Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
83/15.9EACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
TESTEMUNHA
TESTEMUNHO DE OUVIR DIZER
ARGUIDO
PROIBIÇÃO DE VALORAÇÃO DE PROVA
ABSOLVIÇÃO
Data do Acordão: 06/29/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (SECÇÃO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA INSTÂNCIA LOCAL DE CONDEIXA-A-NOVA - J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 356.º E 357.º, DO CPP
Sumário: I - Os depoimentos, em audiência de julgamento, de testemunhas que reproduzem o que ouviram dizer ao arguido quando este já havia sido constituído arguido e, consequentemente, quando o processo já estava iniciado, não podem ser valoradas e, tendo-o sido, ocorre patente violação de proibição de prova.

II - Na impossibilidade de valorar a prova assim prestada, a consequência, em face da relevância decisiva que assumiu na formação da convicção do tribunal para dar por provados os factos conducentes à responsabilidade jurídico-penal do arguido/recorrente, é a de se considerarem tais factos não provados, sendo de proferir, em conformidade, decisão de absolvição.

Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório:

1. Na Secção de Competência Genérica da Instância Local de Condeixa-a-Nova, após julgamento em processo abreviado, por sentença proferida e depositada em 27-01-2006, o arguido A..., completamente identificado nos autos, foi condenado, pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de abate clandestino, p. e p. pelo artigo 22.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20-01, na pena de 45 (quarenta e cinco) dias de prisão, substituída por 45 (quarenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 8,00 (oito) euros, e na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, a igual taxa, e, realizada a acumulação material das referidas penas, na pena única de 195 (cento e noventa e cinco) dias de multa, à mesma razão diária de € 8,00 (oito euros), tudo perfazendo o tal de € 1.560,00 (mil quinhentos e sessenta euros).


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2. Inconformado, o arguido interpôs recurso, tendo extraído da respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

1.ª - O presente recurso tem como objecto toda a matéria de facto da sentença proferida nos presentes autos que condenou o recorrente pela prática do crime de abate clandestino p. e p. pelo artigo 22.º, n.º 1, als. a) e b), do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro.

2.ª - Face à prova produzida em audiência de julgamento, impunha-se, pelo menos relativamente à prática do crime supra mencionado, decisão diferente, entenda-se a absolvição do Arguido.

3.ª - Impugna o Recorrente o facto vertido em 2.) da matéria de facto dada como provada constante da douta sentença proferida, por entender que o consentimento de busca à sua residência não foi obtido de forma livre e esclarecida.

4.ª - Tal entendimento deriva do facto dos Inspectores da ASAE, no decorrer da referida diligência de investigação, não terem comunicado previamente ao aqui Recorrente que direitos lhe assistiam, nomeadamente o de não consentir na sua entrada, outrossim ser assistido por defensor.

5.ª - Tal factualidade é corroborada pelo depoimento das testemunhas B... , C... , D... e E... .

6.ª - Estando os Inspectores da ASAE perante a residência do Arguido, aqui Recorrente, e sabendo dessa factualidade, a busca efectuada nunca poderia ter como referência a normatividade geral referente às buscas não domiciliárias, mas a uma norma específica respeitante a buscas no domicílio, que detém carácter reforçado, devido ao regime imperativo da inviolabilidade do domicílio consagrado no art. 34.º da CRP.

7.ª - Assim, o enquadramento legal para que as mesmas pudessem ocorrer de forma válida e legal sempre seria o constante do art. 177.º do CPP, ou eventualmente no decorrer de um consentimento prestado nos termos e para os efeitos previstos nos arts. 174.º, n.º 3 e n.º 5, al. b), ambos do CPP.

8.ª - Deste modo, tal consentimento não pode considerar-se como livre e esclarecido, pelo que se entende que a referida busca terá obrigatoriamente de soçobrar, considerando-se inválida, enquanto meio de obtenção de prova que se caracteriza, devendo por conseguinte ser invalidada a prova por este meio produzida, nomeadamente a apreensão realizada.

9.ª - Porém, ainda que o consentimento prestado fosse válido, sempre teria de ser validada a respectiva busca pelo Ministério Público, como forma de se garantir a privacidade do visado e a garantia fundamental de defesa, caso da busca realizada resultasse prova que se pretendesse fazer valer no processo. Algo que não sucedeu.

10.ª - Tal factualidade tem ainda conexão estrita com a preterição de constituição de defensor, pois estando o defensor do Arguido em viagem (era um dos familiares que se deslocava de Vila Praia de Âncora para ir almoçar naquele dia festivo, dia 19 de Julho de 2015), e tendo solicitado aos Agentes da ASAE que aguardassem pela sua chegada, os mesmos não se coibiram de realizar todas as diligências de investigação, tais como buscas, detenção e respectiva apreensão.

11.ª - Para realizarem tais actos, deveriam, pelo menos, ter chamado naquele lapso de tempo, defensor oficioso, que assegurasse os direitos do Arguido naquele lapso temporal, violando, por conseguinte, os precisos termos do art. 64.º do CPP.

12.ª - Entende o recorrente que o Tribunal a quo não deveria igualmente ter considerado como provado o facto enumerado no ponto 5 da matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, porquanto, ficou provado que todos os animais do Arguido - nomeadamente os leitões apreendidos - são inspecionados em vida por Médico Veterinário.

13.ª - Tal foi profundamente afirmado em sede de audiência de discussão e julgamento pelo Médico Veterinário que trata diariamente dos animais do Arguido - Dr. H... - sendo falso, por isso, afiançar que os mesmos não detêm a respectiva inspecção sanitária.

14.ª - Relativamente aos factos n.ºs 6 e 9 dados como provados na douta sentença recorrida, não pode o ora Recorrente corroborar, pelo que se impugnam.

15.ª - O tribunal a quo valorou erradamente o depoimento das testemunhas arroladas pelo Arguido, outrossim as suas declarações, que terão referido que o mesmo lhes declarou que se pretendia ausentar no decorrer da fiscalização para falar com a Senhora N... relativamente à troca de animais.

16. O tribunal a quo apenas valorou os depoimentos prestados pelos Agentes da ASAE, que, no entanto, se mostram incompatíveis entre si.

17.ª - Tais depoimentos - os de F... , D... e E... , todos inspectores da ASAE - revelam incongruências, pois apenas adiantam que os animais que o Arguido queria dispensar à Senhora N... seriam assados, pelo facto estar perto a hora do almoço, outrossim por entenderem “através de dicas” que o Arguido indiciariamente destinava os leitões que preparava e assava ao comércio.

18.ª - O Arguido, ainda que tivesse prestado as referidas declarações no sentido de pedir para se ausentar porque teria que informar a Senhora N... que já não podia dispensar os leitões assados, o que apenas se admite por mera hipótese académica, sempre o teria feito em modo de “conversa informal”, pelo que não pode ser considerada nem para efeito de elaboração de auto de notícia, nem tão pouco para ser reproduzida por aqueles Inspectores em sede de audiência de discussão e julgamento.

19.ª - Tais leitões nunca poderiam se destinados à Senhora N... , pois foi afirmado pelas testemunhas, outrossim pelas declarações do Arguido que dois dos leitões assados seriam para consumo da família do Arguido no dia festivo, um para o filho do Arguido levar para casa em Vila Praia de Âncora, sendo que o restante seria destinado à congelação.

20.ª - Como referido pelo Tribunal a quo, um leitão dá em média para o consumo de seis a sete pessoas, pelo que, dois leitões com o peso de cinco quilogramas, retiradas que sejam as partes não comestíveis, sempre seriam a quantidade adequada para o número de familiares que se estimavam presentes naquele dia festivo.

21.ª - O Arguido não tinha que ter a consciência que praticava qualquer acto ilícito, pois, sendo para consumo próprio, ainda que não ostentassem marcas de salubridade, o Arguido pode consumir os animais que produz, não preenchendo o tipo de ilícito previsto pelo art. 22.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro.

22.ª - Relativamente ao ponto levado a 7 da matéria de facto dada como provada, da sentença recorrida sempre se dirá que, ao contrário do que o Tribunal a quo defendeu, não estávamos perante uma prova pericial, na acepção dos arts. 151.º e 161.º do CPP.

23.ª - O exame realizado pelo Médico Veterinário - Dr. O... - não pode ser considerado como perícia, já que estamos perante um exame a olho nu, de cariz macroscópico, sem qualquer fundamento de cientificidade ou comprovação científica, pelo que deveria ter sido considerado como um exame, e como tal, ser valorado conjuntamente com a restante prova produzida em audiência de discussão e julgamento.

24.ª - Por outro lado, o seu depoimento em sede de audiência de discussão e julgamento foi recheado de dúvidas existenciais, chegando a concluir que, aqueles leitões, naqueles termos, poderiam ter sido abatidos para consumo próprio, o que não violaria qualquer preceito legal.

25.ª - Confessou que emitiu o parecer constante dos autos - de destruição das carcaças - uma vez que estando perante os elementos da ASAE, tal indiciaria que o consumo não seria privado, mas público.

26.ª - Por último, de referir uma vez mais que, a suposta declaração prestada pelo Arguido perante os inspectores da ASAE, ainda que tal seja considerado provado, apenas o poderá ter sido enquanto “conversa informal” que, no seguimento da jurisprudência dominante, não poderá servir para valorar e fundamentar a condenação do Arguido, violando-se as normas constantes dos arts. 127.º, 356.º, n.º 7 e 357.º, n.ºs 1 e 2, do CPP.

27.ª - Como já alinhado, o Tribunal a quo, ao ter valorado a prova constante do relatório “alegadamente” pericial do Médico Veterinário Municipal - Dr. N... -, incorreu em violação do disposto nos arts. 127.º, 151.º e 171.º do CPP.

28.ª - Posto isto, e considerando-se impugnada o vertido em 2, 5, 6, 7 e 9 da matéria de facto dada como provada da sentença ora recorrida, outrossim impugnando-se a fundamentação de direito no que concerne à preterição da constituição de defensor, valoração das conversas informais e valoração de uma prova que não se considera pericial, requer-se a este Venerando Tribunal se digne substituir e revogar a sentença proferida pelo tribunal a quo por outra que absolva o Arguido pelo prática do crime de abate clandestino, previsto e punido pelo art. 22.º, n.º 1, als. a) e b) do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro.

29.ª - Caso assim não se entenda, o que apenas por mera hipótese académica se admite, e se decida por aplicar uma pena ao Arguido, a medida da pena sempre deverá ser sindicada, por se revelar desproporcional e desadequada, e por isso violadora do preceituado no art. 71.º do Código Penal, uma vez que, as medidas de prevenção geral e especial, para o caso concreto, se limitam no patamar mínimo, e não no patamar elevado, como condenou o Tribunal a quo.

Termos em que e nos demais de direito deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogada a sentença recorrida e, em consequência, ser o recorrente absolvido do crime de abate clandestino em que foi condenado.


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3. O Ministério Público rematou a sua resposta ao recurso como infra reproduzido:

A) A douta sentença impugnada não merece qualquer censura, estando bem fundamentada, também no que à matéria de facto concerne.

B) Assim, a convicção do Tribunal assentou na perícia realizada e nos depoimentos referidos na motivação de facto.

C) O Tribunal analisou correctamente a prova produzida.

D) A douta sentença impugnada não viola qualquer norma, substantiva ou adjectiva e, designadamente, as referidas nas conclusões do recurso apresentado.

Nos termos expostos, deverá ser negado provimento ao recurso, como é de justiça.


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4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Sr.ª Procurador-Geral Adjunta, em parecer a fls. 223/7, manifestou-se, de igual forma, no sentido da improcedência total do recurso.

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5. Cumprido o art. 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o recorrente não exerceu o contraditório

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6. Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido a conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

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II. Fundamentação:

1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:

Conforme entendimento uniforme dos nossos tribunais superiores, são as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso, indicadas no art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Assim, no caso em apreciação, o recurso do arguido está circunscrito às seguintes questões:

A) Se existe erro de julgamento quanto à matéria de facto provada, nomeadamente por ter sido fundamentada, no circunstancialismo concreto verificado, em prova decorrente de meio (busca) inadmissível, e em “conversa informal” insusceptível de valoração;

D) Se alterada a matéria de facto, de acordo com os desígnios do recorrente, este deve ser absolvido da prática do crime que lhe estão impugnado.

 E) Caso assim não seja, se a pena imposta ao arguido, por ser desproporcional e desadequada, deve ser reduzida.


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2. Na sentença, foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):

1. Na sequência de informação de que o arguido, preparava, assava e vendia a preços mais competitivos, leitões que ele próprio abatia nos anexos da sua residência, uma equipa da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica – ASAE – dirigiu-se, no dia 19 de Julho de 2015, cerca das 8.55 horas, à residência daquele, após verificarem que as chaminés se encontravam a fumegar.

2. Após terem sido autorizados pelo arguido a entrar nas instalações, verificaram que existiam dois fornos, num deles estavam duas carcaças de leitão, em fase inicial de assadura, estando o outro forno em aquecimento, onde iriam ser assados outros dois leitões, que se encontravam já preparados noutra divisão.

3. Num canto de uma outra sala, encontravam-se seis varas de aço inoxidável, das utilizadas na assadura de leitões.

4. O arguido dispunha numa sala anexa às abougarias, de uma banca de lavagem em inox, uma mesa em madeira e uma faca utilizada para o abate, bem como arames e ganchos metálicos, fixados nas vigas de betão, das utilizadas para pendurar as carcaças, aquando do sangramento e enxugamento.

5. Nenhum dos quatro leitões encontrados nas instalações anexas à residência do arguido, tinha sido submetido a inspeção sanitária, não ostentando qualquer marca de salubridade.

6. Dois dos leitões encontrados abatidos, eram para entregar a uma senhora residente na localidade N... .

7. Efetuada a perícia às carcaças de leitão encontradas, resulta do seu teor a conclusão pericial seguinte: “não ostentarem qualquer tipo de marca de salubridade, ou de outra identificação, nomeadamente marca de exploração da origem dos animais;

- tal permite concluir que as carcaças são provenientes de abate clandestino;

- os animais não tinham sido inspecionados em vida;

- a matança não tinha sido assistida por qualquer inspetor sanitário;

- não era possível relacionar as vísceras com os respetivos animais/carcaças;

- a exploração pecuária não se encontra registada;

- as instalações de manuseamento, preparação e assadura não se encontram licenciadas para o efeito.”

8. O arguido abateu-as nas instalações referidas e não em matadouros licenciados.

9. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, sabendo serem proibidas e punidas por Lei as suas condutas.

10. O arguido aufere entre €900,00 a €1000,00 de salário. Vive com a esposa e uma filha maior de idade, em casa própria.

11. Como produtor agrícola chega a obter em alguns meses €400,00, sendo um rendimento de montante variável.

12. Possui as despesas próprias do dia-a-dia, e com os produtos de tratamento de aplicação nas culturas, ascendendo estes a montantes entre €500,00 a €600.00.

13. Frequentou o 7.º ano de escolaridade.

14. Do certificado de registo criminal do arguido, nada consta.


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3. E como factos não provados:

Não se provaram outros factos com relevância para a decisão da causa, nomeadamente não se provou:

a) Que o arguido destinava à venda ao público, os leitões que foram encontrados e apreendidos, tal como havia feito no dia 17 de Julho, que tinha vendido três leitões, para o stand do Orfeão, existente na feira das tasquinhas, evento a decorrer nos festejos do Município de Condeixa-a-Nova.


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4. Ficou consignado, em relação à motivação da decisão de facto:

Para a formação da convicção do Tribunal quanto à factualidade provada e não provada, analisou-se crítica e conjuntamente a prova produzida e examinada em audiência de discussão e julgamento, apreciada segundo as regras da experiência e da livre convicção do julgador.

A prova assentou na conjugação das declarações do arguido, com demais prova documental existente nos autos e com a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento.

Da prova documental existente nos autos, foi tida em conta, designadamente: a reportagem fotográfica de fls. 8-21 efetuada pela ASAE; o auto de apreensão de fls. 22-23; auto de exame direto de fls. 24/verso; certificado de registo criminal do arguido de fls. 130.

Foram ouvidas as testemunhas E... , F... , C... , G... , B... , H... , D... , e como abonatórias as testemunhas I... , J... e L... .

Foi ouvido o perito N... , que prestou esclarecimento acerca do auto de perícia.

O arguido inicialmente remeteu-se ao silêncio, tendo a final pretendido falar sobre os factos. Pareceu querer justificar os factos afirmando serem as ditas carcaças para consumo próprio, no dia em questão, por decorrerem as festas de Santa Cristina e esperar a visita de familiares em sua casa. Afirmou serem as carcaças provenientes da sua própria exploração caseira e negou a prática do crime de que vem acusado, afirmando que não procedeu a venda, nem que se destinavam as mesmas a consumo de terceiros, mas sim para seus familiares que eram esperados na sua residência naquele dia de festa.

Foi ouvido o perito subscritor da perícia realizada às carcaças apreendidas, N... , médico veterinário, que prestou esclarecimentos sobre o objeto da dita perícia realizada a fls. 24/verso. O perito médico confirmou não ter tido dúvidas de que os leitões abatidos eram destinados a consumo público, ou seja, que não apenas aos familiares do arguido e seu consumo próprio, e que, por não terem marcas de salubridade ou de inspeção veterinária, nem licença de abate, tratando-se de uma exploração caseira, concluiu tratar-se de abate clandestino e determinou a sua destruição por razões de segurança para a saúde pública.

As testemunhas E... , F... e D... são todos Inspetores da ASAE que estiveram presentes no dia dos factos e assistiram aos mesmos. Relataram aquilo de que tiveram conhecimento pessoal, de forma coerente e que fez sentido, espontâneo, e consideraram-se credíveis.

As testemunhas C... e B... , respetivamente filha e esposa do arguido, estavam presentes na data e local dos factos - embora a primeira tenha referido não ter assistido desde o início da fiscalização da ASAE - e pareceram crer convencer o Tribunal de que os quatro leitões que se encontravam abatidos e a serem preparados para consumo, o eram apenas para a família e amigos que iam receber nesse dia em casa. Porém, em conjugação com o depoimento das testemunhas Inspetores da ASAE, o depoimento daquelas duas mostrou-se pouco plausível.

Desde logo as testemunhas C... e B... também prestaram depoimentos pouco isentos, e que, à luz das regras da experiência comum pareceram pouco lógicos, como se passa a explicar.

Com efeito, C... e B... tentaram justificar que apesar de serem 4 os leitões abatidos no dia dos factos, que estavam a ser preparados para consumo, dois deles iam consumir nesse dia, um terceiro seria destinado ao filho que o levaria para casa dele e outro iria ser congelado. Todavia, tal justificação apresentada, não logrou convencer o Tribunal, uma vez que da conjugação com os depoimentos prestados pelos Inspetores da ASAE, afigurou-se não ser assim que se passaram os factos.

Os Inspetores da ASAE relataram expressamente que o arguido pretendeu ausentar-se durante a fiscalização que levavam a cabo, para ir avisar uma senhora N... de que já não podia fornecer-lhe dois daqueles leitões, tendo a testemunha F... , dito expressamente que o arguido se referiu a dois dos leitões assados naquele dia. E que o arguido adiantou-lhes a explicação de que seriam para a dita senhora como contrapartida pelo trabalho por ela prestado, na sua exploração agrícola.

O arguido ainda adiantou que dantes quando tinha muitas pessoas a trabalhar para ele “na apanha da cebola”, abatia leitões seus para dar de comer aos seus trabalhadores.

Em virtude dessa constatação de que dois dos leitões seriam destinados a uma terceira pessoa, mostraram os Inspetores da ASAE não terem dúvidas de que os quatro leitões abatidos não se destinavam todos ao próprio consumo do arguido e seus familiares naquele dia. E mais referiram considerar que tinham sido recentemente abatidos, uma vez que encontraram ainda vísceras de leitões dentro de um saco como visível na fotografia de fls. 13 dos autos, o que segundo as regras de experiência comum, estando ali mesmo as referidas vísceras e não obstante o descrito no auto de exame pericial efetuado a fls. 24/verso, leva a crer que teriam sido retiradas das carcaças que o arguido assava e preparava para colocar nos fornos, pois nenhuma outra explicação se encontra para tais vísceras ali permanecerem em sacos, nos anexos onde também estavam os ditos quatro leitões abatidos.

Tudo levando a crer, face aos factos provados em 2., 3., e 4., constatados pelos Inspetores, e segundo regras de experiência comum, que o arguido abateu os ditos leitões nas suas instalações, não obstante os Inspetores da ASAE no dia dos factos, não terem presenciado qualquer abate de leitões pelo arguido.

Tal convicção formulou-se tendo em conta os elementos constatados pelos Inspetores, e uma vez que nenhuma outra explicação foi adiantada pelo arguido que permitisse concluir que teria sido outra pessoa a abatê-los ou que tivessem sido aqueles quatro leitões abatidos num matadouro licenciado, em virtude de não terem sido encontrados no local outras pessoas além do arguido, sua esposa e filha, e o arguido ter inclusive referido que os leitões eram da sua exploração e que procede ao abate dos leitões para consumo próprio, nada resultando em contrário que levasse a considerar que não tivesse o arguido igualmente assim procedido, no dia dos factos.

Inclusive foram vistos pelos Inspetores, os leitões vivos num curral próximo dos anexos, e confirmada ainda a existência, do que pareceu aos Inspetores uma sala de abate (ponto 4.), pelo que, não se suscitaram dúvidas ao Tribunal de que o arguido procedeu ao abate dos referidos leitões, que eram provenientes da sua produção, como referiu, convicção que se formulou com base em regras de lógica e de experiência comum, a partir dos factos que resultaram provados.

Por outro lado, também a circunstância das testemunhas C... e B... terem referido que os leitões abatidos eram 4 porque vinham vários familiares naquele dia visitá-los e iam consumi-los, referindo-se ao filho, esposa deste, amigo, pais e sogros, não convenceu o Tribunal.

O relatado pelas testemunhas C... e B... , não pareceu plausível, pela razão de que os familiares que efetivamente se deslocaram à residência do arguido foram os que chegaram ainda no período da manhã e que as testemunhas relataram. Referiram ainda que posteriormente não chegaram a comparecer naquele dia, os pais e sogros do arguido. O que não deixa de contribuir para considerar pouco plausível a explicação adiantada pelas duas testemunhas para justificarem o número de leitões abatidos, sendo certo que um leitão em média, dá para consumo de seis a sete pessoas e que, quatro leitões sempre seriam demasiados para o número de familiares/convivas esperados naquele dia, como referiram.

Por outro lado, se iam estes familiares - pais e sogros - visitá-los por se tratar das festividades de Santa Cristina, não se compreende a razão de afinal não o terem feito, nem faz sentido que apenas por terem sido apreendidos e destruídos os leitões abatidos, tivessem deixado os pais e sogros de visitar o arguido, naquele dia de festividades.

Pela conjugação efetuada dos vários depoimentos prestados, consideraram-se mais verosímeis, lógicos e coerentes os depoimentos das testemunhas Inspetores da ASAE, bem como as conclusões retiradas do exame pericial junto aos autos elaborado pelo perito que prestou esclarecimentos em audiência, em detrimento da versão apresentada pelo arguido e testemunhas C... e B... .

Já as testemunhas G... e H... , nada souberam adiantar acerca dos factos.

Releva o facto da testemunha G... ter referido que é amigo da família e foi visitá-los no dia em questão, ficando para almoçar, mas admitiu seguir uma alimentação macrobiótica e por essa razão não iria consumir leitão no dia dos factos.

Por sua vez, a testemunha H... , médico veterinário, não presenciou os factos, nem participou como perito na análise da situação dos autos, nada sabendo por isso esclarecer sobre os factos da acusação. Nessa medida o seu depoimento revelou-se imprestável para a descoberta da verdade material.

As testemunhas I... , J... e L... prestaram depoimentos abonatórios. Mostraram as três testemunhas conhecer o arguido há muitos anos, e por essa razão justificaram o que depuseram acerca da personalidade do mesmo, parecendo plausíveis.

Pela conjugação dos elementos supra referidos consideraram-se provados os factos dos pontos 1. a 8., resultando o facto provado no ponto 7., das conclusões descritas no auto de exame direto (perícia) efetuada a fls. 24/verso dos autos.

O referido no ponto 9., acerca da intenção do arguido, provou-se com base na constatação e prova dos elementos objetivos.

Como se refere no Ac. da R.P. de 23.02.93, B.M.J. 324/620, “dado que o dolo pertence à vida interior de cada um, é portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão. Só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge com maior representação o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência”.

A prova de elementos acerca das condições económicas do arguido, nos pontos 10. a 13., resultaram das suas próprias declarações que não suscitaram reservas ao Tribunal.

Considerou-se ainda o Certificado de Registo Criminal do arguido, junto aos autos, para prova do referido em 14.

Quanto aos factos não provados na alínea a), assim foram considerados por não ter sido produzida prova que permitisse corroborá-los. Com efeito não resultou demonstrada a venda ou comercialização pelo arguido dos referidos leitões, a quem quer que fosse, tanto no dia dos factos descritos como anteriormente, pelo que não se fez prova desse facto, uma vez que nenhuma das testemunhas ouvidas os presenciou, nem outra prova foi apresentada que os corroborasse.


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5. Mérito do recurso:

5.1. Alterabilidade da matéria de facto provada:

O recorrente impugna, de forma manifestamente compreensiva, com cumprimento das exigências normativas contidas nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal (doravante, apenas CPP), determinados segmentos da matéria de facto dada como provada na sentença sob recurso, rectius, os pontos designados com os n.ºs 2, 5, 6, 7 e 9.

Relativamente ao ponto 8., também do acervo factológico provado, apenas na motivação, de forma genérica, está mencionado.

Porém, aqui, em contrário do que sucede quanto aos demais pontos de facto objecto de impugnação, não estão minimamente cumpridas as exigências normativas daquele artigo 412.º, desde logo por o recorrente não haver individualizado as concretas provas que imporiam decisão diversa da recorrida, realidade que inviabiliza a sindicância ampla, nesse específico domínio, do questionado ponto de facto.

Na tese argumentativa suporte do recurso, aduz essencialmente o recorrente, em breve mas suficiente síntese, conforme conclusões vertidas nos pontos 3.ª a 11.ª, que o consentimento prestado pelo arguido à busca efectuada na sua residência não foi obtido de forma livre e esclarecida, porquanto, os Inspectores da ASAE intervenientes na dita diligência de obtenção de prova não lhe comunicaram, previamente, os direitos que lhe assistiam, nomeadamente o de não consentir na entrada dos agentes do dito órgão de polícia criminal e o de ser assistido por defensor - o que decorre das testemunhas B... , C... , D... e E... -, havendo, por isso, violação dos artigos 177.º e 64.º do CPP.

Mais aduz o recorrente, ainda que o consentimento prestado fosse válido, sempre a busca teria de ser validada pelo Ministério Público, como forma de assegurar a privacidade do arguido e garantir os seus direitos de defesa.

Por tudo isso, a busca, sendo inválida, invalida também a prova dela decorrente, inter alia, a apreensão das quatro carcaças de leitão.
Importa, antes de mais, para a devida compreensão da questão a dirimir, expor, nos seus traços essenciais, os factos relevantes à problemática da validade da busca e seu regime legal.
Na sequência de intervenção de uma brigada da ASAE, constituída por três inspectores, foram apreendidos, no dia 19 de Julho de 2015, no “estabelecimento de produtor agrícola” pertencente ao arguido, quatro carcaças de leitão, duas cruas e duas em fase de assadura (cfr. “auto de apreensão” de fls. 22/23 e “auto de exame directo” de fls. 24).
Consta de fls. 7 dos autos um documento designado “consentimento de busca”, assinado, a final, pelo “declarante”, com o seguinte conteúdo, nos segmentos relevantes:
«Para efeitos do disposto na alínea b) do número 5 do artigo 174.º do Código de Processo Penal, eu, abaixo assinado e identificado, declaro que consenti que se passasse busca (…) à minha residência, aos anexos da mesma, às abougarias e aos espaços adjacentes a estas.
Nome: A... » (abaixo, estão descritos suficientes elementos identificativos do arguido).
Após a dedução da acusação, em requerimento de fls. 69/87, o arguido havia já suscitado a invalidade da busca, ancorado na mesma ordem de fundamentos, pretensão que, na sentença recorrida, em fase de saneamento do processo, não teve acolhimento, em razão dos motivos que se passam a transcrever:
«No respeitante às nulidades invocadas pelo arguido, importa apreciar:
(…).
ii) Da invalidade da busca domiciliária realizada – alega o arguido ter sido sujeito a uma busca domiciliária pelos agentes da ASAE, que entraram na residência do arguido sem o devido consentimento do mesmo e sem qualquer mandado judicial para o efeito, considerando que foi violada a sua privacidade e domicílio e requerendo a nulidade da prova assim obtida, designadamente a nulidade da apreensão efetuada.
Respondeu o Ministério Público que pelo arguido, foi dada a autorização aos agentes da ASAE, que consta dos autos.
Com efeito, consta de fls. 8 dos autos o “consentimento de busca” assinado pelo arguido, autorizando os agentes da ASAE a acederem à “residência, anexos da mesma, às abougarias e aos espaços adjacentes a estas.”
Resultou das próprias declarações do arguido em audiência de julgamento, que este permitiu a entrada aos ditos agentes pois “nada tinha a esconder”, não tendo proferido em momento algum que não os tenha autorizado.
Assim, não pode sustentar-se a inviolabilidade de domicílio alegada, bem como se considerou eficaz a apreensão efetuada, que se encontra devidamente validada pelo Ministério Público a fls. 85. Pelo que, improcedem as nulidades invocadas.
(…).
iv) Da preterição da formalidade de constituição de defensor – alega o arguido que embora não tivesse ainda aquando da fiscalização a qualidade de arguido, deveria ter sido assistido por defensor uma vez que da inspeção podia resultar a sua responsabilização criminal, considerando não o ter sido e tal facto ser gerador de nulidade insanável.
Ora da audiência de discussão e julgamento resultou que o arguido teve a assistência do defensor, seu filho, pelo que nada há a apontar, improcedendo a nulidade invocada».

A busca é, como se sabe, um meio de obtenção de prova que se concretiza numa “operação desenvolvida pela autoridade judiciária ou por órgão de polícia criminal (OPC) no intuito de obter indícios probatórios [provas materiais - objectos da prática do crime, móbil do crime, elementos materiais que indiciam a consciência da ilicitude dos actos que o(s) agente(s) praticou(aram) (...)] - Manuel Monteiro Guedes Valente, Revistas e buscas, Almedina, pág. 45.
De acordo com o n.º 2 do art. 174.º do CPP, a busca tem lugar quando houver indícios de que objectos relacionados com o crime, ou o arguido ou outra pessoa que deva ser detida se encontram em lugar reservado ou não livremente acessível ao público.
Por imperativo constitucional, cfr. artigo 32.º da CRP, «são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações».
Consagra o n.º 1 do artigo 34.º, ainda da Constituição, a inviolabilidade do domicílio, estabelecendo, não obstante, o n.º 2 do mesmo artigo que «a entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade só pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas previstas na lei».
Intimamente relacionado com a defesa das referidas garantias constitucionais, o artigo 126.º da lei adjectiva penal reporta-se aos métodos proibidos de prova.
Em regra, as buscas (não domiciliárias) têm que ser autorizadas ou ordenadas por despacho, pela autoridade competente (n.º 3 do mesmo art. 174.º do CPP). Excepcionalmente, podem realizar-se sem precedência desse despacho. As excepções encontram-se previstas nos arts. 174.º, n.º 4, e 251.º, ambos do CPP.
Por sua vez, as buscas domiciliárias - apenas esta está em causa -, são, em princípio, autorizadas ou ordenadas pelo juiz (artigo 177.º, n.º 1, do CPP); em certos casos, porém, podem também ser ordenados pelo MP ou efectuado por órgão de polícia criminal (n.º 3 do mesmo preceito).
Sucede tal, aparte outras situações, quando os «visados consintam, desde que o consentimento prestado fique, por qualquer forma, documentado» [alínea b) do n.º 5 do artigo 174.º e n.º 3 do artigo 177.º do CPP].
Nestes casos, de consentimento, «trata-se de um domínio (…) sem dúvida pertinente à área dos direitos fundamentais, mas em que releva a disponibilidade dos respectivos titulares, que podem consentir validamente no acto, em princípio lesivo desses direitos» fundamentais. «Aqui, todo o relevo é conferido à vontade do titular, segundo volenti non fit injuria (não se comete injúria, não se prejudica quem consente)»  - Ac. do STJ de 30-06-2011, proferido no processo 83/08.5JAFUN.L1.S1).
Obviamente, o consentimento necessário e relevante há-de ser esclarecido e consciente, ou seja inteiramente livre, por conseguinte, à margem de qualquer forma coactiva, quer física quer psicológica.

Não decorrendo da prova oralmente produzida em julgamento, máxime da indicada no recurso, qualquer objecção quanto à autoria e fidedignidade da assinatura aposta, no lugar destinado ao “declarante”, no “consentimento de busca” de fls. 7, este documento “fala por si”, sendo eloquente no sentido de o recorrente ter aposto, pelo seu punho, o seu nome na dita declaração.
As contraposições do arguido, alicerçadas não falta de informação sobre os direitos que lhe assistiam, cuja concretização se resume ao direito de não consentir na entrada dos agentes, não têm sustento nos depoimentos das testemunhas que indica, nem noutros tão pouco, e sequer nas suas próprias declarações.
Auscultamos a totalidade das declarações e depoimentos, ressumando de tudo, concordantemente, em contrário do referido pelo recorrente, o conhecimento, pelo arguido, do seu direito ao impedimento de entrada dos órgãos de polícia criminal no interior da sua habitação e em locais anexos.
Assim, “depois de termos sido convidados a entrar, surgiu o Sr. A... , que nos foi mostrar os leitões” - depoimento da testemunha E... (Inspector da ASAE); «abordaram primeiro a esposa do arguido. O arguido apareceu depois. Identificámo-nos, entretanto, como Inspectores da ASAE. O Sr. A... consentiu a entrada e, entretanto, houve o consentimento da busca, foi avisado” - depoimento da testemunha F...   (Inspector-Adjunto da ASAE); «a partir daí, os meus pais não tinham nada a temer, abriram as portas, deixaram os Srs. à vontade para ver tudo o que queriam» - depoimento da testemunha C... (filha do arguido); «depois a minha esposa chamou-me e eu vim atender os senhores. Expliquei-lhes tudo, abri-lhes tudo, eles queriam até inclusivamente saber onde é que estava a arca frigorífica, pensavam que iam encontrar ali algum negócio, algum matadouro»; «depois, como lhes disse, eu mostrei-lhes tudo o que eles quiseram, se eles quisessem ir ao 1.ª andar podiam ter ido porque não lhes escondi nada» - declarações do próprio recorrente.
Aliás, como é bem de ver, o pedido de declaração de consentimento tem implícita a possibilidade de o recusar.

O artigo 64.º, n.º 1, do CPP contempla os actos processuais nos quais é obrigatória a assistência de defensor ao arguido, onde não se integra a busca.
Contudo, de acordo com o disposto no n.º 2 do mesmo normativo, fora dos casos previstos no n.º 1, pode ser nomeado defensor ao arguido, a pedido do tribunal ou do arguido, sempre que as circunstâncias do caso revelaram a necessidade ou a conveniência de o arguido ser assistido.
Como é referido por Henriques Gaspar - Código de Processo Penal, Comentado, 2014, Almedina, págs.228/9 -, «o n.º 2 constitui uma cláusula de resguardo; a nomeação de defensor pode ser determinada, fora dos casos de obrigatoriedade enunciados, quando as circunstâncias do caso revelem “a necessidade ou a conveniência” de o arguido ser assistido; a determinação das circunstâncias em que se revele a necessidade de assistência obrigatória depende do critério prudente da autoridade judiciária, em função do acto, da relevância e do interesse dos direitos de defesa na consideração adequada dos equilíbrios processuais - v.g., interrogatórios subsequentes (artigo 144.º, n.º 2, alínea b); acareação (artigo 146.º); reconhecimento (artigo 147.º); reconstituição do facto (artigo 150.º); buscas (artigo 176.º, n.º 1)».
No caso dos autos, porém, nada revela sequer o pedido de arguido para que fosse nomeado defensor, não se vislumbrando também nenhum elemento objectivo aconselhador da intervenção do tribunal nesse sentido.

 Sobre a preconizada exigência de validação da busca, efectuada mediante consentimento do arguido, pelo Ministério Público, não vemos não lei, por não existir, tal exigência (cfr. n.º 4 do artigo 177.º do CPP, que, ao remeter para o n.º 6 do artigo 177.º do mesmo diploma, determina, nos casos em que a busca domiciliária é efectuada por órgão de polícia criminal sem consentimento do visado e fora de flagrante delito, a comunicação imediata ao juiz de instrução, tendo em vista apreciação de cariz judicial destinada a validação daquele meio de obtenção de prova).
Mesmo que se condescenda, a validação não terá de ser expressa, sendo igualmente regular a validação tácita sempre que no processo existirem elementos que comprovem, de forma inequívoca, que o Ministério Público fiscalizou a legalidade do acto processual em causa, no caso, a busca, realizada pelos órgãos de polícia criminal e o considerou válido (neste sentido, veja-se, embora a propósito de apreensões, o Ac. da Relação do Porto de 06-02-2013, proc. n.º 6/07.9GABCL.P1, in www.dgsi.pt).
Volvendo ao caso dos autos, está escrito, quase a final,  no “auto de notícia”, sem dúvida que haja sido suscitada neste conspecto: «Foi dado conhecimento de todos estes procedimentos», onde se inclui a busca, «via telefone, à Digníssima Procuradora de Turno dos Serviços do Ministério Público de Condeixa-a-Nova, na pessoa da Exma. Senhora Procuradora (…), tendo esta Senhora Magistrada anuído na apreensão e no exame pericial».
Se a Magistrada do Ministério Público anuiu na apreensão das carcaças de leitão, inevitavelmente validou também, embora tacitamente, a busca que originou a apreensão.
Pelo exposto, sendo plenamente válida e eficaz a busca efectuada no domínio destes autos, mantém-se, nos precisos termos, o ponto 2 da matéria de facto provada.

*
Passando ao ponto de facto 5., sustentado no depoimento da testemunha, médico veterinário, H... , ousadamente, descurando a legislação pertinente, assevera o recorrente não corresponder à verdade a falta, nos leitões, de inspecção sanitária.
Ouvido tal depoimento, dele se recolhe, tão-somente, a assistência prestada, no domínio sanitário, pela testemunha, aos animais de raça suína detidos/criados pelo arguido, não concretizando que assim tivesse sucedido em relação aos quatro leitões versados nos autos.
De todo o modo, o tipo objectivo do arguido 22.º do DL 28/84, de 20-01, traduzido no abate de animais para consumo público sem a competente inspecção sanitária [cfr. n.º 1, al. a)], não prescinde, antes exige, a intervenção da legislação avulsa definidora do modus operandi na concretização do necessário quadro inspectivo.
Assumem, neste domínio, particular relevância os Regulamentos CE n.ºs 853/2004 e 854/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho de 29-04-2004 e 30-04-2004, respectivamente.
Assim, no primeiro dos dois Regulamentos, logo o artigo 5.º dispõe:
«1. Os operadores das empresas do sector alimentar não podem colocar no mercado produtos de origem animal manipulados num estabelecimento sujeito a aprovação nos termos do n.ºs 2 do artigo 4.º a menos que estes detenham:
a) Uma marca de salubridade aplicada nos termos do Regulamento (CE) n.º 854/2004; ou
b) Uma marca de identificação aplicada nos termos da secção I, do anexo II do presente regulamento, quando aquele regulamento não preveja a aplicação de uma marca de salubridade».
Por sua vez, no anexo III, contemplando requisitos específicos relativos à carne de ungulados, onde se integram os suínos (cfr. definição do anexo I), exige uma inspecção ante mortem e uma inspecção post mortem.
Em sintonia, o Regulamento 854/2004, ao estabelecer as regras específicas de organização dos controlos oficiais de produtos de origem animal destinados ao consumo humano, reveste-se de importância decisiva.
Logo o n.º 1 do ponto B. do capítulo II da Secção I do anexo I, epigrafado de “Inspecção ante mortem”, prescreve que,  sob reserva do disposto nos pontos 4 e 5 - destinados a casos de abate de emergência fora do matadouro e da caça selvagem abatida em caçadas (n.º 4), e a situações, devidamente regulamentadas, em que a inspecção ante mortem pode ser efectuada na exploração de proveniência (n.º 5), o veterinário oficial deve proceder a uma inspecção ante mortem de todos os animais antes do abate [alínea a)].
A inspecção ante mortem permite determinar se existem sinais de comprometimento do bem-estar do animal ou de qualquer outro factor que possa ter consequências negativas para a saúde humana ou animal, com especial atenção para a detecção de doenças zoonóticas e de doenças de animais.
Por seu turno, impõe o n.º 1 do ponto D. do mesmo capítulo a submissão a uma inspecção post mortem das carcaças e das miudezas que as acompanham imediatamente após o abate.
A inspecção post mortem tem como obectivo assegurar que carne imprópria para consumo não seja colocada no mercado e consiste no exame sensorial macroscópico de todas as partes de uma animal abatido.
A par, o veterinário oficial deve fiscalizar a marcação de salubridade - segundo o artigo 2.º, a “marca de salubridade” define-se como a marca que, ao ser aplicada, indica que foram efectuados controlos oficiais nos termos do regulamento em análise - e as marcas utilizadas nas carcaças, inclusive a fiscalização de a marca de salubridade ter sido aposta na superfície exterior da carcaça a tinta ou a fogo (cfr. capítulo III ainda da referida Secção I).
Em breve síntese analítica, a marca de salubridade a apor nos animais abatidos revela a efectivação dos controlos sanitários, ante mortem e post mortem, efectuados por médico veterinário para tanto competente.

Retornando ao caso concreto, o “auto de exame directo” de fls. 24, confirmado, em audiência de julgamento, pelo subscritor, médico veterinário municipal de Condeixa-a-Nova, N... , é manifestamente elucidativo sobre a não aposição, nas quatro carcaças de leitão, de qualquer marca de salubridade ou de identificação, nomeadamente marca de exploração da origem dos animais.
O dito exame (macroscópico directo, porque efectuado à vista desarmada) não tem o valor de exame pericial, porquanto nele não está formulado nenhum juízo técnico ou científico, e, por conseguinte, não estando sujeito à regra de prova vinculada estabelecida no artigo 163.º do Código de Processo Penal, deve ser apreciado nos termos do artigo 127.º do mesmo compêndio legislativo.
Ainda que com os critérios de avaliação probatória definidos na última das duas referidas normas, a prova acima indicada, reitera-se, é inequívoca não só na afirmação, como provado, do ponto 5., mas também na indelével verificação do ponto 7.
*
Centremos agora a nossa atenção no ponto 6.

Neste conspecto, alega, sobretudo, o recorrente: o juízo de convicção e valoração do julgador de 1.ª instância, no sentido de dar como provado o ponto de facto em destaque, assenta em “conversas informais” tidas pelas testemunhas E... , F... e D... , todos Inspectores da ASAE, com o arguido, reveladas pelas primeiras em audiência de julgamento. Pelo que, os depoimentos dessas testemunhas, no contexto fáctico agora em apreciação, não podem constituir meio de prova válido, nos termos dos artigos 356.º, n.º 7 e 357.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPP.

Ouvidos os depoimentos, a testemunha E... deu a conhecer, no fundamental, de forma objectiva, isenta e credível (breve mas suficiente síntese):

- A existência, no local da inspecção, de quatro leitões, dois a assar e os restantes em espeto, preparados para a assadura, os quais, não obstante parecerem ser quantidade excessiva para os comensais (6/7 pessoas), poderiam ser para “consumo próprio”;

- A logística destinada à criação e assadura de leitões: seis espetos, não usados naquele momento, dois fornos, uma sala, junto às abougarias, preparada com utensílios originariamente destinados ao abate de suínos, e, em anexo, uns ganchos, artesanais, de sustentação, para o mesmo fim.   

Por sua vez, F... confirmou a estrutura montada para criação e abate de animais de espécie suína, revelando também o que foi dito pelo arguido, quando este já estava detido, traduzido no seguinte: pediu para se ausentar, com a finalidade de avisar uma pessoa a quem dois dos quatro leitões eram destinados.

Concordante, mutatis mutandis, foi o depoimento de D... , com o esclarecimento de a divulgação do destino dos dois leitões ter ocorrido quando o arguido já havia sido constituído nesta qualidade.

 

Com a proibição das “conversas informais” pretendeu o legislador impedir a supressão do direito ao silêncio do arguido, silêncio esse que seria ilegitimamente contornado através de “depoimento de ouvir dizer” das testemunhas, mas não os depoimentos de autoridades que relataram o conteúdo de diligências de investigação.

Pressuposto desse direito ao silêncio é, no entanto, a existência de um inquérito e a condição de arguido. A partir da aquisição dessa qualidade, aquele assume um estatuto próprio, com direitos e deveres, entre os quais, o de não se auto-incriminar. Daí que as suas declarações só possam ser recolhidas e valoradas nos precisos termos legais, não detendo validade probatória as “conversas informais”.

Em fase anterior, não há ainda inquérito instaurado, não existem ainda arguidos constituídos. As informações que forem então recolhidas pelas autoridades policiais são necessariamente informais, dada a inexistência de inquérito. Ainda que provenham de eventual suspeito, essas informações não são declarações em sentido processual, precisamente porque ainda não há processo.

Situação assaz diversa se verifica em relação às “conversas informais” ocorridas no decurso do inquérito, quando há arguido constituído, e se pretende com as mesmas suprir o silêncio daquele por depoimentos de agentes de polícia.

Como está escrito no Ac. do STJ de 15-02-2007, proc. n.º 06P4593, publicado in www.dgsi.pt «podemos considerar adquirido, para o que agora importa, por um lado, que os agentes policiais não estão impedidos de depor sobre factos por eles detectados e constatados durante a investigação e, por outro lado, que são irrelevantes as provas extraídas de “conversas informais” mantidas entre esses mesmos agentes e os arguidos, ou seja, declarações obtidas à margem das formalidades e das garantidas que a lei processual impõe.

Pretenderá, assim, a lei impedir, com a proibição destas “conversas”, que se frustre o direito do arguido ao silêncio, silêncio esse que seria “colmatado” ilegitimamente através da “confissão por ouvir dizer” relatada pelas testemunhas. A partir da constituição do arguido enquanto tal, ele assume um estatuto próprio, com deveres e direitos, entre os quais, o de não se auto-incriminar. A partir de então, as suas declarações só podem ser recolhidas e valoradas nos estritos termos indicados na lei, sendo irrelevantes todas as conversas ou quaisquer outras provas recolhidas informalmente.

Contudo, de forma diferente se passam as coisas quando se está no plano da recolha de indícios de uma infracção de que a autoridade policial acaba de ter notícia. Compete então às autoridades, nos termos do art. 249.º, do CPP, praticar “os actos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”, entre os quais, “colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime”. Estas “providências cautelares” são fundamentais para investigar a infracção, para que essa investigação tenha sucesso. E daí que a autoridade policial deva praticá-las mesmo antes de receberem ordem da autoridade judiciária para investigar (art. 249.º, n.º 1).

Nesta fase não há ainda inquérito instaurado, não há ainda arguidos constituídos. É uma fase de pura escolha informal de indícios, que não é dirigida contra ninguém em concreto. As informações que então forem recolhidas pelas autoridades policiais são  necessariamente informais, dada a inexistência de inquérito. Ainda que provenham de eventual suspeito, essas informações não são declarações em sentido processual, precisamente porque não há ainda o processo (pode até não vir a haver, como por exemplo se o crime for semi-público e não for apresentada queixa).

Completamente diferente é o que se passa com as ditas “conversas informais” ocorridas já durante o inquérito, quando há arguido constituído, e se pretende “suprir” o seu silêncio» em audiência de julgamento «por depoimentos de agentes policiais testemunhando a “confissão” informal ou qualquer tipo de declaração prestada pelo arguido à margem dos formalismos impostos pela lei processual para os actos a realizar no inquérito».

O que o art. 129.º do CPP proíbe são estes testemunhos que visam suprir o silêncio do arguido, não os depoimentos de agentes de autoridade que relatam o conteúdo de diligências de investigação, nomeadamente a prática das providências cautelares a que se refere o artigo 249.º, do CPP» - neste sentido, a título meramente exemplificativo, Ac. do STJ de 03-03-2010, proc. n.º 886/07.8PSLSB.L1.S1, e Santos Cabral, Código de Processo Penal Anotado, 2104, Almedina, págs. 492/3).

Retornando aos autos, as afirmações, em audiência de julgamento, das testemunhas E... , F... e M... , ao reproduzirem o que ouviram dizer ao arguido quando este já havia sido constituído arguido e, consequentemente, quando o processo já estava iniciado, não podem ser valoradas, e, tendo-o sido, como foram, sem redução a auto e sem a posterior observância das regras impostas pelo artigo 357.º do CPP, ocorre patente violação de proibição de prova.

Que consequências no processo?

Refere, a propósito, Costa Andrade:

«Resumidamente, não estarão de todo em todo, excluídas as constelações típicas em que a conexão normativa entre o vício e a sentença seja tão óbvia como decisiva. É o que sucederá nos casos em que a valoração proibida do meio de prova constitua o único suporte probatório sobre que assenta a sentença condenatória. Hipótese em que tanto a pertinência do recurso como o sentido da sua decisão – sc. a absolvição do arguido – se afiguram inescapáveis. As coisas serão igualmente lineares nas constelações que se situam no extremo oposto, em que a irrelevância causal da valoração da prova proibida aparece claramente exposta. Então a invocação da proibição de prova, a não determinar a rejeição do recurso (art. 420.º do CPP) não será em qualquer caso e só por si bastante para pôr em causa a decisão recorrida. O mesmo deverá ser o tratamento dos casos em que a nulidade devida à proibição de prova haja de considerar-se sanada por exclusão do nexo normativo entre o vício e a sentença …

  As expressões concretas, segregadas pelos caprichos da vida, e que constituem a fenomenologia das proibições de prova oferecida ao aplicador do direito, raramente se ajustarão aos modelos canónicos referenciados, extremados quanto à relevância ou irrelevância causal do erro sobre a sentença. O normal será que a prova proibida concorra com uma bateria de meios admissíveis, numa teia dificilmente extrincável de influência e codeterminação recíprocas. Muitas vezes nada, por isso, mais aleatório e inseguro do que a tentativa de identificar e isolar o peso que o meio de prova terá tido na convicção do julgador… Nestas hipóteses só pela via da revogação da decisão se poderão assegurar a reafirmação contrafáctica das normas violadas e a actualização do respectivo fim de protecção. O que terá de fazer-se prevenindo-se o perigo de a convicção sobre a responsabilidade criminal do arguido, entretanto lograda – e para a qual contribuiu, a seu modo, o meio proibido de prova – ter já operado uma reinterpretação cognitiva do significado e da valência probatória dos meios sobrantes e legítimos de prova. A renovação da prova motivada pelas proibições de valoração suscita, assim, exigências a que, por princípio, só através do Reenvio … se poderá dar resposta ajustada» - (“Sobre As Proibições de Prova em Processo Penal”, Coimbra Editora, 1992, págs. 65/66).

Revendo-nos nesta passagem, perante a relevância decisiva atribuída pelo julgador do tribunal da 1.ª instância aos depoimentos das mencionadas testemunhas para dar como provado o ponto 6. da matéria de facto provada - que alterou (não substancialmente) a descrição factual da acusação (nesta, está narrado: «O arguido destinava à venda ao público os leitões que foram encontrados e apreendidos, tal como Havai feito no dia 17 de Julho, que tinha vendido três leitões para o Stand do Orfeão, existente na feira das tasquinhas, evento a decorrer nos festejos do Município de Condeixa-a-Nova») -, não resta outra solução senão dar como não provado a citada factualidade, quer a do libelo acusatório, quer a da sentença recorrida, e, bem assim, o ponto 9., ainda do quadro factológico provado, erigindo-se ambos à condição de não provados.


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Não estando determinado, por carência de factos, que o verificado abate (cfr. ponto provado 8.) se destinava ao consumo público, ou seja, o não integrado no consumo doméstico do arguido ou do seu agregado familiar (autoconsumo), não se mostra preenchido o tipo de crime imputado ao arguido, havendo que declarar, sem mais, a sua absolvição.

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III. Dispositivo:

Posto o que precede, acordam os Juízes na 5.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Coimbra, na procedência do recurso, em revogar a sentença recorrida, absolvendo o arguido A... da prática do crime de abate clandestino, p. e p. pelo artigo 22.º, n.º 1, als. a) e b), do DL n.º 28/84, de 20-01, que lhe está imputado.

Sem custas.

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Coimbra, 29 de Junho de 2016
(Processado e revisto pelo relator)


(Alberto Mira - relator)


(Elisa Sales - adjunta)