Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
208/12.6TBVZL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: DESPACHO SANEADOR
CONHECIMENTO DO MÉRITO DA CAUSA
LIVRANÇA EM BRANCO
TÍTULO EXECUTIVO
Data do Acordão: 01/21/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VOUZELA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 45º E 510º, Nº 1, B) DO CPC; 10º, 75º E 77º DA LULL.
Sumário: I. O conhecimento do mérito em sede de despacho saneador pretende evitar o arrastamento de acções que logo nesta fase já contenham todos os elementos necessários a uma boa decisão - afinal quando as partes só discordem da solução jurídica da questão a dirimir -, mas não se coaduna com decisões que, em nome de pretensas celeridades – que, depois, dão em vagares –, não permita às partes a discussão e prova, em sede de audiência, da factualidade que alegam e que poderá conduzir a soluções jurídicas muito mais abrangentes, ainda não possíveis na fase do saneador ou, pelo menos, a um desfecho diverso daquele que ao juiz do processo pareça ser o correcto nessa altura - apresentando-se a audiência de julgamento como o momento processual propício à clarificação da factualidade invocada.

II. Por isso, tal conhecimento só deve ocorrer se o processo contiver, seguros, todos os elementos que possibilitem decisões segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito e não somente aqueles que possibilitem a decisão de conformidade com o entendimento do juiz do processo.

III. É o título executivo, que determina o fim e os limites da execução, sendo a base desta, pois dele resulta a exequibilidade da pretensão executanda, incorpora o direito de execução, isto é, o direito do credor a executar o património do devedor ou de terceiro para obter a satisfação efectiva do seu direito.

IV. Quem emite uma livrança em branco atribui a quem a entrega o direito de a preencher segundo o convencionado, a título de delegação de confiança, dependendo os seus plenos efeitos do respeito pelo convencionado quanto ao seu preenchimento.

V.A livrança em branco, quando preenchida pelo portador em conformidade com o convencionado, constitui título regularmente exequível nos exactos termos em que se mostra preenchida.

VI. Encontrando-se a livrança no domínio das relações imediatas - na posse do portador inicial-, o avalista tem legitimidade para excepcionar o preenchimento abusivo, caso tenha subscrito também o acordo de preenchimento.

VII. Cabe-lhe, então, o ónus da prova em relação aos factos constitutivos de tal excepção, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 342º do Código Civil - de alegar e provar os respectivos pressupostos, ou seja, a existência e o conteúdo do pacto de preenchimento e a violação ou desrespeito pelos termos e condições aí definidos.

VIII. Da conjugação do artigo 53º com o artigo 32º, I, ambos da LULL, segundo o qual o avalista do subscritor responde “da mesma maneira” que ele, decorre a desnecessidade de protesto para o accionar, tal como seria desnecessário para accionar o subscritor.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

1.Relatório

A… e P…, executados, vieram, por apenso à execução comum para pagamento de quantia certa que contra eles é movida por B…, S.A., deduzir oposição à execução, alegando, em síntese, que:

O requerimento executivo peca por falta de fundamentação;

A livrança que serve de título executivo foi subscrita e avalizada em branco, cabendo ao exequente provar que a mesma foi preenchida de acordo com o pacto de preenchimento, padecendo de vício de forma;

A exequente não poderia peticionar juros sobre os montantes das rendas vincendas, juros, despesas judiciais e extrajudiciais ou sobre honorários de advogados e solicitadores;

A exequente só poderia exercer o seu direito de acção após ter formalizado protesto, o que não ocorreu.

Concluem, pedindo a absolvição dos executados.

A exequente deduziu oposição alegando, em síntese, que:

Não estava obrigada a fazer uma exposição factual no requerimento executivo, atenta a circunstância de estar em causa uma livrança e o preceituado no artigo 810.º, n.º 1, al. e), do Código de Processo Civil;

O preenchimento da livrança ocorreu de acordo com o estabelecido contratualmente;

A falta de protesto nunca obstaculizaria a que a exequente interpusesse a respectiva acção;

Os oponentes litigam de má fé.

Conclui, pedindo a improcedência da oposição à execução, por não provada, bem como a condenação dos executados como litigantes de má-fé.

Foi proferida, pela Sr.ª Juiz do Tribunal Judicial de Vouzela, a seguinte decisão:

“Pelo exposto:

julga-se improcedente a presente oposição, determinando-se o prosseguimento da execução, nos seus precisos termos;

julga-se improcedente o pedido de condenação em litigância de má fé efectuado pela oponida.”.

Os executados/oponentes, A… e P…, não se conformando tal decisão dela interpuseram recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

2. Do objecto do recurso

Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das ale­ga­ções do recorrente cumpre apreciar as seguintes questões:

1.O Tribunal da 1.ª instância, podia decidir a acção logo no saneador, como foi feito, por se ter entendido já dispor o processo de todos os elementos necessários a uma decisão conscienciosa?

2. O título executivo apresentado carece de fundamentação?

3. A livrança apresentada como título executivo foi preenchida de forma abusiva?

4. Era condição do exercício do direito de acção por parte do exequente o prévio protesto por falta de pagamento?

5. Os juros apenas são devidos sobre o valor das rendas vencidas?

A 1.ª instância, para justificar tal conhecimento, escreve assim:

“Dado que o estado dos autos permite, sem necessidade de mais provas, conhecer imediatamente do mérito da causa, iniciar-se-á, desde já, tal tarefa – artigo 510.º, n.º1, alínea b), do Código de Processo Civil, aplicável por via dos artigos arts.º 466.º, n.º 2, 817.º, n.º 2 e 787.º”.

Só como pequena nota histórica:

No Código de Processo Civil de 1876 não existia despacho saneador.

Este despacho teve origem no despacho regulador do processo, criado pelo Decreto n.º 3, de 29 de Maio de 1907, vulgarmente designado decreto para a cobrança de pequenas dívidas, para os seguintes fins: 1.º- Conhecer de quaisquer nulidades insupríveis e das supríveis que as partes hajam devidamente arguido; mas neste caso o juiz só anulava o processado ou mandava suprir a irregularidade quando a nulidade pudesse influir no exame e decisão da causa; 2.º- Mandar passar cartas precatórias; 3.º- Designar dia, dentro dos dez imediatos, para o julgamento da acção, desde que não houvesse diligências a realizar (artigo 9.º).

Em 1926, a função de tal despacho foi ampliada, destinando-se a partir de então a limpar o processo das questões que podem obstar ao conhecimento do mérito - artigo 24.º do Decreto n.º 12.353 -.

A possibilidade de conhecimento do mérito da causa nesse despacho só foi consagrada no Decreto n.º 18.552, de 03.07.1930, que veio permitir o julgamento antecipado da lide, quando o processo contivesse todos os elementos necessários para esse efeito.

Avançando.

Nos termos que vêm estatuídos no artigo 510.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil – será o diploma a citar sem menção de origem -, “Findos os articulados, se não houver que proceder à convocação da audiência preliminar, o juiz profere, no prazo de vinte dias, despacho saneador destinado a conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos, ou de alguma excepção peremptória”.

 Tal despacho tem, para todos os efeitos, o valor de sentença.

Quando assim não puder ser, o artigo 511.º, n.º 1 desse Código estabelece que “O juiz, ao fixar a base instrutória, selecciona a matéria de facto relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, que deva considerar-se controvertida”.

Não resistimos, em escrever aqui a redacção anterior do primeiro preceito – antes da que lhe foi dada pelos Decretos-lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro e n.º 180/96, de 25 de Setembro – que, a nosso ver, era bem mais impressiva no ponto que agora nos ocupa, quando afirmava: “conhecer directamente do pedido, se a questão de mérito for unicamente de direito e puder já ser decidida com a necessária segurança ou se, sendo a questão de direito e de facto, ou só de facto, o processo contiver todos os elementos para uma decisão conscienciosa” -.

Este, pois, o figurino do sistema, o qual, como parece claro, pretende evitar o arrastamento de acções que logo nesta fase já contenham todos os elementos necessários a uma boa decisão - afinal quando as partes só discordem da solução jurídica da questão a dirimir -, mas também se não coaduna com decisões que, em nome de pretensas celeridades – que, depois, dão em vagares –, não permita às partes a discussão e prova, em sede de audiência, da factualidade que alegam e que poderá conduzir a soluções jurídicas muito mais abrangentes, ainda não possíveis na fase do saneador ou, pelo menos, a um desfecho diverso daquele que ao juiz do processo pareça ser o correcto nessa altura - apresentando-se a audiência de julgamento como o momento processual propício à clarificação da factualidade invocada –, apontam claramente para o entendimento de que só deve conhecer-se do pedido se o processo contiver, seguros, todos os elementos que possibilitem decisões segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito e não somente aqueles que possibilitem a decisão de conformidade com o entendimento do juiz do processo.

Assim, se uma dessas soluções impuser o prosseguimento do processo em ordem ao apuramento dos factos alegados, não pode proferir-se decisão sobre o mérito da causa.

E daí que, na dúvida, deva o processo prosseguir os seus normais termos, com a organização de uma base instrutória e a passagem à instrução e produção das provas, apresentando-se excepcional o conhecimento antecipado de mérito e normal o seu prosseguimento para a fase de julgamento.

“Normal é que o juiz (não estando ainda realizada a parte fundamental da instrução do processo) não possa conhecer da matéria no momento em que profere o despacho saneador.

Excepcional é que, com o encerramento dos articulados, o julgador tenha à sua disposição todos os factos que interessam à resolução da questão de direito exclusivamente suscitada pelas partes, ou encontre nos autos todos os elementos de prova essenciais ao julgamento da matéria de facto envolvida no litígio”- escreve o Prof. Antunes Varela e outros no seu “Manual de Processo Civil”, 2.ª edição, ano de 1985, a páginas 385 -.

Poderemos concluir que:

O artigo 510.°, n.° 1, alínea b) pretende evitar o arrastamento de acções que logo nesta fase contenham já todos os elementos necessários à sua boa decisão.

Mas tal regime não se coaduna com tomadas de posição que, em nome da celeridade, não permita às partes a discussão e prova, em sede de audiência, da factualidade que alegam e que poderá conduzir a soluções mais abrangentes, ainda não possíveis na fase do saneador ou, pelo menos, a um desfecho diverso daquele que ao juiz do processo pareça ser o correcto nessa altura.

E daí que, na dúvida, deva o processo prosseguir os seus normais termos, com a organização da base instrutória e passagem à fase da instrução e produção das provas, apresentando-se excepcional o conhecimento antecipado de mérito e normal o seu prosseguimento para a fase de julgamento.

Dizem os apelantes:

“A douta decisão recorrida considera que cabia aos recorrentes provar determinados factos e que, contudo, estes não fizeram qualquer prova.

Os recorrentes arrolaram diversas testemunhas.

No entanto, não foi feita qualquer prova porque a douta decisão recorrida entendeu que:

Dado que o estado dos autos permite, sem necessidade de mais provas, Conhecer imediatamente do mérito da causa, iniciar-se-á, desde já, tal tarefa – artigo 510.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, aplicável por via dos artigos arts.º 466.º, n.º 2, 817.º, n.º 2 e 787.º”.

O que se discute nos autos:

i. Da falta de fundamentação do título executivo

Dispõe o artº 45, nº 1, do Código do Processo Civil – será o diploma a citar sem menção de origem - que, “...toda a execução tem por base um título, pelo qual se determina o fim e os limites da acção executiva.”

Este título constitui o documento onde conste a obrigação cuja prestação coactiva se pretende, não se confundindo com a causa de pedir da acção executiva que nos termos do artº 498.º é o facto jurídico concreto, simples ou complexo, do qual emerge, por força do direito, a pretensão deduzida pelo autor, constituindo, assim, a causa de pedir um facto e o título executivo um documento, - sobre esta matéria, ler Antunes Varela, na Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 121º, págs. 147 e 148.

A acção executiva tem por finalidade a obtenção do interesse patrimonial contido na prestação não cumprida, sendo o seu objecto, sempre (e apenas) um direito a uma prestação.

 Nesse objecto contém-se somente a faculdade de exigir o cumprimento da prestação e o correlativo poder de aquisição dessa prestação, poder que corresponde à “causa debendi” e, portanto, funciona como causa de pedir da acção executiva -os factos dos quais decorre esse poder são os mesmos que justificam a faculdade de exigir a prestação -.

Esta faculdade de exigir a prestação, correlativa do poder de aquisição dessa prestação, designa-se por pretensão e apenas uma pretensão exequível pode constituir objecto de uma acção executiva – exequibilidade intrínseca, respeitante à inexistência de vícios materiais ou excepções peremptórias que impeçam a realização coactiva da prestação, e exequibilidade extrínseca, traduzida na incorporação da pretensão num título executivo, ou seja, num documento que formaliza, por disposição da lei, a faculdade de realização coactiva da prestação não cumprida -.

É o título executivo, que determina o fim e os limites da execução, sendo a base desta, pois dele resulta a exequibilidade da pretensão executanda, incorpora o direito de execução, isto é, o direito do credor a executar o património do devedor ou de terceiro para obter a satisfação efectiva do seu direito.

Como todos sabemos, a livrança é uma promessa de pagamento que o emitente deve cumprir.

No quadro da conveniência da fácil circulação dos títulos de crédito, as relações jurídicas cambiárias decorrentes da subscrição de livranças assumem características que as distinguem da generalidade dos negócios jurídicos.

São as características de literalidade, abstracção e autonomia.

O título de crédito contém declarações unilaterais.

A obrigação consubstanciada no título de crédito cambiário pode ser feita valer pelo que dele consta inscrito (literalidade), independentemente da relação subjacente (abstracção).

Daí que se possa afirmar que a obrigação cambiária que serve de base à execução é como se fosse uma obrigação sem causa.

O que de certo modo resume o conjunto dos princípios caracterizadores da letra de câmbio e da livrança, enquanto títulos de crédito.

Incorporação da obrigação no título, literalidade, abstracção, independência recíproca das diversas obrigações incorporadas no título e autonomia do direito do portador que é considerado credor originário – acerca deste tema, consultámos Abel Pereira Delgado, Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças, Anotada, 6.ª ed., pág. 105 -.

É certo, que estas regras próprias dos títulos de créditos podem ceder no plano das relações imediatas que são aquelas que são estabelecidas entre os respectivos sujeitos cambiários, isto é sem intermediação de outros intervenientes.

No entanto, o n.º 3 do artigo 810º do Código do Processo Civil, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 226/08 de 20.11, diz que o dever de expor sucintamente os factos que fundamentem o pedido só é obrigatório “quando não constem do título executivo”.

Ora, o título executivo é uma livrança e como tal um documento através do qual o subscritor ou signatário se compromete a pagar a um beneficiário ou à ordem deste um determinado valor numa determinada data.

Por outro lado, quem emite uma livrança em branco atribui a quem a entrega o direito de a preencher segundo o convencionado, a título de delegação de confiança, dependendo os seus plenos efeitos do respeito pelo convencionado quanto ao seu preenchimento.

A livrança em branco, quando preenchida pelo portador em conformidade com o convencionado, constitui título regularmente exequível nos exactos termos em que se mostra preenchida.

Sendo a livrança um título rigorosamente formal, só a falta de indicação dos respectivos requisitos formais, como seja a indicação da data de emissão, poderia pôr em causa a sua validade como título executivo - neste preciso sentido, por ex., o Acórdão do STJ de 10.05.2001, retirado do site www.dgsi.pt – e sujeito a indeferimento liminar.

E assim sendo, tendo a livrança sido dada à execução apenas como título cambiário, deixam de ter sentido as invocadas vicissitudes alegadamente geradoras das invocadas nulidades do requerimento executivo, precisamente porque relativas apenas às obrigações causais.

Se o preenchimento foi feito de acordo com o pacto é matéria para conhecer mais à frente.

Assim, e uma vez que se encontram preenchidos os requisitos previstos no art.º 75º da L.U.L.L., resulta do título executivo, junto ao Requerimento de Execução, os factos que fundamentam o pedido, ou seja, a sociedade subscritora e os avalistas - ora oponentes - comprometeram-se a pagar à Exequente o valor de € 42.987,00 até 26.04.2012, o que não aconteceu.

Por isso, os elementos constantes dos autos mostram-se suficientes para o seu conhecimento no despacho saneador.

Estão lá.

ii. Quanto ao preenchimento abusivo

Apenas esta nota inicial.

Como se tem vindo a entender, de forma consensual, na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça – por todos, o Acórdão de 29.11.2012, disponível no site www.dgsi.pt -, enquanto o título permanecer no domínio das relações imediatas, o preenchimento de uma livrança, pelo tomador, de valor superior ao resultante do contrato de preenchimento, não torna a livrança totalmente nula, aplicando-se-lhe as regras da redução dos negócios jurídicos contempladas no Código Civil.

Ou seja, tendo o beneficiário respeitado qualitativamente o acordo de preenchimento, a inscrição, numa livrança subscrita em branco, de um montante superior ao devido à data do preenchimento não a inutiliza como título executivo.

Avançando.

Os oponentes invocam, ainda, que a livrança apresentada como título executivo foi assinada e avalizada em branco e a oponida preencheu-a de forma abusiva, resultando daqui que foi preenchida uma livrança em branco e que esta não demonstrou que o preenchimento obedeceu ao pacto de preenchimento.

Como todos sabemos, a possibilidade de emissão de uma livrança em branco está prevista pelos art.ºs 10.º e 77.º da Lei Uniforme relativa às Letras e Livranças – LULL -, sendo que a livrança em branco, deve ser preenchida de harmonia com os termos convencionados pelas partes ou com as cláusulas do negócio determinante da sua emissão.

Como se pode ler no Acórdão do STJ de 13 de Abril de 2011, retirado do site www.dgsi.pt -, “... o pacto de preenchimento é um contrato firmado entre os sujeitos da relação cambiária e extracartular que define em que termos deve ocorrer a completude do título cambiário, no que respeita aos elementos que habilitam a formar um título executivo, ou que estabelece em que termos se torna exigível a obrigação cambiária, daí que esse preenchimento tenha atinência não só com o acordo de preenchimento (no fundo o contrato que, como todos, deve ser pontualmente cumprido, art. 406º, nº1, do Código Civil); esse regular preenchimento em obediência ao pacto, é o quid que confere força executiva ao título, mormente, quanto aos requisitos de certeza, liquidez e exigibilidade”.

Mais, encontrando-se a livrança no domínio das relações imediatas - na posse do portador inicial -, o avalista tem legitimidade para excepcionar o preenchimento abusivo, caso tenha subscrito também o acordo de preenchimento - neste sentido, por exemplo, os acórdãos do STJ de 19 de Junho de 2007, 4 de Março de 2008, 17 de Abril de 2008, 23.4.2009, disponíveis no site www.dgsi.pt -.

Assim, quanto à exequibilidade do título, os apelantes, invocando a existência da livrança em branco e o pacto de preenchimento, que consideram violado, colocam a questão de saber se a obrigação cambiária é exigível em função do acordado no referido pacto - esse regular preenchimento em obediência ao pacto, é o “quid” que confere força executiva ao título, mormente, quanto aos requisitos de certeza, liquidez e exigibilidade -.

Este acordo, que pode ser expresso ou de induzir perante certos factos provados (tácito), reporta-se à obrigação cartular em si mesma, que pode ou não coincidir com a obrigação que esta garante (obrigação extracartular), e que daquela é causal ou subjacente.

Mas ali valem, tão-somente, os critérios da incorporação, literalidade, autonomia e abstracção e não a “causa debendi ” bastando-se para a execução a não demonstração, pelo executado, de ter sido incumprido o pacto de preenchimento.

Cabe-lhe então, como o Supremo Tribunal de Justiça já observou, o ónus da prova em relação aos factos constitutivos de tal excepção, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 342º do Código Civil - por exemplo, os Acórdãos de 24.5.2005 , 14.12.2006, 23.09.2010 e de 20.05.2010, disponíveis em www.dgsi.pt -.

Como excepção que é, compete a quem invoca o preenchimento abusivo o ónus de alegar e provar os respectivos pressupostos, ou seja, a existência e o conteúdo do pacto de preenchimento e a violação ou desrespeito pelos termos e condições aí definidos.

Indispensável é que tenham sido alegados no processo factos suficientes para o efeito - invocar e provar o preenchimento abusivo significa alegar e provar que o beneficiário se afastou de tal autorização, por exemplo, quanto à data do vencimento, ou ao montante em dívida nessa altura -.

Escreveu a 1.ª instância para justificar a sua decisão que, “...no vertente caso, os oponentes invocam o preenchimento abusivo, alegando que a oponida não explica, como lhe cabia, os critérios por si utilizados no preenchimento.

Tal factualidade não se apurou.

De facto, e ao contrário do alegado pelos oponentes, o ónus de alegação e prova dos factos respeitantes ao preenchimento abusivo cabia aos mesmos e não à oponida, sendo que não foram provados/alegados quaisquer factos que levem à conclusão de ter havido preenchimento abusivo, bem pelo contrário, pois a alegação apenas respeita a um desconhecimento e não à existência de qualquer violação (art.º 342.º, n.º 2 do C. Civil).”

Acertadamente, diremos nós.

De facto, aos apelantes cabia, desde logo, alegar os factos que permitissem fazer a prova de que a apelada preencheu abusivamente a livrança.

Não o fizeram, limitando-se a dizer que desconheciam quais os factos que levaram a apelada a preencher o título da forma que o fez.

Ora, isso não é alegar, não configura o acto processual de trazer factos aos autos.

Mostram os autos que em 17.06.2008 a Exequente celebrou com a sociedade “C…, Lda.”, o contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor n.º 984 - Doc. n.º 1 -, tendo por objecto duas viaturas automóveis.

Os contratos supra mencionados teriam a duração de 48 meses, com prestações mensais no montante de € 440,54, às quais acresce IVA à taxa legal em vigor no momento do respectivo vencimento.

Em garantia do bom e integral cumprimento das obrigações emergentes do referido contrato, foi entregue à Exequente uma livrança em branco, subscrita pela sociedade “C…, Lda.” e avalizada pelos ora Oponentes, acompanhada do respectivo acordo de preenchimento, devidamente assinado por estes.

Face ao incumprimento da obrigação de pagamento a Exequente preencheu a livrança entregue pela sociedade “C…, Lda.” e avalizada pelos ora Oponentes, como garantia do bom e integral cumprimento da obrigação emergente do contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor n.º 984.

Ficou a constar expressamente de tal documento, imediatamente antes da assinatura dos avalistas: “… a livrança que junto se envia, seja pela B…, S.A. preenchida pelo valor que for devido, fixando-lhe a data de emissão e de vencimento, bem como o local de pagamento. Assim, caso se verifique alguma das referidas situações, será a Livrança accionada, sendo o montante, o correspondente ao somatório da(s) renda(s)vencida(s) e não paga(s), das rendas vincendas, juros, encargos decorrentes do preenchimento da mesma, outras despesas contratuais e tudo o mais que for devido, tal como previsto, nomeadamente, nas cláusulas 17ª, 21ª, 22ª e 23ª das Condições Gerais e ainda, as despesas judiciais e extrajudiciais, incluindo honorários de advogados e solicitadores, necessários à boa cobrança de valores titulados pela livrança”.

Mais, “...na qualidade de avalista (s), declaro/declaramos que tenho/temos perfeito conhecimento do conteúdo das responsabilidades assumidas pelo(s) subscritor(es), das consequências do incumprimento temporário ou definitivo, da resolução, da caducidade do Contrato de Aluguer Operacional, do seu montante e dos termos do presente pacto, ao qual dou/damos o meu/nosso total acordo, sem excepções ou restrições de tipo algum, autorizando assim e por isso o preenchimento da livrança nos precisos termos exarados”.

Concluindo, a livrança foi preenchida nos exactos termos previstos no pacto de preenchimento.

Por isso, a 1.ª instância decidiu correctamente no despacho saneador, já que as testemunhas indicadas pelos recorrentes mostram-se inóquas, uma vez que carecem de objecto factual que, como supra referimos, tal ónus também pertencia aos executados – não terem sido trazidos ao processo factos que, a serem provados, demonstrariam esse mesmo abuso -.

Mais, o exequente notificou os executados do incumprimento contratual, o que torna possível a imediata exigibilidade da obrigação vencida.

Só após o cumprimento dessa obrigação assumida no pacto de preenchimento, a livrança constituiria título executivo por verificado o requisito da exigibilidade.

Como se escreveu no Acórdão do STJ de 4.5.2004, acessível em www.dgsi.pt.,

“A acção executiva pressupõe o incumprimento da obrigação.

Ora, o incumprimento não resulta do próprio título, quando a prestação se apresenta, perante este, incerta, inexigível ou, em certos casos, ilíquida.
Há, então que a tornar certa, exigível ou líquida, sem o que a execução não pode prosseguir – art. 802º do Código de Processo Civil.

A prestação é exigível quando a obrigação se encontra vencida ou o seu vencimento depende, de acordo com estipulação expressa ou com a norma geral supletiva do art. 777º, nº1, do Código Civil, de simples interpelação ao devedor (…)”.

iii. Da falta do protesto.

Alegam ainda os apelantes a inexequibilidade do título por falta de apresentação a pagamento, ou seja, cabe determinar se era ou não condição do exercício do direito de acção por parte do exequente o prévio protesto por falta de pagamento.

 De acordo com o disposto no artigo 53º da Lei Uniforme das Letras e Livranças, aplicável às livranças nos termos prescritos pelo artigo 77º da mesma Lei, o portador de uma letra perde “os seus direitos de acção contra os endossantes, contra o sacador e contra os outros co-obrigados, à excepção do aceitante” se deixar passar o prazo “para (…) fazer o protesto (…) por falta de pagamento”.

A recusa de aceite e de pagamento deve ser comprovada por um acto formal, que é o protesto por falta de aceite ou de pagamento – art. 44 da LULL -.

Depois de expirados os prazos fixados para se fazer o protesto por falta de aceite ou por falta de pagamento, o portador perde os seus direitos de acção contra os endossantes, contra o sacador e contra os outros co-obrigados, à excepção do aceitante – art.º 53 da LULL- .

O Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que, da conjugação daquele artigo 53º com o artigo 32º, I, sempre da LULL, segundo o qual o avalista do subscritor responde “da mesma maneira” que ele, decorre a desnecessidade de protesto para o accionar, tal como seria desnecessário para accionar o subscritor - vejam-se, por exemplo, os Acórdãos de 20 de Novembro de 2002, 11 de Abril de 2004 e de 9 de Setembro de 2008, disponíveis em www.dgsi.pt como procs. nºs 03A3412, 04B3453 e 08A1999, e a jurisprudência neles citada -.

É esta jurisprudência que aqui se reitera e que seguimos.

O citado art. 53 exceptua o aceitante, expressamente, da necessidade de protesto, mas na excepção está abrangido o avalista do aceitante – neste sentido, ainda, Abel Pereira Delgado, Obra citada, 7ª ed., pág. 286 ; R.L.J. Ano 71- 324 ; Ac. S.T.J. de 1-10-98, Bol. 480-482) -.

Mais, como alega o exequente, “…face ao exposto e atenta a declaração de insolvência da sacada C…, Lda. em 20/05/2010 a Exequente poderia exercer o seu direito de acção, mesmo antes do vencimento da livrança…”.

iv. Da liquidação dos juros

Escrevem os apelantes:

“No requerimento executivo, a recorrida peticionou o valor de € 207,28 a título de juros de mora, vencidos desde a data de vencimento da livrança – 26.09.2012 – até 09.11.2012, sobre o montante de € 42.987,00.

Ora, os juros de mora só são devidos sobre o montante das rendas vencidas, já não serão devidos sobre as rendas vincendas, sobre juros, sobre despesas judiciais e extrajudiciais ou sobre honorários de advogados e solicitadores (que poderão nem sequer estar pagos).

No entanto, da liquidação da obrigação resulta que a recorrida liquidou juros moratórios sobre todos esses valores.

O que foi invocado em sede de oposição à execução (...) Contudo, não se pode concordar com o teor da douta decisão proferida, na medida em que considera-se que a questão levantada reconduz-se a uma mera questão de direito, que nada tem a ver com os factos contidos no contrato.

De modo que, a liquidação dos juros subjacente à presente acção executiva foi efectuada de uma forma ilegal”.

A 1.ª instância decidiu assim:

“Quanto a tal matéria, também não assiste razão aos oponentes, pois o contrato previa, explicitamente, a possibilidade de accionar a livrança juntamente com a cobrança de juros, não existindo qualquer cláusula que refira que os juros apenas seriam devidos sobre o valor das rendas vencidas, como invocado.

Nesta instância, tratamos dos chamados juros moratórios, não se colocando, por isso, a questão da aplicabilidade do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Março de 2009 – “No contrato de mútuo oneroso liquidável em prestações, o vencimento imediato destas ao abrigo da cláusula de redacção conforme ao artigo 781.º do Código Civil não implica a obrigação de pagamento dos juros remuneratórios nelas incorporados.”

Como é sabido, os juros remuneratórios distinguem-se dos juros moratórios porque, enquanto aqueles constituem contraprestação onerosa pela disponibilidade do capital mutuado durante vigência do contrato mútuo nos termos acordados - pelo que só com o decurso do tempo em que esse capital foi sendo disponibilizado ao mutuário vai nascendo e se vão vencendo como preço de tal disponibilização -, estes constituem uma reparação pelos prejuízos resultantes do atraso de cumprimento da obrigação ou seja no caso pela não restituição do capital mutuado no momento do vencimento.

Pelo pacto de preenchimento foi dada autorização para que o montante a preencher correspondesse, “ao somatório da (s) renda (s) vencida(s) e não paga(s), das rendas vincendas, juros, encargos decorrentes do preenchimento da mesma, outras despesas contratuais e tudo o mais que for devido, tal como previsto (…) e ainda, as despesas judiciais e extrajudiciais, incluindo honorários de advogados e solicitadores (…)”.

Dizem os apelantes que ignoram, e não têm obrigação de saber, por não estarem devidamente discriminados os diversos valores no pacto de preenchimento, nem no requerimento executivo, se o valor de € 42.987.00 – inserto no título executivo – corresponde “ao somatório da (s) renda (s) vencida (s) e não paga(s), das rendas vincendas, juros, encargos decorrentes do preenchimento da mesma, outras despesas contratuais e tudo o mais que for devido, tal como previsto (…) e ainda, as despesas judiciais e extrajudiciais, incluindo honorários de advogados e solicitadores (…)”.

Sem razão.

Como já escrevemos, aos apelantes cabia, desde logo, alegar os factos que permitissem fazer a prova de que a apelada preencheu abusivamente a livrança.

Aos apelantes incumbia provar que a livrança não foi preenchida de acordo com o pacto, nomeadamente que as quantias imputadas a rendas vincendas, juros, encargos, outras despesas, despesas judiciais e despesas extrajudiciais, não correspondem ao acordado.

Não o fizeram, limitando-se a dizer que desconheciam quais os factos que levaram a apelada a preencher o título da forma que o fez.

Aliás, os apelantes não podiam desconhecer a existência do débito, além do mais porque é administrador da sociedade anónima em estado de insolvência, independentemente de estar a correr termos processo de insolvência onde o crédito foi graduado.

Seja como for, ambos os Executados, subscreveram a livrança, que garantia o cumprimento por parte da sociedade, das obrigações assumidas e bem sabiam, em virtude dessa sua qualidade, que o contrato fora incumprido por falta de pagamento das prestações.

Tal como decidido, a livrança em causa mostra-se exequível nos exactos termos em que se mostra preenchida.

Assim, a conclusão não pode ser a pretendida pelos recorrentes, sendo devidos os juros de mora tal como constam da execução.

Concluindo:

i. O conhecimento do mérito em sede de despacho saneador pretende evitar o arrastamento de acções que logo nesta fase já contenham todos os elementos necessários a uma boa decisão - afinal quando as partes só discordem da solução jurídica da questão a dirimir -, mas também se não coaduna com decisões que, em nome de pretensas celeridades – que, depois, dão em vagares –, não permita às partes a discussão e prova, em sede de audiência, da factualidade que alegam e que poderá conduzir a soluções jurídicas muito mais abrangentes, ainda não possíveis na fase do saneador ou, pelo menos, a um desfecho diverso daquele que ao juiz do processo pareça ser o correcto nessa altura - apresentando-se a audiência de julgamento como o momento processual propício à clarificação da factualidade invocada –.

ii. Por isso, tal conhecimento só deve ocorrer se o processo contiver, seguros, todos os elementos que possibilitem decisões segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito e não somente aqueles que possibilitem a decisão de conformidade com o entendimento do juiz do processo.

iii. É o título executivo, que determina o fim e os limites da execução, sendo a base desta, pois dele resulta a exequibilidade da pretensão executanda, incorpora o direito de execução, isto é, o direito do credor a executar o património do devedor ou de terceiro para obter a satisfação efectiva do seu direito.

iv. Quem emite uma livrança em branco atribui a quem a entrega o direito de a preencher segundo o convencionado, a título de delegação de confiança, dependendo os seus plenos efeitos do respeito pelo convencionado quanto ao seu preenchimento.

v.A livrança em branco, quando preenchida pelo portador em conformidade com o convencionado, constitui título regularmente exequível nos exactos termos em que se mostra preenchida.

vi. Encontrando-se a livrança no domínio das relações imediatas - na posse do portador inicial -, o avalista tem legitimidade para excepcionar o preenchimento abusivo, caso tenha subscrito também o acordo de preenchimento.

vii. Cabe-lhe então, o ónus da prova em relação aos factos constitutivos de tal excepção, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 342º do Código Civil - de alegar e provar os respectivos pressupostos, ou seja, a existência e o conteúdo do pacto de preenchimento e a violação ou desrespeito pelos termos e condições aí definidos -.

viii. Da conjugação do artigo 53º com o artigo 32º, I, sempre da LULL, segundo o qual o avalista do subscritor responde “da mesma maneira” que ele, decorre a desnecessidade de protesto para o accionar, tal como seria desnecessário para accionar o subscritor.

3.Decisão

Assim, na improcedência da instância recursiva, mantemos a decisão proferida pelo Tribunal Judicial de Vouzela.

Custas pelos apelantes.

Coimbra, 21 de Janeiro de 2014

(José Avelino Gonçalves - Relator -)

(Regina Rosa)

(Artur Dias)