Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1954/09.7TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
USO INDEVIDO DO PROCESSO
RESPONSABILIDADE CIVIL
CREDOR
Data do Acordão: 06/12/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VISEU – 3º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 20º, Nº 1 E 22º DO CIRE; 483º, Nº 1 DO C. CIVIL
Sumário: I – A dedução de um pedido de declaração de insolvência por um credor do devedor visando pressionar este ao pagamento de determinado valor no quadro da discussão entre os dois do montante de um crédito, consubstancia um uso desviado do processo de insolvência, relativamente a um fim legítimo: propiciar a execução universal do património de um devedor impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.

II – A dedução desse pedido de insolvência, apurando-se a não verificação de qualquer das situações elencadas nas alíneas do nº 1 do artigo 20º do CIRE, confere ao comportamento do credor ao requerer essa insolvência a natureza de comportamento temerário, expressando uma total indiferença pela exposição do devedor aos desvalores normalmente associados pelos diversos agentes económicos, à circunstância de alguém (concretamente uma empresa) ser sujeito a um processo de insolvência, mesmo quando esta não vem a ser decretada.

III – A temeridade desta conduta do credor e a indiferença que ela expressa quando aos resultados dela previsivelmente decorrentes para o devedor colocam tal requerimento infundado de insolvência no domínio do dolo eventual.

IV – Provocando esse requerimento infundado de insolvência danos ao devedor, designadamente referidos à percepção do mercado quanto a solvabilidade dele, deve o requerente dessa insolvência indemnizar esses danos, nos termos do artigo 22º do CIRE e 483º, nº 1 do CC.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa


            1. Em 09/06/2009[1], D…, Lda. (A., Reconvinda e Apelante neste recurso) demandou I…, S.A. (R., Reconvinte e Apelada), pedindo a condenação desta última a satisfazer-lhe a indemnização de € 59.500,00 (danos patrimoniais e não patrimoniais), baseada em responsabilidade civil extracontratual, da qual terá constituído facto gerador um pedido infundado por parte da R. de declaração da insolvência da A.

            1.1. A R. contestou e deduziu reconvenção. Na primeira vertente invocou que o pedido de insolvência foi apresentado no pressuposto de ser essa a situação da A. Na segunda vertente (reconvenção), tendo presente a relação de subempreitada estabelecida entre a A. (empreiteira) e a R. (subempreiteira)[2], invoca esta pagamentos em falta da A. que lhe são devidos em função desse contrato, bem como prejuízos resultantes da indisponibilidade desses valores, formulando os correspondentes pedidos reconvencionais (bem como o de condenação da A. como litigante de má fé)[3].

            1.2. A culminar o julgamento foi a acção julgada pela Sentença de fls. 525/553esta constitui (integrada pelo despacho de fls. 506/522) a decisão objecto do presente recurso – que julgou a acção totalmente improcedente e a reconvenção parcialmente procedente[4].

            1.3. Inconformada, apelou a A./Reconvinda, concluindo o seguinte na motivação desse recurso:
“[…]


II – Fundamentação

2. Relatado o essencial do iter processual que conduziu à presente instância de recurso, cumpre apreciar os fundamentos da apelação, tendo em conta que as conclusões formuladas pelo Apelante – foram elas transcritas no item anterior – operaram a delimitação temática do objecto do recurso, isto nos termos dos artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC)[5]. Com efeito, fora das conclusões só valem, em qualquer recurso, questões que se configurem como de conhecimento oficioso (di-lo o trecho final do artigo 660º, nº 2 do CPC). Paralelamente, mesmo integrando as conclusões, não há que tomar posição sobre questões prejudicadas, na sua incidência no processo, por outras antecedentemente apreciadas e decididas. E, enfim – esgotando o modelo de construção do objecto de um recurso –, distinguem-se os fundamentos deste (do recurso) dos argumentos do recorrente, sendo certo que a obrigação de pronúncia do Tribunal ad quem se refere àqueles (às questões fundamentos) e não aos diversos argumentos jurídicos que vão sendo introduzidos ao longo da motivação do recurso.

Neste caso, percorrendo as conclusões, verificamos assentar o recurso – interpô-lo a A./Reconvinda visando o triunfo da sua pretensão e a improcedência da reconvenção – em duas vertentes temáticas: (a) a impugnação de alguns factos (respostas aos quesitos 31, 32, 33, 65, 66, 67 e 68)[6] associada à pretensão de uma outra subsunção baseada nos novos factos, isto relativamente à procedência parcial do pedido reconvencional; (b) a crítica à opção da Sentença de excluir a imputação delitual visada na acção (responsabilidade indemnizatória por dedução de pedido infundado de insolvência da A.), argumentando a Apelante com a existência de dolo – dolo eventual, pelo menos – da R. na formulação desse pedido (em rigor a Apelante defende até que a letra do artigo 22º do CIRE, que, aparentemente, se refere na sua letra só ao caso de dolo na responsabilização por um pedido infundado de insolvência, defende a Apelante, dizíamos, que seria possível a imputação em casos de negligência grosseira).

São estes, pois, os fundamentos do recurso.

2.1. Os factos que a primeira instância considerou provados foram os seguintes (destacando-se os trechos visados pela Apelante):
“[…]
            [transcrição de fls. 527/536].

            2.2.

            …

            2.3. (b) Interessa-nos agora o segundo fundamento do recurso – que assenta, como é óbvio, no elenco dos factos acima indicado no item 2.1. –, referido à não consideração da responsabilização indemnizatória visada pela A. em função da ausência de fundamento legítimo do desencadear processual, por parte da R., de uma declaração de insolvência visando a sociedade A.

            Esse processo concursal terminou, conforme é indicado no item 46 dos factos, por uma desistência processualmente ficcionada da Requerente da insolvência (da aqui R.), incidência processual esta que operou nos termos do artigo 35º nº 3 do CIRE[7]. Não obstante este aspecto da dinâmica dessa insolvência[8] ter colhido explicação neste processo, nos termos resultantes dos pontos 47 e 48 do elenco fáctico, subsiste a questão, que é independente desta explicação, da qualificação do comportamento da R., ao desencadear temerariamente uma insolvência totalmente improcedente (ou seja: um pedido de declaração de insolvência por um credor do devedor que, face aos factos aqui apurados, sempre consubstanciaria a dedução de uma pretensão sem fundamento e determinada por um propósito – o indicado no item 63 – estranho à verificação da incidência geral que a lei associa à situação de devedor insolvente[9]), no quadro da responsabilização indemnizatória da R. aqui visada pela A. pelos danos induzidos com esse requerimento infundado.

            Atalhando argumentos, reduzindo a subsequente apreciação ao que apresentará efectiva relevância no encarar deste fundamento do recurso, centrar-nos-emos no texto do artigo 22º do CIRE – “[a] dedução de pedido infundado de declaração de insolvência, ou a indevida apresentação por parte do devedor, gera responsabilidade civil pelos prejuízos causados ao devedor ou aos credores, mas apenas em caso de dolo” –, enquanto norma operante para a decisão recorrida, no sentido em que, para esta decisão aqui colocada em crise, foi a qualificação do comportamento da R. (expresso nos factos apurados) como situado aquém do dolo que constituiu a ratio decidendi da improcedência do pedido da A., determinando o Tribunal a quo a excluir – mal como aqui veremos – a imputação delitual visada pela acção que a demandante aqui estruturou contra a R.[10].

            Discordamos neste caso, com efeito, que os factos apurados não sustentem a afirmação de ter a R. I… actuado num quadro de imputação subjectiva que não possa ser reconduzido à figura do dolo eventual.

            Assim, pressupondo – como aqui pressuporemos, sem, todavia, tomar posição decisoriamente operante sobre o alcance do artigo 22º do CIRE[11] – a necessidade de nos situarmos no quadro do dolo (de nos situarmos para além da negligência consciente[12], rectius, excluindo esta pela afirmação do dolo), para alicerçar um dever de indemnizar a cargo do requerente da insolvência infundada, não deixaremos de sublinhar que este – o dolo em sede de imputação delitual; em sede de toda a imputação delitual – pressupõe e basta-se com qualquer das formas de dolo: o directo, o necessário ou o eventual[13].

            Centrando-nos na forma – corresponde ela como dissemos ao dolo eventual – que aqui é susceptível de apresentar relevância em função da factualidade apurada e do debate induzido pelo recurso, diremos que esta forma de dolo (dolo eventual), respeitando às situações em que o agente representa a verificação de determinado resultado como consequência possível da sua conduta e actua, conformando-se com essa verificação[14], ou, por outras palavras, actua em determinado sentido que, não sendo directamente o da violação da norma, pode implicar uma inobservância voluntária do elemento comportamental por esta pretendido induzir na generalidade das pessoas[15], esta forma de dolo, dizíamos, demarca-se de uma conduta conscientemente negligente, reeditando – rectius, pressupondo – aqui os esquemas argumentativos empregues no clássico debate travado no Direito Penal em torno das fórmulas hipotética e positiva de Frank na distinção entre negligência consciente e dolo eventual[16], debate este cuja transposição para a imputação indemnizatória delitual é caracterizada por António Menezes Cordeiro nos seguintes termos:
“[…]
[E]m relação ao dolo eventual. O agente prossegue um fim que passa eventualmente pela violação. Há dolo? Na resposta a tal questão, têm sido apresentadas várias soluções. Para uns, haveria dolo quando o agente tomasse a violação como provável (teoria da verosimilhança); para outros, o dolo surgiria quando, a ter previsto a violação como certa, o agente tivesse mantido a actuação (fórmula hipotética de Frank) ou então, quando o agente procedesse com a aceitação antecipada da violação eventual (fórmula positiva de Frank). Por nós, temos por correcta a ideia de que há dolo eventual quando a conduta do agente ainda possa ser reconduzida à violação da própria norma e não à simples inobservância de deveres de cuidado: Para tanto basta averiguar se a conduta do agente era norteada, de antemão pela possibilidade de violação, sendo esta aceite como fim, ainda que instrumental.
[…]”[17].

            E não deixamos de observar aqui que a instrumentalidade do fim desviado no requerimento de insolvência ressalta da própria racionalidade que o comportamento da R. aqui expressa, no sentido em que foi a coacção da A. pelo receio de ser sujeita a um processo de insolvência que motivou aquela a desencadeá-lo, mesmo que sem – principalmente sem – motivos legítimos para isso.

            Note-se que não deixamos de obter, através da convocação aqui do debate desta questão (distinção) no seio da Doutrina Penal – particularmente quando esta pretende ultrapassar as limitações da forma normal de referenciação do problema – não deixamos de obter através desse debate, dizíamos, importantes elementos de referenciação dos argumentos que aqui nos permitem integrar os factos apurados no quadro do dolo eventual. Sublinhamos a este propósito as seguintes considerações de pendor projectivo tecidas pelo Professor Figueiredo Dias:
“[…]
Todas as contas feitas, uma conclusão se torna infelizmente segura: a de que a distinção entre dolo eventual e negligência consciente como quer que seja levada a cabo, é tanto do ponto de vista teórico, como ainda mais na aplicação prática, tão frágil e insegura que mal é capaz de justificar – quer do ponto de vista político-criminal estrito, quer em perspectiva dogmática, quer, globalmente e muito especialmente, à luz do princípio da culpa – diferenças significativas (e por vezes abissais) das molduras penais aplicáveis a um e outro caso […]; como, ainda menos, será capaz de justificar que muitas vezes o delito doloso seja severamente punido, o negligente pura e simplesmente não seja punível […]. Assim sendo, e tendo ademais em consideração o facto de na ‘sociedade de risco’ aumentarem significativamente as necessidades político-criminais de tutela de uma imensidade de condutas que se situarão predominantemente no âmbito do dolo eventual e da negligência consciente, parece justificado deixar aqui pelo menos (apenas isso…) a questão de saber se à bipartição tipo de ilícito doloso/tipo de ilícito negligente, não deverá no futuro vir a substituir-se uma tripartição: dolo/negligência/temeridade […].
[…]”[18].

            Sublinhando que estamos a utilizar um argumento de comparação (onde a comparação é possível, por se trabalhar fundamentalmente com o mesmo conceito), diremos que esta questão coloca-se aqui, nesta particular imputação delitual, em função dos relevantes valores envolvidos, em termos muito análogos aos colocados na Doutrina Penal, no quadro da exploração de uma solução justa. Assim, não deixamos de observar esta ideia na afirmação do Professor Menezes Leitão, sobrepondo nesta situação concreta (a interpretação do trecho final do artigo 22º do CIRE) a negligência consciente ao dolo eventual, com base numa exploração interpretativa do brocardo latino culpa lata dolo aequiparatur[19], não deixamos de ver nesta construção a ideia de que a imputação delitual indemnizatória referenciada ao dolo, na propositura infundadamente temerária de uma acção visando a declaração de insolvência de um devedor, não pode deixar de envolver, no seu círculo de actuação, essa temeridade comportamental e indiferença pelas consequências, uma e outra indutoras de danos abrangidos num âmbito protectivo relevante, reportado a direitos alheios. O dolo eventual abrangeria aqui a propositura temerária da insolvência, sem correspondência à partida nos factos índice previstos no artigo 20º, nº 1 do CIRE[20], quando se determinasse a existência ab initio de um propósito (aqui claramente presente no item 63 dos factos) claramente desviado no desencadear do processo concursal. É esta associação que torna evidente a desproporção do meio empregue e faz sobressair a ultrapassagem dos limites da simples negligência.

            Tenha-se presente que neste caso, bem vistas as coisas, o resultado factual alcançado, findo este julgamento, deitou por terra (e percebe-se a falta de base factual da R./Apelada para, logo à partida quando desencadeou a insolvência, entender outra coisa) qualquer verosimilhança de fazer corresponder a situação da D… à de uma empresa insolvente e, concretamente, à de uma empresa relativamente à qual ocorresse qualquer facto-índice dos previstos nas alíneas do artigo 20º, nº 1 do CIRE[21]. O propósito – único propósito, por sinal – era pressionar um devedor que era solvente ao pagamento de uma dívida (que aqui se apurou corresponder a menos de €20.000,00, num valor global muito mais significativo de todo o negócio entre a A. e a R.), cujo montante estava em discussão, num espaço muito distinto daquele que sugeriria, a uma pessoa de normal diligência e recto procedimento, o recurso ao pedido de declaração de insolvência em vez da tutela declarativa normal[22]. Com efeito, só um propósito de lograr, pela manifesta desproporção do meio empregue e através do temor que esta desproporção de consequências era apta a infundir, o condicionamento da vontade da A. na discussão contratual em curso, só isto, dizíamos, explica a dedução de um pedido de insolvência pela R. nesta particular situação, sobressaindo, como verdadeiros propósitos da R., o de retaliar e o de condicionar.

            É neste sentido que não temos dúvidas em situar a conduta da empresa R. aqui em causa num domínio que já é o do dolo eventual, no sentido em que a cegueira e a obstinação de alcançar um outro objectivo (a sujeição da A. à quantificação de um determinado crédito feita pela R., com ou sem razão), acabam por evidenciar uma enorme indiferença básica pelo resultado desvalioso induzido com o pedido descabido de insolvência, sendo que não se apurou aqui que a R. tivesse alguma razão para intuir que a situação patrimonial da A. fosse de incapacidade para satisfazer a generalidade dos respectivos compromissos, ademais da indemonstração de que existissem razões para supor, com seriedade, verificados quaisquer factos-índice da situação de insolvência[23].

            Assim, afirmada a existência de dolo eventual da R. na dedução do pedido infundado de insolvência da A., situação abrangida na facti species do artigo 22º do CIRE (aceitando-se aqui que este vise mais do que a insolvência por apresentação do devedor[24]), resta-nos quantificar a responsabilidade indemnizatória que a imputação delitual aqui reconhecida desencadeará relativamente à R. I…, sendo que, conjugando o disposto nos artigos 22º do CIRE e 483º, nº 1 do CC (o primeiro com base nos pressupostos acima indicados[25]), poderemos afirmar que aquele cuja actuação seja reconduzida ao dolo eventual e que viole ilicitamente, com essa actuação, direitos alheios, provocando danos, desencadeia um dever de indemnizar referido ao próprio, sendo que este dever abrange danos patrimoniais e danos não patrimoniais – estes se, pela sua gravidade, merecerem tutela do direito, assentando a respectiva determinação num juízo de equidade, tudo como resulta do artigo 496º, nºs 1, 3 e 4 do CC[26].

            Constitui a determinação do valor desses danos, pois, o passo seguinte e culminante deste Acórdão, actuando este Tribunal, em função da procedência parcial do recurso, num quadro de substituição à primeira instância na fixação dessa indemnização.

            2.3.1. (b) Ora, a tal respeito, no rol dos factos apurados em julgamento, observamos situações claramente referidas a danos não patrimoniais (vejam-se os itens 64, 67, 69, 70, 71, 72, 73, 75, 76, 77 e 78 do elenco fáctico), sendo o dano patrimonial quantificado em €1.000,00 no item 79. São estes os factos a considerar aqui na fixação da indemnização a suportar pela R., num quadro de parcial procedência do respectivo pedido.

            Situam-se os factos atinentes à dimensão não patrimonial do dano no quadro, particularmente relevante para uma empresa actuando num mercado profundamente concorrencial (o das obras, designadamente das obras públicas), da percepção por outros agentes económicos da solvabilidade de uma empresa. Estando em causa o que poderíamos definir em geral como “prestígio comercial” de uma empresa, situamo-nos, neste caso concreto, no elemento central – no âmago – desse conceito, referido à própria capacidade de uma empresa mobilizar um investimento de confiança por parte dos restantes actores no mercado. Com efeito, não mobilizará esse investimento, ou mobilizá-lo-á com mais dificuldade e acrescidos custos (gerará perda prestígio, induzirá desconfiança, inibirá potenciais clientes e deixará “cicatrizes” de cautela exacerbada), uma empresa que se sabe genericamente (mesmo que por “boato”)[27] ter sido sujeito passivo de um processo de insolvência.

            Vale isto para sublinhar o sentido profundo do dano não patrimonial aqui em causa, sendo que em função desta incidência desvaliosa induzida pela R. no prestígio da A., entende este Tribunal fixar a indemnização por danos não patrimoniais a cargo da R. Iberfer, por dedução infundada de pedido de insolvência da A., em € 20.000,00, sublinhando-se que esta quantificação abrange assumidamente uma dimensão punitiva com alguma projecção preventiva geral, no sentido de desincentivadora do recurso notoriamente desviado (infundado) ao processo concursal, como forma de pressão no quadro de um litígio contratual individualizado. Foi isto, não temos dúvidas, o que a R. fez neste caso.

            Ao valor deste dano não patrimonial acrescerá, referido desta feita à dimensão patrimonial quantificada no item 79, o valor de € 1.000,00, totalizando a indemnização a fixar a cargo da R., assim, o valor de € 21.000,00.

            2.4. Aqui chegados, percorridos os dois fundamentos do recurso, constatamos o seguinte resultado: não atendimento da apelação da Apelante quanto à parcial procedência do pedido reconvencional da R. (este aspecto da decisão recorrida será mantido por esta Relação); atendimento parcial dessa mesma apelação quanto ao pedido da A. na acção (com a reversão da improcedência total desse pedido estabelecida na primeira instância).

            A estas consequências importa conferir expressão no elemento decisório deste Acórdão, não sem que antes deixemos aqui nota do sumário respeitante ao antecedente percurso argumentativo, no que tange à questão suscitada pelo pedido indemnizatório da A. na acção[28]:


I – A dedução de um pedido de declaração de insolvência por um credor do devedor visando pressionar este ao pagamento de determinado valor no quadro da discussão entre os dois do montante de um crédito, consubstancia um uso desviado do processo de insolvência, relativamente a um fim legítimo: propiciar a execução universal do património de um devedor impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas;
II – A dedução desse pedido de insolvência, apurando-se a não verificação de qualquer das situações elencadas nas alíneas do nº 1 do artigo 20º do CIRE, confere ao comportamento do credor ao requerer essa insolvência a natureza de comportamento temerário, expressando uma total indiferença pela exposição do devedor aos desvalores normalmente associados pelos diversos agentes económicos, à circunstância de alguém (concretamente uma empresa) ser sujeito a um processo de insolvência, mesmo quando esta não vem a ser decretada;
III – A temeridade desta conduta do credor e a indiferença que ela expressa quando aos resultados dela previsivelmente decorrentes para o devedor colocam tal requerimento infundado de insolvência no domínio do dolo eventual;
IV – Provocando esse requerimento infundado de insolvência danos ao devedor, designadamente referidos à percepção do mercado quanto a solvabilidade dele, deve o requerente dessa insolvência indemnizar esses danos, nos termos do artigo 22º do CIRE e 483º, nº 1 do CC.   


III – Decisão

            3. Face ao exposto, no parcial atendimento da apelação:

A) Confirma-se a Sentença recorrida no que respeita à parcial procedência do pedido reconvencional da R./Reconvinte e demais elementos associados a essa condenação;

B) Revoga-se parcialmente essa Sentença, no que concerne à improcedência do pedido da A. D…, Lda., condenando-se a R. I…, S.A., a satisfazer àquela a quantia de € 21.0000,00, acrescida de juros à taxa civil contados da data da citação da R.

Custas em ambas as instâncias, abrangendo a acção e a reconvenção, a cargo da A. (50%) e da R. (50%).

J. A. Teles Pereira (Relator)
Manuel Capelo
Jacinto Meca


[1] Vale a indicação desta data pela constatação da aplicação ao caso do regime dos recursos decorrente da reforma introduzida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (v. os respectivos artigos 11º, nº 1 e 12º, nº 1). Por essa razão, qualquer disposição do Código de Processo Civil adiante referida neste Acórdão, cujo texto tenha sido alterado pelo indicado DL 303/2007, sê-lo-á na versão resultante de tal Diploma.
[2] De créditos não satisfeitos à R./Reconvinte, no quadro dessa relação contratual, emergiu o procedimento da R. de desencadear a declaração de insolvência da A.
[3] Assim conclui a R./Reconvinte o seu articulado:
“[…]

a) Deve a presente contestação ser totalmente procedente por provada e desta forma a acção totalmente improcedente por não provada e por consequência deverá a R. ser absolvida do pedido.

b) Deve o pedido reconvencional ser totalmente procedente por provado e ser a Reconvinda condenada a pagar à Reconvinte a título de danos emergentes a quantia de €19.750,00 a título de facturas não liquidadas, acrescido dos juros vencidos ás respectivas taxas legais no montante total de €3.818,83, e a título de lucros cessantes a quantia de €5.850,00, tudo no total de €29.418,83, a que deverão acrescer os juros vincendos á taxa legal, desde a notificação da reconvinda e até integral pagamento.

c) Deve a A. ser condenada como litigante de má-fé a pagar á aqui R. a quantia de €36.000,00.
[…].
[4] Foi o seguinte o respectivo pronunciamento decisório:
“[…]

Julgo a acção totalmente improcedente e, em consequência, absolvo a ré do pedido formulado pela autora.

B.

Julgo a reconvenção parcialmente procedente e, em consequência:

1. Condeno a autora/reconvinda a pagar à ré/reconvinte a quantia de €19.750,00 (dezanove mil, setecentos e cinquenta euros), acrescida de juros de mora, calculados nos termos supra expostos, à taxa comercial sucessivamente em vigor, desde a data do vencimento das facturas até integral pagamento.

2. Absolvo a autora/reconvinda do demais peticionado.
[…].
[5] V. o Acórdão do STJ de 03/06/2011 (Pereira da Silva), proferido no processo nº 527/05.8TBVNO.C1.S1, cujo sumário está disponível na base do ITIJ, directamente, no seguinte endereço:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f9dd7bb05e5140b1802578bf00470473:
“[…]
[O] que baliza o âmbito do recurso, tal sendo, afora as de conhecimento oficioso, as questões levadas às conclusões da alegação do recorrente, extraídas da respectiva motivação (artigos 684.º n.º 3 e 690.º n.º 1 do CPC), defeso é o conhecimento de questão não aflorada naquelas, ainda que versada no corpo alegatório.
[…]”.
[6] Parece-nos evidente ter a Apelante, no quadro da pretensão de alterar factos fixados na primeira instância, com apelo ao disposto no artigo 712º, nº 1 do CPC, cumprido os ónus argumentativos decorrentes do disposto nas alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 685º-B do CPC.
[7] Preceitua este, sublinhando-se o segmento aqui convocado:

Artigo 35º
Audiência de discussão e julgamento
1 - Tendo havido oposição do devedor, ou tendo a audiência deste sido dispensada, é logo marcada audiência de discussão e julgamento para um dos cinco dias subsequentes, notificando-se o requerente, o devedor e todos os administradores de direito ou de facto identificados na petição inicial para comparecerem pessoalmente ou para se fazerem representar por quem tenha poderes para transigir.
2 - Não comparecendo o devedor nem um seu representante, têm-se por confessados os factos alegados na petição inicial, se a audiência do devedor não tiver sido dispensada nos termos do artigo 12.º
3 -
Não se verificando a situação prevista no número anterior, a não comparência do requerente, por si ou através de um representante, vale como desistência do pedido.
4 - O juiz dita logo para a acta, consoante o caso, sentença de declaração da insolvência, se os factos alegados na petição inicial forem subsumíveis no n.º 1 do artigo 20.º, ou sentença homologatória da desistência do pedido.
5 - Comparecendo ambas as partes, ou só o requerente ou um seu representante, mas tendo a audiência do devedor sido dispensada, o juiz selecciona a matéria de facto relevante que considere assente e a que constitui a base instrutória.
6 - As reclamações apresentadas são logo decididas, seguindo-se de imediato a produção das provas.
7 - Finda a produção da prova têm lugar alegações orais de facto e de direito, e o tribunal decide em seguida a matéria de facto.

8 - Se a sentença não puder ser logo proferida, sê-lo-á no prazo de cinco dias.
[8] “A não comparência do requerente ou do seu mandatário com poderes especiais para transigir vale como desistência do pedido (nº 3 do artigo 31º), devendo, neste caso, o juiz ditar logo para a acta a sentença homologatória da desistência do pedido” (Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 3ª ed., Coimbra, 2011, p. 45).
[9] Qualificamos aqui como incidência geral a prevista no nº 1 do artigo 3º do CIRE: encontrar-se o devedor impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, prescindindo por ora da questão das incidências específicas resultantes das alíneas do nº 1 do artigo 20º do CIRE (os chamados factos-índice), sendo que a esta dimensão da análise do desencadear da insolvência pela R. voltaremos adiante neste Acórdão.
[10] Vamos aqui prescindir – afora o apontamento algo lateral constante desta nota – de desenvolver a questão, particularmente controversa, da imputação delitual resultante da dedução de um pedido infundado de insolvência, como realidade restrita ao dolo (como se afirma decorrer do trecho final do artigo 22º do CIRE) ou “alargada”, chamemos-lhe assim, a situações de negligência qualificada (grosseira, se preferirmos usar a expressão). Este é o tema tratado no Estudo de António Menezes Cordeiro, Litigância de Má Fé Abuso do Direito de Acção e Culpa ‘In Agendo’, Coimbra, 2006, normalmente referido como paradigmático da interpretação do artigo 22º do CIRE como não restringindo a possibilidade de imputação delitual do requerente de uma insolvência infundada ao dolo. Com efeito, defende o Professor Menezes Cordeiro que essa referência da norma se cinge ao próprio devedor que se apresenta indevidamente à insolvência, causando com tal comportamento danos aos credores, sendo que isso não significa, defende este Autor, que esteja fechada a porta da imputação delitual, nos termos gerais (dolo e negligência) do artigo 483º, nº 1 do CC, ao devedor que é lesado por um pedido de insolvência infundado desencadeado por um credor (Litigância de Má Fé…, cit., pp. 186/189). Encontramos uma súmula das posições doutrinárias em confronto a este respeito na anotação ao Acórdão da Relação do Porto de 22/04/2007, de Rita Fabiana da Mota Soares, “Sobre o pedido infundado de declaração de insolvência”, nos Cadernos de Direito Privado, nº 32, Outubro/Dezembro de 2010, pp. 79/89, expressando esta Autora a sua posição nos seguintes termos:
“[…]
Entre sujeitos ligados por relações especiais de crédito, por uma ‘relação social limitada e particularizada’, como sucede com o credor requerente da declaração de insolvência relativamente ao devedor visado por tal requerimento, há deveres de protecção (de cuidado e diligência) a exigir a recíproca tutela contra actos de disposição desfavoráveis e contra ingerências externas lesivas da pessoa e/ou património.
Desses deveres de protecção emerge a mútua vinculação à não adopção de condutas susceptíveis de atingir direitos patrimoniais puros ou primários, incluindo os da saúde das empresas e da continuação da respectiva actividade.
Nestes casos, por força da relação especial entre lesado e lesante, não subsistem as razões que fundam a não ressarcibilidade dos danos patrimoniais puros ou primários, nos termos gerais do artigo 483º do CC.
[…]” (“Sobre o pedido infundado de declaração de insolvência”, cit., p. 88).
A posição aqui expressamente adoptada pelo Senhor Juiz a quo é a contrária, sendo em grande medida tributária, como facilmente se alcança da fundamentação da Sentença apelada (fls. 549/550), do entendimento jurisprudencial que restringe toda a imputação delitual em que o facto gerador corresponda a um pedido de insolvência despido de fundamento sério à actuação com dolo.
[11] No sentido de saber – e decidir em função disso – se este artigo 22º esgota, ou não, as possibilidades de imputação delitual decorrentes da dedução de um pedido infundado de declaração de insolvência (v. o texto da nota anterior).
[12] No que representará uma restrição do âmbito do artigo 483º, nº 1 do CC, que se refere “[à]quele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem […]”, como base da imputação delitual.
[13] Neste sentido, v.: António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, vol. II, Direito das Obrigações, tomo III, Coimbra, 2010, p. 470; Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, 4ª ed., Coimbra, p. 299/300.
[14] Adaptámos a formulação de Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, cit. p. 299.
[15] Parafraseámos agora a caracterização de António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, cit, p. 471.
[16] V. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª ed., Coimbra, 2007, pp. 368/378.
[17] Tratado de Direito Civil Português, cit, p. 471.
[18] Direito Penal, cit., p. 376.
[19] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, 3ª ed., Coimbra, 2006, p. 64 (v. a aplicação do conceito na common law, na entrada Gross negligence, na Wikipedia, em http://en.wikipedia.org/wiki/Gross_negligence e http://definitions.uslegal.com/l/lata-culpa-aequiparatur-dolo/).  
[20] Sobre o significado destes, v. o Acórdão desta Relação de 20/11/2007, proferido pelo ora relator, no processo nº 1124/07.9TJCBR-B.C1, disponível no sítio do ITIJ, directamente, no seguinte endereço: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/463569572d1e35cf8025739f00432b9.
[21] Que aqui transcrevemos para tornar o argumento evidente face aos factos apurados nesta acção (que a R. poderia aperceber actuando com normal diligência):
Artigo 20º
[…]
1 – A declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida por quem for legalmente responsável pelas suas dívidas, por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito, ou ainda pelo Ministério Público, em representação das entidades cujos interesses lhe estão legalmente confiados, verificando-se algum dos seguintes factos:
a) Suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas;
b) Falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações;
c) Fuga do titular da empresa ou dos administradores do devedor ou abandono do local em que a empresa tem a sede ou exerce a sua principal actividade, relacionados com a falta de solvabilidade do devedor e sem designação de substituto idóneo;

d) Dissipação, abandono, liquidação apressada ou ruinosa de bens e constituição fictícia de créditos;
e) Insuficiência de bens penhoráveis para pagamento do crédito do exequente verificada em processo executivo movido contra o devedor;

f) Incumprimento de obrigações previstas em plano de insolvência ou em plano de pagamentos, nas condições previstas na alínea a) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 218.º;
g) Incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de dívidas de algum dos seguintes tipos:
i) Tributárias;

ii) De contribuições e quotizações para a segurança social;
iii) Dívidas emergentes de contrato de trabalho, ou da violação ou cessação deste contrato;
iv) Rendas de qualquer tipo de locação, incluindo financeira, prestações do preço da compra ou de empréstimo garantido pela respectiva hipoteca, relativamente a local em que o devedor realize a sua actividade ou tenha a sua sede ou residência;

h) Sendo o devedor uma das entidades referidas no n.º 2 do artigo 3.º, manifesta superioridade do passivo sobre o activo segundo o último balanço aprovado, ou atraso superior a nove meses na aprovação e depósito das contas, se a tanto estiver legalmente obrigado.
[22] E aqui até se apurou a existência de um espaço (declarativo) relevante para travar essa discussão.
[23] Apontam claramente neste sentido as considerações tecidas por Diogo Leite de Campos, “Da Responsabilidade do Credor na Fase de Incumprimento”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 52/III, 1992, p. 868.
[24] Prescindindo, pois, da redução teleológica da norma propugnada por Manuel A. Carneiro da Frada, “A responsabilidade dos Administradores de Insolvência”, na Revista da Ordem dos Advogados, Ano 66/II, 2006, pp. 658/659.
[25] E voltamos a sublinhar a este respeito que não decidimos aqui em função de uma opção interpretativa quanto à circunstância da indemnização por propositura indevida de processo de insolvência pelo credor do devedor se restringir ao dolo ou também abranger a propositura negligente dessa acção. Limitámo-nos, tão-só, independentemente de uma tomada de posição a esse respeito, a constatar que a imputação delitual assente no dolo é inquestionável neste caso (seja através do artigo 22º do CIRE ou do artigo 483º, nº 1 do CC) e que os factos aqui apurados correspondem a uma situação de dolo eventual do agente.
[26] “[A] indemnização por danos não patrimoniais não reveste natureza exclusivamente ressarcitória, mas também punitiva, assumindo-se como uma pena privada, estabelecida no interesse da vítima, por forma a desagravá-la do comportamento do lesante” (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, cit. p. 319).
[27] O mercado actua por sinais ténues quanto à solvabilidade das empresas, não procurando os agentes, geralmente, aprofundar impressões de primeira aparência a esse respeito: a má fama comercial como que se cola à pele e dificilmente sai. Assim, poderemos projectar que uma memória indefinida de ter sido uma empresa sujeita a um processo de insolvência, dificilmente deixará de interferir no processo de tomada de decisões de outras empresas relativamente àquela.
[28] Quanto à parte da apelação referida à parcial procedência do pedido reconvencional, tratando-se de apreciar, em exclusivo, a dimensão fáctica do julgamento em primeira instância, entendemos não existir interesse prático na sumarização.