Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1720/12.2PBAVR.P1.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
Data do Acordão: 01/29/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE MÉDIA INSTÂNCIA CRIMINAL – AVEIRO, DA COMARCA DO BAIXO VOUGA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: NULIDADE DA SENTENÇA
Legislação Nacional: ARTIGOS 358º, Nº 1 E 3 E 379º, Nº 1, B) DO C. PROCESSO PENAL
Sumário: 1. - A alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação efetuada na sentença constitui alteração não substancial dos factos.
2.- A falta de comunicação dessa alteração ao arguido antes da prolação da sentença, determina a nulidade desta.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra
 
I. RELATÓRIO


No Juízo de Média Instância Criminal – Aveiro, da comarca do Baixo Vouga o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, do arguido A..., com os demais sinais nos autos, imputando-lhe a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nº 1, a) do C. Penal.

A assistente B... aderiu à acusação pública e deduziu pedido de indemnização contra o arguido, com vista à sua condenação no pagamento da quantia de € 8.000, por danos não patrimoniais, acrescida de juros legais, vencidos e vincendos, até integral pagamento.
   
Por sentença de 11 de Julho de 2013 foi o arguido condenado, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nº 1, a) e 2 do C. Penal, na pena de 2 anos e 4 meses de prisão, suspensa na respectiva execução pelo mesmo período, sujeita à condição de o arguido se submeter a plano de reinserção social a elaborar pelos serviços respectivos e à condição de pagamento à ofendida, no prazo de um ano, da quantia de € 4.000.
Mais foi o arguido condenado no pagamento à assistente e demandante civil da quantia de € 4.000, por danos não patrimoniais sofridos, acrescida de juros de mora a contar da data da notificação do pedido.

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            Inconformado com a decisão, recorreu o arguido, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:
            “ (…).
            I – Existe contradição entre a fundamentação e a decisão, na parte que alude aos juros da indemnização arbitrada;
II – Foram erradamente julgados os factos provados nºs. 2 (segmento final); 8 (na parte relativa à "intenção de humilhar c ofender a honra e consideração da ofendida", e "a vossa mãe é uma ladra"; 10, 12, 14, 16, 17, 18, 19, 20, 21 e 23;
III – Na decisão da causa, não foram considerados, e deveriam tê-lo sido, os seguintes factos que resultaram provados na audiência de julgamento, com interesse para a mesma, contrariando o disposto contraia o disposto no nº 4 do artº 339º do C.P.Penal:
a) - Entre Março e 10 de Outubro de 2010, o arguido deu conta de terem aparecido no parabrisas do seu carro três bilhetes de papel com afirmações de que a ofendida dança bem e melhor ainda com o par e em três sítios diferentes;
b ) - A ofendida foi, em 2010, frequentar a dança contra a vontade do arguido;
c) - O arguido, quando a ofendida regressava da dança, ficava transtornado e fora de si e dizia que se sentia cornudo;
d) - O arguido tem formação conservadora nada tolerante com a frequência da dança por parte da ofendida;
e) - A arguida era assistida ou consultava um psiquiatra por causa da morte do pai.
IV – Foi erradamente interpretada e aplicada a norma do artº 152º, nº 1, a) e nº 2, do C. Penal, uma vez que se não verificam, no caso, os elementos típicos do crime;
V – A verificarem-se, sempre o arguido teria agido em estado que lhe não permitiu avaliar o ilícito da sua conduta, conforme o disposto na parte final do nº 1 do Artº 20º do C. Penal.
VI – Não havendo crime, não há lugar a indemnização e, se direito à mesma existir no caso, sempre o seu valor, fixado por equidade, se revela exagerado, já que não ficou demonstrado que a conduta do arguido tenha sido a causa dos danos invocados pela ofendida, tanto mais que já consultava o psiquiatra por causa da morte do pai, além de que, mesmo considerando os factos julgados provados na douta sentença os mesmos não são adequados a produzir os efeitos que a ofendida aduz no seu requerimento de indemnização civil.
VII – O relatório que constitui o documento de fls. 156 foi naturalmente encomendado e pago pela ofendida, desconhece-se a idoneidade da sua subscritora, bem como o seu rigor científico. Não tem valor probatório. Se a ofendida pretendia comprovar seriamente o que dele consta, teria requerido exame psicológico, naturalmente a efectuar sob requisição do Tribunal a estabelecimento da especialidade e sujeito ao contraditório. Também por esta via deve ser alterada a decisão do facto nº 20.
VIII – Não tendo o arguido hábitos alcoólicos e estando socialmente bem integrando, respeitando os valores sociais presentes, não se justifica a sujeição do arguido a plano de reinserção social a elaborar pelo DGRS e que deva englobar um plano de tratamento ao alcoolismo, o que. Aliás, teria efeito pernicioso, que tem sido desnecessário na vida do arguido, dada a sua actividade profissional, que tem sido impoluta.
Deve, por consequência, ser revogada a douta sentença e substituída por outra que absolva o arguido,
Assim se fazendo Justiça.
(…)”.
*

            Respondeu ao recurso a assistente formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:
“ (…).
1 – Não existe qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão, na parte em que alude aos juros da indemnização arbitrada;
2 – Bem andou a Meritíssima Juiz ao julgar provados os factos números 2 e número 8, na parte em que se julgou provada a intenção de humilhar e ofender a honra e consideração da ofendida, 10, 12, 14, 16, 17, 18, 19, 20, 21 e 23;
3 – Não ficaram provados os seguintes factos:
a) Entre Março e Outubro de 2010, o arguido deu conta de terem aparecido no parabrisas do seu carro três bilhetes de papel com afirmações de que a ofendida dança bem e melhor ainda com o par em três sítios diferentes;
b) A ofendida foi, em 2010 frequentar a dança contra a vontade do arguido;
c) O arguido, quando a ofendida regressava da dança ficava transtornado e fora de si e dizia que se sentia cornudo;
d) O arguido tem formação conservadora nada tolerante com a frequência da dança por parte da ofendida;
e) A arguida era assistida ou consultava um psiquiatra por causa da morte do pai;
4 – Foi bem interpretada e aplicada a norma do artigo 152°, nº 1, alínea a) e nº 2 do Código Penal, uma vez que se verificaram no caso concreto os elementos típicos do crime;
5 – O arguido agiu com perfeita consciência da ilicitude dos factos praticados, pelo que não estamos perante uma situação de inimputabilidade, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 20° do Código Penal;
6 – Havendo crime, há lugar a indemnização, e o valor fixado é justo e equitativo, atendendo à gravidade dos factos e ao rendimento disponível do arguido;
7 – A conduta do arguido foi a causa dos danos invocados pela ofendida;
8 – A subscritora do relatório que constitui o documento de fls. 156 é pessoa idónea e o mesmo é provido de rigor científico, pelo que tem valor probatório;
9 – O arguido tem hábitos alcoólicos, pelo que se justifica a sua sujeição a plano de reinserção social a elaborar pelo DGRS e que deva englobar um plano de tratamento ao alcoolismo.
10 – Pelo que, bem andou a Meritíssima Juiz do Juízo de Média Instância Criminal de Aveiro ao condenar o Recorrente pelo crime de violência doméstica na pena de prisão suspensa, na condição do mesmo efectuar o pagamento de 4.000,00 € à ofendida no prazo de um ano e de se sujeitar a plano de reinserção social a elaborar pelo DGRS e que deva englobar um plano de tratamento ao alcoolismo, e no pagamento de uma indemnização civil à Ofendida, no valor de 4000,00 €, acrescido de juros de mora contados desde a data da notificação ao arguido do pedido de indemnização civil deduzido pela ofendida.
Nestes termos e nos mais do direito aplicável, e sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, Ilustres Desembargadores, deve ser negado provimento ao presente recurso, confirmando-se a sentença sob recurso.
Destarte, Vossas Excelências, Ilustres Desembargadores, farão a esperada JUSTIÇA!
            (…)”.
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            Respondeu também ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público alegando que a prova produzida em audiência sustenta a decisão de facto e o raciocínio exposto na motivação, limitando-se o recorrente a justificar a sua conduta invocando o seu conservadorismo, que as diversas e graves situações levadas aos factos provados preenchem o tipo do crime pelo qual foi o recorrente condenado, que face ao provado abuso do consumo de álcool do recorrente se mostra justificada e adequada a condição de sujeição a tratamento, e concluiu pelo não provimento do recurso.
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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, acompanhando a posição do Ministério Público junto da 1ª instância, e concluiu pela improcedência do recurso.
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            Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.
 
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO


            Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.
            Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:
            - A incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto;
            - A inimputabilidade do arguido;
            - A atipicidade da conduta;
            - A indevida fixação da condição de sujeição a tratamento ao abuso de álcool;
- A contradição existente entre a obrigação de pagamento à ofendida da quantia de € 4.000 em um ano, como condição da suspensão da execução da pena de prisão, e a condenação no pagamento à ofendida da quantia de € 4.000 e juros desde a notificação do pedido, a título de indemnização.

Oficiosamente, haverá que conhecer da nulidade da sentença prevista no art. 379º, nº 1, b) do C. Processo Penal.
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            Para a resolução destas questões, importa ter presente o que, de relevante, consta da sentença recorrida. Assim:

            A) Nela foram considerados provados os seguintes factos:
            “ (…).
1 – A ofendida B... e o arguido A... estiveram casados entre si no período compreendido entre 10 de Setembro de 1988 e 7 de Fevereiro de 2013 (data em que transitou em julgado a sentença proferida em 17 de Dezembro de 2012 que decretou o divórcio), sendo que à data dos factos residiam na Rua (...), Aveiro.
2 – Pelo menos, desde 2010, o arguido passou a adoptar um comportamento, ora mais agressivo e controlador, ora de manifesto desinteresse pela cônjuge e filhos, comportamento esse potenciado pelo consumo exagerado de bebidas alcoólicas.
Assim:
3 – Nos inícios de 2010, quando a ofendida foi submetida a exame endoscópico, sob anestesia geral, no bloco operatório, o arguido apenas a visitou uma vez, revelando desinteresse pela cônjuge;
4 – Em Maio de 2010, quando a ofendida esteve internada no Serviço de Especialidades Médicas durante sete dias, o arguido não efectuou qualquer visita nem demonstrou interesse ou preocupação pelo seu estado de saúde ou prognóstico.
5 – Nos dias seguintes, quando a ofendida se encontrava em convalescença na supra referida cada de habitação, o arguido, que se encontrava embriagado, a gritar e na presença dos filhos, acusou-a de ter um amante e disse-lhe «que não queria ser cornudo, que ela tinha de saltar fora, que tinha de ir para a rua» afirmando que «tinha provas, que fazia como o "outro", arranjava amigos, que é para isso que servem, nem que fosse a troco de qualquer coisa».
6 – Confrontado com a necessidade de comprovar tais afirmações, o mesmo retorquiu que «só o faria quando (a ofendida) sentasse o cú no mocho, o que nunca aconteceria pois não tinha dinheiro nem para fazer cantar um cego».
                7 – Em data não concretamente apurada, após tomar conhecimento de que a ofendida consultara um advogado este afirmou que «a partir de agora estás fodida comigo».
8 – No Verão de 2011, por diversas vezes, o arguido dirigiu-se aos filhos na presença da ofendida e, com a intenção de ofendê-la na sua honra e consideração e humilhá-la, afirmou que «a vossa mãe é uma ladra, anda a roubar-me, é uma leviana, tem um amante e que era cornudo» afirmando, ainda, que tudo o que estava na casa era dele, que o tinha ganho, e que os carros também eram dele».
9 – Em data não concretamente apurada dirigindo-se à sua filha C... disse-lhe que não queria a ofendida em casa pois a casa era dele, afirmando que a matava. Acrescentou que, tanto a ofendida como a filha C... iam para a rua pois esta última também fora uma desilusão.
10 – Em data também não concretamente apurada o arguido, no domicílio de ambos, dirigiu-se à ofendida B... dizendo-lhe, com o intuito de lhe causar medo ou receio «eu mato-te, caralho! Tenho uma caçadeira no carro. Amanhã tens de sair de casa, não te quero aqui. A casa é minha, eu é que mando aqui».
11 – Acontecia por vezes e também em datas não concretamente apuradas, quando chegava primeiro a casa, mesmo às 20.00 horas, fechava a porta de entrada com a chave e deixava-a no interior da fechadura pelo lado de dentro, impedindo a ofendida e os filhos de acederem ao interior da habitação, justificando-se com o facto de «ser ele o último a chegar e que quem não estiver, que estivesse» apontando a rua com o dedo como a alternativa da ofendida.
12 – Na mesma altura, o arguido controlava o conta-quilómetros da viatura utilizada pela ofendida, verificava o registo das chamadas da ofendida e efectuou uma cópia dos números que constavam da sua agenda pessoal.
13 – Frequentemente dizia à ofendida que «não te quero cá. Eu tinha vergonha se alguém me pusesse na rua, de aqui continuar, borrava a minha cara, caralho. Não tens vergonha, não te quero aqui, rua. A casa é minha».
14 – Pelo menos uma vez, por um período de 3 semanas, não adquiriu quaisquer bens essenciais para o seu agregado familiar e afirma, aos berros» «vai comer à tua tia. A partir de agora não há cartão para ninguém. Não estão bem, rua! Vão todos com o caralho, desapareçam. Eu agora não faço nada, mando porque sou eu que pago».
15 – Em data igualmente não concretamente apurada, quando a ofendida se encontrava no interior do seu quarto, o arguido empurrou a porta de entrada do mesmo (que fora trancada pela ofendida) e aos berros dizia-lhe repetidamente «eu mato-te, eu fodo esta merda toda, vou para a cadeia mas vou consolado».
16 – Em dia não concretamente apurado de Setembro de 2012, quando a ofendida se deslocava da sala para a cozinha foi interpelada pelo arguido que, aos gritos e empunhando uma faca que estava a utilizar para descascar uma maçã dizia-lhe repetidamente «eu mato-te, eu amanho-te».
17 – Sempre que injuriou, ameaçou ou humilhou a ofendida, sabia bem o arguido o que estava a fazer e, apesar disso, não se coibiu de levar por diante tais comportamentos.
18 – Agiu do modo descrito, bem sabendo que infligia maus tratos à ofendida e que, assim, a molestava moral e psicologicamente, o que fazia com o propósito de exercer, de forma abusiva, uma relação de poder e de pelo uso da violência psicológica manter a ofendida submissa à sua vontade.
19 – O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo as suas condutas censuráveis, proibidas e punidas criminalmente.
20 – A ofendida, por causa deste comportamento do arguido vive em crescendo estado de sofrimento e angústia.
21 – Temeu muitas vezes pela vida e segurança física, sentindo medo de estar em casa e que o demandado concretizasse as suas ameaças.
22 – Beneficia do programa de protecção a vítimas pelo serviço de teleassistência.
23 – É acompanhada em consultas de psicologia do Departamento de Psiquiatria do Centro Hospitalar do (...).
24 – O arguido não tem antecedentes criminais.
25 – É professor, auferindo mensalmente cerca de 2200 € por mês. Tem dois filhos, estudantes universitários, a cargo.
26 – Desde o divórcio que não contacta com a ofendida.
(…)”.

B) Nela foram considerados não provados os seguintes factos
“ (…).
Os factos descritos em 7, 9, 10, 11, 15, 16 tenham ocorrido, respetivamente, em Julho de 2010, 21 de Outubro de 2011, 21 de Outubro à noite, Verão de 2012, 16 de Setembro de 2012 e 21 de Setembro de 2012.
O arguido tenha proferido a expressão "Eu amanho-te"
(…)”.

C) Dela consta a seguinte motivação de facto:
“ (…).
O tribunal fundou a sua convicção:
Nos documentos de fls. 32 e ss, 35 e ss, 75 e ss, 99 e ss – certidões de nascimento do arguido e ofendida e da sentença que decretou o divórcio.
No documento de fls. 117 que comprova que a ofendida beneficia do programa de protecção a vítimas pelo serviço de teleassistência.
No documento de fls. 156 onde se refere ser a ofendida seguida em consulta de psicologia.
No CRC de fls. 140.
No depoimento da ofendida e dos filhos do casal, C... e D... e que relataram de forma clara, convincente, concordante e complementar a vida no seio da família relatando os comportamentos verbalmente agressivos e insultuosos que o arguido mantinha para com a ofendida e às vezes também para com os filhos. Falaram que o arguido consome bebidas alcoólicas em excesso o que o torna ainda mais agressivo. Relataram que era frequente o marido e pai não permitir que entrassem livremente em casa e que começaram a ter a preocupação de não entrarem sozinhos em casa, com medo do arguido.
Confirmaram de forma integral os factos constantes da acusação, não conseguindo precisar as datas.
Referem que o arguido sentia ciúmes da ofendida, por esta frequentar, contra a sua vontade, aulas de dança, situação que agravava o seu comportamento. Mais disseram a ofendida e os filhos que estes ciúmes e insultos com eles relacionados ofendiam profundamente a mãe que ocupava o tempo, exclusivamente, no trabalho, em casa com os filhos e cuidando dos pais, constituindo as aulas de dança um momento de distracção importante para a ofendida.
Depuseram ainda os filhos do casal quanto ao medo que a mãe sentiu e ainda sente do pai, tendo medo de se encontrar com este e reagindo com pânico quando, por exemplo, vê uma viatura similar à do arguido.
As testemunhas E..., F... e G..., colegas de trabalho da ofendida, enfermeiras no (...), depuseram afirmando que a mesma às vezes chegava ao hospital muito nervosa, dizendo que o marido a perseguia. A ofendida, nos últimos anos andava triste, deprimida. Normalmente era uma pessoa reservada mas ultimamente sentia necessidade de falar sobre os seus problemas familiares.
Também a testemunha I..., amiga da ofendida que conhece por esta ser colega da filha e por ambas frequentarem aulas de dança, depôs afirmando que a ofendida lhe falou do comportamento insultuoso e agressivo que o arguido tinha para consigo. Mais disse que esta demonstra constante nervosismo causado pelo receio que o arguido a persiga, querendo, por exemplo, posicionar-se sempre em frente à porta da rua para ver quem entra.
Depoimento similar tiveram as testemunhas J...e L..., ambas amigas da ofendida.
Foi ouvida também a testemunha H..., irmã do arguido. Disse que tem conhecimento do comportamento do arguido através das queixas que lhe eram apresentadas pela cunhada e pelos sobrinhos, não tendo motivos para desconfiar destes. Sabe que o comportamento do irmão se altera com a bebida. Tentou falar algumas vezes com o irmão mas sem sucesso. Sabe que este não gosta que a mulher frequente aulas de dança, demonstrando ficar aborrecido quando falava no assunto.
O arguido depôs no fim da audiência, admitindo, na generalidade, os factos constantes da acusação. Disse que o seu comportamento era causado por ciúmes que sentia da mulher, não querendo que esta frequentasse as aulas de dança. Afirmou que por três vezes recebeu bilhetes anónimos, colocados na sua viatura, aludindo ao facto de a sua mulher dançar, aos locais onde o fazia e ao par desta. Estas mensagens deixavam-no fora de si, completamente transtornado e motivavam os comportamentos descritos.
Afirmou ainda que nunca chamou ladra à ofendida, existindo, no entanto uma confusão com o recebimento de uns reembolsos da AD8E que motivaram que o mesmo pensasse que a mulher se tinha apoderado dessas quantias,
Quanto ao consumo excessivo de bebidas alcoólicas, negou-o.
Prestou ainda depoimento no que toca à sua situação pessoal.
(…)”.

D) E a seguinte fundamentação de direito:  
“ (…).
Em causa está a prática pelo arguido de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152º nº 1, al. b) e 2 do Código Penal
Estabelece esta norma no seu n.º 1 que é punido "quem de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) a progenitor de descendente comum em 1 º grau; ou
d) a pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência que com ele coabite.
A criminalização destes comportamentos reside na consciencialização ético-social dos tempos recentes da sua gravidade individual e social. A família deixou de constituir um feudo sagrado onde o Direito Penal se devia abster de intervir.
Visa-se proteger a dignidade humana, incluindo o âmbito punitivo deste tipo de crime comportamentos que, de forma reiterada, lesam esta dignidade. A ratio do art. 152º vai para além dos maus tratos físicos, compreendendo os maus tratos psíquicos (p. ex., humilhações, provocações, ameaças, curtas privações de liberdade de movimentos, etc). O bem jurídico protegido é assim a saúde, entendida em sentido complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental do cônjuge.
Estamos perante um crime específico, isto é só pode ser praticada por pessoa que se encontre numa determinada situação para com o sujeito passivo daqueles comportamentos – ser cônjuge ou viver em união de facto.
O sujeito passivo será um dos que estão previstos no art. 152º n.º1.
Relativamente à anterior redacção constata-se que se alargou o âmbito punitivo.
De facto, expressamente, a lei consagrou a desnecessidade de reiteração dos actos, ao contrário do que era entendido doutrinal e jurisprudencialmente.
Também alargou o âmbito dos potenciais ofendidos.
Por outro lado enumeram-se condutas que podem integrar a prática deste crime.
O n.º 2 agrava as penas se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima.
Ora, os factos descritos são actos altamente lesivos da dignidade pessoal da ofendida, envolvendo episódios de grave violência verbal concretizada em e insultos, ameaças e episódios em que a liberdade de movimentação da ofendida, nomeadamente o direito a usufruir em sossego da sua residência, foi gravemente coarctada.
Assim, tem de concluir-se que os factos praticados integram o crime pelo qual o arguido vem acusado e integram-no na forma agravada porque foram praticados no domicílio do casal.
(…).
Há que decidir agora qual a pena a aplicar ao agente pelo crime de violência doméstica que lhe é imputado.
O crime de violência doméstica é punido com pena de prisão de 2 a 5 anos É perante esta moldura que se irá decidir qual a pena a aplicar.
Segundo o art. 71º nº 1 do CP a determinação da pena far-se-á em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
Tenta-se por este meio que a punição assuma uma vertente pessoal ao mesmo tempo que dá resposta a exigências de carácter comunitário e de reintegração do delinquente.
Neste sentido estabelece o art. 40º do CP que "a aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade". Ao mesmo tempo o nº 2 do mesmo artigo impõe como limite de qualquer pena a medida da culpa.
Estes vectores da medida da pena são concretizados pelos factores de determinação da medida concreta da pena que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele. Alguns desses factores são elencados no art. 71º nº 2 do CP, a título exemplificativo.
Vejamos, então, concretamente, que pena aplicar ao arguido pelo crime pelo qual vem acusado.
Ora, no caso presente há a ponderar que em causa está um período considerável de tempo e que os atos, envolvem um grau de violência apreciável.
O dolo utilizado reveste a forma de dolo directo.
O arguido não tem antecedentes.
Actualmente arguido e ofendida já não vivem juntos.
Face ao exposto parece adequada a aplicação ao arguido de uma pena de dois anos e quatro meses de prisão pela prática de um crime de violência doméstica.
Face à ausência de antecedentes criminais e atendendo a que actualmente o arguido e ofendida não vivem juntos entendo que a censura do facto e a ameaça da prisão são suficientes para acautelar a possibilidade da prática de novos crimes.
Pelo exposto, suspendo a execução da pena de prisão pelo período de 2 anos e 4 meses com a condição de o arguido se sujeitar ao plano de reinserção social a elaborar pela DGRS e que deve englobar um plano de tratamento ao alcoolismo e de pagar à ofendida a indemnização a arbitrar em sede de pedido de indemnização civil, no prazo de um ano.
(…)”.
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            Da nulidade da sentença

            1. A fls. 88 a 92 o Digno Magistrado do Ministério Público deduziu acusação contra o arguido A..., imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nº 1, a) do C. Penal.
            A assistente B... declarou aderir à acusação pública e deduziu pedido de indemnização contra o arguido (fls. 106 a 115).
            Por despacho de 15 de Maio de 2013 (fls. 134 a 135), a Mma. Juíza recebeu a acusação pública deduzida contra o arguido, pelos factos e disposições legais constantes da peça acusatória de fls. 88 e ss dos autos, que aqui se têm por reproduzidos.
            Na sentença recorrida o arguido foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nº 1, a) e 2 do C. Penal.
            Em nenhuma das sessões da audiência de julgamento, que decorreram em 20 de Junho de 2013 (acta a fls. 188 a 191), em 1 de Julho de 2013 (acta a fls. 196 a 199), em 5 de Julho de 2013 (acta a fls. 200 a 202) e em 11 de Julho de 2013 (acta a fls. 215 a 216), foi feita a comunicação da alteração da qualificação jurídica pois, como resulta do que antecede, o arguido, que vinha acusado da prática de um crime de violência doméstica, simples, previsto no nº 1 do art. 152º do C. Penal – punível com prisão de um a cinco anos – foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, agravado, previsto no nº 2 do mesmo artigo – punível com prisão de dois a cinco anos.

            A inobservância do disposto no art. 358º, nº 1 e 3 do C. Processo Penal pelo tribunal a quo determina, nos termos do art. 379º, nº 1, b) do mesmo código, a nulidade da sentença.
            A declaração de nulidade implica a reabertura da audiência de julgamento presidida pela mesma Mma. Juíza presidente, o cumprimento do disposto no art. 358º, nº 1 e 3 do C. Processo Penal, seguindo-se depois os demais termos previstos na lei e a prolação de nova sentença.

            Deixa-se ainda referida – a fim de evitar a sua repetição – a contradição insanável que se verifica entre a parte final do ponto 16 dos factos provados da sentença recorrida – segmento «(…) eu amanho-te» e o segundo facto não provado da mesma sentença – com o teor «O arguido tenha proferido a expressão ‘Eu amanho-te’».
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            A nulidade da sentença e respectivas consequências processuais, prejudicam o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.
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            III. DECISÃO

           
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em declarar nula a sentença recorrida e, em consequência, determinam a reabertura da audiência de julgamento e o cumprimento do disposto no art. 358º, nº 1 e 3 do C. Processo Penal, seguindo-se depois os demais termos, e a prolação de nova sentença.
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            Recurso sem tributação.
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Coimbra, 29 de Janeiro de 2014


 (Heitor Vasques Osório - Relator)

 (Fernando Chaves)