Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
323/10.0T2AND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
APENSAÇÃO DE ACÇÕES
RELAÇÃO DE COMISSÃO
Data do Acordão: 11/12/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CBV -ANADIA- JGIC J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 483, 496, 500, 503, 504 CC
Sumário: 1. A apensação de acções não as unifica numa única acção, mantendo cada uma a sua autonomia e individualidade, já que a razão de ser da apensação entronca no princípio da economia processual, além de visar evitar decisões contraditórias, mantendo-se distintos os pedidos formulados em cada uma das acções apensadas.

2. Da conjugação dos preceitos dos art.ºs 500º, n.º 1 e 503º, n.ºs 1 e 3, do CC, decorre que a existência de uma relação de comissão, encarada no sentido amplo de serviço ou actividade realizada por conta e sob a direcção de outrem, pressupondo uma relação de dependência entre o comitente e o comissário que autorize aquele a dar instruções a este, faz presumir a culpa do condutor de veículo por conta de outrem.

3. Sem prejuízo das particularidades de cada uma das acções apensas, sabendo-se, apenas, que as vítimas eram trabalhadores ao serviço da sociedade proprietária do veículo sinistrado e regressavam a casa depois da sua jornada de trabalho, ocorrendo o acidente (despiste, capotamento e incêndio) quando um dos trabalhadores tripulava a viatura por conta e sob a direcção da entidade patronal e na sequência do rebentamento de um pneu, fica afastada a previsão do n.º 1 do art.º 14º do DL n.º 291/2007, de 21.8, na medida em que o condutor do veículo não foi responsável pelo acidente, assim como não ocorrem as limitações ao conteúdo da indemnização previstas nos n.ºs 2 e 3 do art.º 504º, do CC.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:


I. D (…), por si, e na qualidade de representante legal de M (…), intentou, no Tribunal da Comarca do Baixo Vouga/Anadia, a presente acção sob a forma ordinária contra Companhia de Seguros K (...), S. A., pedindo que seja condenada a pagar-lhes, à 1ª A., as quantias de € 2 078,10; € 389 173,34 e € 60 000 a título de despesas de funeral, prestação de alimentos e danos não patrimoniais, respectivamente; à 2ª A., as quantias de € 92 819,94 e € 60 000, a título de prestação de alimentos e danos não patrimoniais, respectivamente; às AA., a quantia de € 75 000, em partes iguais, na qualidade de herdeiras, pelo direito à vida do seu falecido marido e pai, respectivamente; e juros moratórios à taxa legal sobre as referidas quantias, desde a citação até efectivo pagamento, tudo, em razão dos danos decorrentes do acidente de viação ocorrido pelas 16.15 horas, do dia 26.02.2010, ao km 223, da AE 1, sentido Sul/Norte, em que foi interveniente o veículo com a matrícula (...)AH, propriedade de P (…), Lda., a qual havia transferido a responsabilidade civil emergente da circulação de veículos automóveis e seguro de passageiro para a Ré através de contrato de seguro.
Alegaram ainda, nomeadamente, que o condutor do veículo AH foi o único e exclusivo responsável pelo acidente e que todos os passageiros do veículo sinistrado eram trabalhadores da referida Sociedade e regressavam a casa no termo de uma jornada de trabalho.
A Ré contestou, referindo, designadamente, que o acidente de viação em discussão é, simultaneamente, acidente de trabalho, o qual se encontra a ser regularizado e que a vítima regressava a casa após uma jornada de trabalho, debaixo e no cumprimento de prévias instruções dadas pela sua entidade patronal.
Na pendência destes autos, as AA. moveram à Ré os apensos A e B de Procedimento Cautelar de Arbitramento de Reparação Provisória.[1]
Entretanto, foram apensados, aos presentes autos, os processos n.ºs 3/12.2T2AVR [apenso C] e 2/12.4T2AVR [apenso D].
No apenso C, S (…), por si e em representação das filhas menores P (…) L (…) demandou a mesma Seguradora pedindo que seja condenada a pagar-lhes a quantia de € 150 000 acrescida de juros moratórios legais a contar da citação; as quantias a liquidar em execução de sentença, por força da perda da capacidade futura de ganho acrescida de juros moratórios legais, e, por último, as quantias relativas às sanções previstas no DL n.º 291/2007, de 21.8, alegando (ainda), em resumo, que o veículo AH era conduzido pela vítima M (…), ao serviço e no interesse da sua entidade patronal e no exercício de funções de que havia sido incumbido; ao chegar ao km 223,900, um dos pneus do veículo AH rebentou, pelo que entrou em despiste, acabando por embater, sucessivamente, nas barras metálicas do sistema de retenção central e lateral, após o que capotou, incendiando-se de seguida, sem que o condutor e respectivos ocupantes lograssem sair do seu interior; o óbito de M (…), em consequência do acidente, causou, ainda, a este e às AA. os danos patrimoniais e não patrimoniais descritos na petição inicial (p. i.).
Contestando, a Ré aduziu, nomeadamente, que o M (…) conduzia o AH debaixo das ordens e instruções expressas da sua entidade patronal, proprietária do veículo, pelo que se presume responsável pelo sinistro.
No apenso D, M (…), por si e em representação do filho menor D (…) demandou a mesma Seguradora pedindo que seja condenada a pagar-lhes a quantia de € 140 000 acrescida de juros moratórios legais a contar da citação; as quantias a liquidar em execução de sentença, por força da perda da capacidade futura de ganho acrescida de juros moratórios legais, e, por último, as quantias relativas às sanções previstas no DL n.º 291/2007, de 21.8, alegando (ainda), que A (…) era ocupante do veículo AH, faleceu em consequência do acidente e deixou como únicos herdeiros os AA.; o veículo AH era conduzido por M (…), no exercício de funções de que tinha sido incumbido pela respectiva proprietária; o óbito de A (…) causou, ainda, a este e aos AA. os danos patrimoniais e não patrimoniais descritos na p. i..
A Ré contestou afirmando, nomeadamente, que no âmbito dos autos de acidentes de trabalho já pagou aos AA. diversos montantes a título de “pensão provisória”.
Na acção principal e nos apensos C e D a Ré salientou que, dada a existência simultânea de processos de acidente de trabalho, as indemnizações que os AA. vierem a receber, por uma e outra via, não poderão ser cumuladas; as AA. replicaram e mantiveram o alegado nas p. i.; foram proferidos despachos saneadores (tabelares) e seleccionada a matéria de facto (assente e controvertida), não reclamada.
Os AA. dos apensos C e D deduziram, e viram admitida, a ampliação dos respectivos pedidos quanto à indemnização de perda da capacidade futura de ganho.
Realizada a audiência de discussão e julgamento[2] e decidida a matéria de facto [depois de introduzidas as alterações à base instrutória (b. i.) determinadas a fls. 242, 243, 343 e 357], o tribunal recorrido julgou a acção principal parcialmente procedente e provada, condenando a Ré a pagar às AA. a quantia indemnizatória global de € 229 078,10 deduzidos os montantes já pagos, em sede dos apensos A e B, e bem assim, os montantes eventualmente pagos em sede de acidente de trabalho, no caso de as mesmas optarem pela indemnização ora arbitrada, a título de lucros cessantes, acrescida de juros moratórios legais a contar da citação, segundo a taxa vigente de 4 %, até integral pagamento; e julgou as acções dos apensos C e D procedentes, por provadas, condenando a Ré a pagar aos AA. as quantias indemnizatórias globais de € 362 000 e € 293 500, respectivamente, e deduzidos os eventuais montantes recebidos, a título de perda de capacidade de ganho, em sede de acidente de trabalho, acrescida de juros moratórios legais a contar da citação, segundo a taxa vigente de 4 %, até integral pagamento.
Inconformada, a Ré interpôs a presente apelação, formulando as conclusões que assim vão sintetizadas:   
(…)
Os AA. responderam à alegação de recurso e pugnaram pela sua improcedência, sendo que as AA. dos autos principais interpuseram recurso subordinado apresentando as seguintes conclusões:
(…)
*
II. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:
1 - No dia 26.02.2010, pelas 16.15 horas, ocorreu ao km 223, da AE 1, sentido Sul/Norte, concelho de Oliveira do Bairro, um acidente de viação em que foi interveniente o veículo com a matrícula (...)AH. (*)[3]
2 - Como consequência directa e imediata do dito acidente de viação, faleceu V (…) (autos principais).
3 - A A. D (…) estava casada com o falecido V (…). (autos principais)
4 - A A. M (…) nasceu em 16.4.2008… (autos principais)
5 - …e é filha da A. D (…) e do falecido V (…). (autos principais)
6 - O falecido V (…), à data do acidente, tinha 35 anos de idade. (autos principais)
7 - À data do acidente, a A. D (…) tinha 36 anos de idade. (autos principais)
8 - O veículo AH era propriedade de P (…), Lda.…. (*)
9 - …a qual havia transferido a responsabilidade civil emergente da circulação de veículos automóveis e seguro de passageiro para a Ré através do contrato de seguro titulado pela apólice nº 0002039075. (*)
10 - Todos os passageiros do veículo sinistrado eram trabalhadores da Sociedade P (…), Lda…. (*)
11 - …e regressavam a casa no termo de uma jornada de[4] trabalho. (*)
12 - A via onde circulava o veículo é ampla, com várias faixas de rodagem, no sentido de circulação do veículo em que seguia o marido da A. e no sentido inverso… (*)
13 - …sendo o sentido de trânsito separado por um separador central. (*)
14 - O local é uma recta, com mais de 200 m de distância… (*)
15 - …que permitia avistar a via em toda a sua extensão em pelo menos 200 m. (*)
16 - Na ocasião do acidente, não chovia. (*)
17 - Na sequência do despiste do veículo AH, este capotou, e de seguida, incendiou-se, provocando a morte de todos os seus ocupantes. (*)
18 - À data do acidente de viação, o falecido V (…) fazia-se transportar, na qualidade de passageiro, no veículo com a matrícula (...)AH… (autos principais/fls. 242)
19 - …e o veículo sinistrado era conduzido por M (…) trabalhador da P (…) Lda. (*)[5]
20 - A A. D (…) suportou a quantia de € 2 078,10 com as despesas de funeral do seu malogrado marido. (autos principais)
21 - À data do acidente, e na presente data, a A. D (…) encontrava-se e encontra-se desempregada. (autos principais)
22 - À data do acidente, o falecido marido da A. D (…) auferia um salário mensal base de € 534,50 acrescido dos subsídios de férias e Natal, bem como a quantia de € 134,41 x 11 meses de subsídio de alimentação… (autos principais)
23 - …tendo, em Fevereiro de 2010, auferido a verba de € 450,90 a título de distribuição e aplicação de resultados, bem como a quantia de € 400 de prémio de produção… (autos principais)
24 - …e iria receber, ainda, pelo menos, a quantia de € 250 x 11 a título de distribuição e aplicação de resultados nos anos seguintes. (autos principais)
25 - A A. D (…) foi surpreendida com a brutal notícia da morte do seu marido… (autos principais)
26 - …formavam um casal feliz… (autos principais)
27 - …e aspirava a ter mais filhos de seu marido que muito amava. (autos principais)
28 - O malogrado marido da A. D (…) era uma pessoa muito activa, amante da vida e irradiava felicidade… (autos principais)
29 - …e era um bom pai e chefe de família. (autos principais)
30 - A dor sentida pela A. com a morte do seu marido foi avassaladora… (autos principais)
31 - …ainda hoje se mantém e persistirá para o resto dos seus dias. (autos principais)
32 - A A. D (…) sentiu-se perdida, sem saber o que fazer e que rumo dar à sua vida, sobretudo porque tinha uma filha bebé para criar. (autos principais)
33 - Ainda hoje tem dificuldades em dormir, e persistentemente as recordações lhe invadem a mente… (autos principais)
34 - …chora muitas vezes a morte do marido. (autos principais)
35 - A sua alegria de viver definhou. (autos principais)
36 - Durante meses após o falecimento do marido, a A. não teve coragem de ir viver para a casa que era de ambos… (autos principais)
37 - …tendo sido acolhida por sua irmã que muito a ajudou nessa hora difícil. (autos principais).
38 - A A. M (…) perdeu para sempre uma referência da sua vida. (autos principais).
39 - Ainda à data da propositura da presente acção não está restabelecida, mantendo uma angústia constante e um desespero pela sorte que o destino lhe traçou. (autos principais).
40 - Em consequência do acidente, a vítima M (…) sofreu as lesões constantes do relatório de autópsia junto como doc. n.º 2 com a p. i., cujo teor se dá por integralmente reproduzido, nomeadamente lesões de queimadura – carbonização e de queimaduras de 3º grau, associadas à inalação de gazes quentes… (apenso C)
41 - …as quais foram a causa directa e necessária da sua morte no dia 26.02.2010. (apenso C)
42 - O marido e pai das AA. S (…), P (…) e L (…), nasceu em 11.10.1977. (apenso C)
43 - As AA. S (…), P (…) e L (…) são as únicas e universais herdeiras da vítima M (…). (apenso C)
44 - Em virtude da morte das vítimas M (…) e A (…) resultante do acidente de viação em discussão, correm termos sob os n.ºs 227/10.7T4AVR e 229/10.3T4AVR, no Tribunal de Trabalho, os processos de acidente de trabalho entre a Seguradora por acidentes de trabalho (Ré) e os herdeiros das vítimas. (apensos C e D)[6]
45 - Na ocasião do acidente, o veículo AH circulava na A1, no sentido Lisboa - Porto, a cerca de 110/120 km/h… (apensos C e D)
46 - …pela via de trânsito mais à esquerda, atento o seu sentido de marcha… (apensos C e D)
47 - Ao chegar ao km 223,900, um dos pneus do veículo AH rebentou… (apensos C e D)
48 -…pelo que o AH entrou em despiste… (apensos C e D)
49 - …acabando por embater, sucessivamente, nas barras metálicas do sistema de retenção central e lateral… (apensos C e D)
50 - …após o que capotou. (apensos C e D)
51 - A vítima M (…) sofreu dores físicas indescritíveis no momento do acidente… (apenso C/art.º 8º)
52 - …como nos momentos em que se seguiram, nomeadamente ao ver aproximar-se a morte sem qualquer possibilidade de fuga do veículo em chamas e ao sentir o seu corpo ser consumido pelas chamas. (apenso C/art.º 9º)
53 - À data do acidente, era bem constituído e saudável… (apenso C)
54 - …era uma pessoa muito alegre… (apenso C)
55 - …muito amigo da sua mulher e das suas filhas e amigo dos seus amigos. (apenso C)
56 - Tinha uma enorme vontade de viver e ver crescer as suas filhas de apenas 4 e 1 anos de idade, respectivamente, com quem brincava e ajudava na educação e era o seu apoio. (apenso C)
57 - Em consequência do acidente a A. S (…) viu partir de forma abrupta o seu ombro amigo e seu companheiro de vida. (apenso C)
58 - O falecido M (…) ajudava a A. S (…) a enfrentar as dificuldades da vida. (apenso C)
59 - As AA. P (…) e L (…) perderam para sempre a sua referência de vida. (apenso C)
60 - Ainda hoje, a A. P(…) sente-se triste por se sentir órfã de pai. (apenso C)
61 - O marido e pai das AA., trabalhava na data e hora do acidente, como montador de Isolamentos, para a sociedade I (…), Unipessoal, Lda. (apenso C)
62 - À data do acidente auferia a retribuição (salário base) de € 491,50 x 14 meses, acrescida de € 121 x 11 meses de subsídio de alimentação. (apenso C)
63 - Recebia, ainda, uma média mensal de outras retribuições de € 909,47 nomeadamente ajudas de custo e prémios atribuídos pela sua entidade patronal. (apenso C)[7]
64 – A (…) era ocupante do veículo AH. (apenso D)
65 - …e faleceu com 32 anos de idade, no estado de casado com M (…). (apenso D)
66 – D (…) foi habilitado como sucessor, enquanto filho, de A (…) (apenso D)
67 - À data do acidente, A (…) era operário da construção civil, mais propriamente Ajudante de Isolamentos para a sociedade I (…) - Unipessoal, Lda.…(apenso D)
68 - … onde auferia um vencimento mensal de € 451, acrescido de subsídio de férias e de Natal, e ainda da quantia mensal de € 121 x 11 de subsídio de alimentação. (apenso D)
69 - No âmbito dos autos de acidente de trabalho, a Ré já pagou aos AA. os seguintes montantes, a título de pensão provisória, em consequência do falecimento da vítima A (…):
- À A. M (…), a quantia de € 4 629,37, referente ao período de 27.02.2010 a 29.02.2012;
- Ao A. D (…), a quantia de € 3 086,25, referente ao período de 27.02.2010 a 29.02.2012. (apenso D)
70 - Em consequência do acidente, A (…) sofreu lesões de queimadura – carbonização e de queimaduras de terceiro grau, associadas à inalação de gazes quentes, as quais foram a causa directa e necessária da sua morte… (apenso D)
71 - E sofreu dores físicas, tanto no momento do acidente como nos momentos que se seguiram, nomeadamente ao ver aproximar-se a morte sem qualquer possibilidade de fuga do veículo em chamas, e ao sentir o seu corpo ser consumido pelas chamas. (apenso D/art.º 5º)
72 – A (…) era bem constituído e saudável. (apenso D)
73 - Era uma pessoa muito alegre, muito amigo da sua mulher e do seu filho e amigo dos seus amigos. (apenso D)
74 - Tinha uma enorme vontade de viver e ver crescer o seu filho de 7 anos com quem brincava. (apenso D)
75 - O falecido A (…) ajudava a A. a enfrentar as dificuldades da vida, bem como ajudava na educação do seu filho D (…). (apenso D)
76 - Ainda hoje a A. vive atormentada pela perda do seu marido, acordando a meio da noite com pesadelos. (apenso D)
77 - E chora quando confrontada com a morte do seu marido, necessitando, ainda hoje, de apoio psicológico e psiquiátrico. (apenso D)
78 - O A. D (…), ainda hoje, sente-se triste por se sentir órfão de pai. (apenso D)
79 – A (…) auferia ainda uma média mensal de € 642,90 a título de ajudas de custo e prémios atribuídos pela sua entidade patronal. (apenso D)[8]
80 - No apenso A foi proferida sentença homologatória, transitada em julgado, da transacção celebrada entre as partes, com data de 04.6.2010, onde, nomeadamente, a Ré se comprometeu a pagar à A. D (…) a quantia de € 600, a título de reparação provisória até à decisão final a proferir nos autos principais.[9]
81 - No apenso B foi proferida sentença homologatória, transitada em julgado, da transacção celebrada entre as partes, com data de 17.10.2012 onde, nomeadamente, a Ré se comprometeu a pagar à A. M (…) a quantia de € 200, a título de reparação provisória até à decisão final a proferir nos autos principais.[10]
III. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.
No caso em análise estão apensadas três acções movidas pelos familiares dos sinistrados contra a Ré.
Sabemos que a junção de causas conexas visa sobretudo alcançar a unidade de instrução e discussão, e a unidade de decisão (a sentença é só uma para as várias causas que se juntaram).[11]
Porém, o que também é pacífico, a apensação de acções não as unifica numa única acção, mantendo cada uma a sua autonomia e individualidade, já que a razão de ser da apensação entronca no princípio da economia processual, além de visar evitar decisões contraditórias, mantendo-se distintos os pedidos formulados em cada uma das acções apensadas, como são distintos os valores processuais de cada uma delas, havendo que atender ao valor processual de cada acção individualmente considerada, bem como à respectiva sucumbência, para efeitos de recurso.[12]
Assim, antes de avançar para o conhecimento do objecto do recurso, importa ter presente a diversidade e a autonomia próprias de cada acção.
            IV. 1. A recorrente insurge-se contra a decisão sobre a matéria de facto e pretende que se dê como não provado o que consta dos pontos 5152 e 71 [cf. ponto II., supra].
Diz que existe um meio de prova que impõe decisão diversa - o depoimento da testemunha (…) -, contrariando as ilações retiradas pelo Tribunal, por via de presunção, sendo os relatórios de autópsia omissos quanto a esta matéria.
            Ouvido o depoimento da dita testemunha [que referiu ter “assistido ao acidente” - foi ultrapassada pelo veículo AH, “o pneu rebentou”, “viu o carro entrar em despiste à sua frente”, “bater no separador lateral e capotar”], dúvidas não restam de que a mesma teve a percepção da dinâmica do sinistro a partir do momento em que o veículo AH iniciou a ultrapassagem e até ficar imobilizado; também resulta inequívoco que teve a preocupação de evitar os destroços da viatura sinistrada, contactou de imediato os serviços de emergência, imobilizou a sua viatura e dirigiu-se no sentido daquele veículo e é então que se dá o incêndio.
            Salvo o devido respeito, afigura-se que o testemunho em causa aponta para perspectiva diversa da apresentada pela Ré/recorrente, salientando-se os seguintes excertos: “só tive tempo – isto foi muito rápido – de sair do carro e andar uns metros e o carro incendiou-se por si só”; “estava-me a dirigir para o carro para também dar mais informações de como é que estariam as pessoas”; “não me parece que já estivessem mortos, inconscientes talvez, ou até um bocadinho atarantados com as voltas, atordoados (…)”; “ (…) isto foi tudo muito rápido, (…) foi só o tempo de eu sair do carro e dar uns passos…, foram 30 segundos no máximo para o carro se incendiar (…)”.
            E, ao contrário do aduzido pela Ré, os relatórios de autópsia não são “omissos” a respeito da matéria, na medida em que dão-nos conta, por um lado, da inexistência de lesões traumáticas na estrutura óssea dos sinistrados M (...) e A (...), com excepção dos ossos das mãos e com a ressalva constante da parte final do relatório de fls. 25 do apenso C ou dos ossos dos ramos laterais do corpo da mandíbula e desarticulação do punho direito, em provável relação com a acção do calor, conforme se refere no relatório de fls. 24 do apenso D [por exemplo, “não foram encontrados sinais de fracturas” nos ossos do crânio, esterno, costelas, cartilagem e clavículas, bacia, coluna vertebral, meninges e medula e, com a excepção atrás indicada, nos membros superiores e inferiores]; por outro lado, apontam o incêndio como a única causa da morte [a morte “foi devida às lesões de queimaduras – carbonização e de queimaduras de terceiro grau, associada a inalação de gases quentes”/apenso C; “foi devida às lesões de carbonização e de queimadura do terceiro grau descritas”/apenso D].
2. O juiz poderá lançar mão do instrumento probatório das presunções judiciais, de facto, hominis ou simples, enquanto meios lógicos ou mentais da descoberta de factos entregues “às luzes e à prudência do magistrado” - valendo-se de certo facto e de regras de experiência, o juiz conclui que aquele denuncia a existência de um outro facto, é consequência típica de outro -, presunções que, condicionadas a uma utilização prudente e sensata, não deixam de constituir um instrumento precioso a empregar, quando necessário e tal for legalmente admitido na formação da convicção que antecede a resposta à matéria de facto (art.ºs 349º e 351º, do CC), o que se torna premente quando se trata de proferir decisão em que os factos se tornam dificilmente atingíveis através de meios de prova directa[13].
Ademais, a afirmação da prova de um certo facto representa sempre o resultado da formulação de um juízo humano e, uma vez que este jamais pode basear-se numa absoluta certeza, o sistema jurídico basta-se com a verificação de uma situação que, de acordo com a natureza dos factos e/ou dos meios de prova, permita ao tribunal a formação da convicção assente em padrões de probabilidade[14], capaz de afastar a situação de dúvida razoável.
3. Consta da fundamentação da decisão de facto, no tocante aos “pontos 51 e 52”, que o Tribunal a quobaseou-se nas regras da experiência comum conjugado com a análise crítica global do relatório da autópsia constante de fls. 25 e ss., mormente, na parte respeitante às conclusões, pois emerge dai que a morte da infeliz vítima M (...)foi devido às lesões de queimaduras – carbonização e de queimaduras de terceiro grau associadas a inalação de gases quentes, e por via disso, é legítimo presumir-se que a infeliz vitima não só não morreu imediatamente, como ainda, teve uma morte muito dolorosa” (fls. 369) e, relativamente ao “ponto 71”, “baseou-se nas regras da experiência comum conjugado com a análise crítica global do relatório da autópsia constante de fls. 24 e ss., mormente, na parte respeitante às conclusões, pois emerge dai que a morte da infeliz vítima A (...) foi devido às lesões de queimaduras – carbonização e de queimaduras de terceiro grau associadas a inalação de gases quentes, e por via disso, é legítimo presumir-se que a infeliz vítima não só não morreu imediatamente, como ainda, teve uma morte muito dolorosa” (fls. 371).
Decorre do exposto que o Mm.º Juiz a quo fundamentou adequadamente o decidido, tendo analisado criticamente as provas produzidas e especificado os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção (art.º 653º, n.º 2, do CPC de 1961/607º, n.º 4 e 5, do CPC de 2013).
Nada se devendo censurar, soçobra a pretensão de ver modificada a decisão de facto (art.º 712º, do CPC de 1961, na redacção conferida pelo DL n.º 303/2007, de 24.8/art.º 662º, do CPC de 2013).
V. 1. Insurge-se depois a recorrente, relativamente ao processo principal, por considerar que as AA. fundam os seus pedidos em culpa exclusiva do condutor do veículo AH na produção do acidente e que não se mostra invocada qualquer causa de pedir subsidiária da invocada culpa exclusiva do condutor do veículo seguro, nem tão-pouco se mostram alegados factos de onde decorra que o M (...)exercia a condução da viatura sob as ordens e no interesse da sua entidade patronal, pelo que o Mm.º Juiz a quo, ao condenar a recorrente baseando-se na apontada causa de pedir subsidiária - assente na culpa presumida do condutor do veículo seguro - conheceu de matéria factual que lhe estava vedado conhecer e fundou a decisão de condenação da recorrente em factos não alegados pelas partes, condenando a Ré em objecto diverso do pedido, que assentava exclusivamente na culpa efectiva do referido condutor. A alegação de factos consubstanciados na realização de uma actividade por conta e sob a direcção de outrem, relativamente ao condutor do veículo seguro, era essencial para a tipificação da relação de comissão que está na base do estabelecimento da culpa presumida prevista no art.º 503º, n.º 3, do CC e incumbia às AA. alegá-los e prová-los - a matéria de facto alegada nos autos principais é manifestamente insuficiente para o estabelecimento da presunção judicial de uma relação de comissão entre o M (…) e a sua entidade patronal, a propósito da condução do AH.
Salvo o devido respeito por entendimento contrário, afigura-se que a Ré não tem razão.
Se é certo que, em sede de audiência de discussão e julgamento, as AA. dos autos principais deixaram “cair” o principal ou primeiro fundamento da pretensão deduzida em juízo (cf. fls. 75 e 242 e ponto I, supra), poderemos também afirmar que permaneceu nos autos, e ficou demonstrada, materialidade bastante para corporizar a dita relação de comissão, a qual, de resto, não foi minimamente enjeitada pela Ré, quer nos autos principais, quer nos apensos, com particular destaque, e sem prejuízo da autonomia de cada processo, para a posição vertida na contestação do apenso C (cf. art.ºs 8º e 9º da contestação e ponto I, supra).
Na verdade, nos autos principais, as AA. alegaram, nomeadamente, que todos os passageiros do veículo sinistrado eram trabalhadores da referida sociedade (proprietária da viatura) e regressavam a casa no termo de uma jornada de trabalho; provou-se (no processo principal e nos apensos C e D) que todos os passageiros do veículo sinistrado eram trabalhadores da Sociedade P (…) Lda.; regressavam a casa no termo de uma jornada de trabalho e que o veículo sinistrado era conduzido por M (…), trabalhador da P (…) Lda. (cf. art.ºs 5º e 8º da p. i. dos autos principais e II. 10., 11. e 19., supra); ademais, ao contestar a acção, a Ré afirmou que o acidente de viação em discussão é, simultaneamente, acidente de trabalho, o qual se encontra a ser regularizado e que a vítima regressava a casa após uma jornada de trabalho, debaixo e no cumprimento de prévias instruções dadas pela sua entidade patronal (cf. art.ºs 10º e 11º e ponto I, supra); na audiência de discussão e julgamento, a Ré acordou em dar como provado que, à data do acidente, o sinistrado fazia-se transportar, na qualidade de passageiro, no veículo AH, conduzido pelo M (…) trabalhador da sociedade proprietária do veículo (cf. fls. 75 e 242).
Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas (cf. art.º 11º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12.02).
Sabemos que a subordinação jurídica é o elemento relevante para a distinção entre o contrato de trabalho e outros contratos que mantêm com este algumas afinidades e que, em geral, só existirá contrato de trabalho se o empregador puder, de algum modo, orientar a actividade do trabalho, quanto mais não seja no tocante ao lugar ou ao momento da sua prestação.[15]
2. A direcção efectiva traduz-se no poder de facto sobre o veículo tendo-o quem, de facto, gozar ou usufruir das vantagens dele e a quem por tal razão especialmente cabe controlar o seu funcionamento, poder que recai, em regra, sobre o proprietário; pode mesmo dizer-se que a propriedade faz presumir a direcção efectiva e interessada, pois o conceito de direcção efectiva e interessada cabe dentro do conteúdo do direito de propriedade.[16]
Mas a condução por conta de outrem só por si não pressupõe uma relação de comissão (art.º 500º, n.º 1, do CC), ou seja, uma relação de dependência entre o comitente e o comissário – aquele dando, ou podendo dar instruções ou ordens a este – que permita responsabilizar o primeiro pela actuação do segundo; daí que seja também necessária a prova da referida relação de dependência entre o comitente e o comissário (uma relação de mando sobre o comissário), aquele dando, ou podendo dar ordens a este, em termos de se responsabilizar o primeiro pela actuação do segundo, não bastando o mero facto de conduzir um veículo em nome ou autorizado pelo dono.[17]
3. No descrito enquadramento fáctico, dúvidas não restam de que a sociedade P (…) Lda., tinha a direcção efectiva do veículo AH e que o M (…) conduzia essa viatura sob as ordens e no interesse da sua entidade patronal (a proprietária do dito veículo), agia por conta da dona do veículo, quando regressava a casa no termo de uma jornada de trabalho.
Sendo esta a única leitura dos factos provados nos autos principais (e nos apensos), outra também não é a ilação que sempre seria possível extrair dos elementos fácticos recolhidos.
Ademais, o agora aduzido pela Ré é de algum modo contraditório com a posição outrora assumida ou, pelo menos, com quaisquer das ilações decorrentes da circunstância de ser a dita sociedade proprietária do veículo e entidade patronal de todas as vítimas do sinistro, e bem assim da realidade laboral presente na ocorrência e que justificou os subsequentes desenvolvimentos no tratamento das questões sobrevindas, inclusive, com a instauração dos respectivos processos de acidente de trabalho e o pagamento das correspondentes indemnizações.
Comprovada, assim, a mencionada relação de comissão, é lícito estabelecer a presunção legal de culpa sobre o condutor do veículo seguro nos termos do art.º 503º n.º 3, do CC - aquele que conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos danos que causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte [art.º 503º, n.º 3, 1ª parte, CC, na interpretação do Assento do STJ de 14.4.1983/trata-se de presunção de culpa do condutor do veículo por conta de outrem, pelos danos que causar, aplicável nas relações entre ele, como lesante, e o titular do direito a indemnização[18]] -, conclusão que respeita a configuração dada ao caso nos articulados da acção principal e a supra mencionada autonomia dos pedidos deduzidos nos três processos em apreciação.
VI. 1. Refere ainda a Ré que a sentença recorrida incorreu na omissão da aplicação dos n.º 2 e 3 do art.º 504º, do CC e que a decisão a proferir em todos os processos relativamente aos danos indemnizáveis aos respectivos AA. deve reger-se pelas mesmas normas legais, ou seja, as relativas à obrigação de indemnização assente na responsabilidade objectiva ou pelo risco, sendo que o preceituado nos referidos normativos determina que a obrigação de indemnização está limitada aos danos que atinjam a própria pessoa transportada, ficando excluídos, em caso de morte da pessoa transportada, todos os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelas pessoas enumeradas nos art.ºs 495º e 496º, n.º 2, do CC.
Conclui também que, de acordo com o art.º 14º, n.º 1, al. a), do DL 291/07, de 21.8, acha-se excluída da garantia do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel a cobertura dos danos decorrentes de lesões corporais sofridos pelo condutor do veículo responsável pelo acidente, assim como os danos decorrentes daqueles, pelo que, atenta a factualidade do apenso C, estão excluídos da cobertura do seguro todos os danos decorrentes das lesões corporais sofridas pelo condutor do AH e os danos que lhes estão associados.
2. O DL n.º 291/2007, de 21.8, aprovou o regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e transpôs parcialmente para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11.5 [«5ª Directiva sobre o Seguro Automóvel»], que altera as Directivas n.ºs 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE e 90/232/CEE, do Conselho, e a Directiva n.º 2000/26/CE, relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis (art.º 1º/”objecto”).
Procedeu-se, então, à actualização e substituição codificadora do diploma relativo ao sistema de protecção dos lesados por acidentes de viação baseado nesse seguro e que se justificava desde há muito.[19]
Nos termos do referido diploma legal:
- Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta tal responsabilidade, nos termos do presente decreto-lei (art.º 4º, n.º 1/”obrigação de seguro”).
- A obrigação de segurar impende, em primeira linha, sobre o proprietário do veículo, exceptuando-se os casos de usufruto, venda com reserva de propriedade e regime de locação financeira, em que a obrigação recai, respectivamente, sobre o usufrutuário, adquirente ou locatário. (art.º 6º, n.º 1/”sujeitos da obrigação de segurar”).
- Excluem -se da garantia do seguro os danos corporais sofridos pelo condutor do veículo seguro responsável pelo acidente assim como os danos decorrentes daqueles (art.º 14º, n.º 1/ “exclusões”).
- Excluem-se também da garantia do seguro quaisquer danos materiais causados às seguintes pessoas: a) Condutor do veículo responsável pelo acidente; b) Tomador do seguro; c) Todos aqueles cuja responsabilidade é garantida, nos termos do n.º 1 do artigo seguinte, nomeadamente em consequência da compropriedade do veículo seguro; d) Sociedades ou representantes legais das pessoas colectivas responsáveis pelo acidente, quando no exercício das suas funções; e) Cônjuge, ascendentes, descendentes ou adoptados das pessoas referidas nas alíneas a) a c), assim como outros parentes ou afins até ao 3.º grau das mesmas pessoas, mas, neste último caso, só quando elas coabitem ou vivam a seu cargo; f) Aqueles que, nos termos dos artigos 495.º, 496.º e 499.º do Código Civil, beneficiem de uma pretensão indemnizatória decorrente de vínculos com alguma das pessoas referidas nas alíneas anteriores; g) A passageiros, quando transportados em contravenção às regras relativas ao transporte de passageiros constantes do Código da Estrada (art.º 14º, n.º 2, do mesmo art.º).
- O contrato garante a responsabilidade civil do tomador do seguro, dos sujeitos da obrigação de segurar previstos no artigo 4.º e dos legítimos detentores e condutores do veículo (art.º 15, n.º 1/” Pessoas cuja responsabilidade é garantida”).
3. No art.º 504º, do CC (na redacção conferida pelo DL n.º 14/96, de 06.3), estabelece-se que a responsabilidade pelos danos causados por veículos aproveita a terceiros, bem como às pessoas transportadas (n.º 1); nos casos de transporte por virtude de contrato, a responsabilidade abrange só os danos que atinjam a própria pessoa e as coisas por ela transportadas (n.º 2); no caso de transporte gratuito, a responsabilidade abrange apenas os danos pessoais da pessoa transportada (n.º 3).
4. Afirma-se na sentença sob censura que nos “apensos C e D, as AA. destes autos atribuem fundamentalmente a responsabilidade pela ocorrência do acidente de viação, em causa, e consequentemente, a assunção da obrigação de indemnizar pelos danos daí decorrentes, ao risco conectado com a circulação de veículos automóveis, por força do disposto nos arts. 483º, nº2, 499º e 503º, n.º 1 e 3, 1ª parte, no respeitante «salvo se provar que não houve culpa da sua parte», todos do CC”, referindo-se, de seguida, que da factualidade apurada nesses apensosconclui-se ostensivamente que o acidente de viação em causa ocorreu por causa de um dos pneus que rebentou” e que “nada mais se apurou, nomeadamente, a causa do rebentamento do pneu”, e, consequentemente, “que o acidente se deveu ao risco inerente à circulação do dito veículo, e por essa ordem de ideias, (…) que as Autoras lograram, assim, elidir a presunção de culpa consagrada no art.º 503º, n.º 3, do CC”, pelo que “a assunção da obrigação de indemnizar decorre da responsabilidade pelo risco nos termos previstos nos art.ºs 503º, n.º 1, e 504º, n.º 1, do CC” e nos “art.ºs 6º, n.º 1, 11º, n.º 1, al. a) e 12º, n.º 2 e 14º, n.º 1, «a contrario» e 2, «a contrario», todos do DL n.º 291/2007, de 21/8”.
5. No domínio dos acidentes de viação releva o princípio da responsabilidade objectiva, fundada no risco (quem tira benefícios da utilização de coisas perigosas deve arcar também com os prejuízos inerentes a essa utilização).
A essa luz prevê o art.º 503º, n.º 1, do CC, que aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo.
Como vimos, estabelecem os n.ºs 1 e 2 do art.º 504º, do mesmo Código, que a responsabilidade por esses danos aproveita a terceiros, bem como às pessoas transportadas em virtude de contrato.
E tem-se entendido que também o condutor do veículo acidentado (vítima) é de considerar um terceiro para efeitos da citada norma - o motorista de um veículo aproveita, como terceiro, da responsabilidade objectiva estabelecida na lei, desde que sofra acidente relacionado com os perigos próprios daquele veículo.[20]
Assim, as pessoas que, ao tempo do acidente, se ocupavam (ou também se ocupavam) na actividade do veículo (por ex., os motoristas) não são excluídas do benefício da responsabilidade pelo risco (o artigo 504º, n.º 1, fala, genericamente, em "terceiros"), nem parece razoável que o fossem, pois, embora se trate de pessoas em regra ligadas por um contrato de trabalho com o comitente, tendo, portanto, direito a indemnização contra este no caso de acidente no trabalho, isso não exclui que se trate também de pessoas lesadas em acidente de viação e que o regime da responsabilidade por estes acidentes lhes seja, no caso concreto, mais favorável.[21]
As razões que justificam a existência de uma responsabilidade objectiva são igualmente válidas em relação às pessoas que na ocasião do acidente se ocupavam (ou também se ocupavam) na actividade do veículo como é o caso do respectivo motorista já que não deixou de ser o dono quem criou, com o veículo, e com uma finalidade de proveito próprio, especiais riscos. Nesta perspectiva o condutor por conta de outrem deve ser considerado um terceiro, visto que, não tendo a direcção efectiva do veículo, nem o utilizando no seu próprio interesse (ou, podendo ter simultaneamente algum interesse pessoal, é sempre um simples comissário às ordens de outra pessoa ou entidade), ele é estranho à criação do risco, não usufruindo das particulares vantagens que decorrem de um poder real sobre o veículo.[22]
Para que seja excluída a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do art.º 503º, cit., é necessário que o acidente deva considerar-se imputável ao próprio lesado ou a terceiro ou que resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo (art.º 505º, do CC).
6. No caso em análise, vistos os factos provados nos apensos C e D, na origem da ocorrência não está um facto praticado pela vítima ou por terceiro, mas sim o rebentamento de um pneu que acarretou a perda do domínio do veículo, eventualidade inerente ao funcionamento do veículo, e, como tal, compreendida no risco, como se tem geralmente entendido[23], pelo que, atento o exposto, não vemos como não acolher a solução encontrada na decisão recorrida, ao atribuir as indemnizações pedidas a título de danos patrimoniais decorrentes do direito a alimentos e não patrimoniais decorrentes do sofrimento que os próprios AA. tiveram com a perda das vítimas (marido/pai).
De resto, e sem prejuízo de sempre se dever respeitar o princípio do pedido (art.º 661º, n.º 1, do CPC de 1961), entendimento contrário, conduziria, in casu, a um tratamento diferente de situações em tudo idênticas (processo principal e apensos).
7. Ademais, a situação em análise não se encontra compreendida pela previsão do n.º 1 do art.º 14º do DL n.º 291/2007, de 21.8, na medida em que o condutor do veículo AH não foi responsável pelo acidente [obviamente, movendo-nos no domínio dos apensos C e D, que não no regime geral da responsabilidade, baseada na culpa, aplicável aos autos principais] e sabemos, apenas, que todas as vítimas eram trabalhadores ao serviço da sociedade proprietária do dito veículo e regressavam a casa terminado o seu dia de trabalho [não estando em causa a existência de transporte gratuito e não se configurando o “transporte por virtude de contrato”, além de que a lei refere-se inequivocamente ao contrato de transporte (art.º 504º, do CC)[24]], pelo que, salvo o devido respeito, também não vemos configurados os requisitos para o seu enquadramento à luz do disposto no art.º 504º, n.ºs 2 e 3, do CC.[25]
VII. Improcedendo a impugnação de facto e a já apreciada impugnação de direito, e não tendo a Ré questionado quaisquer dos valores indemnizatórios fixados pelo Mm.º Juiz a quo, nada se poderá objectar à sua condenação no pagamento das indemnizações a título de alimentos, por danos não patrimoniais sofridos pelas vítimas (mormente, os danos não patrimoniais sofridos pelos sinistrados M (…) e A (…) desde o momento do acidente até ao da morte) e seus familiares e em relação aos demais danos patrimoniais invocados, sem prejuízo do acerto a que se procederá por força da existência dos correspondentes processos de acidente de trabalho.
VIII. 1. Vejamos, agora, o recurso subordinado das AA. dos autos principais.
O tribunal fixou em € 20 000 a compensação devida à A. M (...) a título de danos não patrimoniais, valor que as recorrentes consideram diminuto, pugnando pela fixação do montante de € 30 000, tido por equitativo e justo.
Sem quebra do respeito devido, afigura-se que a sentença não desrespeitou o disposto no art.º 496º, do CC.
São compensáveis os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (art.º 496º, n.º 1, do CC).
Os danos não patrimoniais não são por sua própria natureza passíveis de reconstituição natural e, em rigor, não são indemnizáveis mas apenas compensáveis pecuniariamente, compensação que não é o preço da dor ou de qualquer outro bem não patrimonial, mas, sim, uma satisfação concedida ao lesado para minorar o seu sofrimento ou “que contrabalance o mal sofrido”.[26]
A lei remete a fixação do montante indemnizatório por estes danos para juízos de equidade, haja mera culpa ou dolo (art.º 496°, n.º 3, 1ª parte, do CC), tendo em atenção os factores referidos no art.º 494°, do mesmo Código (grau de culpabilidade do agente, situação económica deste e do lesado e demais circunstâncias do caso).
Desde há muito se firmou o entendimento de que, em razão da extrema dificuldade e delicadeza da operação de “quantificação” dos danos não patrimoniais e não obstante a infinita diversidade das situações, dever-se-ão ter presentes os padrões usuais de indemnização estabelecidos pela jurisprudência corrigidos por outros factores em que se atenda à época em que os factos se passaram, à desvalorização monetária, etc.[27]  
Assim, o julgador deve ter em conta todas as regras de boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida, sem esquecer a natureza mista da reparação, pois visa-se reparar o dano e também punir a conduta.
Para a determinação da compensação por danos não patrimoniais, o tribunal há-de assim decidir segundo a equidade, tomando em consideração a culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso, bem como as exigências do princípio da igualdade.[28]
2. Considerando o caso vertente e pese embora a enorme gravidade da perda verificada - o sofrimento inerente à perda irreversível de um progenitor -, poder-se-á dizer que sempre ficará aquém das situações de menores que perderam um dos progenitores quando já tinham maturidade para ter consciência dessa perda e já possuíam laços de afectividade sedimentados com o progenitor perdido, sendo que, como bem se refere na motivação da decisão sobre a matéria de facto, a menor quando crescer poderá vir a ter outras referências pessoais e afectivas na sua vida idóneas a suprir largamente a ausência do pai biológico (fls. 368).
Atenta a factualidade indicada, sobretudo, em II. 2, 4, 5, 29 e 38 [a A. M (…) perdeu para sempre uma referência da sua vida; veja-se, ainda, as respostas negativas aos art.ºs 25º e 26º da b. i.[29]/fls. 360, bem como a fundamentação de fls. 367 e seguinte], supra, afigura-se que a compensação (por dano não patrimonial próprio pela perda de um progenitor) no valor de € 20 000 é equititativa, razoável e ajustada à situação concreta no confronto com as situações com alguma similitude versadas em diversas decisões do nosso mais alto tribunal.[30]
IX. A decisão recorrida não merece censura, sendo que não desrespeitou quaisquer disposições legais.
Soçobram, desta forma, as alegações dos recursos.
*
            X. Face ao exposto, julgam-se improcedentes as apelações, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas do recurso independente pela Ré e as do recurso subordinado pelas AA. do processo principal (atento o respectivo decaimento e sem prejuízo do benefício do apoio judiciário concedido a fls. 52).
*
12.11.2013

Fonte Ramos ( Relator )
Maria Inês Moura
Fernando Monteiro

[1]  Em tais apensos foram proferidas sentenças homologatórias de transacções celebradas entre as partes (cf. fls. 85 do apenso A e fls. 36 do apenso B).
[2] Em sede de audiência final, os AA. dos apensos C e D desistiram do último pedido formulado na p. i. (fls. 356 e 357 dos autos principais).

[3] (*) - Factos referentes aos autos principais e apensos C e D.
[4] Colocou-se a preposição “de”, rectificando-se lapso que já constava do art.º 8º da p. i. (fls. 7 dos autos principais).
[5] No apenso C ficou provado que o veículo era conduzido por M (…), no exercício de funções de que tinha sido incumbido pela proprietária “I (…), Lda.” [cf. alínea D)/fls. 75].
[6] Acrescentou-se a matéria da alínea E) da matéria assente do apenso D e que não constava da sentença recorrida.
[7] O Tribunal recorrido deu ainda como provado que “a Autora mulher não desempenhava qualquer actividade profissional declarada, à data da morte da vítima M (…)” (resposta ao art.º 23º da b. i./cf. fls. 78 do apenso C e fls. 368 dos autos principais).
[8] Idem, relativamente ao apenso D (resposta ao art.º 14º da b. i./cf. fls. 78 do apenso D e fls. 371 dos autos principais).
[9] Rectificou-se, tendo em conta o que consta do mencionado apenso.
[10] Idem.
[11] Vide, neste sentido, entre outros, Alberto dos Reis, Comentário ao CPC, vol. 3º, Coimbra, 1946, págs. 219 e seguinte.
[12] Cf., de entre vários, os acórdãos do STJ 19.10.1994-processo 004052, de 30.5.1995-processo 004208, 13.3.1996-processo 96S013, 27.11.2007-processo 07S2887 e 09.3.2010-processo 94/2001.P1.S1, publicados no “site” da dgsi [o último, também, na CJ-STJ, XVIII, 1, 115].
[13] Cf., de entre vários, o acórdão da RL de 25.3.2003, in CJ, XXVIII, 2, 91 (e dgsi/processo 2155/2003.7).
[14] Vide, de entre vários, o acórdão do STJ de 14.01.1998, in BMJ 473º, 484, que impressiva e avisadamente refere que se os tribunais estivessem à espera de elementos perfeitos e completos, talvez não se passasse, ainda hoje, do velho ´non liquet´ em praticamente todos os casos
     E, em idêntico sentido, o acórdão da RP de 20.3.2001-processo 0120037 (publicado no “site” da dgsi): A prova, por força das exigências da vida jurisdicional e da natureza da maior parte dos factos que interessam à administração da justiça, visa apenas a certeza subjectiva, a convicção positiva do julgador. Se a prova em juízo de um facto reclamasse a certeza absoluta da verificação do facto, a actividade jurisdicional saldar-se-ia por uma constante e intolerável denegação da justiça.
     Cf. ainda o mencionado acórdão da RL de 25.3.2003.
[15] Cf., designadamente, os Acórdãos do STJ de 24.5.1995 e de 25.01.2000, in BMJ 447º, 308 e AD 467º, 1519, respectivamente.
[16] Cf., de entre vários, os acórdãos do STJ de 18.5.2006 - processo 06A1274,  31.10.2006-processo 06A3245 e 03.3.2009-processo 09A276, publicados no “site” da dgsi.
[17] Cf., de entre vários, os acórdãos do STJ de 20.9.1994, 06.11.2003-processo 03B2997, 18.5.2006 - processo 06A1274, 31.10.2006-processo 06A3245 e 03.3.2009-processo 09A276, publicados, o primeiro, no BMJ 439º, 538 e, os restantes, no “site” da dgsi.
[18] Que fixou a seguinte doutrina, hoje com o valor de acórdão para uniformização de jurisprudência: “A primeira parte do n.º 3 do artigo 503º do Código Civil estabelece uma presunção de culpa do condutor do veículo por conta de outrem pelos danos que causar, aplicável nas relações entre ele como lesante e o titular ou titulares do direito a indemnização “ (cf. DR n.º 146/83, Série I, 1º Suplemento, de 28.6).


[19] Cf. o preâmbulo do DL n.º 291/2007, de 21.8.
[20] Vide, neste sentido, Vaz Serra, RLJ, 102º, pág. 28 e Antunes Varela, Das Obrigações em geral, I, 4ª edição, Almedina, pág. 591, nota (1) e o acórdão do STJ de 09.01.1997-processo 96B501, publicado no “site” da dgsi.
[21] Vide Vaz Serra, loc. cit., págs. 28 e seguinte.
[22] Cf., entre outros, os acórdãos do STJ de 27.6.1989, in BMJ, 388º, pág. 517 e o cit. acórdão do STJ de 09.01.1997-processo 96B50 [aresto que se pronunciou favoravelmente à compensação dos danos não patrimoniais dos descendentes da vítima que conduzia um veículo pesado de passageiros pertencente à Ré e no exercício das suas funções de motorista desta, ao serviço da mesma, dando-se o acidente por via do rebentamento de um pneu dianteiro, o que ocasionou a perda do domínio da viatura por parte do condutor].
[23] Vide, nomeadamente, A. Varela, ob. e vol. cits., págs.  589 e 602 e o cit. acórdão do STJ de 09.01.1997-processo 96B50.
[24] Defende-se também que, tratando-se de pessoa ligada à entidade transportadora por contrato de trabalho, como, por exemplo, o revisor e o motorista, a responsabilidade em relação a eles, embora também objectiva, define-se pelos respectivos contratos - neste sentido, vide Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, 1982, pág. 488, em anotação ao art.º 504º, na redacção anterior à introduzida pelo DL n.º 14/96, de 06.3, neste particular aspecto, similar à actual.
   Aludindo a esta perspectiva, vide Vaz Serra, RLJ, 102º, pág. 29, nota (1).
[25] Também se dirá, pelo que fica exposto, que não se antolha aplicável às situações dos autos o entendimento expresso, entre outros, nos acórdãos do STJ de 25.6.2009-processo 286/09.5YFLSB, da RL de 29.6.2010-processo 498/03.5TCSNT.L1-7 e da RE de 18.4.2013-processo 541/08 (que citou e seguiu de perto aquele primeiro aresto), publicados no “site” da dgsi.
[26] Cf., nomeadamente, o acórdão do STJ de 16.4.1991, in BMJ, 406º, pág. 618.
[27] Vide, de entre vários, os acórdãos da RL de 20.02.1990 e da RP de 07.4.1997, in CJ, XV, 1, 188 e XXII, 2, 204, respectivamente.
[28] Cf., entre outros, o acórdão do STJ de 30.9.2010-processo 935/06.7TBPTL.G1.S1, publicado no “site” da dgsi.
[29] Com a seguinte redacção (fls. 77):
   - A sua filha, quando tiver idade para se aperceber da morte do seu pai, sofrerá um desgosto enorme, por não poder sentir a presença, o carinho, o afecto do seu pai? (25º)
   - …e vai-se sentir diferente das outras crianças quando se aperceber que não tem pai, ou sequer recordações deste? (26º).
[30] Cf., de entre vários, os acórdãos do STJ de 05.6.2008-processo 08A1177, 05.02.2009-processo 08B4093, 27.10.2010-processo 488/07.9GBLSA.C1.S1 e de 20.02.2013-processo 269/09.5GBPNF.P1.S1, publicados no “site” da dgsi.