Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
28/16.9GDGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: NULIDADE DA SENTENÇA;
CONDENAÇÃO POR FACTOS DIVERSOS DOS DESCRITOS NA ACUSAÇÃO
Data do Acordão: 05/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA (J L CRIMINAL)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 374.º E 379.º DO CPP; ART. 32.º DA CRP
Sumário:
I – O nosso processo penal tem estrutura essencialmente acusatória (art. 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa) o que vale dizer que só se pode ser julgado pela prática de um crime mediante prévia acusação que o contenha, deduzida por entidade distinta do julgador e constituindo ela, acusação, o limite do julgamento.
II - Num sistema processual penal de estrutura essencialmente acusatória, o exercício de todas as garantias de defesa (cfr. art. 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa) exige a necessária correspondência ou correlação entre a acusação [e a pronúncia, quando exista] e a sentença, vista a necessidade de preservar a imutabilidade do objecto do processo por ela, acusação [ou pronúncia], fixado.
III - Estamos perante factos novos e portanto, perante uma alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, quando se modifica – substitui ou adita – o concreto «pedaço de vida» que constitui o objecto do processo, dando-lhe uma outra imagem.
IV – Quando os factos provados da sentença recorrida se mantêm dentro do circunstancialismo de tempo, lugar e modo, descritos na acusação pública, resta concluir, sem mais considerações, por completamente desnecessárias, pela inexistência da nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do art. 379.º do CPP.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO
No Tribunal Judicial da Comarca da Guarda – Juízo Local Criminal da Guarda, o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, do arguido AA, com os demais sinais nos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de extorsão, p. e p. pelos arts. 22º e 223º do C. Penal.

Por sentença de 27 de Outubro de 2017, foi o arguido condenado, pela prática do imputado crime, na pena de um ano e seis meses de prisão, suspensa na respectiva execução pelo mesmo período, com regime de prova.
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Inconformado com a decisão, recorreu o arguido, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:
5.1. – Foi na sentença revidenda dado como provado que:
A) Entre os dias 19 de Maio de 2016 e 15 de Junho de 2016, o arguido AA, invocando uma alegada dívida de que seria credor relativamente a T1, que é neto da queixosa AS, no montante de € 60,00 (sessenta euros), visou constranger esta última ofendida a entregar-lhe a aludida quantia em dinheiro.
B)…
C) Não conformado, o arguido, imbuído de tal propósito, através do telemóvel com o número 9---, remeteu para a queixosa, por via do respectivo telemóvel com o número 9---, as seguintes mensagens SMS (que constam transcritas a fls. 87 e seguintes e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido): …”;
5.2. – Ora, salvo o devido respeito e melhor opinião, os dois factos provados A) e C) tal como se encontram descritos, não estão conformes com a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento;
5.3. – Nem tão pouco com os factos apurados no decorrer do inquérito, e que levaram o Ministério Público a deduzir acusação contra o arguido/recorrente;
5.4. – Pelo que, se verifica a nulidade da sentença revidenda – cf. artigo 379º, nº 1 al. b) do Cód. Proc. Penal;
5.5. – Foi dado como provado que: “… não conformado, o arguido, imbuído de tal propósito, através do telemóvel com o número 9---, remeteu para a queixosa, por via do respectivo telemóvel com o número 9---, as seguintes mensagens SMS (que constam transcritas a fls. 87 e seguintes e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido): …”;
5.6. – Na verdade, não ficou provado no decorrer da audiência de discussão e julgamento, que foi o arguido/recorrente quem enviou as mensagens documentadas nos autos;
5.7. – Apenas se provou, este sim, que foi através do número de telefone 9--- que foram enviadas as mensagens ora em causa;
5.8. – Para além do mais, não ficou provado que tal número pertence ao arguido/recorrente;
5.9. – Foi ainda dado como provado que: “E) O arguido agiu consciente e livremente, com intenção de conseguir para si enriquecimento ilegítimo, tendo, para o efeito, tentado constranger a queixosa AS, por meio das referidas ameaças com mal importante, a efectuar disposição patrimonial a favor do próprio arguido, com o consequente prejuízo para a queixosa.”;
5.10. – Qual mal importante?;
5.11. – A sentença revidenda violou, entre outras, a norma do artigo 379º do Código de Processo Penal;
Termos em que, e nos melhores de direito cujo suprimento antecipadamente se pede, deve a sentença revidenda ser substituída ser substituída por outra que complente tudo quanto vem de alegar-se, assim se fazendo Justiça.
*
Respondeu ao recurso o Digno Magistrado do Ministério Público, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:
A douta decisão recorrida, ao ter ponderado e articulado, de forma irrepreensível, todos os meios de prova produzidos, decidindo da forma como o fez os factos que resultaram provados e não provados, sendo que estes foram fundamentados de forma plenamente convincente, fez a interpretação e a aplicação da Lei, procedendo à sua exegese mais apurada.
Pelo exposto, entendemos que deve ser mantida, nos seus precisos termos, a douta decisão recorrida, tanto quanto à matéria factual dada como provada e não provada, como quanto à respetiva qualificação jurídica.
Termos em que, por não nos merecer qualquer censura a douta sentença proferida pelo M.mo Juiz a quo, deverá ser negado provimento ao recurso a que ora dá resposta.
Vossas Excelências porém, Senhores Juízes Desembargadores, decidindo farão a habitual
JUSTIÇA!
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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, afirmando a inexistência da apontada nulidade da sentença uma vez que os factos nela relevados se contém na factualidade levada à acusação e a realização de prova testemunhal quanto ao número do telemóvel atribuído ao recorrente, e concluiu pelo não provimento do recurso.
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Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.
Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:
- A nulidade da sentença;
- A desconformidade da decisão proferida sobre a matéria de facto com a prova produzida na audiência de julgamento.
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Para a resolução destas questões, importa ter presente o que de relevante consta da sentença recorrida. Assim:
A) Nela foram considerados provados os seguintes factos:
“ (…).
A) Entre os dias 19 de Maio de 2016 e 15 de Junho de 2016, o arguido AA, invocando uma alegada dívida de que seria credor relativamente a T1, que é neto da queixosa AS, no montante de €60,00 (sessenta euros), visou constranger esta última ofendida a entregar-lhe a aludida quantia em dinheiro.
B) A queixosa, por não dever qualquer quantia ao arguido, sempre se negou a entregar-lhe tal dinheiro.
C) Não conformado, o arguido, imbuído de tal propósito, através do telemóvel com o número 9---, remeteu para a queixosa, por via do respectivo telemóvel com o número 9---, as seguintes mensagens SMS (que constam transcritas a fls. 87 e seguintes e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido):
- No dia 19 de Maio de 2016, às 14h55m: “Boas tardes olhe o T1 dizem que você me dava o dinheiro porque a sua filha não me o quer dar eq sao 60euros s foze menus nem he dizia nada pesso dsclp dona AS”.
- No dia 19 de Maio de 2016, às 15h48m: “dona AS é asim n quero tar a ir a casa de nimgai achu que se emprestei ao seija o que for achu que o dever é devolver se sua filha nao o da e nao deixa ele o dar dame voce e quando o T1 for trblhar cm o avo dele descontahe os 60euro que me vai dar por ele ne achu que não tems d tar aranjar mais problemas”.
- No dia 19 de Maio de 2016, às 16h11m: “olhe não atende a gnr tmbm nao vou ne por 60euros mas olhe se hje ate amanha a tarde nao tiver o dinheiro vou ser obrigado eu e o meu pai irmos ai pedir o dinheiro a sua casa achu que n vale a pena passar vergonha a sua porta por uma divida tao pequena ok? Eu digo msm se não tiver meu dinheiro d uma fora tanho d outra acredite não queria nada fazer isso.”.
- No dia 19 de Maio de 2016, às 16h15m: “Veija la isso bem cm ela e vanham por o dinheiro a bem se nao amanha vou ai cm meu pai a buscar o dinheiro d uma forma ao d outra eu vou ter porque é meu e fazme falta tanhu contas a pagar tanhu vida cm voce os 60euros dam um jeitao veija la d amanha nao passa ja la vai 1 mes que tou a espera dle. Amanha nem que vaia ai tal cm voces foram a minha soque eu vou buskar o que me pertence”.
- No dia 19 de Maio de 2016, às 16h26m: “Qem vai a gnr sou eu seus ladroes tao empresto dinheiro a ele e a gora nao me o da eu eq vou acusar voce de burla”.
- No dia 19 de Maio de 2016, às 16h27m: “Ela tem um proseso d omisidio a gra mais esta s querem asim a gnr vai s meter nu barulho”.
- No dia 8 de Junho de 2016, às 11h29m: “Bom dia dona AS ao me dao os 60 euros ao seu neto ade ter um fim muito triste he garanto n brinque cmg e s for a gnr eu dgo qem assaltou o tio artur e o tio mario que foi seu neto e tanho provas que ele gavouse para mim e para muitos portanto o que fez o basof fazolhe eu.”.
- No dia 8 de Junho de 2016, às 11h32m: “N me queram destar eu ja m ando a passar cm voces todos vai des do neto ao pais e avos tdo uma garotada pegada. Caloteiros”.
- No dia 8 de Junho de 2016, às 11h52m: “Veija la isso s n vam obrigar a resolver d otra forma nem que pesa o dinheiro ao snhor ricardo e dghe os motivos para descontar 60 do rafael e ta feito isto para n ser pior e vir ai a cambada a kasa da sua filha”.
- No dia 8 de Junho de 2016, às 22h52m: “Olhe seu neto que tanha atencao ao que fala e para qem eu que o apanhe na rua que logo ve atao o macho que ele.”.
- No dia 15 de Junho de 2016, às 11h57m: “Kagai mase o papel. Qe ja ando pasadinho ate qe algum dia bato na sua porta mas n sou so eu qe assim n m fodem km bofia”.
D) Em consequência das condutas empreendidas pelo arguido, a queixosa AS sentiu muito medo, limitação nos afazeres do dia-a-dia, evitando sair à rua, pavor cada vez que a campainha de sua casa tocava, ou que recebia um telefonema ou uma mensagem SMS no seu telemóvel, entrando em pânico nessas situações.
E) O arguido agiu consciente e livremente, com intenção de conseguir para si enriquecimento ilegítimo, tendo, para o efeito, tentado constranger a queixosa AS, por meio das referidas ameaças com mal importante, a efectuar disposição patrimonial a favor do próprio arguido, com o consequente prejuízo para a queixosa.
F) Bem sabia o arguido que a queixosa não lhe devia qualquer quantia, nomeadamente € 60,00 (sessenta euros), e que a pretendia obter de forma ilegítima.
G) Bem sabia o arguido ser a conduta que assumiu proibida e punível por lei penal.
H) O arguido vive em agregado familiar composto por 5 pessoas, e não lhe são conhecidos quaisquer bens ou rendimentos.
I) O arguido foi já condenado no âmbito do processo n.º 5/14.4GBGRD, do Juízo Central da Comarca da Guarda, pela prática em Outubro de 2014 de um crime de detenção de arma proibida e um crime de tráfico de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão suspensa na sua execução por igual período de 1 ano e 6 meses, e na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, no total de € 300,00, posteriormente substituída pela prestação de 60 horas de trabalho a favor da comunidade. Tal condenação transitou em julgado a 12 de Maio de 2016.
Foi também condenado no âmbito do processo n.º 35/15.9GDGRD, do Juízo Local Criminal da Guarda, pela prática no dia 19 de Agosto de 2015 de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de 2 anos e 6 meses. Tal condenação transitou em julgado a 27 de Junho de 2016.
(…)”.

B) Nela foi considerado não provado o seguinte facto:
“ (…).
1) O arguido tenha alguma vez anunciado perante terceiras pessoas que iria matar
AS.
(…)”.

C) E dela consta a seguinte motivação de facto:
“ (…).
Relativamente aos factos que se deram como provados, o tribunal baseou a sua convicção antes do mais no depoimento que foi prestado pela testemunha e queixosa AS, a qual descreveu em termos gerais os SMS’s que recebeu e que constam dos factos provados, bem como o seu contexto e os efeitos que para si daí decorreram (os quais nos pareceram, aliás, perfeitamente aceitáveis e razoáveis neste contexto, e para uma pessoa com 60 anos de idade à data dos factos, residente na pequena e bastante isolada vila de ---), tendo tal depoimento sido obviamente conjugado com o auto de registo e transcrição dos SMS’s aqui em causa, conforme consta de fls. 87 a 93.
Embora nem a queixosa nem qualquer das demais testemunhas inquiridas soubesse afirmar (de memória) qual fosse o número de telemóvel de destino de tais SMS’s como sendo o da aqui queixosa e como se deu como provado, a verdade é que tal número resulta de tal auto de fls. 87 a 93, tendo sido fornecido e constatado pelo OPC que elaborou tal auto, e conforme dele resulta.
Quanto à origem de tais SMS’s, com base no mesmo auto é possível verificar que se trata do número que se refere igualmente nos factos provados como tal.
É evidente que se poderiam gerar dúvidas sobre se tal número de origem das mensagens aqui em sujeito seria de facto pertencente e usado pelo aqui arguido AA, até porque a queixosa AS apenas soube contextualizar as mensagens em causa com base num telefonema anterior que teria recebido no mesmo sentido, e que, segundo a queixosa, seria proveniente de alguém que se identificou como sendo o “filho da ---”, e que por isso, segundo a queixosa, seria alguém que esta apenas conhece pelas alcunhas de “---” ou “---”, assim como o conhece de vista na localidade de ---, não conhecendo o aqui arguido pelo seu verdadeiro nome de AA.
E mesmo as testemunhas T2 (marido da queixosa) e T3 (filha da queixosa), embora também fossem familiares com as aludidas alcunhas de “---” e “---”, e conhecessem de vista a pessoa a que tais alcunhas se referem, também tais testemunhas não puderam associar as aludidas alcunhas ao nome verdadeiro do aqui arguido, que desconheciam.
No entanto, já a este respeito não deixou qualquer dúvida o depoimento prestado pela testemunha T1 (neto da queixosa), o qual revelou que conhece bem o aqui arguido desde a infância e desde que andaram juntos na escola, e conhece-o quer pelo seu verdadeiro nome de AA, quer pelas referidas alcunhas de “---” e “---”, pelas quais disse que o arguido também é conhecido em ---. E mais afirmou esta testemunha que viu as mensagens SMS que a sua avó aqui queixosa recebeu, bem como o número de telefone de onde as mesmas provinham, e confirmou, por consulta aos contactos do seu próprio telemóvel, que correspondia ao número habitualmente usado pelo aqui arguido.
Enfim, com base no que se acaba de dizer, não ficámos com qualquer espécie de dúvida de que as mensagens SMS que constam dos factos provados foram enviadas pelo aqui arguido nos dias e horas que aí se referem, e que foram recebidas pela aqui queixosa, sendo a esta dirigidas.
Por seu turno, lidos e interpretados textos de tais mensagens, não obstante os numerosíssimos e clamorosos erros ortográficos de que padecem, ainda assim é perfeitamente possível interpretá-las no sentido de que o aqui arguido pretende exigir da queixosa AS que esta lhe entregue a quantia de € 60,00, a qual seria referente a uma suposta e alegada dívida que o neto da queixosa T1 teria para com o arguido.
E ao efectuar sucessivamente tais exigências, é também evidente que o arguido vai sugerindo (embora de formas veladas) que poderá praticar males diversos, quer contra a queixosa, quer contra o neto desta, caso a quantia exigida não lhe seja paga, sobretudo quando sugere que irá a casa da queixosa, quer sozinho, quer com o pai, quer com uma “cambada”, que lá irá fazer “vergonhas”, que vai conseguir o dinheiro “de uma forma ou de outra”, que vai acusar a queixosa de burla na GNR, que o neto da queixosa “vai ter um fim muito triste”, que “não brinque” com ele (arguido), que vai acusar o neto da queixosa na GNR de ter cometido diversos assaltos, que não o queiram “testar”, que já se anda “a passar”, e que vai resolver o assunto “de outra forma”, “para não ser pior”.
Por seu turno, quanto à real existência e origem da alegada dívida no valor de € 60,00 a que o arguido sobejamente se refere nos SMS’s aqui em causa, para além de ser evidente que nunca seria a queixosa que na verdade deveria tal valor ao aqui arguido (pois nem este o diz), também o depoimento prestado pela testemunha T1 foi peremptório no sentido de que nada devia nem deve ao aqui arguido, muito menos a quantia de € 60,00 a que este se refere nos SMS’s aqui referidos. Embora com as reservas que tal depoimento possa suscitar quanto a esta questão, a verdade também é que nem o próprio arguido o colocou em causa, na medida em que, não obstante ter sido feito comparecer sob detenção em audiência de julgamento, preferiu simplesmente usar do seu direito a remeter-se ao silêncio.
Enfim, já em jeito de conclusão, tendo já fundamentado de forma perfeitamente suficiente todas as razões de ser para os factos objectivos que demos como provados, mais diremos que os factos igualmente provados a respeito do conhecimento e intencionalidade do arguido são aqueles que resultam de forma clara e óbvia dos demais factos que demos como provados, analisados à luz das mais elementares regras da experiência comum, nada nos levando a concluir que o conhecimento e intencionalidade do arguido fossem quaisquer outros, antes pelo contrário.
Por seu turno, demos como não provado que o arguido tenha alguma vez anunciado perante terceiras pessoas que iria matar AS, isto na medida em que não foi produzida qualquer espécie de prova que sustentasse este facto.
Por fim, quanto ao facto que demos como provado a respeito da condição económica e familiar do arguido, foi relevante a declaração de rendimentos que o mesmo prestou a fls. 64 (ainda que para efeitos de concessão provisória de apoio judiciário), e quanto aos antecedentes criminais do arguido, foi relevante o respectivo CRC de fls. 71 a 74.
(…)”.
*
Da nulidade da sentença
1. Na conclusão 5.4. o recorrente afirma que a sentença recorrida padece da nulidade prevista no art. 379º, nº 1, b) do C. Processo Penal, densificando a alegação no corpo da motivação, dizendo que o constrangimento da ofendida só pode ter acontecido em 19 de Maio de 2016 e 8 e 15 de Junho de 2016, como resulta da transcrição feita pelo OPC a fls. 83 e seguintes, pelo que, sendo o objecto do processo definido pela acusação, não pode o tribunal ir além dos limites desta, sob pena de cometimento da invocada nulidade.
Vejamos.

O regime privativo da nulidade da sentença penal encontra-se previsto no art. 379º do C. Processo Penal que prevê, nas três alíneas do seu nº 1, as três modalidades que, na forma comum do processo, esta patologia apresenta, a saber: a) a ausência das menções referidas no nº 2 e na alínea b) do nº 3 do art. 374º portanto, além do mais, a inexistência de fundamentação; b) a condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia; e, c) a omissão ou o excesso de pronúncia.
No caso de que cuidamos está em causa a nulidade da alínea b), a condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstas nos artigos 358.º e 359.º.
Como é sabido, o nosso processo penal tem estrutura, essencialmente, acusatória (art. 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa) o que vale dizer que só se pode ser julgado pela prática de um crime mediante prévia acusação que o contenha, deduzida por entidade distinta do julgador e constituindo ela, acusação, o limite do julgamento.
Num sistema processual penal de estrutura essencialmente acusatória, o exercício de todas as garantias de defesa (cfr. art. 32º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa) exige a necessária correspondência ou correlação entre a acusação [e a pronúncia, quando exista] e a sentença, vista a necessidade de preservar a imutabilidade do objecto do processo por ela, acusação [ou pronúncia], fixado.
Esta correspondência não é, no entanto, absoluta pois a lei admite que na sentença, por razões de economia processual, ou por razões da paz do arguido, possam ser considerados factos novos, resultantes da discussão da causa [ou por esta tornados relevantes] que constituam alteração dos constantes da acusação [ou da pronúncia], observadas que sejam determinadas formalidades e verificados que sejam determinados pressupostos, matéria que o C. de Processo Penal regula nos arts. 1º, 358º e 359º.
Estamos perante factos novos e portanto, perante uma alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, quando se modifica – substitui ou adita – o concreto «pedaço de vida» que constitui o objecto do processo, dando-lhe uma outra imagem.
Aqui, a primeira distinção a fazer é entre alteração substancial e alteração não substancial de factos.
O art. 1º, f) do C. Processo Penal define «alteração substancial dos factos» como aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. O primeiro requisito é que ocorra uma modificação dos factos, considerando-se facto o acontecimento ou ocorrência, passada ou presente, susceptível de prova. Depois, é necessário que a modificação ocorra em factos relevantes para a imputação de um crime ou para a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
A alínea a) do mesmo artigo define «crime» como o conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais. O crime que para este efeito releva, é o crime diverso, entendido, não como diferente tipo legal, em sentido substantivo, mas no sentido de facto diferente, facto situado para além dos limites do «pedaço da vida» que constitui o objecto do processo e portanto, um crime novo. A autonomia dos critérios estabelecidos no art. 1º, f) do C. Processo Penal determina que não deixa de ser crime diverso o que, face à alteração dos factos, passa a ser punido com sanção menos grave.
A «alteração não substancial dos factos» define-se por exclusão de partes, comungando desta qualidade toda a alteração de factos que, não sendo substancial, tenha relevo para a decisão da causa (cfr. art. 358º, nº 1 do C. Processo Penal). E é a violação do regime legal desta que o recorrente invoca, regime que se encontra fixado no art. 358º, nº 1 do C. Processo Penal e que consiste, basicamente, na comunicação da alteração factual ao arguido e na concessão do tempo estritamente necessário para a preparação da defesa, considerada em toda a sua amplitude.

2. Revertendo para a alegação do recorrente, com ressalva do devido respeito, algo equívoca, parece o mesmo pretender que o ponto A) dos factos provados não se mostra conforme a acusação pois, a ter acontecido o imputado constrangimento da ofendida, este só pode ter acontecido nos dias 19 de Maio e 8 e 15 de Junho de 2016 e não, como ali se considerou provado, entre 19 de Maio e 15 de Junho de 2016, assim se dando como provados nos pontos A) e C) dos factos provados da sentença, factos que estão para além dos limites da acusação.
Os pontos de facto provados, em referência, têm a seguinte redacção:
- [A] Entre os dias 19 de Maio de 2016 e 15 de Junho de 2016, o arguido AA, invocando uma alegada dívida de que seria credor relativamente a T1, que é neto da queixosa AS, no montante de €60,00 (sessenta euros), visou constranger esta última ofendida a entregar-lhe a aludida quantia em dinheiro;
- [C] Não conformado, o arguido, imbuído de tal propósito, através do telemóvel com o número 9---, remeteu para a queixosa, por via do respectivo telemóvel com o número 9---, as seguintes mensagens SMS (que constam transcritas a fls. 87 e seguintes e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido):
- No dia 19 de Maio de 2016, às 14h55m: “Boas tardes olhe o T1 dizem que você me dava o dinheiro porque a sua filha não me o quer dar eq sao 60euros s foze menus nem he dizia nada pesso dsclp dona AS”.
- No dia 19 de Maio de 2016, às 15h48m: “dona AS é asim n quero tar a ir a casa de nimgai achu que se emprestei ao seija o que for achu que o dever é devolver se sua filha nao o da e nao deixa ele o dar dame voce e quando o T1 for trblhar cm o avo dele descontahe os 60euro que me vai dar por ele ne achu que não tems d tar aranjar mais problemas”.
- No dia 19 de Maio de 2016, às 16h11m: “olhe não atende a gnr tmbm nao vou ne por 60euros mas olhe se hje ate amanha a tarde nao tiver o dinheiro vou ser obrigado eu e o meu pai irmos ai pedir o dinheiro a sua casa achu que n vale a pena passar vergonha a sua porta por uma divida tao pequena ok? Eu digo msm se não tiver meu dinheiro d uma fora tanho d outra acredite não queria nada fazer isso.”.
- No dia 19 de Maio de 2016, às 16h15m: “Veija la isso bem cm ela e vanham por o dinheiro a bem se nao amanha vou ai cm meu pai a buscar o dinheiro d uma forma ao d outra eu vou ter porque é meu e fazme falta tanhu contas a pagar tanhu vida cm voce os 60euros dam um jeitao veija la d amanha nao passa ja la vai 1 mes que tou a espera dle. Amanha nem que vaia ai tal cm voces foram a minha soque eu vou buskar o que me pertence”.
- No dia 19 de Maio de 2016, às 16h26m: “Qem vai a gnr sou eu seus ladroes tao empresto dinheiro a ele e a gora nao me o da eu eq vou acusar voce de burla”.
- No dia 19 de Maio de 2016, às 16h27m: “Ela tem um proseso d omisidio a gra mais esta s querem asim a gnr vai s meter nu barulho”.
- No dia 8 de Junho de 2016, às 11h29m: “Bom dia dona AS ao me dao os 60 euros ao seu neto ade ter um fim muito triste he garanto n brinque cmg e s for a gnr eu dgo qem assaltou o tio artur e o tio mario que foi seu neto e tanho provas que ele gavouse para mim e para muitos portanto o que fez o basof fazolhe eu.”.
- No dia 8 de Junho de 2016, às 11h32m: “N me queram destar eu ja m ando a passar cm voces todos vai des do neto ao pais e avos tdo uma garotada pegada. Caloteiros”.
- No dia 8 de Junho de 2016, às 11h52m: “Veija la isso s n vam obrigar a resolver d otra forma nem que pesa o dinheiro ao snhor ricardo e dghe os motivos para descontar 60 do rafael e ta feito isto para n ser pior e vir ai a cambada a kasa da sua filha”.
- No dia 8 de Junho de 2016, às 22h52m: “Olhe seu neto que tanha atencao ao que fala e para qem eu que o apanhe na rua que logo ve atao o macho que ele.”.
- No dia 15 de Junho de 2016, às 11h57m: “Kagai mase o papel. Qe ja ando pasadinho ate qe algum dia bato na sua porta mas n sou so eu qe assim n m fodem km bofia”.

O 1º parágrafo da acusação pública de fls. 99 verso a 101 tem a seguinte redacção:
- A partir de 19 de maio de 2016, o arguido, invocando uma alegada dívida de que seria credor relativamente a T1 – neto da ofendida AS, no montante de € 60,00 (sessenta euros), tem vindo a exercer diversas formas de pressionar esta última, entre as quais anunciava perante terceiras pessoas que a iria matar, por forma a constrangê-la a entregar-lhe vantagem patrimonial.
Por sua vez, o 3º parágrafo da mesma acusação tem a seguinte redacção:
- Não conformado, o arguido, imbuído de tal propósito, através do telemóvel com o número 9---, remeteu para a ofendida, por via do respectivo telemóvel com o número 9---, as seguintes mensagens SMS (que constam transcritas a fls. 87 e ss. e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido):
- No dia 19 de Maio de 2016, às 14h55m: “Boas tardes olhe o T1 dizem que você me dava o dinheiro porque a sua filha não me o quer dar eq sao 60euros s foze menus nem he dizia nada pesso dsclp dona AS”.(…) [segue-se a transcrição das demais mensagens, tal como constam do ponto C) dos factos provados da sentença].

Comparando o 1º parágrafo da acusação com o ponto A) dos factos provados detectamos duas diferenças, a saber:
- A primeira é a de que no dito parágrafo consta o anúncio feito pelo arguido a terceiras pessoas de que iria matar a ofendida, anúncio que não consta do ponto A) dos factos provados, e consta, aliás, como o único ponto não provado dos factos não provados da sentença;
- A segunda é a de que no dito parágrafo consta o início da actividade desenvolvida pelo arguido – 19 de Maio de 2016 – mas não o termo da mesma, embora este resulte do teor do 3º parágrafo da acusação, por referência à data da última mensagem SMS aí mencionada – 15 de Junho de 2016 – enquanto do ponto A) dos factos provados constam quer o início – 19 de Maio de 2016 – quer o termo – 15 de Junho de 2016 – de tal actividade.
Comparando o 3º parágrafo da acusação com o ponto C) dos factos provados verificamos a total correspondência entre os respectivos conteúdos.
Sendo evidente que a matéria levada aos pontos A) e C) dos factos provados da sentença recorrida se mantêm dentro do circunstancialismo de tempo, lugar e modo, descritos na acusação pública, resta concluir, sem mais considerações, por completamente desnecessárias, pela inexistência da nulidade prevista na alínea b) do nº 1 do art. 379º do C. Processo Penal.
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Da desconformidade da decisão proferida sobre a matéria de facto com a prova produzida na audiência de julgamento
3. Alega o recorrente – conclusões 5.2., 5.6., 5.8., 5.9. e 5.10. – que os factos provados que constam das alíneas A) e C) tal como se encontram fixados, não estão conformes com a prova produzida na audiência de julgamento pois aqui não ficou provado que tenha sido quem enviou as mensagens documentadas nos autos, pois também não ficou provado que o nº 9--- fosse o seu, ficando também por esclarecer, quanto à alínea E) dos factos provados que mal importante é o que aí se refere. Aparentemente, o recorrente invoca erro de julgamento, incidindo sobre os identificados pontos de facto.
Vejamos.
O recurso da matéria de facto foi concebido pelo legislador como um remédio para sanar o que considera excepcional no julgamento da 1ª instância, o erro na definição do facto e por isso, não deve ser encarado como um novo julgamento, como se o que teve lugar no tribunal recorrido não tivesse acontecido.
Nesta decorrência, a lei atribui exclusiva competência ao recorrente para a indicação precisa do erro ou dos erros que entende terem sido cometidos, sob pena da inviabilização do conhecimento do recurso. Para tanto, deve o recorrente observar o ónus da tripla especificação prevista no art. 412º, nº 3 do C. Processo Penal: a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, a especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e a especificação das provas que devem ser renovadas [esta, nos termos do art. 430º, nº 1 do C. Processo Penal, apenas quando se verificarem os vícios da decisão e existam razões para crer que a renovação permitirá evitar o reenvio].
Uma outra exigência acresce a este ónus quando as concretas provas especificadas sejam prova por declarações, gravada. Neste caso, as duas últimas especificações devem ser feitas por referência ao consignado na acta da audiência de julgamento, com a concreta indicação das passagens em que o recorrente funda a impugnação (nº 4 do art. 412º do C. Processo Penal).
Formalmente, todas estas especificações devem constar ou poder ser deduzidas das conclusões apresentadas no recurso (art. 417º, nº 3 do C. Processo Penal).
Mas para a procedência da impugnação, para a modificação da decisão de facto, não basta que as provas especificadas pelo recorrente permitam uma decisão diversa da proferida pelo tribunal, não basta contrapor à convicção do juiz outra convicção diversa. É que o tribunal decide, ressalvados os casos de prova tarifada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção [o que, não raras vezes, é ignorado pelos recorrentes], sendo por isso necessário que as provas especificadas, na observância do referido ónus, imponham decisão diversa da recorrida, o que significa que é necessária a demonstração de que a convicção expressa na motivação de facto da sentença quanto aos pontos de facto impugnados, é impossível e/ou desrazoável.
A demonstração da imposição de decisão diversa da recorrida, que constitui a essência do ‘dever’ de especificação, recaí também sobre o recorrente que, para tanto, deve relacionar o conteúdo específico de cada meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 2007, Universidade Católica Editora, pág. 1135).
O recorrente identificou os concretos pontos de facto provados [A), C) e E)] que considera incorrectamente julgados.
Contudo, não especificou isto é, não precisou, qualquer meio de prova que impusesse decisão diversa da recorrida, limitando-se a afirmar que apenas se provou que as mensagens para a ofendida foram enviadas pelo nº 9--- mas não que este número lhe pertencesse e que, por isso, tenha sido o autor do envio, que exerceu o direito ao silêncio pelo que não pode, por isso, ser desfavorecido, que a ofendida e as testemunhas T2 e T3, marido e filha daquela, que afirmaram não conhecer o recorrente pelo nome mas apenas pelas alcunhas, «---» e «---», e que nem sequer está concretamente afirmado o mal importante com que terá ameaçado a ofendida.
Nesta sequência, é também notório que o recorrente não cumpriu o ónus supra referido, no que respeita à concreta indicação das passagens da prova por declarações em que funda a impugnação.
Na verdade, o que o recorrente fez foi discordar da valoração probatória feita pelo tribunal a quo, que é um direito que lhe assiste, mas sem que tenha impugnado especificadamente a decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos em que a lei o exige para que possa ser relevada.
Não obstante, sempre diremos o que segue.

4. Na motivação de facto da sentença recorrida o Mmo. Juiz a quo fez expressa menção das dificuldades que, em tese, poderiam surgir quanto à titularidade do número do telemóvel que emitiu as mensagens enviadas para o telemóvel da ofendida, mas explicou de forma clara e lógica as razões que o levaram a dissipar tal obstáculo. Com efeito, aí reconheceu que a ofendida apenas soube contextualizar as mensagens recebidas através de um prévio telefonema que recebeu de alguém que se identificou como filho da «---» e que apenas conhecia pelas alcunhas de «---» e «---», e que as testemunhas T2 e T3 apenas conheciam de vista o arguido e pelas mesma alcunhas, mas cimentou estes depoimentos com o depoimento da testemunha T1, neto da ofendida – depoimento que o recorrente ignorou na argumentação aduzida – pois a testemunha revelou pleno conhecimento do arguido – haviam sido colegas de escola – sabendo, portanto, quer o seu nome, quer as suas alcunhas, e tendo visto o número do telemóvel que enviava mensagens para o da sua avó, percebeu que era o número habitualmente usado pelo arguido.
Perante estes elementos, sendo absolutamente irrelevante a circunstância de, quer a ofendida, quer as testemunhas T2 e T3, desconhecerem o nome do arguido, face ao depoimento da testemunha T1 e sendo verdade – como resulta da identificação do recorrente que consta do Relatório da sentença recorrida – que a mão deste se chama ---, era razoável concluir, como concluiu a 1ª instância, que o telemóvel que enviou as mensagens para o telemóvel da ofendida era o telemóvel do arguido e que, consequentemente, foi este quem as enviou.
É certo que o recorrente exerceu, legitimamente, o direito ao silêncio na audiência de julgamento e como bem diz, tal circunstância em caso algum o podia desfavorecer, precisamente porque do exercício de um direito se trata. Não diz, porém, o recorrente, onde e como foi, na sentença em crise, desfavoravelmente valorado tal exercício.
Mas não pode o recorrente ignorar que o conteúdo da proibição do desfavorecimento se refere apenas ao aspecto jurídico isto é, não pode o arguido ser juridicamente desfavorecido pelo exercício do silêncio, mas já pode sê-lo numa perspectiva de facto, quando, por exemplo, do silêncio resulte o desconhecimento e consequente desconsideração pelo tribunal, de circunstâncias explicativas de um outro acontecer da acção ou justificadoras da mesma, sendo inquestionável que neste caso, o exercício do silêncio representará um privilegium odiosum para o arguido (cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª Edição, 1974, Reimpressão 2004, Coimbra Editora, pág. 449).
Assim, sendo seu o telemóvel de onde eram originárias as mensagens enviadas para o telemóvel da ofendida, e sendo legítima a conclusão que tenha sido o próprio a enviá-las, se, por hipótese de raciocínio, assim não sucedeu, v.g., porque alguém, abusivamente, utilizou, sem o seu consentimento, o aparelho, deveria ter levado tal circunstancialismo ao conhecimento do tribunal. Não o fazendo, subsiste a prova de primeira aparência, sem que a valoração feita pelo tribunal tenha violado o princípio previsto no art. 127º do C. Processo Penal pois, dizem as regras da normalidade que as mensagens enviadas por um telemóvel o foram pelo respectivo dono ou por terceiro por ele autorizado.
Em suma, mantêm-se os pontos A) e C) dos factos provados nos exactos termos que que foram fixados pela 1ª instância.

No que respeita à falta de concretização do mal importante ameaçado, mencionado no ponto E) dos factos provados da sentença em crise – cujo conteúdo versa o dolo – é evidente que não assiste razão ao recorrente.
Sendo verdade que outra redacção poderia ter sido utilizada, o que acontece é que o ponto de facto questionado, porque referente ao elemento subjectivo do tipo, tem que ser conjugado com os factos que integram o tipo objectivo do crime imputado designadamente, ao ponto C) dos factos provados.
Ora, basta ler o teor deste ponto de facto, que contém as mensagens enviadas para o telemóvel da ofendida, para nelas encontrar, sem dificuldade de maior, não obstante os atropelos gramaticais existentes, a ameaça de recurso a violência para obter a quantia pretendida – a título de exemplo, vejam-se as mensagens de 19 de Maio de 2016 [se não tiver o meu dinheiro de uma forma, tenho de outra / vou aí com o meu pai buscar o dinheiro de uma forma ou de outra], 8 de Junho de 2018 [ou me dá os € 60 ou o seu neto há-de ter um fim muito triste, e garanto não brinque comigo].
E é precisamente a esta ameaça de violência e consequente afectação da integridade física e psíquica da ofendida que se refere o mal importante mencionado no ponto E) dos factos provados da sentença.
Em suma, também quanto a este aspecto, nada há a censurar à sentença recorrida.
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Tendo-se por definitivamente fixada a matéria de facto, nos exactos termos em que o foi pela 1ª instância, preenchendo esta o tipo, objectivo e subjectivo do crime de extorsão na forma tentada, por cuja prática foi o recorrente condenado nos autos, e respeitando a pena decretada os critérios legais da sua determinação, improcedem as conclusões do recurso, devendo ser mantida a sentença recorrida.
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III. DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.
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Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCS. (arts. 513º, nº 1 do C. Processo Penal e 8º, nº 9 do R. das Custas Processuais e tabela III, anexa).
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Coimbra, 8 de Maio de 2018

Heitor Vasques Osório (relator)
Helena Bolieiro (adjunta)