Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4564/17.1T8CBR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
RESPONSABILIDADES PARENTAIS
REGULAMENTO COMUNITÁRIO
RESIDÊNCIA HABITUAL
Data do Acordão: 11/05/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA, COIMBRA, JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: REGULAMENTO (CE) Nº 2201/2003 DE 27/11/2003, ARTS.2, 8, 18, 36 CRP, 8 CEDH, 62, 63 CPC
Sumário: 1.-Nos termos do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental ( que revogou o anterior Regulamento (CE) n.º 1347/2000.) - “As regras de competência em matéria de responsabilidade parental do presente regulamento são definidas em função do superior interesse da criança e, em particular, do critério da proximidade. Por conseguinte, a competência deverá ser, em primeiro lugar, atribuída aos tribunais do Estado-Membro de residência habitual da criança, excepto em determinados casos de mudança da sua residência habitual ou na sequência de um acordo entre os titulares da responsabilidade parental”.

2.- O conceito de “residência habitual” deve ser definido a partir da legislação comunitária, da finalidade do próprio Regulamento Comunitário, aferindo-se casuisticamente, sendo que pressupõe uma certa duração e estabilidade, devendo corresponder ao lugar que traduz uma certa integração da criança num ambiente social e familiar e que não se trate de uma presença num determinado Estado-Membro de carácter temporário ou ocasional.

3.- Residindo uma criança em Inglaterra, com ambos os progenitores, país de onde veio para Portugal, com a mãe, sem o conhecimento e/ou consentimento do pai, em 23 de Maio de 2107, tendo, na sequência do acordo de alteração das responsabilidades parentais, regressado, de novo, para Inglaterra, com o pai, em Setembro de 2018, onde se mantém a viver e a frequentar a escola, os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para decidir da acção de alteração das responsabilidades parentais proposta pela mãe em Portugal.

Decisão Texto Integral:














            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

 A (…) já identificada nos autos, intentou, em 21 de Agosto de 2018, a presente acção de alteração das responsabilidades parentais, contra V (…) relativamente à filha de ambos, J (…), também, já identificados nos autos.

Alega para tal que a J(…) nasceu no dia 21 de Junho de 2015, sempre tendo vivido com os progenitores e com um filho da requerente, de nome T (…), com 8 anos de idade.

Mais alega que requerente e requerido, acordaram em fixar o regime de responsabilidades parentais, homologado por sentença de 13 de Julho de 2008, nos termos do qual a J (…) passaria a viver em Inglaterra com o pai, a partir do início do mês de Setembro de 2018.

No entanto, segundo refere, após a celebração deste acordo, a requerente “não se conseguindo conformar com a ideia de ver a filha ir embora” (cf. artigo 5.º), veio a deparar-se com “problemas que não representou quando celebrou aquele acordo, e apercebeu-se que o regime homologado não só não acautela os superiores interesses da menor, como é susceptível de despoletar traumas irreparáveis na pessoa menor Juliana” (cf. artigo 7.º).

Mais refere que toda a família da menor e seus amigos se encontram em Portugal, com excepção do pai, tendo a mesma frequentado a creche em Portugal durante cerca de um ano, aqui estando integrada.

Em face do que requer que se determine que a menor passe a residir a mãe, ora requerente e que passe o regime de visitas aí estipulado a ser praticado pelo pai.

Teve lugar conferência de pais (cf. acta de fl.s 31/33), em que cada um dos progenitores manteve o seu ponto de vista, não acordando quanto ao requerido, tendo-se determinado a realização de audição técnica especializada dos progenitores, a efectuar por técnicos do ISS.

Mais se decidiu que existindo regime fixado, com um mês de vigência, não se determinou nenhuma alteração, quanto a tal.

Junta a Informação da determinada Audição (cf. fl.s 86 a 88) e depois da entrada de requerimentos com vista à visita da menor a Portugal e regresso da mesma a Inglaterra, depois do Natal de 2018, para o que teve lugar a conferência retratada na acta de fl.s 108/9, teve lugar nova conferência de pais (cf. acta de fl.s 120/1), no decurso da qual, os progenitores da J(…), não acordaram quanto ao requerido, em face do que foram os mesmos notificados para apresentarem alegações e juntarem prova.

Após o que – e no que ao presente recurso interessa – o requerido, V (…), veio arguir a incompetência internacional do Tribunal a quo para conhecer do pedido formulado nestes autos, com o fundamento em que o regresso da menor a Inglaterra, foi resultado do acordo de ambos os progenitores e homologado, nos termos acima expostos, em 13 de Julho de 2018, residindo a menor em Inglaterra, pelo que, nos termos do disposto no artigo 8.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, serão competentes os tribunais ingleses.

Respondendo, a requerente, A (…), alega que quando foram intentados os presentes autos, em 21 de Agosto de 2018, a menor ainda residia consigo, pelo que defende a competência do Tribunal a quo, para o conhecimento dos mesmos, cf. artigo 9.º, n.º 1, do RGCP e 8.º, n.º 1 do citado Regulamento (CE).

O MP (cf. fl.s 173), promoveu se julgasse improcedente a referida excepção, com o fundamento em que, aquando da instauração dos presentes autos, a menor ainda se encontrava a residir em Portugal.

Conforme despacho de fl.s 174/5, a M.ma Juiz, notificou as partes para que se pronunciassem acerca da referida excepção, à luz do disposto nos artigos 2.º, 10.º e 11.º do citado Regulamento, uma vez que o apenso A, foi instaurado ao abrigo da Convenção de Haia, de 25 de Outubro de 1980, Sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças.

Na sequência do que o requerido (cf. fl.s 177/181), defendeu a aplicação destes preceitos, atenta a deslocação ilícita da menor de Inglaterra para Portugal, perpetrada pela requerente, reforçando-se a competência dos tribunais ingleses.

Por seu turno, a requerente (cf. 182 a 185 v.º), defende a competência dos tribunais portugueses, porque a menor residiu cerca de um ano em Portugal, tendo vindo a ser acordada a regulação das responsabilidades parentais, convencionando-se que a menor regressaria a Inglaterra em Setembro de 2018, pelo que o tribunal a quo está mais próximo da menor e, por isso, mais habilitado a decidir a questão em apreço, visando o requerido afastar a mãe da sua filha.

Aberta vista ao MP, este (cf. promoção de fl.s 188), defendeu a incompetência dos tribunais portugueses, com o fundamento em que a menor não viveu sempre em Portugal e aquando da instauração da alteração das responsabilidades parentais, se encontrava em Portugal sem autorização do pai, pelo que a competência pertence aos tribunais ingleses, cf. artigo 8.º, n.º 2, do Regulamento (CE) 2201/2003.

Conclusos os autos à M.ma Juiz a quo, foi proferida a decisão de fl.s 189 a 192 (aqui recorrida), que se passa a transcrever:

Na sequência do despacho que antecede, importa apreciar a competência deste Tribunal à luz da situação concreta da J (…) em particular a sua deslocação ilícita para Portugal.

O requerido e o Ex.mo Magistrado do Ministério Público pronunciaram-se no sentido da incompetência internacional deste Tribunal, nos termos do despacho anteriormente proferido.

A requerente pugnou pela competência deste Tribunal alegando, em apertada síntese, que a J (…) permaneceu mais de um ano em Portugal ao abrigo de uma decisão que fixou provisoriamente a sua residência neste país, pelo que, no momento em que a presente alteração foi proposta, a menina residia em Portugal há mais de um ano; e que não tem recursos linguísticos nem financeiros para litigar em Inglaterra, não podendo defender o superior interesse da filha nesse país.

Apreciando.

Retomando o despacho de 2 de maio de 2019, importa atender aos elementos factuais e jurídicos que a seguir se enunciam.

O artigo 8.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de novembro dispõe o seguinte:

(…)

E o artigo 10.º tem o seguinte conteúdo:

(…)

 O processo tutelar comum designado por apenso A foi instaurado ao abrigo da Convenção Sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças concluída em Haia em 25 de outubro de 1980 e dos artigos 2.º, 10.º e 11.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de novembro, na sequência da notícia da deslocação ilícita da menina com a progenitora da sua residência habitual, no Reino Unido, para Portugal, em 23 de maio de 2017, tendo o pai formulado pedido de regresso da menor a 30 de maio de 2017.

O facto de ter sido fixada provisoriamente a residência da menor com a mãe em Portugal (em 26 de junho de 2017) não altera a natureza da deslocação da J(…) para Portugal, ou seja, pese embora a residência tenha sido fixada provisoriamente com a mãe em Portugal, mantém-se o carácter ilícito da deslocação de Inglaterra para Portugal.

Os pais chegaram a acordo no apenso A, no sentido de a menor regressar a Inglaterra para junto do pai.

Resumindo, a deslocação da J(…) de Inglaterra e retenção da J(…) em Portugal são consideradas ilícitas ao abrigo da mencionada convenção; a criança esteve a residir em Portugal por mais de um ano, porém foi apresentado pedido de regresso pelo pai às autoridades inglesas 7 dias depois de a menina ter saído com a mãe para Portugal, pelo que, aplicando o artigo 10.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de novembro, a competência para apreciar a alteração da regulação das responsabilidades parentais pretendida pela mãe continua a ser dos tribunais do Estado-Membro onde a criança residia habitualmente imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas, ou seja, dos Tribunais do Reino Unido.

A incompetência internacional constitui exceção dilatória de conhecimento oficioso e suscitável a todo o tempo enquanto não houver sentença com trânsito em julgado (artigos 96.º, a), e 97.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).

Face ao exposto e com os fundamentos invocados, julgo este Juízo de Família e Menores internacionalmente incompetente e, consequentemente e ao abrigo do disposto nos artigos 96.º, al. a), e 99.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, absolvo o requerido da instância.

Custas pela requerente (artigo 527.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).”.

Inconformada com a mesma, interpôs recurso a requerente A (…), recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo – (cf. despacho de fl.s 259), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

1) Vem o presente recurso interposto da decisão que julgou o Juízo de Família e Menores de Coimbra, Juiz 1, internacionalmente incompetente para conhecer da acção de Alteração da Regulação das Responsabilidades Parentais da menor J (…), e, consequentemente, ao abrigo do disposto nos artigos 96.º, al. a), e 99.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, absolveu o requerido da instância.

2) A recorrente não se conforma com a decisão recorrida porque não acautela os interesses da menor J (…), deixa esta criança portuguesa à mercê da justiça de outro país, à qual a mãe da menor não tem acesso pelas razões esplanadas nos autos e que infra se aduzirão.

3) Por outro lado, esta decisão é violadora dos mais elementares princípios normativos e constitucionais, bem como convencionais do direito da criança! É flagrante e incompreensivelmente violado o princípio do superior interesse da criança!

4) É vedado à requerente, ora recorrente, e também à menor J(…) o direito fundamental de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva (cfr. arts. 2.º, 18.º e 20.º da CRP).

5) A sentença padece erro de julgamento, pois o tribunal português é internacionalmente competente para conhecer da presente acção, conforme lograremos demonstrar.

6) Esta acção de alteração da regulação de responsabilidades parentais (Apenso B) foi proposta no dia 21.08.2018, tendo sido precedida da acção principal de Regulação de Responsabilidades Parentais da menor J (…) que deu entrada neste mesmo juízo do tribunal recorrido, no dia 08.06.2017.

7) No âmbito da acção principal foi fixada, em 26.06.2017, residência provisória à menor com a mãe em Portugal. Tal acção culminou no seguinte despacho que declarou a sua inutilidade.

8) É que, por apenso à referida acção principal foi instaurado sob o Apenso A, o Processo Tutelar Comum (da Convenção de Haia) em 18.08.2017, no âmbito do qual foi mantida a decisão provisória fixada na acção principal, mantendo a menor residência com a progenitora em Portugal.

9) A menor residiu em com a progenitora em Portugal no período compreendido entre Maio de 2017 e meados de Setembro de 2018. E aqui passou a residir (ainda que provisoriamente), a estar com a família materna e paterna, frequentou diariamente a creche, foi medicamente acompanha no centro de saúde da área de residência da mãe, etc.

10) No âmbito do Processo Tutelar Comum foi alcançado acordo de regulação de responsabilidades parentais em 13.07.2018, em que se acordou que a menor, a partir de setembro de 2018, passaria a residir em Inglaterra com o progenitor, pelo que até lá, a sua residência permaneceria, como permaneceu, em Portugal, tal como provisoriamente havia sido fixado!

11) Entre a vinda da menor para Portugal (maio de 2017) e o seu regresso ao país onde até então havia residido (meados de Setembro de 2018), decorreu um ano e quatro meses!

12) Como se alegou supra, em 21.08.2018, sob o Apenso B, a requerente instaurou a presente acção de Alteração da Regulação das Responsabilidades Parentais, num momento em que a menor ainda tinha residência em Portugal, conforme resulta do acordo de regulação de responsabilidades parentais homologado por sentença no Apenso A e que, como se alegou supra, apenas determinou a fixação da residência da menor em Inglaterra a partir de setembro de 2018.

13) No que concerne aos presentes autos importa destacar os seguintes aspectos: Entre a sua propositura da presente acção e a prolação da sentença recorrida decorreram precisamente 10 meses e 5 cinco dias; Neste ínterim foram realizadas 4 conferências de pais, nomeadamente nos dias 5/9/18, 6/9/18, 4/1/19 e 28/2/19; Foi realizada auditoria técnica entre os progenitores e elementos da segurança social, e foi elaborado o respectivo relatório social, disponível nos autos desde 14.12.2018. Quase um ano após a propositura da presente acção e invocando argumento desde sempre conhecido deste tribunal (a celebração de acordo de regulação de responsabilidades parentais no âmbito do processo tutelar comum), veio declarar-se internacionalmente incompetente!

14) Na última conferência de pais realizada em 28.02.2019, o tribunal a quo deu prazo às partes para apresentação de alegações. Tendo sido suscitada a incompetência internacional deste tribunal pelo requerido, veio a ser proferido despacho, em 02.05.2019, que concedeu prazo às partes para se pronunciarem quanto à incompetência internacional, na sequência do que o Tribunal a quo se declarou internacionalmente incompetente.

15) A exceção em causa é uma exceção dilatória de conhecimento oficioso, suscitável a todo o tempo enquanto não houver sentença com trânsito em julgado (artigos 96.º, a), e 97.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).

16) Sucede que, o objecto dos autos não é um qualquer bem móvel ou imóvel. É a vida e o destino de uma criança em relação ao qual este tribunal praticou actos e proferiu decisões durante quase 1 ano e agora, sem mais, decide fechar-lhe a porta!

17) O critério definidor da competência internacional do tribunal não pode ser um critério meramente formal, pelo que, entendemos que o tribunal não pode ater-se apenas ao facto de ter ocorrido uma deslocação ilícita, e violar o critério da proximidade ao ignorar que esta criança esteve a residir em Portugal consecutivamente durante mais de 1 ano!

18) A competência deste tribunal tem de ser aferida à luz da situação concreta da J (…), sim, que, como é do conhecimento do tribunal, reitera-se, residiu em Portugal mais de 1 ano consecutivo após a sua deslocação.

19) Aquando da propositura da acção de alteração da regulação das responsabilidades parentais a menor estava completamente inserida em Portugal, pelo que, embora ilicitamente deslocada, a J (…) esteve em Portugal durante mais de um ano consecutivo, verificando preenchido o critério da proximidade.

20) Mas mais, a J (…) continua a estar perfeitamente inserida no contexto português, tendo com este uma estreita e fortíssima conexão. É que a J (…)está em Portugal frequentemente por períodos alargados, continuando a ter aqui toda a sua família materna – mãe, irmão, tios, avós e também a família paterna!

Continua a ter os seus amigos da escolinha que visita sempre que regressa a Portugal, e com eles continua a brincar.

21) O tribunal a quo tem conhecimento de tais factos em obtido desde logo ao longo das quatro conferências de pais ocorridas teve oportunidade de tomar conhecimento desses factos!

22) Ora, os presentes autos têm por objecto os superiores interesses da menor J (…)cuja conexão com Portugal é absolutamente indiscutível, pelo que deve ser esse critério utilizado na determinação da competência internacional do tribunal!

23) No caso vertente, o tribunal, que tem o poder-dever de aferir as circunstâncias da indiscutível proximidade da menor a Portugal, pois tem efetivo conhecimento das mesmas atento tudo quanto se processou nos presentes autos, consequentemente, não pode o tribunal limitar-se a fazer a aplicação cega e acrítica dos normativos a que alude o Regulamento em matéria de deslocação ilícita, mormente do seu n.º 10!

24) A deslocação da menor para território português foi comunicada pela recorrente ao progenitor menos de 6 horas depois de ocorrer, que sempre que quis falou com a menor, visitou-a, passou férias, etc. Pelo que falar de rapto naquele caso é excessivo e até impróprio.

25) O referido processo foi resolvido mediante acordo das partes, conforme se alegou, sendo por isso de salientar que o recorrido consentiu que a menor permanecesse a residir em Portugal até à data acordada.

26) Por outro lado, o Tribunal a quo não pode ignorar que a morosidade do processo tutelar civil teve inevitavelmente consequências na vida da J(…), que se traduziram no facto de residir em território português durante mais de um ano, tempo mais do que suficiente para consolidar a sua vivência em Portugal.

27) Pelo que não se entende a aplicação hipoteticamente temerosa e reverencial da lei internacional que não atende às concretas circunstâncias do caso e aos interesses da menor, pois o Tribunal a quo tem o poder-dever de ir mais além, tem o poder dever de fazer mais do que limitar-se a aplicar uma regra processual!

28) O Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de Novembro que regula as matérias da competência para a regulação do poder paternal de menores filhos de cidadãos portugueses residentes em diferentes Estados-membros da Comunidade Europeia, no que respeita à responsabilidade parental e em matéria de competência geral, preceitua no artigo 8 que o foro apropriado é o do tribunal competente do Estado-Membro da residência habitual da criança, com referência à data da instauração do processo.

29) No caso vertente a acção foi proposta num momento em que, para além da indiscutível proximidade, a criança tinha efectiva residência em Portugal determinada por acordo com o progenitor!

30) É que a circunstância determinante fundamental a ter em conta é o da efectiva ligação da menor e dos seus progenitores a Portugal como sucede no caso vertente.

31) Esta acção de alteração, a tramitar-se num tribunal inglês corre sérios riscos de não poder acautelar da mesma forma o supremo interesse da menor.

32) O pai, a mãe e filha são portugueses. A mãe sempre residiu em Portugal, excepto durante 2 anos que viveu com o pai da menor em Inglaterra. Contudo, regressou com a menor ao nosso país e decorreram 1 ano e 4 meses em que a menor aqui esteve à sua guarda consecutivamente. Pelo que, o critério da proximidade interpretado segundo o previsto no n.º (12) do Regulamento, aponta igualmente para a competência dos tribunais portugueses – neste sentido do que aqui se aduziu vide Ac. de 22.09.2011, do Tribunal da Relação de Lisboa publicado in http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/aca99bd96286d76f 8025791e003cd9b6?OpenDocument.

33) A situação concreta em análise justifica plenamente e por si só a determinação da competência dos tribunais portugueses, cujo fundamento reside em primeiro lugar no superior interesse da menor, verificando-se simultaneamente o factor de proximidade a que alude o Regulamento e no qual igualmente se pode fundar a competência do tribunal recorrido.

34) Atente-se que, “(…) V - Não define o Regulamento o que deva entender-se por residência habitual. Trata-se, em nosso entender, de um conceito autónomo da legislação comunitária, independente relativamente ao que possa constar das legislações nacionais, devendo ser interpretado em conformidade com os objetivos e as finalidades do Regulamento, e que deve ser procurado caso a caso pelo juiz, mas tendo em conta, desde logo, que o adjetivo habitual tende a indicar uma certa duração.

VI - Temos para nós que face à nota (12) daquele Regulamento (Regulamento (CE) nº 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003) e na esteira do Ac. da Rel. de Lisboa de 12/7/2012, Proc.º n.º 1327/12.4TBCSC.L1.2, relatado por Sérgio Almeida, que o critério decisivo para a determinação da competência em sede de responsabilidade parental não é tanto a residência habitual mas sim a proximidade. Ou seja, a residência habitual é uma ecorrência ou manifestação da proximidade, enquanto critério aferidor, e não o contrário.

VII - E, portanto, se a maior proximidade do menor for a outra ordem jurídica, será o Tribunal desta o competente (art.º 15), já que é o que melhor corresponde ao superior interesse na criança (nota 12), na medida em que é o que se encontra mais bem colocado para conhecer do processo (art.º 15).

VIII - Sendo um dos fitos da atribuição da competência a um dado tribunal a melhor resolução da causa, por se entender que a proximidade dos contornos ou circunstâncias do caso favorecem a consecução de uma decisão mais justa e conscienciosa, o caso vertente aconselha que seja o tribunal português, o de Viseu, a apreciar e decidir, desde logo pelo critério de aproximação e os superiores interesses do menor, que devem estar sempre na linha da frente, até porque o menor aqui nasceu e conviveu com os seus familiares, aqui mantendo as suas origens e raízes, por um lado, e por outro o pouco tempo que se encontra na Alemanha.” – cfr. Acórdão do TRC de 11/10/2017 (destaques nossos); no mesmo sentido, cfr., entre outros, Ac. do TRL de 22/09/2011; Ac. do TRP de 29/04/2013, Proc. 1083/12.6TBSJM.P1; Ac. do TRG de 07/05/2013, Proc. 257/10.9TBCBT-D.G1;

35) “(…) em termos gerais destacam-se no sistema regulamentar de competência as seguintes notas: 1) a fidelidade ao princípio geral da competência das autoridades da residência habitual da criança e a aceitação de um leque alargado de critérios de competência internacional que relativizam o princípio geral tendo em vista, por exemplo, a boa administração da justiça (artigo 12.º)(…) 4) o acolhimento da doutrina do forum non conveniens e a transferência da acção para um tribunal melhor colocado para a apreciar (artigo 15.º) 5) a relevância do interesse superior da criança na determinação dos casos em que os tribunais de um Estado podem assumir jurisdição (artigos 12.º e 15.º).(…)De acordo com o princípio geral formulado no artigo 8.º, e sob reserva do disposto nos artigos 9.º (Prolongamento de competência), 10.º (Rapto) e 12.º (Extensão de competência), os tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado-Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal.

36) O fundamento de tal solução encontra-se no facto de se achar que as autoridades da residência habitual são as que estão em melhores condições para apreciar a questão das responsabilidades parentais, a situação real do menor e o alcance prático das medidas que venham a ser tomadas; aliás, será aí que normalmente as medidas serão efectivadas, não se colocando por conseguinte problemas de reconhecimento e execução de decisões estrangeiras.

37) O conceito de residência habitual corresponde a uma noção de facto e que deve ser determinada autonomamente, mas que nem sempre será facilmente concretizável.

38) De acordo com uma formulação cara ao direito da União, a residência habitual é o “local onde o interessado fixou, com vontade de lhe conferir valor estável, o centro permanente ou habitual dos seus interesses” (v.g., artigo 3.º, n.º 1, alínea a), e artigo 8.º);

39) No que respeita aos menores, tudo estará em determinar onde se situa, estavelmente, esse centro permanente ou habitual dos interesses e que, aliás, coincidirá amiúde com a residência habitual do progenitor ou dos progenitores que detêm as responsabilidades parentais e com quem o menor vive. (v.g., numa criança lactente esta dependência é particularmente notória e previsível).

40) Nos termos do Acórdão do Tribunal de Justiça (Terceira Secção), 2 de Abril De 2009 (pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Korkein hallinto-oikeus, Finlândia): “*…O conceito de “residência habitual”, na acepção do artigo 8.º, n.º 1, do Regulamento n.º 2201/2003, deve ser interpretado no sentido de que essa residência corresponde ao local que revelar uma determinada integração do menor num ambiente social e familiar. Para esse fim, devem ser tidas em consideração, nomeadamente a duração, a regularidade, as condições e as razões da permanência no território de um Estado-Membro e da mudança da família para esse Estado, a nacionalidade do menor, o local e as condições de escolaridade, os conhecimentos linguísticos, bem como os laços familiares e sociais que o menor tiver no referido Estado. Incumbe ao órgão jurisdicional nacional determinar a residência habitual do menor tendo em conta o conjunto das circunstâncias de facto relevantes em cada caso concreto.” – cfr. Nuno Ascensão Silva, “O Regulamento Bruxelas IIbis [Regulamento (CE) 2201/2003, do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.º 1347/2000]”, in O DIREITO INTERNACIONAL DA FAMÍLIA TOMO I, junho de 2014, CEJ - Coleção de Formação Contínua, disponível na internet, mormente pp. 24-26.

41) Ora, in casu, por um lado, a proximidade da menor cuja regulação do poder paternal se discute nos autos é, inequivocamente, maior em relação à ordem jurídica portuguesa, por todos os motivos reiterados e comprovados nos autos (arts. 8.º, n.º 2 e 12.º, n.º 3 do Regulamento), e, por outro lado, são os tribunais portugueses os que estão em melhores condições para conhecer e decidir a matéria, tudo em vista do superior interesse da criança (art. 15.º do Regulamento, interpretado mutatis mutandis e na sua ratio).

42) Além do mais supra exposto, inexiste no caso concreto qualquer necessidade de cautela acrescida no que diz respeito à competência jurisdicional e de acordo com o visado pelo art. 10.º do Regulamento – nomeadamente, inexiste no presente momento qualquer situação de ilicitude aí visada, questão essa já ultrapassada material e processualmente, pelo que não só esta norma tem que ser concatenada com as demais, como deve aplicar-se agora o art. 12.º, n.º 3, em primeira linha, ex vi art. 8.º.

43) Razão pela qual é, quanto a nós, ostensiva a violação das próprias normas comunitárias – mormente arts. 8.º, n.º 2, 10.º, 12.º, n.º 3, al. a) e 15.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 – pela decisão recorrida.

44) E se dúvidas houver a este propósito, impõe-se o reenvio prejudicial da questão para o Tribunal de Justiça da União Europeia, nos termos e ao abrigo das competências que cabem a este tribunal ad quem e àquele tribunal comunitário, o que desde já e nesse caso se requer.

45) Porém, mesmo que assim não fosse, sempre se dirá que, não pode o estado português recusar o acesso ao direito a um cidadão seu residente, pois a recorrente sempre manifestou nos autos e fez prova disso mesmo, mormente através do relatório social produzido, que não tem meios financeiros para visitar a menor em Inglaterra. Muito menos terá meios financeiros para acionar quaisquer mecanismos legais naquele país. Ao que se deixa alegado, acresce o facto de a recorrente não saber falar a língua.

46) Como pode um tribunal português deixar um seu nacional nas mãos de outro estado, sobretudo sabendo que se trata de uma menor cuja progenitora não tem meios de exercer os seus direitos nesse país.

47) Pior: tudo isto quando está mais que visto nos autos que, por seu lado, o pai não tem qualquer dificuldade em aceder aos tribunais portugueses, pois tem vindo a exercer os seus direitos processuais de forma plena. O que é naturalíssimo, já que, repita-se, é português, tem cá a família, desloca-se ao país com todas as facilidades e com todas as facilidades constituiu e comunica com os seus mandatários portugueses.

48) Esta diferença de circunstâncias, entre a recorrente, que não tem meios financeiros nem conhecimentos mínimos que lhe permitam aceder à justiça inglesa, nem sequer deslocar-se a Inglaterra, e o pai da menor, que está nesse país porque aí trabalha, mas que é português, sempre viveu cá até há poucos anos a esta parte, tem cá toda a família direta, desloca-se cá facilmente e não tem quaisquer dificuldades acrescidas no acesso ao direito e aos tribunais portugueses (comparativamente com qualquer português residente no país), tudo isto exacerba a já constatada violação do direito da recorrente de acesso ao direito e aos tribunais.

49) Repise-se: a recorrente não consegue sequer deslocar-se a Inglaterra sozinha, para levar a filha – quando teve que o fazer, em Janeiro de 2019, teve de se fazer acompanhar por terceiro que a orientou dentro do aeroporto de Birmingham, pois não tem família ou amigos nesse país, que a possam auxiliar no que quer que seja; não fala nem compreende minimamente a língua; não tem meios económicos para aceder aos serviços de um advogado em Inglaterra que a represente no processo. Refira-se até que para suportar as suas despesas e do terceiro que a acompanhou a Inglaterra, mesmo viajando em lowcost e tendo pernoitado nas instalações do aeroporto, a recorrente teve de recorrer a empréstimo que ainda anda a pagar em prestações.

50) Portanto, declarar os tribunais portugueses internacionalmente incompetentes para o presente caso é, pura e simplesmente, deixar a recorrente e, mesmo, deixar a menor e o nuclear superior interesse da criança (que só pode ser ponderado e aferido com a participação de ambos os progenitores no processo) sem qualquer possibilidade de defesa cogitável, à mercê dos tribunais estrangeiros e das atuações que o pai da criança entenda dever encetar, sem possibilidade mínima e objetiva de serem contraditadas.

51) Logo, uma interpretação das normas dos artigos 2.º, 8.º, 10.º e 11.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de Novembro, nos termos em que o tribunal recorrido faz, no caso concreto e atentas as específicas circunstâncias expostas, comprovadas à saciedade nos autos e mesmo notórias, ao declarar-se internacionalmente incompetente para julgar o processo, viola o direito da recorrente ao acesso ao Direito e à tutela jurisdicional efetiva (art. 20.º, n.ºs 1, 2 e 4 da CRP);

52) Nas várias vertentes em que o direito fundamental se decompõe, nomeadamente quanto ao direito ao processo equitativo (n.º 4), na medida em que nenhum processo pode ser equitativo se uma das partes não tem meios de aceder ao processo, exercer as faculdades processuais e fazer valer os seus direitos e interesses perante um tribunal e, ademais, quando a contraparte tem tudo isso assegurado ou facilitado, numa evidente desigualdade de armas processuais – cfr., sobre a matéria, Jorge Miranda / Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, mormente pp. 192 e ss..

53) A interpretação normativa adotada pelo tribunal recorrido viola ainda e em concreto os direitos consagrados no art. 36.º, n.ºs 3, 5 e 6 da CRP, na sua vertente adjetiva, na medida em que a recorrente não tem meios para lutar nos tribunais ingleses pelos seus direitos em relação à menor, ao contrário do progenitor da criança, o que terá como consequência inevitável uma desigualdade de direitos quanto à manutenção e educação da menor, ficando não só prejudicado o direito da recorrente à educação e manutenção da filha como a defesa do primado do superior interesse da criança.

54) A propósito:“(…) na perspectiva constitucional, a educação e a manutenção dos filhos constitui, não apenas um dever, mas também um direito fundamental dos pais, contribuindo para a sua plena realização pessoal. (…) como se lê do no artigo 68.º, n.º 1, da Constituição, “os pais e as mães têm direito à protecção da sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível acção em relação aos filhos, nomeadamente quanto à sua educação”. (…)

É certo que o legislador constitucional, ao afirmar que a educação e manutenção dos filhos constitui igualmente um dever dos pais e ao admitir inclusivamente que os filhos sejam separados dos pais [em casos extremos, de irresponsabilidade e negligência], coloca o interesse do filho – “Leitmotiv de todo o direito dos menores” (Maria Clara Sottomayor, Exercício do poder parental, pág. 63) – no núcleo do preceito.

Não é menos verdade, porém, que a primazia dos pais nesta matéria tem implícito o reconhecimento de que são eles quem se encontra na melhor posição para definir o interesse dos filhos. Os pais têm, por isso, o primado na determinação do interesse dos filhos.” – cfr. AA. e loc. cit., p. 413, sublinhados nossos; cfr., ainda, art. 69.º, n.º 1 da CRP e AA. e loc. cit., pp. 415 e ss..

55) Mais e determinantemente: à inconstitucionalidade em concreto da interpretação normativa recorrida, acresce a violação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, nos termos que passamos a expor.

56) Em primeiro lugar, também a CEDH, instrumento normativo que vincula o Estado Português (cfr. art. 8.º, n.º 2 da CRP e art. 1.º da CEDH), prescreve o direito a um processo equitativo no seu art. 6.º, n.º 1, cuja violação se consuma por força dos factos expostos e que alicerçam a violação do art. 20.º da CRP.

57) A este passo:“Um processo equitativo exige, como elemento conatural, que cada uma das partes tenha possibilidades razoáveis de defender os seus interesses numa posição não inferior à parte contrária; ou, de outro modo, a parte deve deter a garantia de apresentar o seu caso perante o tribunal em condições que a não coloquem em substancial desvantagem face ao seu oponente.”;

“Quando o caráter ou o comportamento das partes ou de uma delas é um elemento a ponderar na decisão, como, por exemplo, nalguns casos relativos ao poder paternal (…), a presença das partes pode revelar-se indispensável.”;

“Todo o indivíduo deve ter a possibilidade de apresentar a sua causa perante um tribunal, com livre acesso e o domínio dos meios materiais e humanos necessários.” – cfr. Ireneu Cabral Barreto, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 5.ª ed. rev. at., 2016, Almedina, anotação ao art. 6.º, pp. 169-170, 175 e 194, respetivamente; a propósito, cfr. decisões do TEDH nos casos Dombo Beheer B.V. c. Holanda; Stran Greek Refineries and Stratis Andreadis c. Grécia; SA-Capital OY c. Finlândia; Salov c. Ucrânia, entre outros.

58) Conjugadamente com esta dimensão de violação, ocorre a violação do art. 5.º do Protocolo n.º 7 à CEDH, numa vertente adjetiva, o qual determina a igualdade de direitos e de responsabilidades entre os cônjuges na relação com os seus filhos (também após uma separação ou divórcio, naturalmente).

59) Em segundo lugar, viola-se o direito ao respeito pela vida familiar, consagrado no art. 8.º, n.º 1 da CEDH. Em matéria de poder paternal, o TEDH reconhece o superior interesse da criança como prevalecente no equilíbrio de interesses a entretecer, entre interesses da criança, dos progenitores e interesses de ordem pública, o que não acontece se um dos pais não estiver em condições de fazer valer os seus direitos parentais (como é o caso, demonstrado, a manter-se a decisão recorrida), os seus direitos à educação e manutenção dos filhos – cfr., a propósito, A. e loc. cit., pp. 247-248.

60) Numa palavra, a recorrente não tem meios materiais nem humanos (conhecimentos linguísticos e outros) para poder intervir num processo judicial que tramite em país estrangeiro, de molde a poder defender os seus direitos em relação à filha e, bem assim, de molde a

61) ficar assegurado o superior interesse da criança. O que significa que, em concreto, só julgando pela competência dos tribunais portugueses para o processo, fica garantido o respeito pelos arts. 20.º, n.ºs 1, 2 e 4 e 36.º, n.ºs 3, 5 e 6 da CRP, arts. 6.º, n.º 1 e 8.º, n.º 1 da CEDH e art. 5.º do Protocolo n.º 7 à CEDH, e, determinantemente, fica garantido o superior interesse da criança que, no caso, tem que nortear a interpretação e aplicação da lei, em conformidade com essas normas. Por outras palavras, a decisão recorrida e a interpretação normativa nela veiculada, dos arts. 2.º, 8.º, 10.º e 11.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 é, em concreto, inconstitucional e violadora das sobreditas normas da CRP e, ainda, da CEDH, não podendo manter-se na ordem jurídica.

62) Sob outro enfoque, diríamos mesmo que a garantia dos direitos fundamentais da recorrente e, inclusive, da menor e o superior interesse da criança, reconhecidos pela CRP e pela CEDH nas norma referenciadas, postulam mesmo que, em casos como o presente (cidadania portuguesa de ambos os progenitores e da criança, circunstâncias concretas de vida de ambos os progenitores, expostas e comprovadas nos autos), haja uma reserva de jurisdição dos tribunais portugueses para conhecer, julgar e definir o estatuto do menor no que diz respeito ao exercício dos poderes parentais – sempre e ainda, interpretação do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 em conformidade com a CRP e a CEDH.

63) Ou seja, a interpretação das normas de competência dos tribunais (neste caso, da competência internacional dos tribunais portugueses para decidir sobre o estatuto de menor no âmbito da regulação do poder paternal) não pode ser tendente a criar “situações de indefesa” – cfr., mutatis mutandis, J. J. Gomes Canotilho / Vital Moreira, CRP Anotada, Vol. I., 4.ª ed. rev., Coimbra Editora, 2007, p. 416.

64) Note-se ainda, mutatis mutandis, a doutrina e jurisprudência do Tribunal Constitucional em matérias como asilo, expulsão e extradição, em que se considera que qualquer medida tendente a afastar ou dificultar os direitos e deveres dos pais e os direitos dos menores impõem a ponderação do interesse da família e só são legítimas se passarem no crivo da proporcionalidade (“… justificadas por necessidades sociais imperiosas e, além do mais, proporcionadas aos fins legítimos prosseguidos”) – cfr. Jorge Miranda / Rui Medeiros, loc. cit., pp. 424 e ss.; cfr. ainda, sobre os direitos fundamentais em apreço, J. J. Gomes Canotilho / Vital Moreira, loc. cit., pp. 564 e ss..

65) A decisão recorrida viola o princípio do superior interesse da criança, os artigos 2.º, 8.º, 10.º e 11.º, 12.º 15.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de Novembro, o direito fundamental de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva (cfr. arts. 2.º, 18.º e 20.º, n.ºs 1, 2 e 4 e 36.º, n.ºs 3, 5 e 6 da CRP, arts. 6.º, n.º 1 e 8.º, n.º 1 da CEDH e art. 5.º do Protocolo n.º 7 à CEDH.

Termos em que,

deve o presente recurso ser julgado provado e procedente, devendo ser revogada a sentença recorrida e proferida outra que declare o tribunal português internacionalmente competente para conhecer da presente acção, apenas assim se fazendo Justiça!

Se dúvidas houver quanto à interpretação que propugnamos, impõe-se e requer-se o reenvio prejudicial da questão para o Tribunal de Justiça da União Europeia, nos termos e ao abrigo das competências que cabem a este tribunal ad quem e àquele tribunal comunitário, solicitando-se assim a pronúncia do TJUE sobre a interpretação devida, no caso, dos arts. 8.º, n.º 2, 10.º, 12.º, n.º 3 e 15.º (na sua ratio conformadora), no sentido de saber se a decidida incompetência internacional dos tribunais portugueses viola ou não aquelas normas do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de Novembro, para todos os efeitos e com todas as legais consequências.

Contra-alegando, o requerido pugna pela manutenção da decisão recorrida, por conforme à legislação aplicável e ser aquela que melhor acautela o interesse da menor, estribando-se nos fundamentos nela invocados.

Respondendo ao recurso, o MP, em 1.ª instância, pugna pela manutenção da decisão recorrida, reiterando a fundamentação já expendida na promoção de fl.s 188, acima referida.

Dispensados os vistos legais, há que decidir.         

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de aferir da competência internacional dos tribunais portugueses para conhecer e decidir a presente acção, à luz do que se dispõe no Regulamento (CE) n.º 2201/2003.

A matéria de facto relevante é a que consta do relatório que antecede.

Se se verifica a competência internacional dos tribunais portugueses para conhecer e decidir a presente acção, à luz do que se dispõe no Regulamento (CE) n.º 2201/2003.

Importa, pois, averiguar se os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para decidir da pretendida alteração da regulação das responsabilidades parentais, relativamente à menor Juliana.

Os factores de atribuição da competência internacional aos tribunais portugueses encontram-se referidos nos artigos 62.º e 63.º do CPC, sem embargo do estabelecido nas normas de direito internacional, bem como nas convenções internacionais ratificadas pelo Estado Português – cf. artigo 8.º da CRP.

Entre estas contam-se os Regulamentos da Comunidade Europeia de que tanto Portugal como a Inglaterra (esta, ainda) fazem parte.

Em causa está o Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental, que revogou o anterior Regulamento (CE) n.º 1347/2000.

Refere-se na sua consideração 12.ª que: “As regras de competência em matéria de responsabilidade parental do presente regulamento são definidas em função do superior interesse da criança e, em particular, do critério da proximidade. Por conseguinte, a competência deverá ser, em primeiro lugar, atribuída aos tribunais do Estado-Membro de residência habitual da criança, excepto em determinados casos de mudança da sua residência habitual ou na sequência de um acordo entre os titulares da responsabilidade parental”.

Na esteira do que se dispõe no seu artigo 8.º, n.º 1 que:

“Os tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado-Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal”.

Assim, a chave da solução para a determinação da competência internacional está no facto de a criança residir “habitualmente” num determinado Estado-Membro.

Não nos diz o Regulamento em causa o que se deva entender por “residência habitual”.

Esta, como expresso no Acórdão do STJ, de 20/01/2009, Processo n.º 08B2777, disponível no respectivo sítio do itij, por reporte ao guia prático para aplicação do citado Regulamento, deve ser determinada “pelo juiz em cada caso com base nos elementos de facto. O significado da expressão deve ser interpretado em conformidade com os objectivos e as finalidades do Regulamento. Deve-se sublinhar que não se trata de um conceito de residência habitual com base na legislação nacional, mas de uma noção “autónoma” de legislação comunitária.

(…)

A determinação caso a caso pelo juiz implica que enquanto o adjectivo “habitual” tende a indicar uma certa duração, não se pode excluir que uma criança possa adquirir a residência habitual num Estado-Membro no próprio dia da sua chegada, dependendo de elementos de facto do caso concreto”.

Em idêntico sentido se pronunciou o STJ, nos seus Acórdãos de 26 de Janeiro de 2017, Processo n.º 1691/15.3T8CHV-A.G1.S1 e de 28 de Janeiro de 2016, Processo n.º 6987/13.6TBALM.L1.S1, disponíveis no mesmo sítio do anterior, referindo-se, neste último e citando Maria Helena Brito, in Estudos em Memória do Prof. Doutor António Marques dos Santos, vol. I, Almedina, pág. 323, que por residência habitual se deve ter “o local onde o interessado fixou, com a vontade de lhe conferir carácter estável, o centro permanente ou habitual dos seus interesses, entendendo-se que, para efeitos de determinação dessa residência, é necessário ter em conta todos os elementos de facto dela constitutivos”.

Ali se acrescentando que por referência à supra mencionada consideração n.º 12, “as regras de competência nele (Regulamento em apreço) fixadas são definidas em função do superior interesse da criança, em particular do critério da proximidade”.

Citando-se, ainda, a decisão do TJUE, de 22 de Dezembro de 2010, no qual se referiu que a residência habitual, na vertente ora em causa “corresponde ao lugar que traduz uma certa integração da criança num ambiente social e familiar” e que não se trate de uma presença num determinado Estado-Membro de “carácter temporário ou ocasional”.

Ora, in casu, refere-se na decisão recorrida (sem que tal haja sido impugnado) que a J (…) residia em Inglaterra, com ambos os progenitores, país de onde veio para Portugal, com a mãe, sem o conhecimento e/ou consentimento do pai, em 23 de Maio de 2107, tendo, na sequência do acordo de alteração das responsabilidades parentais, regressado, de novo, para Inglaterra, com o pai, em Setembro de 2018, onde se mantém a viver e a frequentar a escola.

Ou seja, como, mais uma vez, referido na decisão recorrida, estamos em face de um caso de deslocação ilícita de uma criança, de um estado membro para outro, pelo que tem aplicação o disposto no artigo 10.º, do Regulamento (CE) n.º 2201/20003.

Por outro lado, atento a que menor em causa nasceu em 21 de Junho de 2015, viveu a maior parte do tempo na Inglaterra, onde, reitera-se, já reside, de novo, desde Setembro de 2018, onde frequenta a valência de ensino, própria para a sua idade, o que, no período em que esteve em Portugal, aqui sucedeu.

Face ao que, se tem de concluir que, cotejando as estadias em cada um de tais países, é a passada em Inglaterra, uma permanência mais estável e duradoura do que em Portugal, valendo o supra citado critério da proximidade e do superior interesse da mesma em que a situação sub judice seja apreciada e decidida pelos tribunais ingleses, onde a menor reside com carácter habitual e duradouro, com excepção do período que passou em Portugal, o que implica a manutenção da decisão recorrida.

De salientar, ainda, que a idêntica solução se chegaria por aplicação do disposto no artigo 10.º do citado Regulamento (CE), uma vez que se tratou de deslocação ilícita da menor para Portugal, o que afasta a aplicabilidade do disposto no seu artigo 8.º, n.º1, como decorre do seu n.º 2.

Conforme estipula o artigo 10.º, n.º 1, do Regulamento em causa, mercê de tal deslocação ilícita da menor de Inglaterra para Portugal, mantém-se a competência dos tribunais ingleses, uma vez que não se verifica nenhuma das condições previstas na sua alínea b) e correspondentes sub-alíneas, como expresso na decisão recorrida (acima transcrita) que, nessa parte, aqui se dá por reproduzida.

Defende a recorrente que, aplicando o critério da proximidade, sempre se deveriam considerar competentes os tribunais portugueses, citando, para tal, vários Acórdãos (cf. conclusões 32.ª e 34.ª).

Sem descurar que, como acima referido, o critério da proximidade é de ter em linha de conta, mas não é o único, sendo de relevo, in casu o que se dispõe no artigo 8.º, n.º 2 e 10.º do Regulamento acima referido.

Por outro lado, o caso que deu origem ao citado Acórdão da Relação de Lisboa, de 22 de Setembro de 2011, tem na sua génese uma situação em que o menor esteve em Portugal durante 6 anos e o da mesma Relação, de 12 de Julho de 2012, decide um caso em que o menor apenas esteve dois meses num país terceiro, o mesmo sucedendo com o desta Relação, de 11 de Outubro de 2017, em que a criança tinha ido para a Alemanha, poucos meses após o divórcio dos pais e, antes disso, tinha residido sempre em Portugal.

Ou seja, trata-se de casos em que, com pequenas excepções temporais, as crianças tinham vivido sempre em Portugal.

Como acima se referiu, a situação dos presentes autos é diversa (melhor dizendo, inversa) e o critério da proximidade, não tem as consequências, nem a relevância, que a recorrente lhes atribui.

Não sendo, igualmente, de aplicar o disposto no seu artigo 15.º, porque, este pressupõe que esteja assente a competência dos tribunais de um Estado-Membro para conhecimento de determinada questão de mérito, partindo deles a iniciativa de a delegar nos tribunais de outro Estado-Membro e desde que verificados os pressupostos nele enumerados.

Na situação em apreço, trata-se, em primeira linha, de determinar a competência internacional dos tribunais portugueses e, estes, face ao exposto, não a detêm para a apreciação e decisão da questão que se pretende submeter à sua apreciação jurisdicional.

Por outro lado, alega a recorrente que a decisão recorrida viola o disposto nos artigos 6.º, 8.º, n.º 1, da CEDH e 5.º do Protocolo n.º 7 à CEDH.

O referido artigo 6.º, estabelece o direito a um processo equitativo.

Não cogitamos que o sistema legal e a organização judiciária inglesa permita que no seu país se desenrole um processo legal sem as garantias de defesa e sem que se se trate de um processo equitativo para todas as partes envolvidas.

Trata-se de uma das democracias mais amadurecidas do mundo e sem que haja reparo a fazer ao seu sistema de justiça.

É óbvio que para a recorrente seria mais cómodo e mais fácil que o processo se desenrolasse em Portugal. O contrário para o recorrido que vive em Inglaterra.

No entanto, o critério definidor da fixação da competência não é este, mas sim o que resulta dos artigos 8.º e 10.º do Regulamento acima citado e é com base nos critérios nos mesmos estabelecidos que se fixou a competência dos tribunais ingleses.

O artigo 8.º, da CEDH, estabelece o direito ao respeito da vida familiar e privada dos cidadãos e o artigo 5.º do referido Protocolo, o direito de igualdade entre os cônjuges, tanto a nível de direitos como de deveres, relativamente aos filhos, tanto na constância do matrimónio, como aquando da sua dissolução.

Ora, a decisão em apreço, salvo o devido respeito, não viola tais preceitos.

O que se trata é de regular as responsabilidades parentais, através do recurso aos tribunais, em caso de desacordo dos pais, sem beliscar aqueles direitos, sem embargo de, em casos como o presente, em que os progenitores vivem em diferentes países, ser impossível fixar um regime igualitário, sob a perspectiva dos pais.

No entanto, convém relembrar que sendo esta importante, mais, ainda, é de relevar/atender aos interesses dos menores.

Assaca, ainda, a recorrente, à decisão em apreço, a violação do disposto nos artigos 2.º, 8.º, 18.º, 20.º, n.os 1, 2 e 4 e 36.º, n.os 3, 5 e 6, da CRP.

Fundamenta-as no facto de não poder litigar em Inglaterra, tanto porque não reside lá, não domina a língua, nem tem meios para tal.

Como acima já referido, é óbvio que a situação da requerente fica mais difícil, mas o contrário também era verdadeiro e o que importa é aplicar os preceitos comunitários atinentes, sem esquecer que quanto às dificuldades financeiras poderão ser mitigadas através do recurso ao mecanismo do apoio judiciário, cf. Directiva 2002/8/CE Do Conselho de 27 de Janeiro de 2003.

Á recorrente é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais, só que em moldes que não são os por si pretendidos, já que queria que os mesmos fossem assegurados em Portugal, o que, salvo o devido respeito, a lei não consente.

Sem esquecer que é ao legislador ordinário (no caso, comunitário), que incumbe fixar os termos em que se processa a tramitação processual e, previamente, o acesso ao direito e aos tribunais.

De igual forma, não se mostra violado o disposto no artigo 36.º, n.os 3, 5 e 6, da CRP.

Efectivamente, não se coloca em causa a igualdade de direitos e deveres entre os ora progenitores relativamente à guarda e educação da menor, nem de qualquer separação arbitrária da menor da ora recorrente.

Como referem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in CRP Anotada, Vol. I, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, 2007, a pág. 564, o princípio da igualdade dos cônjuges, abrange, também, a esfera familiar “interditando qualquer discriminação jurídica entre os cônjuges. Sendo os cônjuges iguais, não pode estabelecer-se nenhuma relação juridicamente relevante de comando ou dependência entre eles, o que implica a direcção conjunta da família (escolha da residência, administração doméstica, educação dos filhos, etc). Em caso de eventuais conflitos, isso pode legitimar o recurso a uma entidade externa (em última instância, um juiz).” – sublinhado nosso.

Acrescentando a pág. 566, que a garantia de não privação dos filhos, também cede perante a reserva de lei e de decisão judicial.

Ora, é o que se passa in casu.

Inexistindo acordo dos pais quanto ao exercício das responsabilidades parentais, incumbe aos tribunais regular a forma do respectivo exercício, o que, de resto, aconteceu a solicitação das próprias partes. Não se trata, pois de uma “separação” da menor de qualquer dos progenitores, in casu, a mãe, mas sim de regular o exercício das responsabilidades parentais que, continuam a caber a ambos os progenitores, uma vez que estes não acordaram quanto a tal, cabendo, por isso, aos tribunais determinar, sempre com o objectivo, em primeira linha, de salvaguardar os interesses da menor, o modo como devem ser exercidos os poderes-deveres inerentes ao exercício das responsabilidades parentais.

Para o que, no caso em apreço, dado que os progenitores não residem no mesmo Estado-Membro, previamente, incumbe determinar a que ordem jurídica nacional ou comunitária compete tal função.

Assim, não padece a decisão recorrida das invocadas inconstitucionalidades.

Consequentemente, improcede o presente recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

Coimbra, 05 de Novembro de 2019.

Arlindo Oliveira ( Relator )

Emídio Santos

Catarina Gonçalves