Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1222/18.3T8GRD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAIS JUDICIAIS
QUOTIZAÇÕES
SEGURANÇA SOCIAL
REEMBOLSO
Data do Acordão: 03/03/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DA GUARDA - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.212 CRP, 592 CC, 1 E 4 ETAF, LEI Nº 4/2007 DE 16/1
Sumário: I - A entidade patronal que foi obrigada a regularizar a situação contributiva de uma sua trabalhadora perante a Segurança Social, pagando as contribuições devidas por ela, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 59.º da Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro (Bases Gerais do Sistema de Segurança Social), porquanto reconheceu, em ação instaurada no tribunal de trabalho pela trabalhadora, que a relação laboral durava há já vários anos, fica sub-rogada nos direitos que o credor (Segurança Social) tinha sobre o devedor (Ré) e foram, por imposição legal, satisfeitos pela Autora.
II - A ação declarativa instaurada pela entidade patronal contra a trabalhadora para obter a condenação desta a pagar-lhe estas quantias é da competência dos tribunais comuns.
Decisão Texto Integral: I. Relatório

a) O presente recurso vem interposto pela Ré A (…), porquanto sustenta que o tribunal recorrido não tem competência material para conhecer da questão aí colocada pela Autora, contrariamente á decisão sob recurso que considerou o tribunal comum materialmente competente.

b) E desta decisão que vem interposto recurso por parte da demandada, cujas conclusões são as seguintes:

I. Questão fiscal para efeitos de delimitação de competência entre os tribunais tributários e os tribunais administrativos é a que “exija a interpretação e aplicação de quaisquer normas de direito fiscal substantivo ou adjectivo, para resolução de questões sobre matéria respeitantes ao exercício da função tributária da Administração Pública” (CPPT, anotado e comentado, 6.ª edição 2011, I volume, página 230, Juiz Conselheiro Jorge Lopes de Sousa) – o sublinhado é nosso -.

II. As contribuições para a Segurança Social, “(…) enquanto verdadeiras quotizações sociais, não são impostos ou taxas, mas imposições parafiscais: embora apresentem grandes semelhanças com os impostos, partilhando das características destes (patrimonialidade, obrigatoriedade, afectação a entidades públicas), contêm, em vários domínios do seu regime jurídico, algumas especificidades que deles as distinguem - designadamente quanto às finalidades, forma de criação e modificação, e natureza dos organismos em favor dos quais são atribuídos - e que melhor se acomodam à tese da parafiscalidade” - Cfr. Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 2008.01.17, Processo n.º 016/07, in www.dgsi.pt.

III. O pedido formulado pela Autora insere-se, sem margem para dúvidas, no âmbito da relação jurídica contributiva e visa assegurar o cumprimento, pela entidade empregadora, da respectiva obrigação contributiva, que quer a Lei nº 4/2007 de 16/1 – Lei de Bases da Segurança Social – quer o Código do regime Contributivo do Sistema Previdencial de Segurança Social estabeleceram.

IV. Ora, o Tribunal dos Conflitos tem referido, há muito, que, no âmbito desta relação jurídica contributiva, a entidade empregadora não está constituída perante o trabalhador em qualquer dever jurídico - Cfr. Acórdãos do Tribunal dos Conflitos de 2004.10.27 (Processo n.º 2/2004), de 2006.10.04 (Processo n.º 3/2006) e de 2008.01.17 (Processo n.º 016/07), todos in www.dgsi.pt, entendendo que é da competência dos tribunais tributários conhecer da acção intentada pelo trabalhador contra a entidade patronal, pedindo a condenação a proceder aos pagamentos contributivos considerados em falta – Cfr. Acórdãos acima cit. -, situação que não é alterada pelo facto de ter sido a entidade patronal a interpor a acção.

V. Para julgar improcedente a excepção de incompetência do tribunal, socorreu-se dos ensinamentos do douto Acórdão da Relação do Porto de 06-06-2016, tirado no Proc. nº 424/13.3TTVFR.P1, ensinamentos que, salvo o devido respeito, não são transponíveis para a presente lide, os quais, aliás, apenas são aplicáveis à Ré caso esta decida interpor acção com vista a obter a condenação da Autora no pagamento de uma indemnização pelos prejuízos causados por, designadamente, não a ter inscrito atempadamente na Segurança Social e pela emissão de um recibo onde, falsamente, fez constar o pagamento de remunerações que nunca liquidou - pois caso contrário teria efectuado os descontos das quotizações à Segurança Social referentes ao período entre Outubro de 2010 e Maio de 2014 -, com a consequente tributação, em sede de IRS, de rendimentos não auferidos pela Ré e o subsequente pagamento de impostos.

VII. E tais ensinamentos não são transponíveis para a presente lide porquanto “[a] dívida de contribuições à Segurança Social não emerge de responsabilidade civil contratual, nem emerge de responsabilidade civil extracontratual. O mesmo vale por dizer: não emerge de negócio jurídico celebrado entre a entidade empregadora e a Segurança Social, nem emerge de facto ilícito extra-negocial no sentido do disposto no artigo 483º/CC. Tem sim por fonte a própria lei, que se inscreve no direito público, (…)” designadamente na Lei de Bases da Segurança Social e no Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social. A dívida de contribuições à Segurança Social não se rege pela lei civil. O regime da dívida e da sua cobrança obedece a regras específicas constantes desse acervo de direito público (…)” - Cfr. Ac. da RE, de 25.03.2010, tirado no processo 628/07.8TAELV.E1 – o sublinhado e destacado é nosso -.

VIII. Assim, e atendendo ao alegado, verifica-se que na presente acção é peticionada a condenação da Ré no pagamento das próprias contribuições que não foram entregues nos termos da legislação sobre segurança social, ou seja, o que a Autora pretende é a condenação da Ré no pagamento de débitos que ela não descontou por falta de pagamento das remunerações base e cujo fundamento jurídico não é o disposto nos artigos 483.º e seguintes do Código Civil, mas sim a legislação sobre segurança social.

IX. Ora, as entidades empregadoras são responsáveis pelo pagamento das quotizações dos trabalhadores ao seu serviço, devendo para o efeito proceder, no momento do pagamento das remunerações, à retenção na fonte dos valores correspondentes. – Cfr. art. 59º, nº 1, da Lei nº 4/2007 de 16/01 e art. 42º , nºs 1 e 2, do Código Contributivo -, pelo que o pedido de pagamento das próprias contribuições – ao invés do referido na douta decisão impugnada – não emerge de responsabilidade civil extracontratual, não tendo, aliás, a Autora legitimidade nem competência para cobrar receitas parafiscais – como é o caso das contribuições para a Segurança Social.

X. Assim sendo, a presente acção, enquanto versa sobre a relação jurídica contributiva e apela à interpretação e aplicação de normas de natureza tributária, tem por objecto matéria que é da competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal - Cfr. arts. 4º e 49°, nº 1, al. c) do ETAF.

XI. Violou o tribunal a quo o disposto nos arts. 64º do CPC e 80º, nº 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário.

TERMOS EM que deve julgar-se procedente o presente recurso, revogando-se, consequentemente, a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que julgue o tribunal a quo incompetente para conhecer da acção em causa, com a consequente absolvição da instância da Recorrida, o que constitui uma decisão de Justiça».

c) A Autora contra-alegou pugnando pela manutenção da decisão sob recurso porque o que está em causa é apenas uma relação jurídica entre a Autora e a Ré estando a Segurança Social afastada do litígio.

II. Objeto do recurso.

O presente recurso coloca apenas a seguinte questão: saber se uma ação é da competência material dos tribunais fiscais ou dos tribunais comuns quando a autora (Unidade Local de Saúde (…), E.P.E.), demanda a ré com o fim de obter condenação desta a pagar-lhe a quantia de 5.793,03€, porquanto foi esta a quantia que a autora pagou à Segurança Social devido ao facto da ré ser sua trabalhadora dependente, sendo certo que esta quantia resulta das quotizações referentes ao período que medeia entre outubro de 2010 e maio de 2014, e corresponde à percentagem de 11% sobre o vencimento da ré e cujo pagamento era da responsabilidade desta.

Ou seja, a Autora pede a quantia que pagou do seu bolso à Segurança Social e devia ter saído do bolso da ré.

III. Fundamentação

a) 1. Matéria de facto – Factos alegados na petição

1- A Ré exerceu a atividade de enfermeira, desde 08 de outubro de 2010, nos serviços da Autora através de uma prestação de serviços celebrada com a S (…), Lda.;

2- Por sentença, datada de 10 de julho de 2014, proferida no processo n.º 68/14.2TTGRD, que correu termos no Tribunal do Trabalho da Guarda, a Ré viu reconhecida a existência de contrato de trabalho com a Autora desde 06 de Outubro de 2010

3- Nessa decorrência, a Ré intentou ação emergente de contrato de trabalho, através da qual peticionou pagamentos a título de remunerações de férias vencidas e não pagas, a título de subsídio de férias, a título de subsídio de Natal, a título de acréscimo remuneratório por trabalho prestado em dias de feriados, a título de retribuição pelas faltas justificadas relacionadas com o casamento, juros moratórios, à taxa legal, sobre as quantias em dívida, custas e demais encargos do processo;

4- Assim, e no âmbito do processo nº 1132/15.6T8GRD, que correu termos no Tribunal do Trabalho da Guarda, bem como da ação executiva interposta pelo Ré, foi-lhe pago pela ULSG o determinado em sentença, ou seja, 11.520,26 €, deduzido de IRS e taxa de Segurança Social da responsabilidade da trabalhadora referentes aos créditos acima identificados – a que corresponde o art. 6.º da petição inicial;

5- Dado o reconhecimento contratual em causa, a Autora teve que regularizar a inscrição da Ré no Regime de Segurança Social com efeitos a 06 de outubro de 2010, tendo por base a retribuição mensal de 1.201,48€, valor que foi considerado na sentença proferida no âmbito do processo n.º 1132/15.6T8GRD;

6- E, para efetuar a regularização do trabalhador perante o Instituto da Segurança Social, teve a Autora que suportar, para além da percentagem que é da sua responsabilidade, a taxa que é da responsabilidade da Ré e que corresponde a 11% do valor auferido a título de vencimento.

b) Apreciação da questão objeto do recurso

Afigura-se que é de manter a decisão sob recurso que se pronunciou no sentido de ser competente o tribunal comum, pelas seguintes razões:

1 – Como foi referido na sentença e vem referido nas alegações de recurso para aferir da competência material atende-se ao pedido que é feito, logicamente conexionado com a causa de pedir.

2 – Nos termos do n.º 3 do artigo 212.º da Constituição da República Portuguesa, «Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».

Nas palavras de Gomes Canotilho/Vital Moreira, «Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão do poder público (especialmente da administração), (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico-civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal» (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, pág. 815).

O n.º 1 do artigo 1.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro) repete a mesma ideia, isto é, «Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».

E no artigo 4.º concretizam-se os casos de competência material, dispondo:

1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:

a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais;

b) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;

c) Fiscalização da legalidade de atos administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública;

d) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos;

e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;

f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo;

g) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo ações de regresso;

h) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público;

i) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime;

j) Relações jurídicas entre pessoas coletivas de direito público ou entre órgãos públicos, reguladas por disposições de direito administrativo ou fiscal;

k) Prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas;

l) Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo e do ilícito de mera ordenação social por violação de normas tributárias;

m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas coletivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;

n) Execução da satisfação de obrigações ou respeito por limitações decorrentes de atos administrativos que não possam ser impostos coercivamente pela Administração;

o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores.

2 - Pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade.

3 - Está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto a impugnação de:

a) Atos praticados no exercício da função política e legislativa;

b) Decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e fiscal;

c) Atos relativos ao inquérito e instrução criminais, ao exercício da ação penal e à execução das respetivas decisões.

4 - Estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:

a) A apreciação das ações de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, assim como das correspondentes ações de regresso;

b) A apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público;

c) A apreciação de atos materialmente administrativos praticados pelo Conselho Superior da Magistratura e seu Presidente;

d) A fiscalização de atos materialmente administrativos praticados pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça;

e) A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva».

Acerca da noção de relação jurídica de direito administrativo, o Prof. Freitas do Amaral definiu-a como sendo «…aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a administração» (Direito Administrativo, Vol. III. Lições aos alunos do curso de Direito em 1988/89, Lisboa/1989, pág. 439/440)

Por sua vez, o Tribunal de Conflitos no seu acórdão de 8 de Dezembro de 2010 referiu-se a esta problemática nos seguintes termos:

«…o conceito de relação jurídica administrativa é decisivo para determinar a repartição de competências entre os tribunais Administrativos e os Tribunais Judiciais, na medida em que essa repartição se faz em função do litígio cuja resolução se pede emergir, ou não, de uma relação jurídica administrativa. Nesta conformidade, para se saber qual o tribunal materialmente competente para conhecer da pretensão formulada pelo Autor – se o Judicial se o Administrativo – importará analisar em que termos foi desenhada a causa de pedir e qual foi o pedido formulado, pois será essa análise que nos indicará se estamos, ou não, perante uma relação jurídica administrativa. Sendo certo que para esse efeito é irrelevante o juízo de prognose que se faça relativamente à viabilidade da pretensão, por se tratar de questão atinente ao seu mérito» (Em http://www.gdsi.pt, processo n.º 020/10).

Sobre o conceito de relação jurídica administrativa o mesmo tribunal, no seu acórdão de 25-11-2010, considerou que, «Por relações jurídicas administrativas devem entender-se aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de interesse público legalmente definido» (Em http://www.gdsi.pt, processo n.º 021/10.).

Sintetizando o que fica exposto, para podermos reconhecer e afirmar que estamos face a uma relação jurídica administrativa temos de isolar dois elementos: por um lado, um dos sujeitos há-se ser uma entidade pública ou se for privada deve atuar legalmente, no caso, como se fosse pública e, por outro, os direitos e deveres que constituem a relação hão de emergir de normas legais de direito administrativo.

Vejamos então.

3 – A situação legal que deu origem ao pedido da Autora contra a Ré tem como causa a norma do no n.º 1 do artigo 59.º da Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro (Bases Gerais do Sistema de Segurança Social), relativo à responsabilidade pelo pagamento das contribuições, onde se dispõe:

«As entidades empregadoras são responsáveis pelo pagamento das quotizações dos trabalhadores ao seu serviço, devendo para o efeito proceder, no momento do pagamento das remunerações, à retenção na fonte dos valores correspondentes».

A entidade patronal está obrigada por lei a descontar no salário que paga ao trabalhador a quantia (11% do salário) que o trabalhador é obrigado a entregar ao Estado (Segurança Social) por ser trabalhador e receber um salário.

Verifica-se que a lei impõe a um terceiro (entidade patronal) a satisfação de uma dívida alheia, neste caso uma dívida do trabalhador.

Estamos aqui na presença de uma situação jurídica que pode dar origem a uma situação de sub-rogação legal.

Esta figura vem prevista no n.º 1 do artigo 592.º do Código Civil nestes termos:

«Fora dos casos previstos nos artigos anteriores ou noutras disposições da lei, o terceiro que cumpre a obrigação só fica sub-rogado nos direitos do credor quando tiver garantido o cumprimento ou quando, por outra causa, estiver diretamente interessado na satisfação do crédito».

Por conseguinte, nos casos em que por qualquer vicissitude a entidade patronal é obrigada a pagar a contribuição devida pelo trabalhador à Segurança Social, mas não pode fazer o desconto no seu salário, porque, por exemplo, a relação laboral já decorreu há anos atrás e só foi reconhecida como tal anos depois, como no caso dos autos, a entidade patronal fica sub-rogada nos direitos que a Segurança Social tem sobre o trabalhador.

A sub-rogação é uma forma de transmissão singular de créditos (Almeida Costa – Direito das Obrigações, 4.ª edição. Coimbra Editora, 1984. pág. 560) e, nas palavras de Antunes Varela, «A sub-rogação pode assim definir-se, segundo um critério puramente descritivo, como a substituição do credor, na titularidade do direito a uma prestação fungível, pelo terceiro que cumpre em lugar do devedor ou que faculta a este os meios necessários ao cumprimento» (Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7.ª edição. Coimbra: Almedina Editora, 1999, pág. 335/336).

Ou seja, devido ao facto da Ré ter obtido ganho de causa numa ação que intentou contra a Autora no Tribunal do Trabalho, onde a Autora reconheceu que havia desde 2010 uma relação laboral entre ambas, a Autora foi obrigada a regularizar junto da Segurança Social as quotizações que resultaram do reconhecimento feito nessa sentença da relação laboral em causa, estando em falta as aludidas quotizações para a Segurança Social.

Agora a Autora vem pedir à Ré, através do mecanismo da sub-rogação legal, as quantias que numa situação comum teria retido na fonte no momento de pagar os salários à Ré.

Se porventura se sustentar que a pretensão da Autora não se funda em sub-rogação, sempre a pretensão poderia ser fundada no instituto do enriquecimento sem causa, porquanto «Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou» - n.º 1 do artigo 473.º do Código Civil.

3 - No que respeita ao pedido e causa de pedir verifica-se que a Autora pretende obter da Ré o pagamento de uma quantia em dinheiro, ou seja, a mesma quantia que pagou a um credor, mas cujo devedor era a Ré e não a Autora.

Colocada assim a questão, não se estabelece qualquer conexão material com os tribunais fiscais, pois o que é relevante para a autora e para ré não é a natureza da matéria de onde emergiu a dívida, que sem dúvida tem natureza fiscal, mas sim a existência da dívida em si mesma.

Repare-se que a relação fiscal se dá entre a Autora e a Segurança Social e não entre a Autora e a Ré.

Como se disse acima, a autora vem agora exercer apenas um direito de crédito sobre a ré por estar legalmente sub-rogada nos direitos que foram da Segurança Social ou com base em enriquecimento sem causa.

Se o conflito surgisse entre a Autora e a Segurança Social, tendo por cenário as referidas quotizações, aqui sim, estávamos a lidar com uma relação jurídica de natureza fiscal.

Mas não é o caso, porquanto a relação jurídica de natureza fiscal já se cumpriu entre a Autora e a Segurança Social e agora estamos perante uma relação jurídica nova, perante outra relação jurídica que tem outro protagonista, ou seja, a Ré.

Nesta segunda relação jurídica a relação jurídica fiscal desempenha um papel secundário, pois a relação fundamental é agora constituída pela existência de um crédito da Autora sobre a Ré, com fundamento na mencionada sub-rogação legal prevista no n.º 1 do artigo 592.º do Código Civil ou, em todo o caso, com base em enriquecimento sem causa.

A natureza da relação jurídica que gerou a dívida cujo pagamento se pede já não é relevante para definir a competência material do tribunal.

Não se encontraria justificação para obrigar alguém a instaurar uma ação num tribunal fiscal para pedir que este tribunal condenasse o cidadão A (a ré) a pagar ao cidadão B (a autora), a quantia que B pagou no cumprimento duma dívida fiscal, mas que em última instância era da responsabilidade de A. 

O que está aqui em causa é uma dívida entre particulares, portanto uma relação jurídica de direito privado, sendo secundário e irrelevante o facto dessa dívida se ter originado no âmbito de relações de natureza fiscal ou de outra natureza.

Ou seja, contrariamente ao sustentado pela recorrente, já não estamos perante uma dívida fiscal e, por isso, a competência não pode ser dos tribunais fiscais.

O que fica referido compreende-se melhor se se tiver em conta que as execuções são instauradas em regra perante os tribunais que proferem a sentença que se executa.

Com efeito, nos termos da al. n), do n.º 1, do artigo 4.º, da Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a «Execução das sentenças proferidas pela jurisdição administrativa e fiscal».

Ora, neste caso, se a ré fosse condenada e a autora quisesse executar a sentença, a autora teria de instaurar a execução no tribunal fiscal para este executar o património da ré e entregar o dinheiro à autora.

Ora, parece claro que neste caso o tribunal fiscal está a cobrar uma dívida entre particulares e não está a agir em matéria da sua competência.

Estando afastada a competência do tribunal fiscal, o caso cabe na competência dos tribunais comuns, nos termos do artigo 80.º, n.º 1, da Lei 62/2013 de 26 de agosto, onde se dispõe que «Compete aos tribunais de comarca preparar e julgar os processos relativos a causas não abrangidas pela competência de outros tribunais».

Cumpre, por conseguinte, manter o decidido.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e mantém-se a decisão recorrida. Custas pela recorrente.


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Coimbra, 3 de março de 2020

Alberto Ruço ( Relator)

Vítor Amaral

Luís Cravo