Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
7246/06.6TBLRA-I.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator:
MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: ADMISSÃO DO RECURSO
RECURSO DE APELAÇÃO
INVENTÁRIO
RECLAMAÇÃO DE BENS
Data do Acordão: 09/15/2015
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - POMBAL - INST. CENTRAL - 2ª SEC. F. MEN. - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NÃO ADMISSÃO DO RECURSO
Legislação Nacional: AL. A) “IN FINE” DO N.º 1, AL. H) DO N.º 2 E N.º 3 DO ART.º 644.º DO CPC
Sumário: I. Não cabe recurso de apelação autónoma da decisão proferida no incidente de reclamação de bens no âmbito de processo de inventário, por não caber na previsão da al. a) “in fine” do n.º 1 do art.º 644.º, nem tão pouco na al. h) do n.º 2 do mesmo preceito legal.

II. Para os efeitos previstos na sobredita al. h) do n.º 2, o recurso só será inútil se em nada aproveitar ao recorrente, o que ocorrerá apenas quando, revogada embora a decisão impugnada, a situação se mantenha inalterada por os efeitos desta se terem tornado irreversíveis por via da demora na apreciação do recurso.

III. A decisão proferida no incidente da reclamação dos bens só pode ser impugnada no recurso que vier a ser interposto da decisão final, nos termos previstos no n.º 3 do referido art.º 644.º.

Decisão Texto Integral:

I. Relatório

Nos autos de inventário para partilha dos bens na sequência do decretamento de divórcio em que é requerente e cabeça de casal A... e requerido B... , apresentada a relação de bens, dela reclamou o interessado B... , acusando a omissão de alguns bens e a indevida relacionação de outros, indicando testemunhas e prova documental (cf. fls. 18 a 24 do presente apenso).

Respondeu a cabeça de casal, pugnando pelo indeferimento da reclamação apresentada e consequente manutenção da relação de bens, tendo igualmente arrolado testemunhas (cf. fls. 25 a 36).

Após incidências várias, produzida a prova oferecida, foi proferida decisão que, na parcial procedência da reclamação apresentada, determinou a manutenção da relação de bens com as rectificações e aditamentos então introduzidas, mais ordenando fosse eliminada a verba n.º 9, remetendo as partes para os meios comuns no respeitante à verba n.º 2.

Inconformado com a decisão proferida, interpôs o requerido recurso, que disse ser de apelação, com subida em separado nos termos do art.º 644.º, n.º 1, sua parte final, ou, assim não sendo entendido, nos termos da al. h) do n.º 2 do mesmo preceito, e efeito meramente devolutivo (cf. fls. 246), tendo apresentado as pertinentes alegações.

O recurso assim interposto veio a ser admitido como de apelação, com subida em separado e efeito meramente devolutivo, nos termos dos artigos 1396.º, 691.º, n.º 2, al. j), e 692.º do CPC, na versão introduzida pelo DL 303/2007, de 24 de Agosto, que se teve por aplicável.

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Sendo entendimento da relatora que da decisão impugnada não cabia recurso autónomo, foram as partes notificadas para se pronunciar, querendo, tendo silenciado qualquer tomada de posição.

Ora, conforme consagrado no n.º 5 do art.º 641.º do nCPC (disposição legal que sucedeu ao idêntico n.º 5 do art.º 685.º-C do CPC cessante), a decisão que admite o recurso, fixe a sua espécie e determine o efeito que lhe compete não vincula o Tribunal superior.

Deste modo, e a título de questão prévia, cumpre antes de mais indagar se o recurso interposto como apelação autónoma é de admitir. E a resposta à questão colocada é, em nosso entender, o que desde já se adianta, negativa, pelos motivos que de seguida se exporão.

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II. Fundamentação

Interessando à decisão a proferir os factos relatados em I. importa, antes de mais, referir que, conforme expressa o art.º 29.º da Portaria n.º 278/2013, de 16 de Agosto, os processos de inventário pendentes à data da entrada em vigor do novo regime jurídico, aprovado pela Lei n.º 237/2013, de 5 de Março, e com início de vigência no dia 1 de Setembro de 2013 (cf. art.º 8º deste último diploma), mantêm-se nos Tribunais, “aplicando-se as disposições legais em vigor a 31 de agosto de 2013”. Com efeito, não lhes sendo aplicável o novo regime, dada a ressalva constante do art.º 7.º da citada Lei, e não contendo o novo código de processo civil quaisquer normas reguladoras do processo de inventário, impunha-se manter em vigor a regulamentação constante do CPC revogado em ordem a garantir a regular tramitação dos processos pendentes até final.

Por assim ser, é efectivamente aplicável ao caso dos autos, tal como considerou o Mm.º juiz “a quo”, o art.º 1396.º do CPC cessante, na versão introduzida pelo DL 303/2007, de 24 de Agosto, em vigor à data de 31 de Agosto de 2013.

Epigrafado de “regime de recursos”, dispunha-se no mencionado preceito:

 “1. Nos processos referidos nos artigos anteriores cabe recurso da sentença homologatória da partilha.

2. Salvo nos casos previstos no n.º 2 do art.º 691.º, as decisões interlocutórias proferidas no âmbito dos mesmos processos devem ser impugnadas no recurso que vier a ser interposto da sentença da partilha”.

Face ao assim preceituado, resulta claro que, em linha com a opção que ditou a regra geral do art.º 691.º, também no âmbito dos processos de inventário a regra passou a ser a de que a impugnação das decisões interlocutórias tinha lugar apenas com o recurso da decisão final, subindo autonomamente quando, não sendo desta última interposto recurso, as decisões interlocutórias mantivessem interesse para o apelante. Tal era o regime consagrado nos n.ºs 3 e 4 do art.º 691.º, mantido sem alterações relevantes no art.º 644.º do nCPC, seus n.ºs 3 e 4.

Por outro lado, e não obstante o entendimento de que a pretérita al. j) do n.º 2 do art.º 691.º não consagrava solução diferente da hoje acolhida na al. a) do n.º 1 do art.º 644.º do nCPC, afigura-se-nos que o preceito aplicável, atenta a data da instauração do presente processo de inventário, é este último, e não aquele. Com efeito, se a regra é a de que a recorribilidade da decisão se afere pela lei vigente à data da sua prolação, a lei nova veio consagrar o princípio da aplicação imediata do regime dos recursos (cf. art.º 5.º, n.º 1 da Lei n.º 41/2003), termos em que a ressalva efectuada na primeira parte do n.º 2 do acima transcrito art.º 1396-º deverá ser havida como fazendo-se hoje para a parte final da al. a) do n.º 1 do art.º 644.º em vigor.

Os recursos de apelação dita autónoma, agora regulamentados neste artigo 644.º em termos em tudo idênticos aos anteriormente previstos no art.º 691.º, cabem das decisões proferidas em 1.ª instância que ponham termo à causa ou a procedimento cautelar ou incidente processado autonomamente. Interessando ao caso dos autos apenas esta última hipótese, a redacção agora mais cuidada do preceito inculca claramente que integram a previsão normativa apenas os incidentes com autonomia em relação à causa principal, tramitados em regra -ainda que não necessariamente- por apenso, como é o caso, por exemplo, dos embargos de terceiro[1].

Tendo sido intenção expressa do legislador reformista do DL 303/2007 simplificar e acelerar o regime dos recursos, na prossecução destes objectivos gerais se inscreve “(…) a introdução da regra geral de impugnação de decisões interlocutórias apenas com o recurso que vier a ser interposto da decisão que põe termo ao processo, (…)

Esta simplificação permitirá significativos ganhos na celeridade processual, que constitui o segundo objectivo da presente reforma e que se visa, não apenas na fase de julgamento, como também na que decorre ainda perante o tribunal recorrido. São também evidentes a celeridade e a economia processuais que o novo regime de impugnação das decisões interlocutórias no recurso que venha a ser interposto da decisão final proporcionará à própria tramitação dos processos em 1.ª instância.” (do Preâmbulo do diploma).

Sendo esta a intenção do legislador - elemento interpretativo a atender nos termos do n.º 1 do art.º 9º do CC- sairia a mesma frontalmente contrariada caso se entendesse que qualquer incidente processual como tal tramitado permitiria a interposição de recurso autónomo, assim transformando em regra aquilo que a lei erigiu em excepção.

Deste modo, e em suma, não cabendo, em nosso entender, na previsão legal da antiga al. j) do n.º 2 do art.º 691.º a decisão interlocutória proferida no termo de qualquer incidente processual, mais claramente não cabe hoje na previsão da parte final da al. a) do n.º 1 do art.º 644.º, a qual contempla apenas e só os incidentes com autonomia em relação à causa principal, o que não é o caso do incidente da reclamação de bens em processo de inventário, que dele depende (cf., neste mesmo sentido, as decisões desta mesma Relação de Coimbra de 11/11/2014, processo n.º 472/11.8T6AVR-D.C1, 1/4/2014, processo n.º 230/11.0 TBSRE-A.C1, de 12/10/2013, processo n.º 123/13.6 TBGRD-B.C1, 8/3/2012, no processo 136/09.2 TMCBR-B.C1, e da Relação de Guimarães de 27/2/2014, processo n.º 108/13.2 TBVLN-A.G1, todos acessíveis em www.dgsi.pt.).

E tão pouco cabe na previsão da al. m) do n.º 2 do art.º 691.º -a que sucedeu a al. h) do n.º 2 do art.º 644.º- disposição legal de resto ao abrigo da qual foi o mesmo recurso admitido.

Nos termos da al. h) do n.º 2, disposição legal agora convocada e que reproduz a antiga al. m) “Cabe ainda recurso de apelação das decisões cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil”.

É hoje, ao que cremos, inteiramente pacífico, o entendimento de que a inutilidade absoluta exigida pela lei só se verifica quando “o despacho recorrido produza um resultado irreversível, de tal modo que, seja qual for a decisão do tribunal ad quem, ela será completamente inútil, mas não quando a procedência do recurso possa conduzir à eventual anulação do processado posterior à sua interposição” (cf. decisão desta Relação de 1/12/2010, proferida no processo n.º 102/08.5 TBCND-A.C1). O que se pretende evitar é, deste modo, a inutilidade do recurso, e não dos actos processuais entretanto praticados, eventualidade que o legislador previu e com a qual se conformou. Deste modo, o recurso só será inútil se em nada aproveitar ao recorrente, o que ocorrerá apenas quando, revogada embora a decisão impugnada, a situação se mantenha inalterada por os efeitos desta se terem tornado irreversíveis por via da demora na apreciação do recurso.

Por outras e mais impressivas palavras “Com este preceito o legislador abre a possibilidade de interposição de recursos intercalares quando a sujeição à regra geral importe a absoluta inutilidade de uma decisão favorável que eventualmente venha a ser obtida em sede de recurso.

O advérbio empregue “absolutamente” assinala bem o nível de exigência imposto pelo legislador, em termos idênticos ao que se previa no art.º 734.º, n.º 1 al. c) do anterior CPC, para efeitos de determinar ou não a subida imediata do agravo.

Deste modo, não basta que a transferência da impugnação para um momento posterior comporte o risco de inutilização de uma parte do processado, ainda que nesta se inclua a sentença final. Mais do que isso, é necessário que imediatamente se possa antecipar que o eventual provimento do recurso não passará de uma “vitória de Pirro”, sem qualquer reflexo no resultado da acção ou na esfera jurídica do interessado”[2].

Ora, não é este claramente o caso dos autos, porquanto, ainda a ser revogada a decisão que decidiu o incidente de reclamação de bens, a decisão assim favorável ao apelante produz na íntegra os seus efeitos, dando embora origem à anulação do processado subsequente, consequência legal que, conforme se referiu, o legislador não enjeitou.

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III. Decisão

Em face do exposto, decido não admitir o recurso interposto, devendo a decisão proferida sobre a reclamação de bens ser objecto de impugnação nos termos previstos nos n.ºs 3 e 4 do art.º 644.º do CPC.

Custas do incidente pelo recorrente.


Maria Domingas Simões

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Sumário

I. Não cabe recurso de apelação autónoma da decisão proferida no incidente de reclamação de bens no âmbito de processo de inventário, por não caber na previsão da al. a) “in fine” do n.º 1 do art.º 644.º, nem tão pouco na al. h) do n.º 2 do mesmo preceito legal.

II. Para os efeitos previstos na sobredita al. h) do n.º 2, o recurso só será inútil se em nada aproveitar ao recorrente, o que ocorrerá apenas quando, revogada embora a decisão impugnada, a situação se mantenha inalterada por os efeitos desta se terem tornado irreversíveis por via da demora na apreciação do recurso.

III. A decisão proferida no incidente da reclamação dos bens só pode ser impugnada no recurso que vier a ser interposto da decisão final, nos termos previstos no n.º 3 do referido art.º 644.º.

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[1] Cf., neste preciso sentido, Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, págs. 157-158, Armindo Ribeiro Mendes, “A regulamentação dos recursos no futuro Código de Processo Civil”, pág. 11, texto que serviu de base a exposição oral feita no CEJ em 26 de Abril de 2013, no Curso de Especialização “Temas de Direito Civil”, acessível on-line.
[2] Abrantes Geraldes, obra citada, págs. 165-166.