Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
120/15.7GHCVL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: CONCURSO DE CRIMES
CRIME PÚBLICO
CRIME SEMI-PÚBLICO
CRIME PARTICULAR
CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
REQUERIMENTO
PRAZO
Data do Acordão: 09/14/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO, SECÇÃO CRIMINAL DA INSTÂNCIA LOCAL DA COVILHÃ - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 68.º, N.º 2, DO CPP
Sumário: Mesmo estando em causa o concurso de crimes público, semi-público e particular, ao prazo de requerimento para constituição de assistente, quanto ao último, é aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 68.º do CPP.
Decisão Texto Integral:





Acordam os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito dos Autos de Inquérito n.º 120/15.7GHCVL, da Comarca de Castelo Branco, Covilhã – Inst. Local – Secção Criminal – J1, por despacho judicial proferido em 13.02.216 foi indeferido por intempestivo o pedido de constituição de assistente formulado pelo queixoso A..., melhor identificado nos autos, relativamente ao crime de injúria.

2. Não se conformando com a decisão recorreu o arguido, formulando as seguintes conclusões:

1. O Tribunal “a quo” não admitiu a constituição como assistente do ofendido, ora recorrente quanto ao crime de injúrias, tendo fundamentado o indeferimento na extemporaneidade da apresentação do pedido de constituição de assistente.

2. Salvo o devido respeito, o recorrente/ofendido entende que tal decisão de indeferimento do tribunal “a quo” assenta numa errada interpretação do artigo 68.º, n.ºs 2 e 3 do Código de Processo Penal (CPP).

3. Os factos denunciados indiciam a prática de dois crimes, um crime de injúrias e um crime de ofensas à integridade física, ou seja, um crime de natureza particular e um crime de natureza semi-público.

4 O disposto no artigo 68.º, nº 2 do CPP só é aplicável quando estejam em causa apenas crimes de natureza particular sendo nesse sentido que tem sido interpretado o Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2011, de 26 de Janeiro.

5. Tendo sido efetuada uma única denúncia, e estendo em causa crimes particulares, semi-públicos e públicos, o prazo para a constituição de assistente em relação a todos eles é o que decorre do n.º 3 do artigo 68.º do CPP.

6. Em suma, desde que estejam em causa crimes de natureza diferente (particular, semi-público e público), o prazo para apresentação de requerimento de constituição como assistente é apenas o previsto no artigo 68.º, n.º 3 do CPP, e não o previsto no n.º 2 desse mesmo artigo (vide nesse sentido o acórdão da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa de 06.03.2012, Processo n.º 473/10.3PVLSB-A.L1, publicado na Coletânea de Jurisprudência, Tomo II, de 2012, págs. 129 e ss.).

7. No caso, porque estão em causa dois crimes, um de injúrias (particular) e outro de ofensas corporais (semi-público), deve considerar-se que o ofendido/recorrente apresentou tempestivamente o requerimento para constituição de assistente em relação a todos eles, dada a fase em que o processo se encontra (ainda em fase de inquérito).

8. Impõe-se, por isso, que o ofendido/recorrente seja admitido a intervir nos autos na qualidade de assistente relativamente a todos os crimes denunciados, retroagindo os seus efeitos à data da apresentação do respetivo requerimento.

Termos em que e nos demais de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, o despacho recorrido revogado e substituído por outro que admita o ofendido, ora recorrente, constituir-se e intervir como assistente nos autos em relação a todos os crimes denunciados, retroagindo os seus efeitos à data da apresentação do respetivo requerimento, anulando-se todos e quaisquer atos processuais posteriores que afetem o seu direito a ter essa qualidade nos autos, por forma a permitir-lhe a dedução de acusação e a formulação de pedido de indemnização civil, em relação a todos os crimes.

Fazendo-se, assim, a habitual e necessária justiça.

3. Por despacho de 04.03.2016 foi o recurso admitido.

4. Em resposta ao recurso, o Ministério Público concluiu:

1. Nos autos principais, e 13.02.2016, foi proferido despacho judicial que indeferiu ao recorrente, na qualidade de ofendido, a sua constituição como assistente em relação ao crime de injúria por intempestivo aplicando o artigo 68.º, n.º 2 do CPP a esse crime e admitiu a sua constituição como assistente relativamente a um crime de ofensa à integridade física simples face à sua natureza semipública.

2. O arguido recorre desse despacho invocando que o Tribunal a quo não interpretou devidamente o artigo 68.º do CPP pois, ao apresentar queixa pela prática de um crime de natureza semipública para além de um crime de natureza particular, corre um único prazo para a sua constituição como assistente por ambos os crimes, ou seja, o mais longo previsto n.º 3, e não no n.º 2, desse preceito legal.

3. Salvo o devido respeito pela opinião contrária, entendemos que o despacho recorrido proferido pelo Tribunal a quo deve ser mantido e indeferida ao recorrente a sua constituição como assistente quanto ao crime de injúria por intempestivo.

4. O legislador prevê no artigo 68.º, n.ºs 2 e 3 do CPP dois prazos diferentes consoante se trate de um crime de natureza particular e um crime de natureza semipúblico.

5. O Tribunal a quo baseia a sua decisão recorrida nessa diferença de natureza dos crimes em apreço: um crime de injúria e um crime de ofensa à integridade física.

6. Esta é a interpretação do artigo 68.º do CPP seguida pela doutrina mais recente: Registe-se que existindo crimes de naturezas diferentes, pode ficar precludido o direito à constituição como assistente para os crimes particulares pelo decurso deste prazo, mas não para os crimes públicos e semipúblicos conforme refere Fernando Gama Lobo (in Código de Processo Penal Anotado, Edições Almedina, Fevereiro, 2015, pág. 98).

7. O decurso do prazo previsto no n.º 2 do referido artigo 68.º preclude o direito do ofendido se constituir como assistente impedindo a renovação queixa por esses factos suscetíveis de integrar a prática de um crime de natureza particular como o crime de injúria.

8. Com vista à dissipação de quaisquer dúvidas quanto à natureza deste crime o AUJ 1/2011 esclareceu a natureza desse prazo explicando que O requerimento para constituição como assistente constitui um ato de formalização necessária para que o processo possa prosseguir para além da queixa.

9. Tendo o legislador distinguido estes dois prazos no artigo 68.º, n.ºs 2 e 3 do CPP, bem como a doutrina e a jurisprudência obrigatória entendido que a inobservância do prazo previsto nesse n.º 2 tem um efeito preclusivo do direito da constituição como assistente, entendemos que a decisão recorrida se mostra como a única legalmente admissível considerando que o requerimento para o ofendido requerer a sua constituição como assistente pelo crime de injúria se mostra intempestivo nos termos referidos pelo Tribunal a quo.

10. Pelo que, no nosso entender, deverá ser mantido, em conformidade, o despacho judicial recorrido proferido em 1.ª instância negando provimento ao recurso interposto pelo ofendido A... .

Certa de que, Vossas Excelências, como sempre, doutamente decidirão, fazendo a habitual Justiça.

5. Remetidos os autos à Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no qual, corroborando a posição já defendida em 1.ª instância pelo Ministério Público, se pronuncia no sentido do recurso dever improceder.

6. Cumprido o n.º 2 do artigo 417.º do CPP, reagiu o recorrente renovando a argumentação já expendida no requerimento de interposição do recurso.

7. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

Sendo o objeto do recurso delimitado em função das conclusões, sem prejuízo da apreciação das questões de natureza oficiosa, no presente caso cabe a este tribunal pronunciar-se sobre em caso de procedimento por crimes de natureza particular e semi-públicos, o prazo para constituição de assistente pelos primeiros deve ser o contemplado no n.º 3 do artigo 68.º do CPP, aplicável aos segundos.

2. A decisão recorrida

Diz o despacho em crise:

O ofendido A... foi notificado em 10.12.2015 para se constituir como assistente, concedendo-lhe para o efeito o prazo de 10 dias.

Este prazo terminou a 21 de Dezembro de 2015.

Já decorrido tal prazo, apenas em 16.01.2016, o ofendido requereu proteção jurídica na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo e nomeação e pagamento da compensação de patrono.

Face ao exposto, indefere-se, por intempestivo, o pedido de constituição de assistente em relação ao crime de injúria e defere-se, por ter legitimidade, estar em tempo, representado por advogado e beneficiar de dispensa de pagamento de taxas de justiça, em relação ao crime de ofensa à integridade física.

3. Apreciação

A única questão controvertida traduz-se em saber qual o prazo para a constituição de assistente quando é apresentada queixa, simultaneamente, por um crime de natureza semi-pública e outro particular; mais concretamente se no que concerne ao crime particular beneficia o ofendido do prazo mais alargado previsto no n.º 3 do artigo 68.º do CPP ou se, ao invés, não obstante a queixa se reportar a crimes de diferente natureza, relativamente ao crime particular (no caso injúria), o prazo, para o efeito, aplicável é o previsto no n.º 2 do dito preceito.

Como dá nota o recorrente em abono da sua tese já se pronunciaram os tribunais superiores, como é o caso do TRL no seu acórdão de 06.03.2012, publicado na CJ, ano XXXVIII, T. II, pág. 129, aí se defendendo a aplicabilidade do AFJ n.º 1/2011, de 26 de janeiro, às situações em que se apreciem, tão só, crimes de natureza particular, sendo que estando em causa crimes públicos ou semi-públicos e particulares o requerimento para constituição de assistente, relativamente a todos os crimes, inclusive os particulares, sempre poderia ser apresentado dentro dos prazos previstos no n.º 3 do artigo 68.º do citado diploma legal.

Respeitando, embora, a posição vinda de expor, da mesma divergimos, quer por não se nos afigura encontrar sustentação na letra da lei, quer porque, no que aos crimes particulares concerne, o prazo limitado para a constituição de assistente se justificar em função do condicionamento do próprio andamento do processo que, através dele, se opera, já que sem a constituição formal como assistente o procedimento, por aquele específico crime não pode prosseguir.

Com efeito, nos crimes particulares, a constituição de assistente, tal como a queixa e a acusação particular, constitui uma condição de procedibilidade, pois sem ela o Ministério Público não tem legitimidade, desde logo, para, quanto ao mesmo, prosseguir a investigação, a qual, de contrário, poderia redundar na prática de atos inúteis.

Na verdade, como vem referido no AFJ n.º 1/2011 «Nos crimes particulares, a atividade instrutória do Ministério Público é desde logo condicionada pela própria constituição de assistente, sem a qual o procedimento não pode prosseguir para além da queixa e a sua prossecução para além do inquérito depende da acusação particular».

A mesma ideia se extrai das palavras de Henriques Gaspar quando, em anotação ao preceito em referência, escreve: «(…) nos crimes particulares o assistente não é rigorosamente um auxiliar ou colaborador do MP; ao ofendido cabe, por via da apresentação da queixa e da constituição como assistente, a iniciativa do procedimento, e ainda determinar o julgamento através de dedução de acusação particular.

Numa perspetiva formal, a posição do Ministério Público nos crimes particulares configura-se como relativamente «subsidiária» e «subordinada» em relação à do assistente – acusador, na medida em que estará dependente das posições processuais que o assistente tome, seja no que se refere ao exercício da ação penal, seja no modo de exercício da ação penal» [cf. Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2.º Edição Revista, Almedina, pág. 214].

Significa, pois, que ultrapassada que se mostra, pelo menos enquanto não sobrevierem novos argumentos – que o recorrente não apresenta, nem se descortinam -, a discussão sobre a natureza perentória do prazo previsto no n.º 2 do artigo 62.º do CPP, matéria objeto de fixação de jurisprudência levada a efeito no AFJ n.º 1/2011, de 16.12.2010 [DR, I. S., de 26.01.2011], os distintos prazos fixados para a constituição de assistente, consoante estejam em causa crimes particulares ou crimes públicos e/ou semipúblicos encontra fundamento no condicionamento que do próprio andamento do processo, máxime relativamente à prática de atos investigatórios, produz, no caso dos primeiros, a constituição como assistente.

Como tal, não se vê, pelo contrário, razão para alargar o prazo previsto no n.º 3 do artigo 68.º do CPP ao procedimento por crimes particulares sempre que com estes concorram, no mesmo processo, crimes de natureza pública ou semi-pública.

Acompanhamos, assim, o Parecer do Exmo. Procurador-Geral Adjunto enquanto, a propósito, aduz: «…tal diferente natureza, que sugere, para lá de óbvia diferenciada importância em termos de tutela penal do bem ou valor jurídico violado, naturalmente uma investigação autónoma, atinente ao aquilatar sobre o preenchimento ou não de todos os respetivos elementos constitutivos, tudo torna compreensível que cada diferente crime possua a sua norma (cativa) em termos de prazo para a constituição de assistente.

E estando fora de qualquer dúvida que em face do AUJ n.º 1/2011 o direito de constituição como assistente fica precludido se não for cumprido o prazo fixado no artigo 68.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, nada no texto da lei (artigo 68.º citado) ou mesmo num apelo à sua ratio legis se descortina que solução diferente deva ser adotada sempre que na queixa apresentada por alguém sejam denunciados simultaneamente dois crimes, sendo um deles de natureza particular, e que só por isso beneficiaria de prazo mais alargado».

Conclui-se, pois, por não merecer censura a decisão recorrida.

III. Decisão

Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar improcedente o recurso.

Condena-se o recorrente nas custas, fixando-se em 3 (três) UCs a taxa de justiça.

Coimbra, 14 de Setembro de 2016

[Processado informaticamente e revisto pela relatora]

(Maria José Nogueira - relatora)

(Isabel Valongo - adjunta)