Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
6386/10.1TBLRA-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: PENHORA
BENS COMUNS DO CASAL
DISSOLUÇÃO
CASAMENTO
PATRIMÓNIO INDIVISO
Data do Acordão: 12/18/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1.º JUÍZO CÍVEL DO TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS N.º 2 DO ART.º 825.º E 864.º, N.º 3, AL. A) DO CPC (1995/1996)
Sumário: I. Mantendo-se o património comum do casal por partilhar, e enquanto se mantiver tal situação de indivisão, quando o exequente tenha fundamentadamente alegado que a dívida, constante de título diverso da sentença, é comum, aplica-se ainda o disposto no n.º 2 do art.º 825.º no caso do casamento ter sido entretanto dissolvido.

II. Cônjuge considerado terceiro é aquele que não foi citado nos termos do art. 864.º, n.º 3, al. a) do CPC (1995/1996).

Decisão Texto Integral: I. Relatório

No 1.º juízo cível da comarca de Leiria, A...., morador na Rua ..., Leiria, veio instaurar contra B..., residente na Rua ... em Leiria, acção executiva para cobrança da quantia de € 53 205,48 (cinquenta e três mil, duzentos e cinco euros e quarenta e oito cêntimos), dando à execução um cheque subscrito pelo executado.
Em sede de requerimento executivo alegou, em síntese útil, ter entregado ao executado em finais de Janeiro de 2009, a solicitação deste e a título de empréstimo, a quantia de € 50 000,00, a qual o mutuário se comprometeu a restituir até ao final de Abril desse mesmo ano, tendo na ocasião preenchido e feito entrega ao exequente de um cheque no valor mutuado, no qual apôs a data de 30/4/2009. Chegada a data acordada para o reembolso, porque o executado não procedeu à entrega de qualquer quantia, o exequente efectuou o depósito do título em conta bancária por si titulada, vindo o cheque a ser devolvido com a menção de “revogação por justa causa: extravio”, o que ocorreu no dia 7 de Maio de 2009.
O exequente dispõe de título executivo, reclamando o valor nele aposto, e porque o executado não procedeu à restituição da quantia que lhe foi emprestada no prazo fixado são igualmente devidos os juros vencidos à taxa supletiva legal, que liquida no montante de € 3 205,48, e os vincendos até integral pagamento, que igualmente reclama.
Tendo indicado à penhora bens comuns do casal que o executado formava com D... -nomeadamente o imóvel que identifica, a parte penhorável do salário do cônjuge mulher e o saldo da conta bancária titulada pelos dois membros do casal-, em ordem a fundamentar a comunicabilidade da dívida, invocou ainda o exequente que a quantia emprestada foi afectada pelo executado à satisfação dos encargos correntes da vida familiar com crédito pessoal, habitação, seguros, vestuário e alimentação, dadas as dificuldades que o casal então enfrentava.
Citado o cônjuge do executado nos termos e para os efeitos do disposto na al. a) do n.º 3 do art.º 864.º do CPC, veio deduzir oposição -à execução e também à penhora- e nela, tendo impugnado a factualidade alegada pelo exequente, negando a existência do invocado empréstimo, alegou, para além do mais, que, ainda a ter tido real existência, nenhuma quantia reverteu em proveito comum do casal, posto que sempre proveu com o seu salário à satisfação dos encargos relativos à manutenção do lar. Acrescentou que, pese embora o facto do executado marido ser empresário em nome individual, tanto quanto é do seu conhecimento o cheque em causa foi emitido no âmbito de uma “negociata” celebrada com o exequente, em tudo estranha ao exercício da actividade por aquele desenvolvida, assim recusando também a comunicabilidade da dívida.
Conclui dever ser “ordenada a suspensão da presente acção e, em consequência, serem canceladas as penhoras de todos os bens indicados no requerimento executivo”.
Admitida a oposição, veio entretanto o executado, em requerimento autónomo, declarar que a subscrevia, o que mereceu pronta contestação por banda do exequente, com fundamento no facto da Il. Mandatária subscritora daquela peça não ter feito menção à possibilidade do articulado em causa ser subscrito por outro Il. Advogado.
Face às objecções colocadas, a Mm.ª juíza “a quo” que, num primeiro momento, havia considerado ter o executado aderido -no sentido de ter feito sua- à oposição deduzida pelo cônjuge, tendo determinado a notificação do exequente para, querendo, contestar em 20 dias, veio a dar tal despacho sem efeito, substituindo-o por convite endereçado ao executado, convidando-o a esclarecer o que tivesse por conveniente, convite não correspondido.
O exequente contestou a oposição nos termos da peça que consta de fls. 47 a 56 dos autos, e nela suscitou a questão prévia da respectiva inadmissibilidade, uma vez que à data da sua apresentação, em 21 de Março de 2011, já a opoente não se encontrava casada com o executado, tendo o casamento sido declarado dissolvido por sentença proferida em 28/1/2011, transitada em julgado em 2/3/2011. Deste modo, não detendo a qualidade de cônjuge, não lhe era legalmente conferida a faculdade de deduzir oposição a qual, por isso, no entender do contestante, não deveria ter sido admitida.
Mais invocou -se bem compreendemos a objecção- que, não constituindo a recusa/não aceitação da comunicabilidade da dívida fundamento de oposição à execução, nem sendo com ela cumulável, deveria a oposição ter sido liminarmente indeferida ao abrigo do disposto na al. b) do art.º 817.º do CPC, sendo certo que, não tendo a oponente requerido a separação das meações ou feito juntar certidão comprovativa de acção pendente, sempre a execução haveria de prosseguir sobre os bens comuns, nos termos do n.º 4 do art.º 825.º do CPC.
Por último, tendo assinalado a irrelevância, em sede de oposição à execução, dos factos alegados pela opoente, concluiu pela manifesta improcedência da oposição deduzida, o que deveria ter igualmente conduzido ao seu indeferimento liminar, nos termos da al. c) do n.º 1 do art.º 817.º do CPC.
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Foi proferido despacho saneador tabelar e os autos remetidos para julgamento com dispensa da fixação da base instrutória, conforme consentido pelo art.º 787.º, n.º 1 do CPC, dispositivo legal expressamente invocado.
Dado cumprimento ao disposto no n.º 1 do art.º 512.º do CPC, vieram o exequente e a opoente indicar testemunhas, outro tanto tendo feito o executado (cf. fls. 70), róis admitidos nos termos do despacho exarado a fls. 87.
Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, com observância do legal formalismo que da respectiva acta consta, após o que foi proferida sentença que, tendo concluído pela admissibilidade da oposição deduzida, veio a julgá-la totalmente procedente e, em consequência, julgou extinta a execução quanto à opoente D... e ao executado B..., determinando o levantamento e cancelamento, após trânsito em julgado da decisão, de todas as penhoras efectuadas nos autos (e, bem assim, a devolução dos montantes penhorados a título de salário, subsídio ou outra prestação de igual espécie, incluindo depósitos bancárias ou quaisquer outras quantias).
Inconformado, o exequente veio interpor o presente recurso e, tendo apresentado as suas alegações, rematou-as com as seguintes necessárias conclusões, que se transcrevem:
“1.ª A douta Sentença julgou a oposição totalmente procedente, dando como provado que o exequente/oposto, ora recorrente, não emprestou qualquer quantia à oponente ou ao executado, ora recorridos, bem como no património do casal não deu entrada o montante de € 50.000,00, determinando, como consequência, a extinção da execução;
2.ª Com o devido respeito, na audiência de julgamento, não ficou demonstrada a aquela factualidade;
3.ª Resulta dos autos que, no momento em que a oponente deduz oposição à execução, em 21.03.2011, já o casamento se encontrava dissolvido, cuja Sentença que decretou o divórcio transitou em 02.03.2011;
4.ª O ex-cônjuge do executado não pode assumir na execução uma posição igual à que teria se o casamento estivesse vigente;
5.ª Ou seja, não sendo a apelada nem executada, nem cônjuge do executado, não pode opor-se à execução ou à penhora, nos termos conjugados dos artigos 813.º, 863.º-A e 864.º-A, todos do CPC;
6.ª Assim, sendo terceiro, em vez de deduzir oposição à execução, a oponente deveria ter defendido o seu direito através de oposição mediante embargos de terceiro (artigo 351.º e seguintes do CPC);
7.ª No caso sub judice, verifica-se um erro, manifesto, na forma do processo, que, não havendo actos susceptíveis de aproveitamento, determinaria a anulação de todo o processo (cfr. artigos 199.º, n.º 1, 288.º, n.º 1, alínea b), 493.º, n.º 2 e 494.º, alínea b), todos do CPC;
8.ª Por outro lado, o ex-cônjuge do executado figura no requerimento executivo, não como executada, mas como «interveniente associado ao bem penhorado;
9.ª Regularmente citada, para declarar se aceitava a comunicabilidade da dívida, não apresentou requerimento, autónomo, na execução, declarando se aceitava, ou não, a comunicabilidade da dívida, nem requereu a separação de meações (cfr. artigo 825.º, n.º 2 e 4, do CPC);
10.ª Ao invés, discutiu a comunicabilidade da dívida na oposição à execução;
11.ª Porém, na oposição à execução, o cônjuge do executado só pode deduzir os fundamentos legalmente admissíveis, no caso dos autos, ao abrigo do disposto no artigo 816.º, do CPC;
12.ª Pelo que, segundo o disposto no artigo 817.º, n.º 1, alínea b), do CPC, a oposição à execução deveria ter sido indeferida liminarmente;
13.ª Como se não bastasse, e a apesar de não ter deduzido oposição à execução, o Tribunal a quo admitiu o requerimento probatório do executado;
14.ª Decorre da lei que a testemunha é interrogada sobre factos que tenham sido articulados ou impugnados pela parte que a ofereceu (artigo 638.º, n.º 1, do CPC);
15.ª Ora, se o executado não deduziu oposição, nada alegou, tendo, inclusive, precludido um direito processual (a dedução de oposição), não pode, posteriormente, apresentar requerimento probatório;
16.ª O despacho de admissão do requerimento probatório do executado, legalmente inadmissível, porque tem a virtualidade de influir no exame ou na decisão da causa, enferma de nulidade;
17.ª No entanto, a douta Sentença não faz qualquer referência às testemunhas arroladas pelo executado, tudo se passa como se os mesmos não tivessem prestado depoimento;
18.ª Como se disse inicialmente, o Tribunal a quo deu como provada a inexistência empréstimo;
19.ª E, fê-lo, tendo por base a prova testemunhal da oponente, nomeadamente, o testemunho de C..., que afirmou que o cheque que deu origem ao presente processo foi passado pelo executado ao exequente para lhe comprar uma posição no chamado jogo da bolha;
20.ª Com o devido respeito, analisando o depoimento desta testemunha, o qual se encontra gravado e registado no sistema Habilus Media Studio, durante 16M:50S, transcrito, em parte, cuja transcrição aqui se dá por integralmente reproduzida, resulta que a testemunha, além de não conhecer o exequente, não assistiu a qualquer conversa, ou negócio, entre exequente e executado;
21.ª Tudo o que sabia e disse em audiência de julgamento foi porque ouviu dizer a terceiros, nomeadamente, G... , pessoa, que, segundo a testemunha, estaria habilitada para esclarecer o Tribunal de um pretenso negócio denominado de bolha;
22.ª Na verdade o referido testemunho não soube concretizar o que negócio terá havido entre executado e exequente;
23.ª Nem as demais testemunhas, amiga (E...) e irmão (F... ) da oponente, que, basicamente, cuidaram afastar a comunicabilidade da dívida, alegando que não houve empréstimo à oponente, nem proveito desta;
24.ª Contudo, nos seus depoimentos, também registados no sistema Habilus Media Studio, durante 10M:37S e 11M:00S, respectivamente, cujas transcrições aqui damos por integralmente reproduzidas, não afastaram, por completo, a possibilidade de o executado ter beneficiado de um empréstimo do exequente;
25.ª Está assente que o exequente deu à execução um cheque no montante de € 50.000,00, que é um documento particular, assinado pelo devedor, fazendo prova plena da declaração nele contida, dado que não foi arguida a sua falsidade (artigo 376.º, n.ºs 1 e 2, do CC);
26.ª O cheque constitui uma “promessa de pagamento”, sendo a ordem de pagamento o reconhecimento da existência de uma dívida no montante nele declarado;
27.ª Dispõe o artigo 458.º, n.º 1, do CC, que, se alguém, por simples declaração, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem a indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário;
28.ª O exequente, por presunção, provou a existência do empréstimo de € 50.000,00;
29.ª Competia ao executado, bem como à oponente, provar a inexistência do crédito;
30.ª No entanto, com o devido respeito, a ora recorrida não logrou fazer essa prova;
31.ª Pois, o depoimento de C..., isolada ou conjuntamente, com os depoimentos das outras duas testemunhas, não foi suficiente para fazer prova, cabal, da inexistência do empréstimo;
32.ª Além disso, o depoimento de Daniel Figueiredo, registado no Sistema Habilus Media Studio, durante 14M:58S, cuja transcrição aqui se dá por integralmente reproduzida, conjugado com o cheque dado à execução, reforça a existência do empréstimo;
33.ª Esta testemunha, assistiu, em momento posterior ao empréstimo, a uma conversa entre exequente e executado, tendo-o identificado devidamente, em que este garantiu que reembolsaria o dinheiro que recebera emprestado ao primeiro, “que não lhe ficaria a dever um cêntimo”;
34.ª O seu depoimento foi espontâneo, preciso, indicou a razão da ciência, justificando o conhecimento dos factos;
35.ª Ao invés, a testemunha da oponente, C..., que mencionou o jogo da bolha, do qual não teve sequer conhecimento directo, não soube indicar as circunstâncias em que os factos ocorreram, o lugar, o tempo, o modo, etc.;
36.ª Com o seu depoimento não podia convencer o Tribunal “a quo” de que possuía um verdadeiro conhecimento dos factos;
37.ª Acresce que, cabendo ao executado provar a inexistência do empréstimo, ao exequente competia a contra prova dessa factualidade, destinada a torná-la duvidosa (artigo 346.º, do CC);
38.ª O que, na audiência de julgamento, foi conseguido com o depoimento de Daniel Figueiredo;
39.ª Assim, tendo o exequente conseguido criar séria dúvida sobre os factos alegados pela oponente, a questão deveria ter sido julgada contra esta (cfr. artigo 346.º, do CC);
40.ª Pelo exposto, a douta Sentença, ora apelada, não podia ter dado como provados os factos constantes em 9.º e 10.º;
41.ª Com a prolação da Sentença ora recorrida, foram violados, entre outros, os artigos 342.º, n.º 1, 344.º, n.º 1, 346.º, 376.º e 458.º, todos do CC; os artigos 199.º, n.º 1, 201.º, 288.º, n.º 1, alínea b), 351.º, 512.º, n.º 1, 516.º, 638.º, n.º 1, 655.º, 813.º, 816.º, 817.º, n.º 1 alínea b), 863.º-A, 864.º-A.º, todos do CPC.
Com tais fundamentos pretende a revogação da sentença proferida e sua substituição por outra que:
“ - declare o erro na forma do processo, com a anulação de todo o processado e consequente absolvição do oposto da instância;
- indefira, liminarmente a oposição à execução, por falta de fundamento legal;
- declare a oposição à execução improcedente, por não provada, e, em consequência, determine o prosseguimento da execução”.
Os recorridos não contra alegaram.
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Delimitação do objecto do recurso
Tendo-se insurgido ao tempo da sua prolação contra o despacho que admitiu o rol de testemunhas oferecido pelo executado -recurso não admitido, por prematuro, em decisão depois confirmada por acórdão desta Relação- reitera agora o apelante o seu desacordo com o decidido, tanto mais que as aludidas testemunhas vieram a depor em sede de audiência de discussão e julgamento, fundando a sua discordância no facto do apresentante não ter oferecido oposição. Deste modo, argumenta, decorrendo da lei -art.º 638.º, n.º 1 do CPC- que a testemunha é interrogada sobre factos que tenham sido articulados ou impugnados pela parte que a ofereceu, se o executado nada alegou, o despacho que admitiu o requerimento probatório pelo mesmo apresentado é nulo, dada a sua virtualidade para influenciar a decisão.
Ora, sendo correcto que o executado não ofereceu oposição, nem à execução, nem à penhora efectuada, outro sentido não podendo ser atribuído ao despacho, transitado em julgado, que deu sem efeito o anteriormente proferido, no qual se admitira a adesão do apelado à oposição oferecida pelo ex-cônjuge, a verdade é que, independentemente da razão que assista ao recorrente, no que a esta restrita questão diz respeito, afigura-se que sobre ela não há que emitir pronúncia.
Com efeito, conforme o apelante logo reconhece, a verdade é que, vista a motivação apresentada pelo Mm.º juiz “a quo”, em ordem a evidenciar o processo formativo da sua convicção quanto aos factos que julgou provados e não provados, nenhuma referência é feita aos depoimentos das aludidas testemunha, tudo se passando, nas próprias palavras do recorrente, “como se as testemunhas não tivessem sido inquiridas”. Ou seja, é o próprio recorrente quem reconhece que, a despeito de defender a ilegalidade do despacho agora posto em crise, a nulidade cometida afinal em nada influiu na decisão da causa. E se assim é, está prejudicado o conhecimento da questão assim suscitada, posto que a sua relevância seria, neste contexto, meramente académica.
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Assente que pelas conclusões se delimita o objecto do recurso (art.ºs 684.º n.º 3 e n.º 1 do art.º 685.º-A do CPC), as questões colocadas à apreciação deste Tribunal são as seguintes:
i. indagar da existência do erro na forma do processo, que é causa da nulidade de todo o processo por impossibilidade de aproveitamento dos seus termos, conducente à absolvição do apelante da instância;
ii. da inadmissibilidade da oposição deduzida e da ilegalidade do seu fundamento;
iii. do erro de julgamento.
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i. do erro na forma do processo
Numa primeira via de ataque à sentença apelada defende o apelante -inovadoramente, refira-se- que se verifica erro na forma do processo que é causa de nulidade de todo o processo e, não podendo os actos praticados serem aproveitados, tal conduz à absolvição do exequente/oponido da instância, o que deve ser decretado nos termos das disposições conjugadas dos artigos 199.º, n.º 1, 288.º, n.º 1, alínea b), 493.º, n.º 2 e 494.º, alínea b), todos do CPC, que expressamente convoca.
O apontado erro na forma do processo decorreria da circunstância de à opoente estar vedada a dedução de oposição à execução e/ou à penhora uma vez que, não detendo a qualidade de cônjuge, uma vez que o divórcio havia sido decretado por sentença proferida e transitada em julgado antes do oferecimento da oposição, deveria ter antes lançado mão dos embargos de terceiros.
Vejamos se lhe assiste razão.
Como é sabido, os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais, destinando-se a contestar o que foi decidido. Tal é o que resulta do disposto no n.º 1 do artigo 676.º do CPC (na versão em vigor à data da interposição do recurso que ora se aprecia, por ser a aplicável)[1], ao dispor que “as decisões judiciais podem ser impugnadas por meio de recursos” e ainda das soluções consagradas em matéria de legitimidade para recorrer e da delimitação objectiva do recurso (cf. art.ºs 680.º, n.º 1 e 684.º, n.ºs 2 e 3, respectivamente). Sendo esta a função por lei cometida aos recursos, daqui decorre, conforme vem sendo jurisprudência uniforme, que está vedado ao recorrente servir-se deste meio de impugnação para suscitar questões novas (deduzir novos pedidos ou deduzir novos meios de defesa), a não ser que a lei permita ou imponha o conhecimento oficioso dessas questões, nos termos do art.º 660º, n.º 2, parte final, aplicável aos acórdãos proferidos em sede de recurso por força do artigo 713.º, n.º 2.
No que respeita à arguida nulidade do erro na forma do processo, ainda a verificar-se -o que, desde já se afirma, nem sequer ocorria- só poderia ter sido arguida pelo agora recorrente até à contestação ou neste articulado (cf. art.º 204.º, n.º 1), podendo ainda o Tribunal dela oficiosamente conhecer no despacho saneador, se antes o juiz a não tivesse apreciado ou, no limite, e não havendo lugar à prolação daquele despacho, até à sentença final, devendo considerar-se sanada a partir deste momento (cf. art.ºs 202.º e 206.º, n.º 2). Deste modo, e conforme resulta das disposições legais que se deixaram citadas, é, neste momento, de todo inoportuna a arguição do erro na forma do processo, improcedendo a arguição da alegada nulidade daí decorrente.
Por outro lado -o que se refere em respeito às conclusões do recurso- a questão não pode colocar-se tão singelamente como o recorrente o faz, a saber, resultando do disposto nos artigos 813.º, n.º 2 e 863.º-A que quem tem legitimidade para deduzir oposição à execução e à penhora é o executado, podendo usar igualmente daqueles meios de defesa o seu cônjuge (cfr. artigo 864.2-A), não sendo a opoente executada, nem cônjuge, estava-lhe vedado o uso daquele meio de defesa.
Não cremos, porém, que assim seja.
Assim, e antes de mais, há que ter em atenção que, apesar das relações patrimoniais entre os cônjuges cessarem com a dissolução do casamento (cf. art.º 1688.º do código Civil), retroagindo todavia os seus efeitos à data da propositura da acção ou até, antes disso, à data em que cessou a coabitação, conforme o disposto no art.º 1789.º, n.ºs 1 e 2 do mesmo diploma legal, os efeitos patrimoniais só podem ser opostos a terceiros a partir da data do registo da sentença, conforme solução consagrada no n.º 3 do preceito.
Por assim ser, o agora apelante, dispondo apenas de título executivo contra o apelado (título diverso da sentença) mas pretendendo fazer-se pagar à custa de bens comuns do casal, que indicou à penhora, e tendo invocado, para além do mais, factos tendentes a demonstrar a comunicabilidade da dívida, requereu, harmonicamente, a citação da então ainda cônjuge mulher nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 825.º, seu n.º 2. E nesses precisos termos foi esta citada -e cremos que bem, uma vez que à data da citação ainda não tinha sequer transitado em julgado a sentença que decretou o divórcio- tendo, em conformidade com a citação recebida, deduzido oposição à execução à penhora. Conforme podia fazer, uma vez que “o cônjuge que é considerado terceiro é aquele que não foi citado nos termos do art. 864.º/3-a).”[2] [3]
Acresce que, conforme vem sendo entendido, mantendo-se o património comum do casal por partilhar, e enquanto se mantiver tal situação de indivisão, quando o exequente tenha fundamentadamente alegado que a dívida, constante de título diverso da sentença, é comum, aplica-se ainda o disposto no n.º 2 do art.º 825.º no caso do casamento ter entretanto sido dissolvido, porquanto “(…) apesar de no preceito se aludir apenas à citação do cônjuge do executado, não se pode fazer uma interpretação meramente literal, já que o texto da lei adjectiva não abrange exclusivamente os casos de sociedade conjugal em vigor, mas também aqueles em que o executado tenha sido membro de uma tal sociedade e já o não seja por a mesma se ter dissolvido, desde que permaneça o património comum do casal em pé, por ausência de partilha. Como se diz no comentário de Antunes Varela e Henrique Mesquita ao acórdão do STJ de 7.10.1993, RLJ, 126.º-311, e no próprio acórdão, embora em situação diversa da que vimos analisando, a comunhão só termina com a partilha dos bens.
O fim do preceito é, pois, a um tempo, permitir definir a situação do exequente, assegurando o seu direito de crédito, mas também a do cônjuge ou ex-cônjuge do executado relativamente à penhora e subsequente venda, de forma que o património comum seja separado e o não responsável pela dívida seja poupado a qualquer prejuízo, já que pelo cumprimento da obrigação, em princípio, apenas responde o património do devedor (art.º 601.º do CC)”[4].
Em face ao que vem de se expor, e em remate, bem andou o exequente, ora apelante, em requerer a final a citação da opoente nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 825.º, n.º 2.
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ii. da inadmissibilidade da oposição deduzida e da ilegalidade do seu fundamento;
Argumenta ainda o apelante que, tendo a opoente sido citada para declarar se aceitava a comunicabilidade da dívida, ao invés de, como deveria, ter declarado em requerimento autónomo, na execução, se aceitava ou não ou, em alternativa, requerido a separação das meações, optou por discutir a comunicabilidade da dívida na oposição deduzida, o que deveria ter determinado o seu indeferimento liminar nos termos do art.º 817.º, n.º 1, al. b).
Vejamos do acerto desta argumentação.
O regime emergente dos n.ºs 1 e 7 do art.º 825.º em referência reporta-se às dívidas da responsabilidade de um dos cônjuges ou quando, sendo embora a dívida comum, a execução foi movida apenas contra um deles[5]. Nestas situações, sendo embora admissível a penhora de bens comuns na execução movida contra o cônjuge executado, é citado o outro para requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendência da acção em que tal separação haja sido requerida, sob pena de a execução prosseguir sobre os bens comuns penhorados.
Já o quadro legal desenhado pelos n.ºs 2, 3 e 4 do preceito visou a criação de um procedimento incidental destinado a permitir ao exequente, portador de título no qual figura como devedor apenas um dos cônjuges, que a força executiva do título exequendo venha a abranger o outro, para o que terá de alegar os factos (concretos) que fundamentam a comunicabilidade da dívida.
Deste modo, citado o cônjuge do executado para, nos termos do art.º 864.º, n.º3, parte final, declarar se aceita a comunicabilidade da dívida com base no concreto e específico fundamento invocado, com a cominação que, se nada disser no prazo legal, a dívida será considerada comum, pode este silenciar qualquer tomada de posição, caso em que o título executivo passará também a abrangê-lo, podendo responder pela dívida inclusivamente os seus bens próprios, ou recusar (tácita ou expressamente) a comunicabilidade da dívida. No caso da recusa da comunicabilidade, o n.º 4 do preceito faz recair sobre o citado um ónus suplementar: terá ainda de requerer, no prazo prescrito, a separação dos bens ou juntar certidão de acção pendente, sob pena da execução prosseguir sobre os bens penhorados.
Primeira nota que se impõe aqui fazer é a de que a lei não impõe que a declaração de rejeição ou aceitação da comunicabilidade da dívida seja feita por requerimento autónomo na execução. Todavia, face ao regime legal, parece dever entender-se que “a dirimição da questão suscitada quanto à pretensa comunicabilidade do débito exequendo faz-se exclusivamente perante a alegação (e o eventual silêncio) das partes, não envolvendo nunca a produção de prova sobre tal matéria”.[6]
Deste modo, cremos assistir razão ao apelante quando defende que a recusa da comunicabilidade da dívida não é fundamento autónomo de oposição. No entanto, porque, citado o cônjuge do executado nos termos prescritos no artigo 864.º, n.º 3, alínea a), o mesmo adquire um estatuto processual que lhe permite exercer os direitos mencionados no artigo 864.º-A, incluindo a dedução de oposição à execução ou à penhora, terá de se entender que, neste âmbito, tal oposição poderá fundar-se na invocação dos mesmos meios de defesa que ao executado seria permitido invocar, nomeadamente os ligados à existência do próprio crédito exequendo[7]. E se assim é, também não vemos razão insuperável para que, neste caso, seja igualmente suscitada a questão da (in)comunicabilidade da dívida, uma vez que as evidentes razões de ordem prática que levaram o legislador a impedir a discussão da natureza da dívida -evitar o enxerto na acção executiva de um litígio substantivo- já não procederão.
Deste modo, afigurando-se embora que, caso tivesse improcedido a oposição no que se refere à existência da dívida exequenda, não obstaria ao prosseguimento da execução sobre os bens comuns a mera recusa da comunicabilidade da dívida -por não ter a opoente requerido a separação de bens nem feito juntar certidão de acção pendente- a verdade é que, tendo para tanto sido devidamente citada, interveio nos autos mediante a dedução de oposição à execução, questionando a própria existência da dívida, a qual cumulou com oposição à penhora dos bens comuns, recusando a alegada comunicabilidade, tudo conforme lhe era consentido pelos termos do art.º 864.º-A do CPC. Improcedem assim conclusões recursivas 3.ª a 12.ª.
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iii. do erro de julgamento
Nesta sede, insurge-se o apelante quanto ao facto de terem sido dados como assentes os factos elencados na sentença recorrida sob os n.ºs 9 e 10.
Argumenta que, tendo o Mm.º juiz “a quo” invocado, para tanto, os depoimentos conjugados das três testemunhas indicadas pela opoente, em particular o prestado por C..., nenhum dos testemunhos, isoladamente considerado ou conjugado com os demais, permitiriam ao Tribunal chegar a tal conclusão.
A este respeito, vem sendo jurisprudência reiterada por banda do STJ a de que o Tribunal da Relação, “ao apreciar os invocados erros de julgamento sobre os pontos da matéria de facto questionados pelo recorrente, está efectivamente vinculado a realizar uma reapreciação substancial da matéria do recurso de apelação, sindicando adequadamente, através de audição do registo ou gravação da audiência que necessariamente acompanha o recurso, a convicção formada pelo tribunal de 1ª instância e formando sobre tais pontos de facto impugnados a sua própria convicção, que pode ou não ser coincidente com a do juiz a quo.
Será, pois, manifestamente inconciliável com a efectividade do duplo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, vigente no nosso sistema jurídico desde 1994, (…) uma análise das provas realizada em plano puramente abstracto, com mero apelo a critérios de desrazoabilidade ostensiva ou de flagrante desconformidade com os elementos probatórios documentados nos autos, desfocada de uma apreciação crítica, feita perante a especificidade do caso concreto e com decisivo apelo ao conteúdo casuístico dos vários meios de prova efectivamente produzidos em audiência.
(…) Tal não significa obviamente que deva ter lugar na Relação uma repetição ou renovação dos meios probatórios produzidos na 1ª instância, através de um novo julgamento do caso quanto aos pontos da matéria de facto questionados: o nosso sistema de recursos continua a assentar decisivamente na reponderação da decisão recorrida, não sendo, em princípio, destinados a criar matéria nova ou a realizar novas diligências probatórias (…) mas tão somente a verificar se o juiz a quo julgou ou não adequadamente a matéria litigiosa, face aos elementos a que teve efectivamente acesso e de que podia e devia conhecer”. [8]
Por outro lado, reconhecendo que a apreciação das provas constantes de depoimentos gravados apresenta dificuldades em confronto com a apreciação de primeiro grau no tribunal da 1.ª instância, onde funciona plenamente o princípio da imediação, tendo o juiz ao seu dispor toda uma panóplia de elementos que, estando subtraídos ao colectivo de juízes deste Tribunal, auxiliam à valoração dos testemunhos -vg. reacções ou gestos espontâneos da testemunha, de inestimável valia na sua creditação- tal não autoriza a Relação a abster-se de formular um juízo probatório sobre os factos cuja reapreciação lhe é pedida, sob pena de se pôr em causa o referido segundo grau de jurisdição. “A efectiva reapreciação da prova implica [pois] a sua análise crítica sem limitações de ordem formal, ou seja, independentemente daquela que foi feita no tribunal recorrido, envolvendo a criteriosa e equilibrada apreciação, com apelo à racionalidade geral e particular do colectivo de juízes e às regras da lógica e da experiência.
Em suma, tal como o deve fazer o juiz que apreciou a prova em primeiro grau, deve o colectivo de juízes da Relação declarar, de entre os factos objecto da impugnação pelo recorrente, quais os que considera ou não provados, analisando criticamente os provas por aquele indicadas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção (artigo 653º, nº 2, do Código de Processo Civil). Isso significa que o colectivo de juízes da Relação deve formar e afirmar, a respeito dos factos em causa, com base nas provas que reapreciou, a sua própria convicção, idêntica ou diversa daquela que foi expressa no tribunal recorrido, a este se substituindo nessa parte”.
Tal é o entendimento que se sufraga e em obediência a ele se ouviram os depoimentos das testemunhas em causa, três oferecidas pela opoente e aquela que foi indicada pelo agora apelante. E, desde já se adianta, a apreciação dos testemunhos em causa conduzem à confirmação do juízo formulado pelo Mm.º juiz “a quo”, conclusão que se antecipa.
Concorda-se plenamente com o apelante quando chama a atenção para os perigos que oferece a prova testemunhal, mas na sua apreciação crítica à luz das regras da experiência ou presunções judiciárias autorizadas (art.ºs 349.º e 351.º do CC) se concretiza, na sua essência, a função de julgar. E a verdade é que se das testemunhas inquiridas nenhuma delas teve intervenção ou conhecimento directos dos termos do acordo celebrado entre exequente e executado que esteve na origem da emissão do cheque dado à execução, não é menos certo que todas contribuíram com elementos que validam a conclusão a que chegou o Mm.º juiz “a quo”.
E começando pela testemunha C..., que há anos era amigo do casal, embora actualmente raramente se encontrem, tendo reconhecido de forma espontânea e clara não ter estado presente aquando dos contactos que possam ter existido entre o seu amigo e o exequente, pessoa que não conhece, não deixou de esclarecer -factos estes do seu conhecimento directo- que o casal formado pelo executado e pela opoente não tinha quaisquer necessidades financeiras, vivendo até de forma desafogada, o que se devia essencialmente, conforme também esclareceu, ao ordenado auferido pela apelada, tendo chegado a beneficiar de empréstimo que pelo casal lhe foi concedido.
Mais declarou ter sabido na altura que o cheque era uma promessa de pagamento pela cedência da posição no jogo da bolha, ou “cursos”, como então também era designado, tendo surgido o exequente e um seu amigo, de nome Valter, como vendedores, anunciando que a bolha iria estourar em tal dia e naquela posição. A testemunha tomou então conhecimento que o B... tinha sido abordado pelo exequente, abordagem idêntica àquela que o dito Valter fez a um seu amigo, a fim de adquirirem as respectivas posições no dito jogo, sendo certo que, tendo desconfiado que se tratava de uma “vigarice”, desistiram, tendo o referido Valter restituído o cheque recebido, ao passo que o A... se recusou a fazê-lo. Tais factos, de que tomou conhecimento à época através do executado, foram-lhe ainda explicados pelo também interveniente G..., que lhe exibiu uns mails que se reportavam à compra destas posições. Acrescentou, finalmente que, sendo testemunha de Jeová e tendo tomado então conhecimento que a própria Deco havia alertado para a ilegalidade do jogo, popular à época, não deixou de prevenir as pessoas para se absterem de jogar, o que entendeu corresponder a um seu dever.
A testemunha E..., há anos amiga e confidente da opoente, nada sabendo efectivamente da razão de ser da emissão do cheque, não deixou no entanto de confirmar que o casal vivia estavelmente, sem necessidade de recorrer a empréstimos de terceiros.
O irmão da opoente, F..., nada sabendo do que pode ter estado na origem do cheque, veio contudo confirmar quanto fora dito pelas antecedentes no sentido do casal não atravessar qualquer crise financeira, aludindo, pelo contrário, à existência de poupanças, sendo igualmente certo que nunca notou novos bens ou novas disponibilidades do casal (como provavelmente ocorreria, acrescentamos nós, se se tivesse verificado a entrada de tal volume de dinheiro). Não deixou no entanto esta testemunha de fornecer informação relevante. Relatou que no dia em que teve lugar o arresto, acorrendo a solicitação da irmã à casa do casal, nela encontrou, para além de um agente da PSP e do “Sr. do Tribunal”, o próprio exequente, pessoa que não conhecia e cuja presença estranhou. Tendo-o instado a respeito, referiu-lhe este que tinha efectuado um empréstimo ao executado sendo certo que, conforme esclareceu a pergunta que pela testemunha foi feita, só na altura do negócio aquele havia conhecido.
Da conjugação dos aludidos depoimentos, apreciados à luz das regras da experiência ou modo como as coisas de ordinário ocorrem, evidenciada fica a inconsistência, inverosimilhança até, da versão trazida a juízo pelo exequente, uma vez que ninguém empresta € 50 000,00 -dinheiro que não se vê em que possa ter sido afectado- a alguém que não conhece, surgindo como muito mais credível o contexto descrito pela testemunha F.... E a prova assim produzida e conclusão que dela licitamente extraiu o Mm.º juiz a quo não foi abalada pelo depoimento prestado pela testemunha Daniel Figueiredo.
Desembaraçadamente, declarou o referido Figueiredo ser amigo do exequente há anos, não conhecendo o executado, nem a ora opoente (o que não é de estranhar, posto que nem o exequente conhecia). Sobre o caso, declarou saber que em Fevereiro de 2009, precisando de dinheiro para fazer face ao custo de uma intervenção cirúrgica a que uma sua filha teria de ser submetida, pediu dinheiro ao seu amigo -o que, segundo declarou, não era a primeira vez que ocorria, dado que tinham “uma amizade e lealdade”(sic) que o justificava-, o qual informou não ter disponibilidade para tal no momento, uma vez que teria concedido um empréstimo avultado a um senhor, que lho devolveria em Março. Tempo depois voltou a abordar o assunto, tendo-lhe sido respondido pelo apelante que o dito devedor ainda não tinha pago. Posteriormente, encontrando-se com o exequente em Leiria, onde haviam tomado café, encontrando-se a testemunha já no carro, aquele avistou um indivíduo, que abordou, e, tendo-se a conversa desenrolado próxima do veículo, onde a testemunha se mantivera, ouviu o tal indivíduo dizer que iria honrar a dívida e não lhe ficaria a dever (ao agora apelante) um cêntimo. Tendo depois entrado no carro, o exequente explicou então à testemunha que era aquele o indivíduo a quem emprestara o dinheiro, tendo-lhe exibido um cheque no valor de € 50 000,00.
Ora, a ainda a fazer fé no assim declarado, primeira nota a reter o facto da testemunha ter destacado como fundamento do pedido de empréstimo que formulou ao exequente a amizade e lealdade que há muito os une, factor explicativo que se aceita e faz todo o sentido, mas que não serve a versão do apelante, uma vez que não conhecia sequer o executado, merecendo destaque, neste contexto, a vultuosa quantia em causa. Depois, a verdade é que, a despeito dos esforços do il. Mandatário do exequente, não conseguiu a testemunha dizer qual seria a origem da dívida que o tal indivíduo, nas palavras que reproduziu, “iria honrar” porquanto, segundo declarou, tal não foi referido na ocasião. Por último, a expressão alegadamente usada pelo confitente -honrar a dívida- apontando para uma dívida de honra, melhor quadra efectivamente com a situação descrita pela já mencionada testemunha F.... Repare-se que numa situação de empréstimo, normal e corrente é dizer-se “está descansado, vou pagar o que te devo, ou vou devolver-te o que me emprestaste”, e não aludir a uma dívida “de honra”.
Em face do exposto, sanciona-se a convicção do julgador da 1.ª instância, mantendo-se, nos seus precisos termos, os pontos de facto impugnados.
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II. Fundamentação
De facto:
Improcedendo a impugnação e não sendo razão para proceder oficiosamente à alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, são os seguintes os factos a considerar, tal como nos chegam da 1.ª instância:
1- A... intentou em 07 de Dezembro de 2011 acção executiva, de que os presentes autos são apenso, contra o executado B..., aí aparecendo como “interveniente” a aqui opoente, requerendo o pagamento da quantia de € 53.205,48.
2- O exequente e aqui oposto apresentou como título dado à execução uma cópia de cheque sacado pelo executado B... junto da Caixa Geral de Depósitos, à ordem do oposto/executado, no valor de € 50.000,00 (cinquenta mil euros por extenso), e com data de 30 de Abril de 2009.
3- No verso de tal cheque consta a data de 07 de Maio de 2009 e a menção “devolvido na compensação, revogação por justa causa motivo extravio”.
4- No requerimento executivo, na parte relativa à comunicabilidade da dívida, o oposto/exequente aí deixou escrito “conforme referido no artigo 1º do requerimento executivo o executado contraiu o empréstimo para fazer face a encargos normais da vida familiar, com crédito pessoal, habitação, seguros, vestuário, alimentação, sendo que, na versão daquele, o casal vivia com enormes dificuldades. Assim tal dívida, é da responsabilidade de ambos os cônjuges, respondendo os bens comuns do casal e, na falta ou insuficiência deles, solidariamente os bens próprios de cada um conforme resulta da conjugação dos artigos 1691º e 1695 do CC”.
5- O executado B... e a opoente D... casaram em 31 de Janeiro de 1997, e tal casamento foi dissolvido por divórcio decretado por sentença de 28 de Janeiro de 2011, transitada em 02 de Março de 2011.
6- A opoente D... é funcionária da Caixa Geral de Depósitos, auferindo rendimento mensal de pelo menos € 1.850,00 ilíquidas (artigo 6º da oposição da opoente).
7- Do seu ordenado é descontado um valor por conta de empréstimo bancário junto da entidade referida em 6 (artigo 6º da oposição da opoente).
8- O executado B... encontra-se inscrito como empresário em nome individual (artigo 8º da oposição da opoente).
9- O oposto/exequente não emprestou qualquer quantia à opoente ou ao executado.
10- No património do casal constituído pela opoente/executada e pelo executado não deu entrada o montante de € 50.000,00 (artigos 2º e 13º da oposição da opoente).
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De Direito
O exequente deu à execução um título de crédito -cheque subscrito pelo executado- que, apresentado a pagamento no prazo prescrito no art.º 29.º da LUCH, não foi pago, tendo sido devolvido pela compensação com a menção de “revogação por justa causal: extravio”, e que é título executivo nos termos da al. c) do art.º 45.º do CPC.
É consabido que nos títulos de crédito, nos quais se inclui o cheque, estando o direito incorporado no título, são suas características a literalidade, exprimindo que “esse direito tem unicamente a entidade concreta, a dimensão, as qualidades e a relação que as palavras do título descrevem”; a autonomia, enquanto afirmação de que “o direito do dono do título é independente do de um titular antecedente e não pode ser prejudicado por qualquer defeito que na relação anterior se tenha alojado”, e a abstracção, “através da qual, antes de mais, o direito impregnado no título não é uma parte da relação fundamental, mas uma realidade nova, um quid distinto; depois, e por isso, que não tem comunicação com a relação fundamental, não pode ser afastado ou afectado por qualquer defeito desta”[9]. Por assim ser, o portador do título de crédito não carece de alegar a causa da sua subscrição pelo obrigado cambiário, podendo fazer valer o direito cambiário também contra o devedor “ex causa”.
No caso em apreço, não obstante a referida natureza do título executivo, o exequente não deixou de, no requerimento executivo, alegar a relação material subjacente. Todavia, considerando o disposto no n.º 1 do art.º 458.º do CC, entendemos que mesmo tendo feito tal alegação -tanto mais que o cheque, enquanto título de crédito, preenche os requisitos de exequibilidade a que alude a al. c) do n.º 1 do art.º 45.º do CPC- não lhe cabia fazer a prova do alegado, antes recaindo sobre o executado o ónus da prova da inexistência de causa para a respectiva emissão (cf. n.º 1 do art.º 344.º do mesmo diploma legal).
Ora, isso mesmo ocorreu no caso em apreço, tendo a opoente logrado demonstrar que não subjaz à emissão do cheque em causa, nem o invocado empréstimo -que, atendendo ao valor em causa, sempre seria nulo por preterição de formalidade imposta por lei, nos termos conjugados dos artigos 1143.º e 220.º- nem qualquer negócio jurídico válido.
Feita a prova da inexistência de facto constitutivo do direito do portador do cheque, impunha-se, conforme foi decidido, a procedência da oposição deduzida e consequente extinção da execução, improcedendo as derradeiras conclusões do recurso.
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III Decisão
Em face a todo o exposto, acordam os juízes da 1.ª secção cível deste Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas a cargo do apelante.
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Maria Domingas Simões (Relatora)

Nunes Ribeiro

Hélder Almeida


[1] Diploma ao qual se reportarão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem.
[2] Assim, Miguel Teixeira de Sousa, “Reforma da acção executiva”, pág. 175.
[3] No sentido de que “Dissolvido o casamento por divórcio antes da penhora de bens comuns levada a cabo numa execução movida apenas contra um dos cônjuges, por dívida da sua exclusiva responsabilidade, só podem ser deduzidos embargos de terceiro pelo ex-cônjuge se o mesmo não tiver sido citado na execução, nos termos e para os efeitos do artigo 825.º do Código de Processo Civil”, v. arestos da Rel. do Porto de 19/4/2010, processo n.º 8328/05.7 YYPRT.C P1 e de 21/5/2009, PROCESSO N.º 8654/05.5 TBVFR-A P1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
[4] Aresto da Rel. de Lisboa de 11/3/2010, processo 9320/05.7 YYLSB-B.L1-2, acessível no mencionado site, de que se destaca o seguinte ponto do sumário: “No art.º 825º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil estão contemplados, para além dos casos de sociedade conjugal em vigor, também aqueles em que o executado tenha sido membro de uma tal sociedade e já o não seja por a mesma se ter dissolvido, desde que permaneça o património comum do casal, por ausência de partilha”.
[5] Neste sentido Lebre de Freitas, “A acção executiva depois da reforma da reforma”, 5.ª ed., pág. 224 e Lopes do Rego, “Comentários ao Código do Processo Civil”, vol. II, pág. 53; dando conta da desarmonia do regime assim instituído, Teixeira de Sousa, “O incidente da comunicabilidade das dívidas dos cônjuges”, www.cej.mj.pt/cj/
[6] Assim, Lopes do Rego, ob. e loc. cit., e isto sob pena do inevitável enxerto na acção executiva de litígio substantivo sobre a natureza do crédito exequendo, e  também Lebre de Freitas “Com a reforma da acção executiva, passou a proporcionar-se ao exequente, no requerimento executivo (art.º 825.º/2), e ao executado, no prazo de que dispõe para a oposição (art.º 825.º/6, a invocação da comunicabilidade da dívida, com a consequência, não do apuramento, na dependência da acção executiva, do fundamento desta invocação, mas do convite ao cônjuge do executado para vir declarar se aceita a comunicabilidade”- ob. cit., pág. 227. Não obstante, admite este autor que, não sendo embora a alegação objecto de prova, bastando-se com um juízo de concludência, tendo o fundamento de ser invocado (pelo exequente ou pelo executado) poderá, em todo o caso, ser verificado pelo juiz se tal lhe for solicitado, nos termos do disposto no art.º 809.º, n.º 1, als. c) ou d) (cf. nota 37 na mesma pág.). 
[7] Neste sentido, expressamente, Lopes do Rego, ob. cit., pág. 54 e também aresto da Relação do Porto de 13/11/2007, processo n.º 0720762, disponível em www.dgsi.pt, assim sumariado “Citado para a execução, assiste ao cônjuge do executado, quer requeira quer não a separação de meações, o direito de usar dos mecanismos previstos no art. 864º-A do CPC, entre os quais a oposição à execução.”.

[8] Aresto do STJ 24 de Maio de 2012, Ex.mº Sr. Cons.º Lopes do Rego, proc. 850/07.7 TVLSB.L1.S2, disponível em www.dgsi.pt.
[9] V. “Títulos de crédito”, Jorge Henriques Pinto Furtado, Almedina 2000, pág. 64.