnica da DGRS, desde 1993, que fez entrevistas à DG... , em finais de Julho e Agosto de 2008, ou seja, cerca de um mês e cerca de dois meses depois dos factos objecto deste processo, com vista a avaliar a capacidade de testemunho desta última.
Mais tarde, quando já havia decorrido cerca de um ano, sobre a data mencionada na acusação, assistiu e acompanhou a DG..., na qualidade de técnica, na diligência de tomada de declarações para memória futura, cujo auto se encontra a fls. 358 e 359 e cuja transcrição de fls. 365 a 394 foi lida em audiência de discussão e julgamento;
Das observações, contactos e testes psicológicos que encetou a esta menina, FP… constatou que, apesar da possibilidade de ela distorcer a realidade, quando esta envolve situações mais complexas do ponto de vista emocional, apresentou sempre um discurso lógico e coerente, no que se refere aos factos objecto deste processo.
Esclareceu, ainda, que, em face dos pormenores que a DG...descreveu, relacionados com as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que a factualidade descrita na acusação aconteceu, só pode ter relatado factos que correspondem à realidade por si, efectivamente, vivida.
Esse relatório de perícia sobre a personalidade da vítima está a fls. 52 a 57 e foi, efectivamente, elaborado por esta Sra. Psicóloga.
Dos seus esclarecimentos, prestados na audiência de discussão e julgamento, de forma isenta, desassombrada e, por isso, absolutamente credível e de tal relatório, este, com o valor de prova pericial, que lhe é atribuído pelo art. 163º do CPP, resulta, desde logo, a capacidade de testemunho, por parte da DG... .
Mas, deste mesmo relatório, que, no julgamento, foi corroborado, na íntegra, pela Sra. Perita que o elaborou, resulta, ainda, o seguinte:
            «Atendendo à inexistência de limitações graves no seu desenvolvimento intelectual, DG... revela, do ponto de vista instrumental, capacidade de testemunho. Além disso, o facto de, no presente processo, ter proferido um relato coerente, na forma e no conteúdo, com as declarações que efectuou anteriormente junto do órgão de polícia criminal poderá constituir um indicador de que estamos provavelmente perante um relato válido (proveniente da memória de uma experiência por ela vivida).»  
E, no que se refere à imaturidade apontada à vítima e a uma auto-imagem frágil e uma certa tendência para distorcer a realidade que são também mencionadas em tal relatório de fls. 52 a 57, a Sra. Perita explicou que tal distorção da realidade não se refere aos factos que constituem o objecto deste processo, mas antes e só a circunstâncias de vida pessoal da vítima, atinentes a um relacionamento afectivo que estava a viver à data e à sua dinâmica familiar que a fizeram entrar num quadro depressivo, circunstâncias essas, aliás, que foram confirmadas quer pela própria DG..., quer pelo seu pai, a testemunha JM..., pelo que, não tendo qualquer relação com os actos praticados pelo arguido, na pessoa da vítima a que se refere a matéria de facto objecto do processo comum colectivo nº 231/08.5GBTMR, a imaturidade desta e a tendência que, em situações de maior complexidade emotiva, a levam a distorcer a realidade não afasta, nem abala a sua capacidade de testemunho.
E este foi totalmente credível, quer em pormenores como o que se refere ao facto de nunca antes destes factos ter visto o arguido (o que, dada a forma serena e firme como depôs, na audiência de julgamento, afasta qualquer hipótese de equacionar, como pretendeu o arguido, que tenha mentido ao tribunal, para o prejudicar ou para se vingar dele) quer à menção que o arguido lhe fez sobre ter uma filha, quando desistiu de a forçar a manter relações de sexo com ele (tendo o próprio arguido esclarecido, às perguntas sobre as suas condições pessoais, que tem uma filha com dois anos de idade), menção esta que tem, também, a virtualidade de neutralizar a possibilidade de a vítima estar a contar uma versão dos factos não coincidente com a realidade, por intuitos de vingança contra o arguido, pois foi ela própria que esclareceu que o arguido se arrependeu de levar por diante a consumação das relações sexuais, não tanto por ela se encontrar menstruada, mas, sobretudo, porque o arguido não queria que alguém fizesse à sua filha, o que ele estava a tentar fazer à DG....
Com efeito, foi a própria vítima que esclareceu que o arguido, a determinada altura se arrependeu, lhe pediu desculpa e lhe disse que também tinha uma filha e não gostava que alguém fizesse o mesmo à sua filha, o que revela a sua isenção e preocupação de rigor, na descrição da factualidade que protagonizou;
Acrescente-se que, logo, no dia imediato aos factos, a DG..., reconheceu o veículo Opel ...identificado no ponto 1. da matéria de facto, como aquele que o arguido conduzia, no dia anterior e no qual a transportou, nas demais circunstâncias relatadas na matéria de facto considerada provada, tal como resulta do auto de reconhecimento de objectos de fls. 17 e do depoimento da testemunha NR... e das próprias declarações do arguido que confessou ser seu aquele veículo e estar na sua disponibilidade;
Ora, a DG...não tinha como adivinhar, não conhecendo o arguido, que ele tinha uma filha, do mesmo modo, que se se comparar a descrição que consta do auto de denúncia de fls. 12 e 13, com o auto de reconhecimento de fls. 17 e com as fotografias de fls. 110 a 112, é evidente a enorme semelhança entre a descrição das características da viatura, feita antecipadamente e aquelas que o veículo realmente tem, o que também não poderia ser objecto de invenção ou de efabulação.
Por outro lado, em audiência de discussão e julgamento, aquando da saída do arguido para fora da sala do Tribunal, a DG...reconheceu-o como sendo o autor dos factos que relatou ao Tribunal, reconhecimento que fez, de forma serena e sem qualquer hesitação.
Em todo este relato, saliente-se a emoção e a incomodidade reveladas pela menor, que chorou de forma genuína, mais de uma vez, no decurso do seu depoimento prestado em audiência de julgamento, o que é perfeitamente consentâneo com a natureza invasiva e atentatória da sua intimidade e liberdade de dispor do seu corpo, que têm os actos descritos em 58. a 74., o que é mais uma circunstância que só faz reforçar a credibilidade do seu depoimento.
Essa mesma incomodidade e emoção foram constatadas, quer pela testemunha NR... que, quando recebeu a DG... no posto da GNR constatou o nervosismo e o abalo psicológico desta jovem; quer pela testemunha FF....
Esta última testemunha, a propósito da sua percepção acerca do estado em que DG..., enquanto foi levada a cabo a diligência de reconhecimento de locais, a que se refere relato de diligência externa, que está a fls. 82, esclareceu e passa a citar-se o que disse, que a vítima «evidenciava um desconforto tal que, ao chegar ao local, recordo-me perfeitamente, desatou a chorar» e, mais adiante, que «foi manifesto um trauma, um trauma de estar a viver aqueles momentos, de estar a viver aquele percurso, de estar a viver aquele sítio onde ela esteve e, ai sim, à medida que nos fomos aproximando, o desconforto e o nervosismo foi sendo cada vez maior e até chegar ao local em que ela desata num choro compulsivo», tendo, ainda, esclarecido que, por causa desse estado emocional da vítima, tiveram de cessar a diligência de investigação e foram levar a menor ao local por ela indicado.
Ora, a forma, ao mesmo tempo serena, mas emocionada, o conteúdo intrínseco do seu depoimento, lógico e coerente e consistente com anteriores descrições que fez dos mesmos factos, em datas diferentes, permite a conclusão inequívoca de que aquilo que a DG... relatou ao Tribunal foi aquilo que ela realmente viveu.
Tudo isto, para concluir que DG... disse a verdade, daí que se tenham provado os factos a que se referem os pontos 3., 5. a 84. da matéria de facto provada.»      
Não temos nós também qualquer dúvida de que esta jovem não mentiu nas suas declarações para memória futura e em julgamento.
Sabemos que nestas situações de abuso sexual de crianças a prova é difícil.
Por sistema, quer-se sempre atacar o depoimento da própria vítima que, neste caso, e muito bem, foi previamente ouvida em sede de declarações para memória futura.
E, por isso, anda-se em busca de incongruências, de pouco rigor, de inverdades…
Sabemos que quanto mais vezes uma testemunha fala sobre o mesmo facto, mais dele se afasta (na sua realidade objectiva), pela reelaboração mental do mesmo que, consciente ou inconscientemente, vai fazendo.
Os estudos científicos lançam luz sobre este assunto.
É normal a vítima revelar grandes inibições e dificuldades em relatar os factos, quer pelo esforço que, certamente, fez ao longo do tempo para arredar da memória os abusos de que foi vítima, quer pelas reacções emocionais que sua memória lhe provocava, quer pelo prejuízo que dos mesmos resulta para a sua auto-imagem.
Todas estas condicionantes contribuem de forma decisiva para que as referidas declarações contenham as imprecisões, contradições, omissões e inconsistências apontadas pelo arguido, de tal forma que estranho seria que não padecessem dessas características.
Como tal, concluímos que de tais imprecisões, contradições, omissões e inconsistências não resulta, por si só, que a DG...mentiu.
É certo que essas imprecisões, contradições, omissões e inconsistências fragilizam o valor indiciário de tais depoimentos, como se afirmou no Ac. da Relação de Lisboa de 08/10/2003, in www.dgsi.pt, processo 7002/2003-3, mas não mais do que isso.
Como é complicado lidar com crianças violentadas na sua própria inocência!
«Nessas situações, quão difícil também se torna perceber o que realmente se passou no silêncio dos quartos. Quão delicado é falar com estes menores que nos aparecem assustados e titubeantes e a quem é penoso pedir explicações sobre actos tão vilipendiantes. O interrogatório de um menor deve, assim, revestir, uma extrema delicadeza, havendo que tentar perceber os silêncios, os esgares, os sorrisos nervosos, as hesitações, os olhares, as entrelinhas no discurso de um menor nesta situação.
O menor violentado na sua sexualidade deixa de poder ser sujeito do seu próprio destino, da sua própria história sonhada, projectada ou construída. A história que lhe vão impor ultra-passa-o em velocidade e substância, deixa de ser "sua" para passar a ser aquela que não lhe ensinaram, para a qual não pediram sequer um assentimento seu que fosse. De si, apenas um murmúrio surdo, um grito abafado na calada do quarto dos fundos, no canto recôndito da garagem mal iluminada, um "não" ouvido nas paredes da sua alma que não tinha voz suficiente para soar. De si, apenas urna imagem de um corpo usado como vazadouro de néctares infelizes, numa toada de lamento e dor, tantas vezes silenciada em nome de um amor maior...» (Paulo Guerra, in «O Abuso Sexual de Menores – Uma Conversa sobre Justiça entre o Direito e a Psicologia», Almedina, 2ª Ed., 2006, Rui do Carmo/Isabel Alberto/Paulo Guerra, respectivamente, p. 61 e 62 e 43).
Restam apenas, em muitas situações os depoimentos das vítimas, face à inconcludência dos exames científicos feitos.
«E aí restam os depoimentos sofridos, contidos, às vezes infantil e naturalmente contraditórios e incoerentes, das vítimas dos abusos e as demais provas testemunhais circunstanciais – há que dizer, neste jaez, que à Justiça de Menores basta a denúncia séria e minimamente fundamentada para que se despoletem os mecanismos necessários à imediata protecção da vítima, ficando para a Justiça Penal o apuramento de todo um conjunto de pormenores relevantes à descoberta da verdade material. É por demais evidente a prudência que se deve ter na condução do interrogatório de uma vítima de abuso sexual, assente que para ela é doloroso denunciar quem lhe é querido ou uma situação que ainda não compreendeu muito bem, imbuída por sentimentos de preconceituosas moralidades, herdadas de uma sociedade que ainda não aprendeu a lidar de forma saudável como corpo e com o sexo. Para essa vítima, é sempre um segredo que tem de ser revelado” (Paulo Guerra, in «O Abuso Sexual de Menores – Uma Conversa sobre Justiça entre o Direito e a Psicologia», Almedina, 2ª Ed., 2006, Rui do Carmo/Isabel Alberto/Paulo Guerra, p. 79 e 80).
Por isso, é que se tem de ter muito cuidado na inquirição feita a uma criança nesta sede.
«Importa equacionar a necessidade de existirem regras específicas para a inquirição dos menores vítimas, para o registo e validade dos seus depoimentos, bem como para o modo de os poder contraditar, num adequado balanceamento entre a exigência do apuramento da verdade, os direitos da criança e os direitos do arguido; investir na formação dirigida a magistrados e membros dos órgãos de polícia criminal; assegurar uma adequada assessoria técnica. … Tenho para mim que esta (a valoração da prova) tem de ser encarada como uma questão maior da nossa prática judiciária, importando que seja promovido o conhecimento actualizado sobre as técnicas de entrevista e inquirição das crianças sobre o estado das investigações quanto a alguns frequentes pré juízos, como sejam: que as crianças não são tão boas como os adultos na observação e relato dos acontecimentos que lhes respeitam; que têm propensão para fantasiar acerca das questões sexuais; que são altamente sugestionáveis; que têm dificuldade em distinguir a realidade da fantasia; que têm propensão para confabular» (Rui do Carmo, in «O Abuso Sexual de Menores – Uma Conversa sobre Justiça entre o Direito e a Psicologia», Almedina, 2ª Ed., 2006, Rui do Carmo/Isabel Alberto/Paulo Guerra, p. 74 e 96, nota 39).
E continua Isabel Alberto:
«Perante estas considerações, o contexto físico e pessoal da inquirição deve ser cuidadosamente trabalhado. Deve ser um espaço aconchegante e confortável, longe da agitação e da conotação policial, que não favoreça o encontro e o cruzamento com o agressor, podendo o menor estar acompanhado de um adulto da sua confiança, por ele escolhida para a audição, embora esta pessoa tenha de ser neutra (Carmo, 2000; Hamom,1988; Somers & Vandermeersch,1998). A entrevista não pode assumir um aspecto inquisitório, que retrai a vítima, e deve conter desde logo a referência a todos os elementos informativos essenciais: "o primeiro exame convém que seja minucioso, o que igualmente permitirá a recolha de vestígios susceptíveis de desaparecerem ou se atenuarem com o decurso do tempo" (CEJ, 1991, p.12). O recurso ao registo em vídeo das inquirições (Carmo, 2000), com aviso do registo e aceitação da vítima, e uma entrevista bem conduzida evitam a sucessão e a repetição de inquirições, servindo um único registo para todas as fases do processo.”. (Isabel Alberto, na mesma obra a p. 81 e 82).
E voltamos ao relator deste acórdão:
«Daí que haja a necessidade das entidades que procedem aos interrogatórios destas vítimas estarem munidas de cautelas e de conhecimentos bastantes sobre a arte de interrogar uma criança, de forma a que consigam interpretar esgares, silêncios, hesitações, monossílabos, um simples "sim" ou um simples "não", a construção frásica, a clareza do discurso, as pausas, as interrupções, as emoções e sentimentos que a criança evidencia (vergonha, culpa, tristeza, alegria, alívio, ansiedade), a labilidade e o distanciamento emocionais, o olhar, a postura, o sorriso, a colocação das mãos, o grau de sugestionabilidade, os seus desenhos, o seu comportamento com os brinquedos, o seu comportamento sexualizado, o tipo de pressão ou coerção a que pode estar sujeito, o contexto da sua revelação inicial...
Tais interrogatórios não se devem repetir para que a criança não tenha de injustificadamente reviver as cenas de um passado que quer definitivamente esquecer, sem prejuízo da tomada complementar de declarações sempre que o seu interesse superior o demandar, embora se considere, tal como o faz Razon (Laure Razon, in “Famille incestueuse et confrontation à la justice; de l’acte à la parole. Dialogue – Recherches cliniques et sociologiques sur le couple et la famille”, 1999, p.10) que "o primeiro depoimento é a maior parte das vezes o mais desenvolvido, argumentado, logo credível» (Paulo Guerra, na mesma obra a p. 83 e 84).
Concluímos assim que a prova da verificação nos crimes de natureza sexual, por força das circunstâncias, é particularmente difícil, na medida em que escasseia a prova directa, e regra geral só têm conhecimento da maioria dos factos o arguido e a vítima.
Daí que assuma especial relevância o depoimento da vítima, desde que, como é evidente, o mesmo seja credível e esteja em sintonia com as regras da experiência comum, pois só nesse caso é susceptível de formar a convicção do julgador.
E ouvindo a prova gravada, o depoimento da DG...é absolutamente credível.
Também o considerou o Colectivo de Tomar, lançando ainda mão de outros meios de prova para concluir que ocorreram, de facto, os acontecimentos de 3 de Junho de 2008 no interior do carro do arguido.
Falemos agora das gravações.
O depoimento do arguido é irrelevante pois apenas nega as acusações, de forma absolutamente fria, como é aliás seu direito.
E aqui não convenceu o Colectivo e não nos convenceu a nós.
E isto porque falou mais alto o depoimento sofrido da Vanessa.
Foi ouvida por declarações para memória futura em 25/9/2009 (fls 358).
E em julgamento, corria o dia 18 de Outubro de 2010 (fls 685).
Ouçamo-la, nos seus, na altura, 17 anos de idade, em diálogo com a Mª Juíza da causa.
Manteve sempre a mesma história no essencial, descrevendo os acontecimentos de forma coerente, não tendo qualquer dúvida em reconhecer o arguido como sendo o autor dos factos de Junho de 2008, tendo-o verbalizado inequivocamente a instâncias do Senhor Procurador, mesmo olhando-o não de frente, sabendo nós como é doloroso este confronto posterior.

3.2.5. E não se diga que foi um reconhecimento não legal aquele que a jovem fez do arguido no dia da audiência.
O reconhecimento de pessoas é um dos meios de prova previstos no C.P.P cuja finalidade é apurar o responsável pelo crime, ou seja, identificar a pessoa que foi vista a praticar o facto criminoso, ou que tenha sido vista antes ou depois do facto, em circunstâncias fortemente indiciadoras de ter sido o seu autor.
É óbvio que o resultado probatório positivo, com o reconhecimento do arguido como autor dos factos criminosos em investigação, a traduzir já uma forte suspeição da sua culpabilidade, impõe ao legislador que prudentemente e de forma cuidadosa assegure as necessárias condições de genuinidade e seriedade do acto, impondo a observância de regras através das quais minimize o risco de precipitação ou de falta de rigor.
Em suma, dada a relevância que na prática assume para a formação da convicção do tribunal, e os perigos que a sua utilização acarreta, um reconhecimento tem necessariamente que obedecer, para que possa valer como meio de prova em sede de julgamento, a um mínimo de regras que assegurem a autenticidade e a fiabilidade do acto.” – Ac TC n.º 452/05 de 25 de Agosto de 2005.
Assim, quanto ao procedimento a que deve obedecer o reconhecimento de pessoas, dispõe o art. 147º, do C.P.P:
N.º 1 – Quando houver necessidade de proceder ao reconhecimento de qualquer pessoa, solicita-se à pessoa que deva fazer a identificação que a descreva, com indicação de todos os pormenores de que se recorda. Em seguida, é-lhe perguntado se já a tinha visto antes e em que condições. Por último, é interrogada sobre outras circunstâncias que possam influir na credibilidade da identificação.
Nº 2 - Se a identificação não for cabal, afasta-se quem dever proceder a ela e chamam-se pelo menos duas pessoas que apresentem as maiores semelhanças possíveis, inclusive de vestuário, com a pessoa a identificar. Esta última é colocada ao lado delas, devendo, se possível, apresentar-se nas mesmas condições em que poderia ter sido vista pela pessoa que procede ao reconhecimento. Esta é então chamada e perguntada sobre se reconhece algum dos presentes e, em caso afirmativo, qual.
 Nº 3 - Se houver razão para crer que a pessoa chamada a fazer a identificação pode ser intimidada ou perturbada pela efectivação do reconhecimento e este não tiver lugar em audiência, deve o mesmo efectuar-se, se possível, sem que aquela pessoa seja vista pelo identificando.
 Nº 4 - As pessoas que intervierem no processo de reconhecimento previsto no n.º 2 são, se nisso consentirem, fotografadas, sendo as fotografias juntas ao auto.
N.º 4 do artigo 147.º alterado pelo artigo 1.º do Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, 15.º alteração ao Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro (DR 29 Agosto).
Redacção anterior
Vigência: 15 Setembro 2007
Nº 5 - O reconhecimento por fotografia, filme ou gravação realizado no âmbito da investigação criminal só pode valer como meio de prova quando for seguido de reconhecimento efectuado nos termos do n.º 2.
N.º 5 do artigo 147.º aditado pelo artigo 1.º do Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, 15.º alteração ao Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro (DR 29 Agosto).
Vigência: 15 Setembro 2007
Nº 6 - As fotografias, filmes ou gravações que se refiram apenas a pessoas que não tiverem sido reconhecidas podem ser juntas ao auto, mediante o respectivo consentimento.
N.º 6 do artigo 147.º aditado pelo artigo 1.º do Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, 15.ª alteração ao Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro (DR 29 Agosto).
Redacção anterior
Vigência: 15 Setembro 2007
Nº 7 - O reconhecimento que não obedecer ao disposto neste artigo não tem valor como meio de prova, seja qual for a fase do processo em que ocorrer.
De notar que a prévia descrição da pessoa a reconhecer permite verificar se a pessoa que o sujeito descreve corresponde ao identificando, avaliar a capacidade perceptiva e de memorização de quem faz a descrição e fixar os parâmetros físicos para a escolha das pessoas que devem entrar na cena cognitiva, o que permite o controlo da credibilidade do reconhecimento e, consequentemente, da sua efectiva atendibilidade.
Convém não esquecer que a pessoa a identificar deve ser colocada ao lado dos figurantes e sempre que possível deve apresentar-se nas mesmas condições em que poderia ter sido vista pela pessoa que procede ao reconhecimento.
Do respeito pelo rigor imposto à respectiva disciplina resultará o valor da diligência como meio de prova, sempre a apreciar livremente pelo tribunal.
No reconhecimento podemos distinguir três modalidades:
a)- o reconhecimento por descrição,
b)- o reconhecimento presencial e
c) - o reconhecimento com resguardo.
O reconhecimento por descrição, previsto no nº 1 daquele artigo, consiste em solicitar à pessoa que deve fazer a identificação que descreva a pessoa a identificar, com toda a pormenorização de que se recorda, sendo-lhe depois perguntado se já a tinha visto e em que condições e sendo, finalmente, questionada sobre outros factores que possam influir na credibilidade da identificação.
Em regra, esta modalidade de reconhecimento funciona como acto preliminar dos demais, e nele não existe qualquer contacto visual entre os intervenientes ou seja, entre a pessoa que deve fazer a identificação e a pessoa a identificar.
O reconhecimento presencial, previsto no nº 2 do mesmo artigo, tem lugar quando a identificação realizada através do reconhecimento por descrição não for cabal – e ela só o será se «satisfizer o critério probatório da fase processual em que o reconhecimento teve lugar» (Prof. Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, UCE, 416).
Esta modalidade de reconhecimento obedece aos seguintes passos:
- Na ausência da pessoa que deve efectuar a identificação, são escolhidos, pelo menos, dois cidadãos, que apresentem as maiores semelhanças possíveis – físicas, fisionómicas, etárias, bem como, de vestuário – com o cidadão a identificar;
- Depois, este é colocado ao lado daqueles outros cidadãos e, se possível, apresentando-se nas mesmas condições em que poderia ter sido vista pela pessoa que deve proceder ao reconhecimento [tal só não será possível no caso de uma alteração fisionómica irreversível];
- É então chamada a pessoa que deve efectuar a identificação que, depois de ficar diante do grupo onde se encontra o cidadão a identificar e portanto, depois de ter observado os seus elementos, é perguntada sobre se reconhece algum dos presentes e, em caso afirmativo, qual, sendo perguntas e respostas – estas e qualquer outra que porventura, tenha sido efectuada, registada no auto respectivo.
O reconhecimento com resguardo, previsto no nº 3 ainda do art. 147º, tem lugar quando existam razões para crer que a pessoa que deve efectuar a identificação pode ser intimidada ou perturbada pela efectivação do reconhecimento. Trata-se pois, de uma forma de protecção da testemunha.
Esta modalidade de reconhecimento obedece à sequência descrita para o reconhecimento presencial, mas agora a pessoa que vai efectuar a identificação deve poder ver e ouvir o cidadão a identificar mas não deve por este ser vista. Normalmente, o que sucede é que a pessoa que deve efectuar a identificação é colocada numa divisão distinta daquela onde se encontra o grupo que inclui o cidadão a identificar, separadas por um vidro polarizado que permite que aquela aviste, sem ser vista, o grupo [esta modalidade de reconhecimento não vale para a audiência].
O reconhecimento de pessoas que não tenha sido efectuado nos termos que ficaram expostos, não vale como meio de prova, seja qual for a fase do processo em que ocorreu (nº 7, do art. 147º, do C. Processo Penal).
Estamos pois perante uma proibição de prova, isto é, o reconhecimento é inválido e não pode, por isso, ser usado no processo designadamente, para fundamentar a decisão [há quem entenda que se trata de uma nulidade - cfr. art. 118º, nº 3, do CPP - embora, ao nível do processo, a utilização de uma prova proibida tenha o mesmo efeito da nulidade do acto ou seja, a prova é nula e por isso não pode servir para fundamentar a decisão (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. II, 3ª Ed., 126].
A questão fundamental a discutir é a de saber se também se aplicam as regras gerais ao acontecimento ocorrido na audiência destes autos, em que a ofendida, ao confrontar-se com o arguido na sala de audiências, soube identificar este como sendo o autor dos factos que a tiveram (à queixosa) como vítima, não ficando ao Tribunal qualquer dúvida quanto à boa sustentação daquela mesma identificação.
Antes da Reforma de 2007, a jurisprudência maioritária entendia que “os requisitos do artigo 147º CPP apenas se aplicam à instrução e inquérito e não à audiência de julgamento” - cf. Acórdãos do STJ de 01-02-96 CJ IV-I-198; de 11-05-2000, BMJ 497-293; de 2-10-96, BMJ 460-534; Acórdão da Relação de Évora de 07-12-2004, proc. 25/03-1; Acórdão da Relação de Lisboa de 11-02-2004, proc. 928/2004-3; Acórdão da Relação de Coimbra de 06-12-2006, proc. 146/05.9GCVIS.C1; Acórdão da Relação de Guimarães de 31-05-2004, proc. 2415/03-1; Acórdão da Relação do Porto de 22-01-2003, proc. 0240877; in www.dgsi.pt).
No entanto, foram surgindo soluções discordantes de forma que a jurisprudência se foi dividindo quanto à natureza dos reconhecimentos em audiência de julgamento:
- certa jurisprudência considerava que este tipo de reconhecimento consubstanciaria prova atípica, admissível nos termos do disposto no artigo 125º CPP (“são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei”), valorada nos termos do artigo 127º CPP (livre apreciação da prova). A subjacente interpretação no sentido de admitir que o princípio da livre apreciação da prova permite a valoração, em julgamento, de um reconhecimento do arguido realizado sem a observância de nenhuma das regras definidas pelo CPP foi julgada inconstitucional por Acórdão nº137/2001, processo nº778/00 do Tribunal Constitucional.
- outra sensibilidade jurisprudencial entendia que o reconhecimento em audiência de julgamento integrado no relato de uma testemunha, não tem valor processual autónomo do depoimento prestado, sem prejuízo dos direitos do arguido, na medida em, na audiência de julgamento, vigora em toda a sua plenitude o Princípio do Contraditório. Assim sendo, devia o referido “reconhecimento” ser livremente apreciado, nos termos do artigo 127º CPP (cf. neste sentido de que “o reconhecimento de um arguido na audiência de julgamento é prova testemunhal e não prova por reconhecimento” os Acórdãos do STJ de 06-09-2006, proc. nº06P1392; da Relação do Porto de 19-01-2000, proc. nº 9940498 e de 07-11-2007, proc. 0713492).
Já o acórdão do Tribunal Constitucional nº425/2005, proc. 425/05, distingue o reconhecimento propriamente dito, do impropriamente designado reconhecimento, que não passa de “uma atribuição dos factos expostos no depoimento da testemunha a certa pessoa ou pessoas” e submete este às regras de apreciação da prova testemunhal e aquele à disciplina do art 147º do CPP.
E esclarece muito bem a diferença das situações:
“Assim sendo, nada impede o Tribunal de "confrontar" uma testemunha com um determinado sujeito para aferir da consistência do juízo de imputação de factos quando não seja necessário proceder ao reconhecimento da pessoa, circunstância em que não haverá um autêntico reconhecimento, dissociado do relato da testemunha, e em que a individualização efectuada – não tem o valor de algo que não é: o de um reconhecimento da pessoa do arguido como correspondendo ao retrato mnemónico gravado na memória da testemunha e de cuja equivalência o tribunal, dentro do processo de apreciação crítica das provas, saia convencido. Diferente – mas que não ocorreu nos autos – é a situação processual que ocorre quando, pressuposta que seja a necessidade de reconhecimento da pessoa, tida como possível autora dos factos, se coloca o identificante na posição de ter de precisar, entre várias pessoas colocadas anonimamente na sua presença, quem é que corresponde ao retrato mnemónico por ele retido”.
Gomes de Sousa, relator do Acórdão da Relação de Coimbra de 5-05-2010[5] (Pº 486/07.2GAMLD.C1) evidencia que o regime normativo da audiência de julgamento se mostra de difícil compatibilidade com o formalismo previsto no artigo 147º do Código de Processo Penal, claramente pensado para a fase de inquérito ou instrução.
De todo não deixa de assinalar que a questão da realização de um reconhecimento em audiência de julgamento com o cumprimento dos requisitos previstos no nº 2 do artigo 147º do Código de Processo Penal só se coloca se inexistir reconhecimento realizado em inquérito ou instrução por inércia das entidades investigadoras, por nulidade processual ou nulidade probatória do acto praticado em fase de inquérito ou instrução. Acrescenta que, nestes casos, se impõe uma tomada de posição do tribunal no sentido de considerar necessária e adequada a realização de um “reconhecimento”, ao qual será atribuída uma específica e autónoma força probatória.
Após as alterações introduzidas no art 147º do CPP pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, não restam quaisquer dúvidas de que um reconhecimento efectuado sem o cumprimento dos requisitos contidos nos artigos 147º, 148º e 149º do Código de Processo Penal “não tem valor como meio de prova”, seja qual for a fase do processo em que ocorreu, tal como se estatui nos artigos 147º, nº 7, 148º, nº 3 e 149º, nº 3, do CPP.
Ponto é que o tribunal tenha decidido realizar o reconhecimento previsto no art 147º do CPP ou que não tendo assim decidido, quando tal se revelava necessário, tenha optado por alcançar o respectivo resultado, no âmbito do depoimento da testemunha ou do ofendido.
No caso dos autos, o reconhecimento de pessoas tal como foi feito, em sede de inquérito, foi declarado nulo pois “na data da realização de tal acto constante do auto de fls. 7,  (16 de Março de 2009) o arguido era menor de idade (nasceu em 10 de Maio de 1991) e não foi assistido por defensor, algo que obrigatoriamente deveria ter ocorrido, sob pena de nulidade insanável [arts. 64º/n.º 1-c) e 119º-c) C.P.P.].”
De facto, a Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto, com as alterações que introduziu na redacção do artº 147º do CPP, tornou o reconhecimento, enquanto meio de prova, sujeito a um mais apertado formalismo.
Contudo, tal assim é apenas no caso do reconhecimento stricto sensu, como modo de chegar ao conhecimento de alguém até então não conhecido nem identificado.
No caso dos autos, a identificação do arguido por uma testemunha em audiência não configura um estrito acto de reconhecimento, o que aliás nem sequer foi pedido pelo tribunal a quo (não se ignora que já havia nos autos uma identificação por reconhecimento, não obstante ter sido, mais tarde, por sentença, considerado nulo, por razões formais).
Na acta nada consta – ou seja, não foi o tribunal que pediu um reconhecimento processual, enquanto meio de prova autónomo, assim mesmo considerado pela disciplina do nosso Código de Processo Penal.
Já se decidiu em aresto do STJ, que «um reconhecimento em audiência, para valer como meio de prova, terá de ser presidido pelo tribunal, e não, ser levado a efeito, durante o depoimento duma testemunha, mediante pedido do magistrado do MP para que esta, de entre vários arguidos, indique aquele a quem se refere».
No fundo, o que ali aconteceu foi uma mera identificação que de comum com o referido reconhecimento apenas tem a – incorrecta - nomenclatura.
Como se escreve no Acórdão da Relação do Porto de 7.11.2007 (in www.dgsi.pr/jtrp, “o simples acto de uma testemunha na audiência identificar o arguido como o autor dos factos em julgamento insere-se no âmbito da prova testemunhal e não no âmbito da prova por reconhecimento”.
Não é esse o espírito da lei.
E mesmo percebendo à evidência que as alterações introduzidas o tenham sido de modo apressado, quiçá por pressão de casos assaz mediáticos, mesmo assim não têm nem a dimensão nem o alcance que lhe atribui o arguido.
«De outro modo estaria achada a fórmula de anular qualquer prova testemunhal pois bastaria que a testemunha perante a pergunta de saber se reconhecia o arguido, se virasse, olhasse ou apontasse para ele, para de imediato deixar de se poder valorar o seu depoimento» (Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23/3/2009 (Pº 1109/08-1).
A adição, pela lei nova, de um novo número ao art. 147.º do CPP, com a redacção atrás revelada, não se traduz numa qualquer novidade na disciplina do reconhecimento, apenas vindo dizer que, quer no inquérito, quer na instrução, quer no julgamento[6], o meio de prova que é o reconhecimento tem de obedecer ao formalismo enunciado naquele artigo.
Isto é, a lei nova não veio introduzir um novo meio de prova ou definir de maneira diferente o valor probatório daquele meio de prova - apenas veio dizer de forma inequívoca aquilo que já era suposto (e que muitas vezes se fazia na prática dos tribunais ) na lei antiga : que o meio de prova “reconhecimento” só o seria válido e eficaz se obedecesse ao formalismo do .º 2 do art. 147.º.
No domínio da lei antiga entendia-se (falamos do entendimento da jurisprudência e da prática dos tribunais) que o reconhecimento do arguido ou de alguém, feito por uma testemunha na audiência de julgamento, não tinha sempre de obedecer ao formalismo prescrito pelo art. 147.º CPP, pois este preceito legal só tinha aplicação nas fases de inquérito e de instrução (Ac STJ, de 2-10-1996, BMJ, 460.º-525; Ac STJ, de 1-2-1996, CJ/STJ, ano IV, t. I, p. 198 ; Ac STJ, de 11-5-2000, proc. n.º 75/2000, SASTJ, 41.º-76 ; Acs STJ de 11-05-2000, proc. n.º 75/2000, e de 17-02-2005, proc. n.º 4324/04 ; Ac STJ, de 2-10-1996, proc. N.º 96P728, www.dgsi.pt ; Ac STJ, de 6-9-2007, proc. n.º 06P1392, www.dgsi.pt ),
Esse entendimento e a prática correspondente não deverão sofrer abalo no âmbito da lei nova quando se trate não de proceder ao “reconhecimento“ do arguido mas à identificação do mesmo pela testemunha como sendo o autor dos factos em discussão. Isto por se entender (como antes se entendia) que em tais casos o que se valoriza é o depoimento da testemunha, apreciado nos termos do artigo 127.º do CPP, e não a «prova por reconhecimento» a que alude o artigo 147.º do mesmo diploma.
Entendia-se que esta interpretação do artigo 147.º não violava o princípio das garantias de defesa consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, ou qualquer outra norma constitucional, como decidiu o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 425/2005, de 25-08-2005 (proc. n.º 452/05, publicado no DR n.º 195, II Série, de 11-10-2005, pp. 14574 a 14579).
No caso em apreço, na audiência houve lugar à identificação do arguido pela jovem Vanessa, meio de prova submetido ao princípio do contraditório (artigo 327.º, 2, do CPP), não tendo sido sentida pelo tribunal a necessidade de recorrer ao meio probatório autónomo intitulado de «Reconhecimento de pessoas».
Logo trata-se de uma prova não proibida, a valorar de harmonia com o referido princípio da livre convicção (cfr. artigo 355.º CPP).
Em suma, nem o tribunal recorrido estava inibido de valorar a identificação feita nos autos como simples prova testemunhal, de acordo com o princípio da livre valoração da prova, o mesmo acontecendo agora com este tribunal de recurso.

Por exemplarmente se referir a estas questões, aqui se deixa parte considerável do Acórdão do STJ de 3/3/2010 (Pª 886/07.8PSLSB.L1. S1)[7], publicado já depois da revisão do CPP de 2007:
«A questão fundamental que se coloca quanto ao reconhecimento em sede de audiência de julgamento é a da conformação que o mesmo acto deve assumir quando suceda em audiência.
A recente alteração introduzida pela Lei 48/2007 pretendeu esclarecer as divergências pré-existentes na jurisprudência, afirmando que as regras inscritas para o reconhecimento em sede de inquérito igualmente têm aplicação na fase de audiência, ou seja, a sua inobservância implica a proibição da sua valoração como prova.
Colocada perante a questão a tendência jurisprudencial anterior àquela Lei era maioritária no entendimento de que os requisitos do artigo 147º CPP apenas se aplicavam à instrução, e inquérito, e não à audiência de julgamento (28). Argumentava-se que este tipo de reconhecimentos consubstanciava uma prova atípica que seria admissível nos termos do disposto no artigo 125º CPP, devendo ser valorada nos termos do preceituado no artigo 127º do mesmo diploma.
Tal entendimento foi objecto de apreciação no Acórdão do Tribunal Constitucional 137/2001 que se pronunciou no sentido de inconstitucionalidade, referindo que é inconstitucional, por violação das garantias de defesa do arguido, consagradas no nº 1 do artigo 32º da Constituição, a norma constante do artigo 127º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de admitir que o princípio da livre apreciação da prova permite a valoração, em julgamento, de um reconhecimento do arguido realizado sem a observância de nenhuma das regras definidas pelo artigo 147º do Código de Processo Penal.
Num sentido convergente também se argumentava que o reconhecimento em audiência de julgamento corresponde ao relato de uma testemunha e não tem valor processual autónomo do depoimento prestado, sem que tal consideração prejudique os direitos do arguido, na medida em, na audiência de julgamento, vigora em toda a sua plenitude o princípio do contraditório.
Desenhado os caminhos seguidos pela jurisprudência anteriormente á Lei 48/2007 é importante que se diga agora que a alteração pela mesma introduzida, querendo resolver tudo o que concerne á questão, acaba por não resolver nada. Na verdade, subsiste a questão fundamental da indefinição da natureza da prova por reconhecimento o que tem subjacente a precisão sobre a sua finalidade.
Pressuposto básico da resolução de tal questão é o de que estamos perante a prova por reconhecimento quando não esteja identificado o agente do crime, sendo necessária a sua determinação. Constitui algo de absolutamente distinto a situação de confirmação como agente do crime em relação a alguém previamente identificado, investigado e assumido como sujeito processual com todo o catálogo de direitos inscritos como tal a qual se traduz numa intima comunicabilidade e interacção entre os diversos intervenientes processuais envolvidos no julgamento.
Imporá salientar aqui a aparente aporia em que se evolveu o legislador pretendendo tratar uniformemente situações que, de todo, não são susceptíveis de equiparação. Na verdade, em sede de audiência de julgamento rege o principio da publicidade e não se vislumbra como é que se possa evitar que neste acto, ou, previamente, e a partir do momento em que é pública a identidade do arguido, se possa evitar o eventual contacto ou uma possível identificação num espaço publico, ou privado, ou até a própria interpelação na abertura da audiência.
Na verdade, a questão fundamental não consiste em saber se o formalismo deve, ou não, ser observado em audiência de julgamento. Que não pode ser realizado, a não ser através de uma ficção, ou simulacro é, quanto a nós, um dado adquirido, pois que as regras que regulam a audiência de julgamento são incompatíveis com essa observância. A não ser que se interrompa a audiência para ir realizar o acto processual a uma esquadra de polícia o que, para além de ser ridículo e um desperdício de tempo, é desaconselhável e inútil.
Aliás, sendo desadequada tal prática é desaconselhável pois que o arguido, em fase de julgamento – antes mesmo da audiência – está publicamente exposto e já foi visto (ou pode ter sido visto) por todos os intervenientes processuais o que é uma mera decorrência da característica de publicidade dessa fase processual. Daí que um reconhecimento realizado, pela primeira vez, em audiência de julgamento seja substancialmente injusto, pois que já exposto o arguido aos olhares das testemunhas que o irão reconhecer. E aqui basta a mera possibilidade de tal já ter ocorrido. Desaconselhável, também, por ser já um dado adquirido por estudos em psicologia da memória que o “reconhecimento” deve ser realizado o mais próximo possível da data do evento.
“O tempo é um importante factor na determinação da fidelidade da identificação e o número de correctas identificações declina à medida que o intervalo de tempo entre o crime e o procedimento de identificação aumenta”. (30) Admitir um reconhecimento realizado pela primeira vez em audiência de julgamento é, além do exposto, uma clara violação do due process of law, na medida em que, na audiência, o arguido está exposto publicamente.
Sintetizando o exposto pode-se afirmar que a questão que legitimamente se coloca, desde logo, é a de saber até que ponto será exequível aplicar as regras do reconhecimento previstas no artigo 147º do CPP à audiência de julgamento em que há um inevitável contacto directo entre ofendidos e arguidos, não apenas na própria sala de audiências, como nos corredores do tribunal ou no simples acto de chamada para o processo realizada pelo funcionário judicial. Em todo o caso, mesmo que se considere possível, com as devidas adaptações, o cumprimento em audiência de julgamento das regras do artigo 147º, sempre ficará necessariamente excluída a possibilidade de ocultação do identificante a que alude o nº 4 do aludido preceito legal.
Na verdade, para além daquilo que constitui, quanto a nós, uma impossibilidade material temos por adquirido que o pensamento do legislador foi obliterado pela confusão entre prova testemunhal e prova por reconhecimento. Omitiu-se o pressuposto fundamental de que a prova por reconhecimento pressupõe a indeterminação prévia do agente do crime.
Assim, é, quanto a nós, linear que a situação em que a testemunha, ou a vítima, é solicitada a confirmar o arguido presente como agente da infracção não se configura um acto processual, consubstanciando o reconhecimento pessoal. Pelo contrário, tal confirmação da identidade de alguém que se encontra presente, e perfeitamente determinado, apenas poderá ser encarado como integrante do respectivo depoimento testemunhal.
Como refere Medina de Seiça o acto de reconhecimento visual de uma pessoa, na medida em que implica uma reevocação de uma percepção ocular anterior, apresenta profun­das similitudes com o processo mental próprio do depoimento testemunhal. Na verdade, «têm em comum o fundo: memórias empíricas» que, por meio da recordação podem emergir como informação disponível. Sustentados, pois, na complexa actividade mnemónica, ambos os meios de prova são par­ticularmente vulneráveis a múltiplos factores de distorção e engano que ocor­rem ao longo de todo o itinerário da cognição, da memorização e da evocação. Esta similitude, porém, não elimina as diferenças estruturais existentes entre as duas formas de percepção e recordação.
Numerosos estudos psicológicos têm posto em evidência que no teste­munho o depoente organiza a recordação mediante referentes de espaço e tempo, causa e efeito. Deste modo, as informações prestadas são apreensíveis com facilidade pelos destinatários, pois recondutíveis aos esquemas usuais da comunicação verbal. A situação é diversa quando se trata de efectuar um reconhecimento: dizendo-o com Cordero, aqui trabalha-se sobre uma maté­ria completamente alógica, que se presta aos «curtos-circuitos» de sensações racionalmente insondáveis.
 Por outro lado, em face de uma identificação visual feita por uma pes­soa, os meios de controle são muito mais limitados do que perante um tes­temunho. Neste último, o processo de composição da recordação pode ser aprofundado, vigiado e submetido a verificação, sobretudo no decurso da audiência mediante contra-interrogatório. Muito embora a pessoa que efec­tua o reconhecimento deva ser também ela objecto de interrogatório, em ordem a fiscalizar o mais possível o contexto em que terá ocorrido a sua percepção originária e a possibilidade de factores de erro entretanto ocorri­dos, certo é que o acto recognitivo em sentido estrito escapa a um efectivo controle.
Estamos, assim, reconduzidos ao postulado inicial do presente excurso e, consequentemente, levados a perfilhar o entendimento já expresso pelo Tribunal Constitucional quando refere que Não há dúvida de que entre a "prova por reconhecimento" e a "prova testemunhal" existem diversos "pontos de contacto" (cf. Nicola Triggiani, "La ricognizione personale: struttura ed efficacia", cit., p. 775 e Massimo Ceresa Gastaldo, "La ricognizione personale "attiva" all’esame della Corte Costituzionale: facoltà di astenzione o incompatibilità del coimputato", in Rivista italiana di diritto e procedura penale, 1, 1995, p. 264).
Desde logo, pode dizer-se que um testemunho, enquanto "juízo" de imputação fáctica, implica sempre um "reconhecimento" de um determinado sujeito – recte, uma individualização concretizadora ou um acto de identificação directa [cf. Nicola Triggiani, "La ricognizione personale: struttura ed efficacia", cit., p. 773, n. 173; v. também Daniela Vigoni, "La ricognizione personale", cit., p. 183; Giovanni Conso/Vittorio Grevi, Commentario breve al Nuovo Codice di Procedura Penale, Pádua, 1994, pp. 213 e ss.; Tommaso Rafaraci, "Ricognizione informale dell'imputato e (pretesa) fungibilità delle forme probatorie" – nota a Cass. sez. II pen. 28 febbraio 1997 – in Cassazione Penale, n.º 6, 1998, pp. 1739-1747].
Contudo, não podem olvidar-se as diferenças qualitativo-funcionais entre estes dois domínios probatórios.
De tal pressuposto arranca também a mesma decisão na declaração do pressuposto de que importa ter presente o pressuposto específico – que autonomiza o reconhecimento e o erige como meio de prova – traduzido num inequívoco juízo de necessidade, direccionado, como se disse, ao esclarecimento de uma situação de incerteza subjectiva, em termos de a ele se recorrer apenas "quando houver necessidade de proceder ao reconhecimento de qualquer pessoa" (v. Alberto Medina de Seiça, "Legalidade da prova e reconhecimentos "atípicos" em processo penal., cit., p. 1413).
E se este juízo permite distinguir a valoração autónoma deste meio de prova daqueloutra relativa à prova testemunhal qua tale, também não é menos verdade que, por ele, se devem circunscrever à esfera da prova testemunhal os "reconhecimentos testemunhais", onde não se autonomize e onde não releve a necessidade de esclarecimento de uma qualquer situação de incerteza quanto à autoria dos factos e à identificação do agente.
De facto, a identificação subjacente a um depoimento testemunhal esgota a sua eficácia – e a possibilidade de o juiz o valorar – no âmbito de um meio probatório não direccionado ao reconhecimento de uma pessoa e, assim, qualquer "individualização" ou "reconhecimento" – em sentido impróprio, diga-se – que aí se faça não pode deixar de ter como pressuposto uma situação de determinação subjectiva, e, por isso, só poderá ser valorada dentro da esfera probatória de onde emerge – a prova testemunhal –, não lhe podendo ser reconhecido um valor probatório autónomo e separado.
Ou seja, por outras palavras, não estando implicada na produção e valoração deste meio de prova uma necessidade de se afastar uma situação de incerteza quanto à identificação de um sujeito, a funcionalidade e a finalidade inerentes a um acto de "reconhecimento" – de imputação – que se produza neste contexto terá sempre uma função exógena da que é cumprida pelo reconhecimento em sentido próprio – v. g. aferir da credibilidade e consistência do depoimento –, não podendo aquele ser autonomamente valorado para responder às situações onde se justifique a autonomização de um verdadeiro acto de reconhecimento.
O reporte testemunhal ao acto processual praticado no inquérito ou a afirmação de que o arguido foi o autor dos factos incursos em tipicidade criminal concretiza-se no conceito de prova testemunhal e não de prova por reconhecimento.
Embora o tribunal recorrido afirme que foi a jovem DG...que, ao confrontar-se com o arguido na sala de audiências, soube identificar este como sendo o autor dos factos que a tiveram como vítima, o certo é que o Tribunal não ficou com qualquer dúvida quanto à boa sustentação daquela mesma identificação, dado ter sido este “contributo o fundamental” para que, à luz do princípio geral da livre apreciação da prova [art. 127º do Código de Processo Penal (C.P.P.)], o Tribunal formasse a sua convicção no tocante ao arguido enquanto autor da prática dos factos descritos na acusação pública.
Validada esta identificação, no âmbito da prova testemunhal, improcede a argumentação do recurso, inexistindo qualquer erro na apreciação da prova.
Como tal, também a nós nos mereceu inteira credibilidade este depoimento sofrido da vítima dos actos levados a cabo pelo arguido, improcedendo, assim, a pretensão da defesa em ver como não provados os factos 1 a 101.
Pelo exposto, não temos nada que alterar à matéria dada como provada na 1ª instância, improcedendo as conclusões I a VIII.

3.2.6. Resta a outra impugnação de facto – a possibilidade de recurso que resulta da restrita aplicação estabelecida no artigo 410º nº 2 referente à correcção dos vícios aí referenciados por simples referência ao texto da decisão recorrida.
Esses VÍCIOS são de conhecimento oficioso.
Estabelece o art. 410.º, n.º 2 do CPP que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
            Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.
No fundo, por aqui não se pode recorrer à prova documentada.
A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito.
A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).
Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).
Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).
Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.
Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.
Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cf. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo n.º 1509/97).
Vejamos o nosso caso.
Lendo a decisão recorrida, fácil é de concluir que a mesma está elaborada de forma muito equilibrada, lógica, encadeada e assaz fundamentada.
O Tribunal valorou devidamente o depoimento da vítima para concluir pela culpabilidade do arguido no que tange ao domínio do facto criminoso.
E, portanto, provou, para além de qualquer dúvida razoável, pelas circunstâncias da acção provada, que a intenção do arguido não poderia ser outra senão aquela provada.
  Melhor do que isto não se pode pedir.
  Tudo bate certo, tudo estando devidamente explicado e elucidado.
  O registo do acórdão é encadeado e lógico.
  Desta forma, inexistem vestígios de erros notórios na apreciação da prova.
  Ou de qualquer um dos outros vícios do artigo 410º do CPP.
  O tribunal decidiu segundo a sua livre convicção e explicou-a devidamente.

3.2.7. Quanto à livre apreciação da prova, diremos ainda o seguinte:
O artigo 127.º do C.P.P. consagra o princípio da livre apreciação da prova, o que não significa que a actividade de valoração da prova seja arbitrária, pois está vinculada à busca da verdade, sendo limitada pelas regras da experiência comum e por algumas restrições legais.
Tal princípio concede ao julgador uma margem de discricionariedade na formação do seu juízo de valoração, mas que deverá ser capaz de fundamentar de modo lógico e racional.
Os poderes do tribunal na procura da verdade material estão limitados pelo objecto do processo definido na acusação ou na pronúncia, guiado pelo princípio das garantias de defesa do artigo 32º da CRP.
Sobre o tribunal recai o dever de ordenar a produção da prova necessária à descoberta da verdade material, tanto relativamente aos factos narrados na acusação ou na pronúncia, como aos alegados pela defesa na contestação e aos que surgirem no decurso da audiência de julgamento em benefício do arguido.
Quanto à fundamentação da PROVA, há que atentar em certos princípios:
os dos artigos 124º, 125º e 126º do CPP (princípio geral da legalidade das provas);
A convicção sobre a realidade de certo facto existirá quando, e só quando, o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos, para além de toda a dúvida razoável;
Não se procura uma verdade ontológica e absoluta mas apenas a verdade judicial e prática – não pode ser uma verdade obtida a qualquer preço mas apenas a que assenta em meios de prova que sejam legais;
A livre apreciação da prova (ou do livre convencimento motivado) não se pode confundir com a íntima convicção do juiz, assente numa apreciação arbitrária da prova, impondo-lhes a lei que extraia delas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso;
Não satisfaz a exigência de fundamentação da decisão sobre Matéria de Facto a mera referência genérica aos meios de prova produzidos, importando fazer a indicação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do juiz, ou seja, os meios concretos de prova e as razões ou motivos que dos meios de prova relevaram ou que obtiveram credibilidade no espírito do julgador – não basta indicar o concreto meio de prova gerador do convencimento, urgindo expressar a razão pela qual, apoiando-se nas regras de experiência comum, o julgador adquiriu, de forma não temerária, a convicção sobre a realidade de um determinado facto.
A liberdade das provas não é, pois, absoluta, estando condicionada pela prudente convicção do julgador e temperada pelas regras da lógica e da experiência
            Porém, nessa tarefa de apreciação da prova, é manifesta a diferença entre a 1.ª instância e o tribunal de recurso, beneficiando aquela da imediação e da oralidade e estando este limitado à prova documental e ao registo de declarações e depoimentos.
            A imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, podendo também ser definida como “a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá que ter como base da sua decisão” (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1984, Volume I, p. 232), confere ao julgador em 1.ª instância certos meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe.
É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reacções humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de factores: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc.
As razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem desse juízo de valoração realizado pelo juiz de 1.ª instância, com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum.
            Assim, a atribuição de credibilidade, ou não, a uma fonte de prova testemunhal ou por declarações, tem por base uma valoração do julgador fundada na imediação e na oralidade, que o tribunal de recurso, em rigor, só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum (cf. Acórdão da Relação do Porto, de 21 de Abril de 2004, Processo: 0314013, www.dgsi.pt).
            Quer isto dizer que a ausência de imediação determina que o tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, possa alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º] – neste sentido, o Ac. da Relação de Lisboa, de 10.10.2007, proc. 8428/2007-3, disponível para consulta em www.dgsi.pt).
A operação intelectual em que se traduz a formação da convicção não é, assim, uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis), e para ela concorrem as regras impostas pela lei, como sejam as da experiência, da percepção da personalidade do depoente – aqui relevando, de forma muito especial, os princípios da oralidade e da imediação – e da dúvida inultrapassável que conduz ao princípio “in dubio pro reo” (cf. Ac. do T. Constitucional de 24/03/2003, DR. II, nº 129, de 02/06/2004, 8544 e ss. e Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª Ed., 1974, Reimpressão, 205).

3.2.8. Uma palavra sobre o princípio «in dubio pro reo».
No fundo, o que o recorrente pretende, nos termos em que formula a sua impugnação, é ver a convicção formada pelo tribunal substituída pela convicção que ele próprio entende que deveria ter sido a retirada da prova produzida.
O recorrente limita-se a divulgar a sua interpretação e valoração pessoal das declarações e depoimentos prestados e da credibilidade que devem merecer uns e outros, exercício que no entanto é irrelevante para a sindicância da forma como o tribunal recorrido valorou a prova.
Não se evidencia qualquer violação das regras da experiência comum, sendo certo que fora dos casos de renovação da prova em 2ª instância, nos termos previstos no art. 430º do CPP - o que, manifestamente, não é o caso - o recurso relativo à matéria de facto visa apenas apreciar e, porventura, suprir, eventuais vícios da sua apreciação em primeira instância, não se procurando encontrar uma nova convicção, mas apenas e tão-só verificar se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável na prova documentada nos autos e submetida à apreciação do tribunal de recurso.
Decidiu-se, no douto Acórdão da Relação de Coimbra de 9/9/2009 (Pº 564/07.8PAVCD.P1) o seguinte:
«Acresce que vigorando no âmbito do processo penal o princípio da livre apreciação da prova, com expressa previsão no art. 127º, a impor, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, a mera valoração da prova feita pelo recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador não constitui, só por si, fundamento para se concluir pela sua errada apreciação, tanto mais que sendo a apreciação da prova em primeira instância enriquecida pela oralidade e pela imediação, o tribunal de 1ª instância está obviamente mais bem apetrechado para aquilatar da credibilidade das declarações e depoimentos produzidos em audiência, pois que teve perante si os intervenientes processuais que os produziram, podendo valorar não apenas o conteúdo das declarações e depoimentos, mas também e sobretudo o modo como estes foram prestados, já que no processo de formação da convicção do juiz “desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um determinado meio de prova) e mesmo puramente emocionais”, razão pela qual quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum».
 Na realidade, ao tribunal de recurso cabe apenas verificar se os juízos de racionalidade, de experiência e de lógica confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar.
«Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração” (Paulo Saragoça da Matta, “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, texto incluído na colectânea “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 253).
Portanto, a prova produzida foi coerentemente valorada.
Se há duas versões dos factos (mesmo que uma delas tenha dois veículos), não é uma maioria matemática que faz escolher a versão verdadeira.
O facto de haver duas afirmações opostas, não conduz necessariamente a uma “dúvida inequívoca”, por força do princípio in dubio pro reo.
Não está em causa a igual valoração de declarações ou depoimentos, mas a valoração de cada um dos meios de prova em função da especial credibilidade que mereçam.
As declarações e depoimentos produzidos em audiência são livremente valoráveis pelo tribunal, não tendo outra limitação, em sede de prova, que não seja a credibilidade que mereçam.
Voltamos ao Acórdão de 9/9/2009:
«Uma vez verificado que o tribunal recorrido formulou a sua convicção relativamente à matéria de facto com respeito pelos princípios que disciplinam a prova e sem que tenham subsistido dúvidas quanto à autoria dos factos submetidos à sua apreciação, não tem cabimento a invocação do princípio in dubio pro reo, que como reflexo que é do princípio da presunção da inocência do arguido, pressupõe a existência de um non liquet que deva ser resolvido a favor deste. O princípio em questão afirma-se como princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal. Contudo no caso dos autos, o tribunal a quo não invocou, na fundamentação da sentença, qualquer dúvida insanável. Bem pelo contrário, a motivação da matéria de facto denuncia uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos constantes da acusação, indicando clara e coerentemente as razões que fundaram a convicção do tribunal.».
Sabemos que o julgador deve manter-se atento à comunicação verbal mas também à comunicação não verbal.
Se a primeira ainda é susceptível de ser escrutinada pelo tribunal de recurso mediante a audição do gravado (e foi o que se fez nesta sede de recurso), fica impossibilitado de aceder à segunda para complementar e interpretar aquela.
Deste modo, quando a opção do julgador se centra em prova oral, o tribunal de recurso só estará em condições de a sindicar se esta for contrária às regras da experiência, da lógica, dos conhecimentos científicos, ou não tiver qualquer suporte directo ou indirecto nas declarações ou depoimentos prestados.
E repetimos: o juiz pode formar a sua convicção com base em apenas um testemunho (ou numa só declaração), desde que se convença que nele reside a verdade do ocorrido.
Não basta que o recorrente diga que determinados factos estão mal julgados.
É necessário constatar-se esse mal julgado face às provas que especifica e a que o julgador injustificadamente retirou credibilidade.
Atente-se que o art.º 412/3 alínea b) do CPP fala em provas que imponham decisão diversa.
Por isso entendemos que a decisão recorrida só é de alterar quando for evidente que as provas não conduzam àquela, não devendo ser alterada quando perante duas versões, o juiz optou por uma, fundamentando-a devida e racionalmente.
Ao reapreciar-se a prova por declarações, o tribunal de recurso deve, salvo casos de excepção, adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido desde que o seu juízo seja compatível com os critérios de apreciação devidos.
Quer isto significar que não vemos que deva ser alterada a decisão de facto.
Decorre do princípio «in dubio pro reo» que todos os factos relevantes para a decisão desfavoráveis ao arguido que face à prova não possam ser subtraídos à dúvida razoável do julgador não podem dar-se como provados.
Tal princípio tem aplicação no domínio probatório, consequentemente no domínio da decisão de facto, e significa que, em caso de falta de prova sobre um facto, a dúvida se resolve a favor do arguido. Ou seja, «será dado como não provado se desfavorável ao arguido, mas por provado se justificar o facto ou for excludente da culpa».
O princípio só é desrespeitado quando o tribunal colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação dos factos decidir por uma apreciação desfavorável à posição do arguido.
Não ficou o Tribunal de Tomar em estado de dúvida.
E este tribunal de recurso também não, assente que o tribunal recorrido valorou os meios de prova de acordo com a experiência comum e com critérios objectivos que permitem estabelecer um “substrato racional de fundamentação e convicção”, com o apoio de presunções naturais, “juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinada facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido“ – v. g. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 07-01-2004 (Proc. 03P3213 - Rel. Cons. Henriques Gaspar - SJ200401070032133).
Por tal razão, não faz sentido fazer aqui valer e funcionar o princípio constitucional in dubio pro reo.

3.2.9. Por todos estes motivos, mantém-se na íntegra o elenco dos factos provados e o elenco dos não provados, só havendo agora que subsumir os factos ao Direito tido por aplicável.

3.3. Apurados os factos, só resta validar as incriminações legais pelas quais veio a ser condenado o arguido, tendo-o sido feito na justa e adequada medida.


                        ********************************************


            III – DISPOSITIVO
           
1. Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em julgar não provido o recurso intentado por HJ..., mantendo na íntegra o acórdão recorrido.

            2. Custas pelo recorrente, com a taxa de justiça fixada em 6 UCs [artigos 513º, n.º 1 do CPP e 87º, n.º 1, alínea b) do CCJ ainda aplicável aos autos], sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

            3. Comunique de imediato à 1ª instância, enviando certidão do acórdão, com nota de não trânsito em julgado.


Paulo Guerra (Relator)
Cacilda Sena


[1] Diga-se aqui que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar (cfr. Germano Marques da Silva, Volume III, 2ª edição, 2000, fls 335 - «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões»).
[2] Só transcreveremos os factos 1 a 102, além dos factos 212 a 224, assente que o recurso em causa não impugna senão a condenação neste processo principal (231/08.5GBTMR), não impugnando as condenações nos PROCESSOS n.ºs 221/08.8TATMR, 232/08.3GBTMR, 67/09.6GBTMR, 354/09.3GBTMR, 569/09.4GBTMR, 615/09.1TATMR, 700/09.0GBTMR, 205/09.9GBTMR e 374/09.8GBTMR.

[3] Cf. Acórdão da Relação do Porto de 11/7/2001, processo n.º 01110407, lido em www.dgsi.pt/trp.
[4] Temos conhecimento da existência de um filho rapaz nascido em 2002 (fls 971), sendo estes dois filhos nascidos de relações com jovens menores de idade, uma de 14 e outra de 17 anos.
[5] Acórdão este que poderia ter o seguinte sumário:
1. O reconhecimento realizado em inquérito é uma “prova autónoma pré-constituída” a ser examinada em audiência de julgamento. nos termos dos artigos 355º, nº1, in fine, nº 2 e artigo 356º, nº 1, b) do Código de Processo Penal, não lhe sendo aplicável o disposto nos seus nºs 2 e 3.
2. Caso já tenha sido realizado um reconhecimento em inquérito, torna-se desnecessário repeti-lo em audiência de julgamento.
3. A realização de um reconhecimento em audiência de julgamento com o cumprimento dos requisitos previstos no nº 2 do artigo 147º do Código de Processo Penal só se coloca se inexistir reconhecimento realizado em inquérito ou instrução, ou se realizado, enfermar de nulidade processual ou nulidade probatória.
4. O artigo 147º do Código de Processo Penal não determina a repetição de reconhecimentos, limitando-se a impor ao tribunal que, se entender adequado proceder a um reconhecimento em audiência de julgamento, este deverá observar o formalismo ali previsto.
5. A ineficácia da prova contida no nº 7 do artigo 147º do Código de Processo Penal não é uma nulidade processual em sentido restrito nem uma “inexistência”, mas sim uma proibição de valoração da prova.

 
[6] A questão que legitimamente se coloca, desde logo, é a de saber até que ponto será exequível aplicar as regras do reconhecimento previstas no artigo 147º do CPP à audiência de julgamento em que há um inevitável contacto directo entre ofendidos e arguidos, não apenas na própria sala de audiências como nos corredores do tribunal ou no simples acto de chamada para o processo realizada pelo funcionário judicial. Em todo o caso, mesmo que se considere possível, com as devidas adaptações, o cumprimento em audiência de julgamento das regras do artigo 147º, sempre ficará necessariamente excluída a possibilidade de ocultação do identificante a que alude o nº 4 do aludido preceito legal.
[7]Sufragam a nossa tese outros arestos dos vários tribunais da Relação deste país.