Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
6/17.0IDCTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR OLIVEIRA
Descritores: ACUSAÇÃO
FALTA DE DESCRIÇÃO DE FACTOS TIPOS
NULIDADE
JULGAMENTO
ABSOLVIÇÃO
Data do Acordão: 11/28/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DA COVILHÃ)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 283.º, 358.º E 359.º DO CPP
Sumário: I – Os vícios estruturais da acusação sobrepõem-se às nulidades previstas no artigo 283.º do CPP, podendo/devendo ser conhecidos oficiosamente pelo tribunal a todo o tempo, isto é, em qualquer fase do procedimento, até ao trânsito em julgado da decisão final.

II – Sendo conhecidos antes do trânsito em julgado da decisão final e depois da realização do julgamento, só poderão ter como consequência a absolvição, por inverificação dos pressupostos de imputação criminal.

III – Se, por um lado, a acusação não pode ser repetida quando padeça de nulidade, por outro, não descrevendo ela os factos necessários ao preenchimento do crime que imputa, não pode o juiz suprir o vício por via do regime da alteração dos factos previsto nos artigos 358.º e 359.º do CPP.

IV – Transpondo os descritos princípios para o caso verificado nos autos, não descrevendo a acusação o recebimento prévio pelo arguido das quantias que, reportadas a IVA, tinha obrigação de entregar nos cofres do Estado, impõe-se, após julgamento, o decretamento da absolvição dos arguidos relativamente ao crime, de abuso de confiança fiscal, que na dita peça processual lhe estava imputado.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório

No processo comum com intervenção do tribunal singular nº 6/17.0IDCTB da Comarca de Castelo Branco, Juízo Local Criminal da Covilhã, após realização da audiência de julgamento, foi proferida sentença em 9 de Fevereiro de 2018 com o seguinte dispositivo:

Em face de tudo quanto vai exposto, decide-se julgar a acusação procedente por provada e, consequência:

a) Condenar o arguido A. pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigos 105º nº 1 do Regime Geral das Infrações Tributárias, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa à taxa diária de € 8,00 (oito euros), num total de € 1.200,00 (mil e duzentos euros).

b) Condenar a arguida B., pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105º nº 1 do Regime Geral das Infrações Tributárias, na pena de 300 (trezentos) dias de multa à taxa diária de € 10 (dez), num total de € 3000,00 (três mil euros).

c) Condenar os arguidos nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça pelo mínimo legal - artigos 513º e 514º do Código de Processo Penal e artigo 8º do Regulamento das Custas Processuais.

Inconformado, recorreu o arguido A, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

            a) Deveria ter-se dado como não provado a factualidade constante no nos pontos 8 a 10 dos factos provados;

b) Como não provado que o arguido recebeu as quantias de IVA em causa até ao termo do prazo para as entregar ao Fisco e ainda que, ao invés de entregar a quantia acima discriminada ao Estado, optou por utilizar tal quantia em proveito da sociedade, utilizando-a em seu proveito próprio, integrando-as no património da sociedade, obtendo desse modo vantagens patrimoniais e benefícios que sabia serem indevidos e proibidos por lei.

c) Do depoimento da testemunha (…) não resulta como provado que, efectivamente, o arguido tenha recebido a respectiva quantia de IVA e, consequentemente, as tenha utilizado em proveito próprio.

d) Na verdade, do depoimento da referida testemunha apenas resulta que a sociedade adquirente do veículo mandou cópia do extrato da conta corrente, mandou cópia do cheque e que a sociedade adquirente diz que o mesmo serviu de pagamento à factura.

e) Não resulta da prova constante dos autos se os cheques foram apresentados a pagamento na conta da sociedade arguida ou do arguido, se foram apresentados a pagamento e tiveram boa cobrança.

f) Desta forma, não poderia o Tribunal a quo ter dado como provado que o arguido recebeu a quantia de IVA em discussão nos presentes autos, até porque, conforme referiu a testemunha, não teve acesso aos extratos da conta bancária do arguido ou da sociedade arguida, nem foi requerido o levantamento do respectivo sigilo bancária para de forma infalível verificar se o arguido recebeu, ou não, aquela quantia de IVA.

g) O facto do efetivo recebimento pelo arguido das quantias de IVA ter ocorrido antes do termo do prazo para a entrega ao Fisco é elemento constitutivo do crime, sendo a sua prova requisito da condenação.

h) Não contendo a acusação factos suficientes para a condenação dos arguidos, não pode o tribunal, sob pena de violação da estrutura acusatória do processo penal, alargar a investigação a outros factos que permitam a condenação.

i) É que a acusação fixa o objeto do processo, traçando os limites dentro dos quais se há-de desenvolver a atividade investigatória e cognitória do tribunal. Trata-se de uma decorrência do princípio do acusatório que, nos termos do art. 32 nº 5 da Constituição, estrutura o processo penal. Deverá conter a «narração» de todos os factos que fundamentam a aplicação ao arguido da pena - art. 283 nº 3 al. b) do CPP.

j) A prova de que o arguido tinha “perfeito conhecimento de que o seu comportamento era proibido e punido por lei”, pressupõe, naturalmente, a prova prévia dos factos que preenchem os elementos objetivos do crime.

k) Assim sendo, a falta do elemento objectivo do crime imputado ao arguido, constitui nulidade da acusação nos termos do disposto no artigo 283 do Código Penal;

l) A factualidade apurada e constantes da decisão que agora se recorre são insuficientes para a decisão proferida pelo Tribunal a quo.

m) Da sentença proferida extrai-se que nada foi apurado quanto às condições pessoais do arguido e à sua situação económica, factores de determinação da pena que, entre outros, constam do elenco não taxativo previsto no artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal, como elementos relevantes a ponderar na determinação da pena.

Termos em que deve conceder-se integral provimento ao recurso, revogando-se a sentença, como é de justiça

Notificado, o Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo que não merece provimento.

Admitido o recurso e remetidos os autos a esta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não ocorreu resposta.

Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos legais foi realizada conferência, cumprindo apreciar e decidir.


***

            II. Fundamentos da decisão recorrida

A decisão recorrida contém os seguintes fundamentos de facto:

Dos factos

Dos factos provados

1. A sociedade B. tem sede na k... e encontra-se registada, desde 18 de Maio de 2016, pela atividade principal de "Comércio de veículos automóveis ligeiros".

2. A sociedade é sujeito passivo de IV A, enquadrado no regime normal com periodicidade mensal, estando legalmente obrigada a entregar os impostos liquidados nos prazos e locais estabelecidos nos artigos 27º, n.º 1 e 41º do CIVA.

3. Desde a constituição da sociedade, o arguido A. foi o único gerente da sociedade arguida.

4. No âmbito dessa atividade, incumbia ao arguido A., além do mais, decidir, nomeadamente, da afetação dos respetivos recursos financeiros à satisfação das necessidades e compromissos da sociedade arguida, das encomendas e dos pagamentos a efetuar aos respetivos fornecedores, superintendendo o preenchimento das declarações de rendimentos e outras declarações fiscais, bem como do apuramento e pagamento de todos os impostos que eram devidos pela sociedade arguida e providenciar pela entrega nos cofres do Estado das quantias de IVA liquidado e recebido de clientes.

5. No período referente ao mês de Agosto de 2016, o arguido enviou nome da arguida B., a declaração periódica de IV A, no entanto, não procedeu à entrega nos cofres do Estado do IVA liquidado e recebido de clientes no montante abaixo discriminado, até ao dia 10 de Outubro de 2016.

 

Ano Período Montante
2016 01.08.2016 a 31.08.2016 € 16.543,58

6. O arguido A., enquanto representante legal da sociedade arguida, também não efetuou o pagamento do valor supra descrito nos 90 dias seguintes ao término daquele prazo.

7. Os arguidos foram notificados nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105º, n.º 4, alínea b) do RGIT, que lhes concede 30 dias para procederem ao pagamento da quantia em dívida, respetivos juros de mora que se vencem até integral pagamento e coima que eximiria as respetivas responsabilidades criminais, porém, apesar disso, nada fizeram.

8. O arguido A., na qualidade de legal representante da sociedade arguida B., ao invés de entregar a quantia acima discriminada ao Estado, optou por utilizar tal quantia em proveito da sociedade, utilizando-a em seu proveito próprio, integrando-as no património da sociedade, obtendo desse modo vantagens patrimoniais e benefícios que sabia serem indevidos e proibidos por lei.

9. O arguido A. sabia, no entanto, que o montante que gastava e utilizava em seu proveito próprio e no giro económico da sociedade arguida, pertenciam aos cofres do Estado e a este deviam ter chegado, juntamente com a declaração relativa ao mês de Agosto de 2016, nos prazos legalmente previstos e dos quais tinha perfeito conhecimento.

10. O arguido A. agiu de modo livre e consciente, com o propósito deliberado e concretizado de deduzir a mencionada quantia e de a não entregar aos cofres do Estado, tendo feito reverter e despendido em benefício da sociedade arguida a quantia deduzida e, indiretamente, em seu proveito, assim enriquecendo, desde logo, o património da sociedade, em igual montante e prejudicando o Estado, pelo menos, em valor equivalente.

11. O arguido A. atuou em seu nome e no nome da sociedade arguida, tendo-o feito de forma livre e consciente, bem sabendo que a conduta por si adotadas era criminalmente punida.

12. Por sentença, de 22 de Junho de 2017, a sociedade arguida foi declarada insolvente.

13. Do CRC do arguido A. nada consta.

14. Do CRC da Sociedade arguida nada consta.

Dos factos não provados

Inexistem factos "não provados" com relevância para a discussão da causa.

Indicação e exame crítico das provas

(…).


***

            III. Apreciação do Recurso

A documentação em acta das declarações e depoimentos prestados oralmente na audiência de julgamento determina que este Tribunal, em princípio, conheça de facto e de direito (cfr. artigos 363° e 428º nº 1 do Código de Processo Penal).

Mas o concreto objecto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da correspondente motivação, sem prejuízo das questões do conhecimento oficioso.

Vistas essas conclusões, as questões a apreciar são as seguintes, ordenadas por ordem de precedência:

- Se a acusação é nula por não conter menção de que o IVA não entregue ao Estado tinha sido recebido, facto essencial ao preenchimento do tipo de crime imputado;

- Se ocorre erro de julgamento da matéria de facto, devendo ser alterada no sentido indicado pelo recorrente;

- Se a decisão recorrida padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Apreciando:

Alega o recorrente que o facto do efetivo recebimento pelo arguido das quantias de IVA ter ocorrido antes do termo do prazo para a entrega ao Fisco é elemento constitutivo do crime, não constando da acusação. Não pode o tribunal, sob pena de violação da estrutura acusatória do processo penal, alargar a investigação a outros factos que permitam a condenação. É que a acusação fixa o objecto do processo, traçando os limites dentro dos quais se há-de desenvolver a atividade investigatória e cognitória do tribunal. Trata-se de uma decorrência do princípio do acusatório do artigo 32º, nº 5 da Constituição. Assim sendo, a falta do elemento objectivo do crime imputado ao arguido, constitui nulidade da acusação nos termos do disposto no artigo 283º do Código de Processo Penal.

Compulsado o teor da acusação, verifica-se que coincide com os factos provados descritos na decisão recorrido com excepção do que se refere no facto provado nº 5 onde foi aditada a palavra “recebido” assinalada a negrito (5. No período referente ao mês de Agosto de 2016, o arguido enviou nome da arguida B., a declaração periódica de IV A, no entanto, não procedeu à entrega nos cofres do Estado do IVA liquidado e recebido de clientes no montante abaixo discriminado, até ao dia 10 de Outubro de 2016.).

Ou seja, da acusação não se fez efectivamente constar o recebimento prévio pelo arguido da quantia que tinha obrigação de entregar nos cofres do Estado.

É certo que posteriormente se refere na acusação (coincidente com os pontos 8 a 10 dos factos provados) que o arguido ao invés de entregar a quantia ao Estado optou por a utilizar em proveito próprio/da sociedade, sabendo que pertencia ao Estado tratando-se no entanto de factualidade conclusiva que não dispensava a referência expressa ao recebimento respectivo para que tais conclusões se encontrassem devidamente densificadas e justificadas no âmbito da descrição da tipicidade subjectiva. A acusação, com as funções que desempenha no processo penal, não se basta com referências implícitas, devendo conter antes referências factuais expressas a todos os elementos da factualidade típica.

Os factos referidos são do seguinte teor:

8. O arguido A., na qualidade de legal representante da sociedade arguida B., ao invés de entregar a quantia acima discriminada ao Estado, optou por utilizar tal quantia em proveito da sociedade, utilizando-a em seu proveito próprio, integrando-as no património da sociedade, obtendo desse modo vantagens patrimoniais e benefícios que sabia serem indevidos e proibidos por lei.

9. O arguido A. sabia, no entanto, que o montante que gastava e utilizava em seu proveito próprio e no giro económico da sociedade arguida, pertenciam aos cofres do Estado e a este deviam ter chegado, juntamente com a declaração relativa ao mês de Agosto de 2016, nos prazos legalmente previstos e dos quais tinha perfeito conhecimento.

10. O arguido A. agiu de modo livre e consciente, com o propósito deliberado e concretizado de deduzir a mencionada quantia e de a não entregar aos cofres do Estado, tendo feito reverter e despendido em benefício da sociedade arguida a quantia deduzida e, indiretamente, em seu proveito, assim enriquecendo, desde logo, o património da sociedade, em igual montante e prejudicando o Estado, pelo menos, em valor equivalente.

O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2015, publicado no Diário da República n.º 106/2015, Série I de 2.6.2015 fixou jurisprudência no sentido de que “A omissão de entrega total ou parcial, à administração tributária de prestação tributária de valor superior a (euro) 7.500 relativa a quantias derivadas do Imposto sobre o Valor Acrescentado em relação às quais haja obrigação de liquidação, e que tenham sido liquidadas, só integra o tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal, previsto no artigo 105 n.º 1 e 2 do RGIT, se o agente as tiver, efectivamente, recebido.

A acusação que não descreva os factos necessários e suficientes à imputação criminal efectuada é nula, como logo se encontra previsto no artigo 283º, nº 2, alínea b) do Código de Processo Penal.

A reconhecer-se a possibilidade de conhecimento neste momento da existência da citada nulidade prejudicado poderá ficar o objecto do recurso interposto, pelo que se impunha começar por abordar tal questão.

O artigo 283º, nº 3, alínea b) do Código de Processo Penal estipula que "a acusação contém, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou uma medida de segurança (…)".

Esta nulidade, na falta de disposição legal em sentido contrário, porque não consta do catálogo das insanáveis a que se refere o artigo 119º do Código de Processo Penal, seria, numa primeira abordagem, uma nulidade dependente de arguição, ficando sujeita ao regime legal previsto no artigo 120º a 122.º do mesmo diploma e nesse caso encontrar-se-ia neste momento sanada por não ter sido arguida.

Mas estatui o artigo 311º, nº 2, alínea a) do mesmo Código, que a acusação é rejeitada se for considerada manifestamente infundada, concretizando o n.º 3 do mesmo preceito, na parte que releva para o caso concreto, que a acusação considera-se manifestamente infundada quando não contenha a narração dos factos.

Ou seja, em momento em que a nulidade da acusação poderia encontrar-se sanada por não ter sido arguida, segundo o regime dos artigos 120º a 122º, pode o juiz rejeitar a acusação se não contiver a narração dos factos; afinal conhecer oficiosamente da nulidade da acusação prevista no artigo 283º, nº 3 que não se sanou pelo facto de não ter sido arguida.

A propósito ensina Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª ed., p. 207 a 208, face ao aditamento do nº 3 do artigo 311º do CPP operado pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, os vícios estruturais da acusação passaram a sobrepor-se às nulidades previstas no art. 283.º, e converteram-se em matéria sujeita ao conhecimento oficioso do Tribunal, não estando, portanto, dependente de arguição por parte dos sujeitos processuais. Sendo de conhecimento oficioso, pode ser conhecida a todo o tempo, isto é em qualquer fase do procedimento, com a ressalva enquanto a decisão final não transitar em julgado.

Dever-se-á ter presente que as nulidades que a lei processual penal denomina de insanáveis podem ser declaradas em qualquer fase do procedimento (artigo 119º) mas já não podem ser declaradas após a formação do caso julgado da decisão final, que neste caso actua como meio de sanação. O trânsito em julgado da sentença tem a virtualidade de sanar toda e qualquer nulidade em nome da certeza e segurança do direito.

Embora o artigo 119º do Código de Processo Penal designe de insanáveis as nulidades que contempla, na realidade todas elas são sanáveis através da repetição dos actos viciados.

O que se deve questionar é se também a nulidade da acusação é sanável através da repetição dos actos viciados, a repetição da decisão acusatória e trâmites posteriores do processo, devendo, ou não, estabelecer-se paralelo com as nulidades legal e expressamente designadas de insanáveis.

Deve ter-se presente que o nosso processo penal depois de uma fase de investigação que culmina com a dedução de acusação, tem estrutura acusatória (constitucionalmente reconhecida no artigo 32º, nº 5 da CRP) tendo a acusação a função de definir e fixar o objecto do processo. Como escreve Germano Marques da Silva na obra já citada a fls. 62, uma consequência da estrutura acusatória do processo é a independência do Ministério Público em relação ao juiz na formulação da acusação. Da consagração da estrutura acusatória resulta inadmissível que o juiz possa ordenar ao Ministério Público (bem como ao Assistente) os termos em que deve formular acusação. Por maioria de razão não pode o juiz suprir os vícios de que a acusação padeça.

E se assim é a nulidade da acusação será insanável na verdadeira acepção da palavra.

Se é certo que não existe disposição processual penal que o refira expressamente, verificamos que o conceito e dimensão da estrutura acusatória do processo penal vem sendo densificado no sentido mencionado de a acusação não poder ser repetida quando padeça de nulidade.

Senão vejamos o disposto no artigo 287º, nº 1, alínea b), nº 2 e nº 3 do Código de Processo Penal em que o requerimento de abertura da instrução por parte do assistente consubstancia uma acusação. Tal requerimento, caso não obedeça aos requisitos da acusação do artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c), deve ser rejeitado e não é susceptível de ser repetido ou de convite à correcção com a evidente consequência da impossibilidade de exercício da acção penal e do arquivamento do processo (cfr. Ac. do TC nº 358/2004 e o Ac. do STJ de fixação de jurisprudência nº 7/2005).

E vejamos o caso paralelo do artigo 359º do Código de Processo Penal referente a alteração substancial dos factos na fase de julgamento que apenas permite que a comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público tenha o valor de denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo. Se não o forem a consequência será a absolvição (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal em anotação ao referido preceito).

Em suma, a nulidade da acusação não é susceptível de ser sanada, a ocorrer e a ser conhecida antes do trânsito em julgado da decisão final, e depois da realização do julgamento só poderá ter como consequência a absolvição por inverificação dos pressupostos da imputação criminal.

Tal conclusão é extensível à arguida não recorrente em face do disposto no artigo 403º, nº 3 do Código de Processo Penal.

E sendo assim, evidente se torna que não descrevendo a acusação os factos necessários ao preenchimento do crime que imputa, não pode o juiz por via do regime de alteração dos factos previsto no artigo 358º ou no artigo 359º do Código de Processo Penal tentar suprir o vício. É que tais regimes supõem desde logo que os factos constantes da acusação constituam crime o que, no caso, como resulta do antes exposto, não ocorre.

E se assim é, também o juiz não pode alargar, sem mais, a factualidade a discutir em audiência, consignando como provada a que não constava como alegada, como ocorreu no caso, devendo considerar-se como não escrito o que foi considerado provado em violação da limitação temática imposta pela acusação.

Em face do que fica editado cumpre declarar a nulidade insuprível da acusação com as legais consequências, ficando prejudicadas as restantes questões que o recorrente suscitou.


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IV. Decisão

Nestes termos e com tais fundamentos, acordam em conceder provimento ao recurso interposto, revogando a sentença recorrida e absolvendo os arguidos da imputada comissão de um crime de abuso de confiança fiscal p. e p. pelo artigo 105º, nº 1 do RGIT.

Não há lugar a tributação em razão do recurso interposto.


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Coimbra, 28 de Novembro de 2018

Texto elaborado e revisto pela relatora

Maria Pilar de Oliveira (relatora)

José Eduardo Martins (adjunto)