Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
265/07.7GCTDND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CALVÁRIO ANTUNES
Descritores: SUBSTITUIÇÃO DA PENA
PENA DE MULTA
DIAS DE TRABALHO
Data do Acordão: 03/10/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE TONDELA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: 48,Nº2 E 58º,Nº3 DO CP
Sumário: 1.Quando o legislador estabeleceu no artigo 48.°, n.º2 do Código Penal ser correspondentemente aplicável o disposto no artigo 58.°, n.º 3 do mesmo diploma pretendeu fazer equivaler uma hora de trabalho a cada dia de multa.
Decisão Texto Integral: 8

I. Relatório:
1. No processo supra identificado, o Ministério Publico requereu o julgamento do arguido
R solteiro, empregado fabril, actualmente desempregado, filho de M e de M, nascido a ….1983, natural da Freguesia de … Concelho de Tondela, residente na Rua de … Tondela;
Pelos factos constantes da acusação, imputando-lhe a prática de um crime de condução de veículo com motor sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3°, n° 1 do Decreto-Lei n° 2/98 de 3 de Janeiro.

Realizado o julgamento foi decidido condenar o arguido Rui Manuel Lourenço dos Santos:
I. Pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3º, nº 1 do DL 2/98 de 3 de Janeiro, conjugado com o artigo 121º do Código da Estrada, numa pena de 60 dias de multa à taxa diária de €5,00 o que perfaz um total de €300,00;
II. Substitui a pena de multa por PTC no período de 40 horas;
III. Mais condena o arguido ao pagamento das custas, fixando-se a taxa de justiça, reduzida a metade, em 1 UC (artigos 513º, 344º, nº 1 c) do CPP, e artigo 85º, nº 1 c) do CCJ).
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2. Inconformado, o Ministério Publico interpôs o presente recurso, formulando nas respectivas motivações as seguintes (transcritas) conclusões:
“1º - O Tribunal "a quo" condenou o arguido na pena de 60 dias de multa, que substituiu por 40 horas de prestação de trabalho a favor da comunidade.
2º - Após a data da prática dos factos, mas em momento anterior à prolação da sentença em crise, entrou em vigor a Lei nº59/2007, de 4 de Setembro que procedeu à alteração do Código Penal.
3º- No entanto, o Tribunal a quo não ponderou qual seria o regime concretamente mais favorável ao arguido, tendo violado o disposto no art. 29° n.º4 da Constituição da República Portuguesa e art. 2.° n. ° 4 do Código Penal.
4º- À luz do regime vigente à data da prática dos factos, o n.º 3 do artigo 58° do Código Penal, aplicável ex vi do artigo 48°, nº 2 do mesmo diploma legal, dispunha apenas que "a prestação do trabalho é fixada entre trinta e seis e trezentas e oitenta horas, podendo aquele ser cumprido em dias úteis, aos sábados, domingos e feriados".
5º- Assim, ter-se-ia de ponderar, por um lado, os limites legais estabelecidos para a pena de multa (10-360 dias - cfr. art. 47° n.º 1 do CP) e os limites legais estabelecidos para a prestação de trabalho a favor da comunidade (36-380 horas - cfr. art. 58° n.º 3 Código Penal) e, por outro lado, o valor da hora do trabalho, atendendo igualmente ao montante da pena de multa aplicada.
6º-Realizada tal ponderação, entendemos que a prestação de trabalho a favor da comunidade jamais poderia ser fixada em 40 horas, porquanto se encontraria demasiado próximo do limite mínimo imposto no art. 58.° n.º3 do Código Penal e não realizaria, dessa forma, as finalidades de prevenção geral e especial.
7º-Ao contrário, afigurava-se-nos mais adequado fixar em 70 o número de horas a prestar pelo arguido, um pouco acima da pena de multa aplicada.
8.° De harmonia com o art. 58.° n.º 3 do Código Penal, aplicável ex vi art. 48.º nº 2 do Código Penal, na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, "cada dia de prisão fixado na sentença é substituído por uma hora de trabalho, no máximo de 480 horas".
9º - A quando da revisão de 2007, o legislador pretendeu clarificar o regime e remover obstáculos que existiam na sua aplicação e, para o efeito, tendo optado por um critério aritmético.
10º- Quando o legislador estabeleceu, artigo 48.°, n.º2 do Código Penal, ser correspondentemente aplicável o disposto no artigo 58.°, n.º 3, pretendeu fazer equivaler uma hora de trabalho a cada dia de multa.
11º - À luz do regime actualmente em vigor, a prestação de trabalho a favor da comunidade a prestar pelo arguido teria que ser fixada necessariamente em 60 horas a prestar pelo arguido.
12.º-Assim, temos que, em obediência ao preceituado no art.4º, n.º2 do Código Penal, não poderá deixar de se concluir, que é mais favorável ao arguido a aplicação da lei vigente com as alterações introduzidas ao Código Penal pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro.
13.º-Pelo exposto, o Tribunal a quo deveria ter ordenado o cumprimento, não das 40 horas de trabalho, mas antes, de 60 horas de trabalho.
14.º-Não o tendo feito, entendemos que a decisão recorrida violou o disposto no citado art. 29.° n.º4 da Constituição da República Portuguesa e art. 2.° n.º4 do Código Penal e 48.º, n.º2 do Código Penal.
Termos em que deverá dar-se provimento ao presente recurso e revogar-se a decisão recorrida, no que concerne ao número de horas de trabalho a favor da comunidade aplicadas ao arguido em substituição da pena de 60 dias de multa, alterando-se esse período para 60 (sessenta) horas de trabalho.”
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3. O arguido, apesar de devidamente notificado, nada disse.
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4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, no douto parecer que emitiu, pronunciou-se no sentido da procedência total do recurso (fls. 106).
Notificado, nos termos e para os efeitos consignados no artº 417.º, n.º 2, do C. P. Penal, o arguido nada veio dizer.
Foram colhidos os vistos legais.
Realizou-se a conferência, com observância do formalismo legal, cumprindo, agora, apreciar e decidir.
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II. Fundamentação.
1. Delimitação dos poderes cognitivos do tribunal ad quem e objecto do recurso:
É hoje entendimento pacífico que as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, conforme Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98, sem prejuízo das de conhecimento oficioso.
Por isso, temos, como

Questões a decidir:
Apreciar se o número de horas de trabalho a favor da comunidade aplicadas ao arguido em substituição da pena de 60 dias de multa, deve ser alterado para 60 (sessenta) horas de trabalho ou se deve manter-se.
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2. Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos (por transcrição):
“1. Factos provados:
Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos:
1.No dia 01 de … de 2007, pelas 11:45 horas, o arguido encontrava-se a tripular o veículo ciclomotor de passageiros com a matrícula ---53, propriedade de seu pai, pela EM que liga o Corujeiro a Lageosa do Dão, freguesia deste concelho e área desta comarca.
2.À data o arguido conduzia o veículo sem que fosse titular de carta de condução ou licença que o habilitasse a conduzir veículos motorizados na via pública.
3.O arguido sabia que não lhe era permitido conduzir veículos motorizados na via pública, e não obstante de forma consciente livre e voluntária conduziu o referido veículo, bem sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei como crime.
4.O arguido foi condenado por sentença de 17-…-2004 pela prática do crime de condução sem habilitação legal, na pena de 50 dias de multa a qual se encontra extinta pelo pagamento.
5.O arguido encontra-se desempregado auferindo a quantia de subsídio de desemprego no valor de €325,00/mês.
6.Vive em casa do pai contribuindo com €50,00 e ajudando na agricultura de subsistência que praticam como complemento de rendimentos familiares.
7. Encontra-se a pagar ao banco a quantia de €212,00 para aquisição de um automóvel ligeiro de passageiros.
8. No dia dos factos o arguido ia à ATM levantar dinheiro para pagar o almoço, na fábrica onde trabalhava por turnos, pretendo percorrer cerca de 4 km.
9.O arguido possui carta de condução para a categoria 8 e 81 desde Junho de 2008.
10. O arguido é reputado pelos vizinhos como boa pessoa trabalhador e que não se envolve em confusões, que o mesmo ajuda o pai e irmãos sendo que é órfão de mãe.
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2. Factos não provados:
Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa.
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3. Fundamentação da decisão da matéria de facto:
Para julgar os factos que antecedem como provado o tribunal formou a sua convicção no conjunto das provas produzidas em audiência de discussão e julgamento bem como nos documentos juntos aos autos, a saber:
Na confissão livre e integral do arguido que assumiu a prática dos factos de forma espontânea.
Quanto à não titularidade do arguido de carta de condução a não exibição do arguido, complementada com o CRC dos autos.
Quanto aos factos relativos às condições económicas e sociais do arguido, nas declarações do mesmo, que neste aspecto pareceram credíveis as quais foram abonadas pelas testemunhas J e JP pessoas que são seus vizinhos e que o conhecem há muitos anos e que abonaram a seu favor.
Quanto aos antecedentes criminais do arguido o CRC dos autos. Quanto à titularidade da carta de condução por o arguido ter exibido a mesma.

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4. Apreciando.

Nos presentes autos foi o arguido condenado, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3º, nº 1 do DL 2/98 de 3 de Janeiro, conjugado com o artigo 121º do Código da Estrada, numa pena de 60 dias de multa à taxa diária de €5,00 o que perfaz um total de €300,00. Por se entender ser de substituir tal pena por prestação de trabalho a favor da comunidade, entendeu o tribunal a quo, substituir a pena de multa por Prestação de Trabalho a favor da Comunidade, no período de 40 horas.
O Ministério Publico, recorrente dos presentes autos, concordou com a opção de se aplicar a pena alternativa de trabalho a favor da comunidade, mas não concorda com o quantum de horas aplicado.
Na sua tese deveria ter sido aplicado, pelo mesmo um período de 60 horas.
Para tal alega que o Tribunal a quo não ponderou qual seria o regime concretamente mais favorável ao arguido, tendo violado o disposto no art. 29° nº4 da Constituição da República Portuguesa e art. 2° n° 4 do Código Penal. Isto porque, à luz do regime vigente à data da prática dos factos, o n.º 3 do artigo 58° do Código Penal, aplicável ex vi do artigo 48°, nº 2 do mesmo diploma legal, dispunha apenas que "a prestação do trabalho é fixada entre trinta e seis e trezentas e oitenta horas, podendo aquele ser cumprido em dias úteis, aos sábados, domingos e feriados" enquanto que o mesmo artigo, na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, diz que "cada dia de prisão fixado na sentença é substituído por uma hora de trabalho, no máximo de 480 horas".
Ora de tal redacção parece resultar, na tese do recorrente, que quando o legislador estabeleceu, artigo 48°, nº2 do Código Penal, ser correspondentemente aplicável o disposto no artigo 58°, nº 3, pretendeu fazer equivaler uma hora de trabalho a cada dia de multa.
Por isso, face a tal regime defende o recorrente que o período de trabalho a favor da comunidade deveria ter sido fixado, em, pelo menos, 60 horas, por entender que é mais favorável ao arguido a aplicação da lei vigente com as alterações introduzidas ao Código Penal pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro.
Vejamos então.
A substituição da multa por dias de trabalho ainda é uma forma ou modo de pagamento da pena de multa.
Afirma Maria João Antunes (Consequências Jurídicas do Crime /Notas complementares para a cadeira de Direito e Processo Penal da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2006/2007, pag 57) que a prestação de trabalho deixou de ser uma sanção para passar a ser uma forma de cumprimento da pena de multa a requerimento do condenado, pelo que a execução da pena de multa de substituição pode ocorrer por duas formas: por pagamento voluntário ou por prestação de trabalho
Tal prestação de trabalho a favor da comunidade tanto pode ser aplicada em substituição da multa (artº 48º nº 1 CP), como em substituição da pena de prisão (artº 58º CP).
À data da prática dos factos, a prestação do trabalho substitutivo da multa era fixado entre 36 e 380 horas, podendo ser cumprido em dias úteis, aos sábados, domingos e feriados (Artigo 58º, nº 3 do C.Penal).
Por sua vez o Código Penal não resolvia a correspondência que deveria existir entre os dias de multa e os dias de trabalho em substituição da pena de multa, mas era entendimento maioritário que essa correspondência deveria ser através do dispositivo do n.º4 do art. 58º, pelo que a prestação de trabalho correspondente a 1 dia de multa não poderia exceder, por dia, o permitido segundo o regime das horas extraordinárias aplicável, que era, em princípio 2 horas/dia (Neste sentido, Maia Gonçalves, in Código Penal Português, Anotado e Comentado, 16.ª Edição, pag. 197 e 198)
Contudo, com a redacção introduzida no artº 58º CP, pela revisão de 2007 (Lei 59/07, de 4 de Setembro), houve o nítido propósito do legislador em incrementar a aplicação desta prestação de trabalho, já que se aumentou o limite máximo da pena de prisão que ela pode substituir, de um para dois anos, a par da introdução de novos dispositivos nos nºs 3, 4 e 6 daquele preceito, bem como no artº 496º CPP e o legislador já fornece um critério objectivo para a substituição da pena de prisão ou multa pela prestação de trabalho, fazendo equivaler 1 dia de multa ou de prisão fixados na sentença a uma hora de trabalho, no máximo de 480 horas (cf. art. 48.º n.º2 e 58.º n.º3 do Projecto).
Assim teremos de concluir que, socorrendo-nos do disposto no artigo 2.º, n.º 4 do Código Penal, o regime previsto na actual redacção do Código Penal – alterações introduzidas pela Lei n.º 59/2007, de 4.9. é mais favorável ao arguido. Com efeito, à luz do anterior regime o tribunal fixava sempre as horas de trabalho a favor da comunidade, num mínimo de 36 horas e num máximo de 380 horas, enquanto que agora com o regime previsto no artigo 58.º, n.º 3 do Código Penal (aplicável por força da remissão do artigo 48.º, n.º 2 do mesmo diploma) a cada dia de prisão corresponde uma hora de trabalho a favor da comunidade.
(Neste sentido, vidé, entre outros, Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 09-04-2008, Proc: 2546/04.2 PCCBR-A.C1, Relator: Brízida Martins; Ac do TRC, Processo 35/07.2PTCBR-A.C1, de 30-04-2008, Relator: Félix de Almeida e Ac. do TRC de 28-05-2008, Processo: 49/07.2PTCBR-A.C1, Relator: Fernando Ventura. Ainda Ac. TRP, de 25-11-2009, Procº nº 93/09.5GBOAZ.P1,Relator: DONAS BOTTO, todos in www.dgsi.pt)
Face a tal, a fim de que se não quebre a harmonia do sistema, termos de concluir que, na substituição da pena de multa por dias de trabalho a favor da comunidade, deve usar-se a regra de uma hora de trabalho por cada dia de multa aplicado.
Assim sendo, a pena aplicada ao arguido de 60 dias de multa à taxa diária de €5,00, terá este de cumprir 60 horas de trabalho a favor da comunidade.
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Em face do exposto, o recurso merece provimento.
Assim,
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III – Decisão.

Posto o que precede, acordam os Juízes que compõem esta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar procedente o recurso, alterando a decisão recorrida, no sentido em que o arguido cumpra 60 (cem) horas de trabalho a favor da comunidade, nos demais moldes aí explicitados.
Sem custas.
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(Processado e revisto, pelo relator, o primeiro signatário)

Coimbra, 10 de Março de 2010.

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Calvário Antunes


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Mouraz Lopes