Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4865/12.5TBLRA-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUIS CRAVO
Descritores: ALIMENTOS DEVIDOS A MENOR
INCUMPRIMENTO
DESCONTO
PENSÃO DE INVALIDEZ
FUNDO DE GARANTIA DE ALIMENTOS
Data do Acordão: 05/19/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - POMBAL - INST. CENTRAL - 2ª SEC. F. MEN. - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS. 181, 189 OTM, 738 CPC, LEI Nº 75/98 DE 19/11
Sumário: 1. Um obrigado a alimentos não deve ficar privado do rendimento necessário à satisfação das suas necessidades mínimas essenciais, pelo que pode e deve ser inviabilizado/dispensado o desconto/dedução nas quantias que lhe são pagas, de um limite mínimo – em obediência ao princípio da dignidade humana, consabidamente com recorte e protecção constitucional – em ordem a colocá-lo fora do eminente risco de subsistência.

2. Uma primeira solução seria a de adoptar o critério do rendimento social de inserção (RSI) como referencial para a definição desse rendimento intangível, adequado ao balanceamento dos interesses em conflito (o qual para o ano de 2014 é de € 178,15).

3. Podia ainda invocar-se em apoio desse entendimento a actual redacção do art. 738º, nº4 do n.C.P.Civil, com a epígrafe de “Bens Parcialmente Penhoráveis”, da qual resultaria que quando está em causa um crédito de alimentos, apenas é impenhorável a quantia equivalente à totalidade da pensão social do regime não contributivo (que era de € 199,53 para o ano de 2014).

4. Contudo, isso seriam soluções sempre tributárias de uma jurisprudência dos conceitos, pelo que, dando prevalência a uma jurisprudência dos valores, em ordem a que não fique no caso comprometida a dignidade pessoal de um progenitor que apenas tem como rendimento mensal uma pensão de invalidez do parco valor de € 307,87, é de determinar que não pode ser ordenado desconto sobre o valor dessa pensão que não salvaguarde para o mesmo o montante de € 220,00 mensalmente.

Decisão Texto Integral:       
      Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                                       *

            1 - RELATÓRIO

Por apenso aos autos de regulação das responsabilidades parentais relativo aos menores G (…) e R (…), filhos de P (…) e de L (…), no âmbito da qual havia sido decidido, em 15 de Novembro de 2012, que os ditos menores ficava à guarda e cuidados desta progenitora, ficando o progenitor obrigado a contribuir com a quantia de € 200,00 por mês a título de alimentos aos menores (sendo € 100,00 por cada menor), montante este a actualizar a partir de Janeiro de 2014, à razão de € 5,00 por cada menor, foi processado incidente de Incumprimento do Poder Paternal, na vertente alimentar, deduzido pelo Exmo. Magistrado do Ministério Público, alegando o incumprimento do dito pagamento, pelo período de 3 meses, num total de € 600,00, sendo que ulteriormente veio requerer que viesse a ser fixada prestação alimentícia a pagar pelo Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores, em substituição do devedor, a favor de cada um dos ditos menores.

Tendo sido realizada a conferência a que alude o art. 181º da O.T.M. e solicitada a elaboração de relatórios sociais, veio, a final, a ser proferida despacho através do qual se decidiu, além do mais, tendo em conta que o progenitor auferia como rendimento o valor de € 307,87 (a título de pensão de invalidez), determinar o cumprimento do preceituado no artigo 189º da Organização Tutelar de Menores (OTM) relativamente aos valores auferidos pelo recorrente que excedam o montante de € 197,55 (valor da pensão social do regime não contributivo), isto é, ordenar o desconto na pensão auferida pelo progenitor no montante de € 110,32, montante este a entregar pela S.S. à progenitora, mais se decidindo que o FGADM suportasse a prestação parcial substitutiva no montante mensal de € 99,68, actualizável no início de cada ano civil, no montante de € 5,00 por cada menor.

                                                                       *

Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o dito progenitor (P (…)), o qual finalizou as suas alegações com as seguintes conclusões:

« 1. Entendeu a decisão recorrida determinar o cumprimento do preceituado no artigo 189.° da Organização Tutelar de Menores (OTM) relativamente aos valores auferidos pelo recorrente que excedam o montante de € 197,55, que identificou como o valor da pensão social do regime não contributivo.

2. Ao ordenar o desconto sobre a pensão de invalidez do aqui recorrente até ao montante de € 197,55, a decisão recorrida não garante a subsistência condigna do recorrente.

3. O recorrente sobrevive somente com o valor de € 307,87, que aufere a titulo de pensão de invalidez, não sendo titular de quaisquer outros bens ou rendimentos.

4. Naturalmente, os seus filhos não devem ser prejudicados pela sua parca condição económica, devendo ser protegidos pelo Estado, ao nivel dos alimentos, através do fundo de garantia de alimentos devidos a menor (FGADM).

5. A decisão do Tribunal a quo é violadora do princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de Direito, com referência aos n." 1 e 3 do artigo 63.° da Constituição da República Portuguesa, à norma da alínea c) do n.? I do artigo 189.° da OTM, interpretada no sentido se permitir a dedução, para satisfação da prestação alimentar aos filhos menores, de uma parcela de pensão de invalidez do progenitor que o impede de satisfazer as suas necessidades básicas.

 6. É por demais evidente que a quantia de € 197,55, que o Tribunal a quo reserva ao ora recorrente, não lhe permite sobreviver condignamente.

7. O recorrente não tem qualquer mecanismo de sobrevivência que possa accionar, nem tem outros rendimentos para além da sua pensão de invalidez no valor de € 307,87.

8. Caso se configurasse a aplicação obrigatória da referida norma constante do artigo 738.° n." 4 do CPC, no que concerne ao valor limite, tal obrigatoriedade, ao nível dos pressupostos de atribuição do fundo deveria constar das normas referentes à atribuição do FGADM, designadamente da Lei n." 75/98, de 19 de Novembro, do Decreto-Lei n." 164/99, de 13 de Maio e da GTM, o que não se verifica.

9. Deverá, assim, ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que decida a integral sub-rogação do recorrente pelo FGADM, determinando-se o pagamento da prestação de alimentos a favor de cada um dos menores em valor equivalente ao da pensão de alimentos fixada ao recorrente, a assegurar pelo FGADM e a ser entregue, mensalmente, à progenitora L (…).

10. Sem prejuízo do ora exposto, sempre se dirá que o valor da pensão social do regime não contributivo foi fixado em € 199,53 pela Portaria 378-B120 13, de 31 de Dezembro e não em € 197,55, como se refere na decisão recorrida.

11. Pelo que a decisão recorrida violou também o preceituado no artigo 738.°, n," 4 do CPC.

NÃO TANTO pelo exposto, mas pelo douto suprimento de v.a Ex.", deve o presente recurso ser julgado procedente, e revogar-se a douta decisão recorrida e substituída por outra que decida a integral sub-rogação do recorrente pelo FGADM, determinando-se o pagamento da prestação de alimentos a favor de cada um dos menores em valor equivalente ao da pensão de alimentos fixada ao recorrente, a assegurar pelo FGADM e a ser entregue, mensalmente, à progenitora L... .

Assim decidindo se fará

JUSTIÇA!»

                                                                       *

Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

                                                                       *

            Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                           *

            2QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detectar o seguinte:

- é possível o desconto de € 110,32, do valor (parcial) dos alimentos devidos aos filhos, através da cobrança coerciva a que se refere o art. 189º do DL nº 314/78, de 27 de Outubro (doravante OTM), no valor da pensão de invalidez (€ 307,87) recebida pelo progenitor obrigado a tal pagamento, pensão esta que é o único rendimento do mesmo?

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A factualidade que interessa ao conhecimento do presente recurso é, para além da que consta do relatório precedente, a que foi alinhada na decisão recorrida, a saber:

1- O progenitor P (…) mantêm-se em incumprimento dos alimentos.

2- O progenitor aufere apenas como rendimento o valor de € 307,87 a título de pensão de invalidez (vide relatório social de fls. 24 e seguintes e fls. 41 destes autos)

3- O agregado familiar dos menores é composto por este e pela progenitora, auferindo tal agregado familiar o montante de € 485,00 por mês (vide relatório de fls. 30 e seguintes destes autos).

4- Em 15 de Novembro de 2012 foi homologado acordo de regulação das responsabilidades parentais, ficando o progenitor obrigado a pagar o montante de € 100,00 por cada menor a título de alimentos, montante este a actualizar a partir de Janeiro de 2014, à razão de € 5,00 por cada menor (vide fls. 13 e seguintes dos autos principais).

                                                                       *                   

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Importa então apreciar e decidir directamente a questão em causa neste recurso, a saber, se é possível o desconto de € 110,32, do valor (parcial) dos alimentos devidos aos filhos, através da cobrança coerciva a que se refere o art. 189º do DL nº 314/78, de 27 de Outubro (doravante OTM), no valor da pensão de invalidez (€ 307,87) recebida pelo progenitor obrigado a tal pagamento, pensão esta que é o único rendimento do mesmo.

Para fundamentar a atinente resposta afirmativa, aduziu-se conclusivamente o seguinte na decisão recorrida:

«No caso concreto, o tribunal portanto não ordenará desconto sobre a pensão do progenitor até ao montante de € 197,55 que é o valor da pensão social do regime não contributivo não afectando assim o seu limite mínimo para que se possa sustentar dignamente.

Mas no que excede tal valor e até ao montante recebido pelo progenitor, a saber € 110,32 [diferença entre o que recebe (€ 307,87) e o valor que lhe não pode ser penhorado( € 197,55)] pode e deve ordenar-se o cumprimento do disposto no artigo 189ºda OTM, sendo o remanescente para o valor de alimentos suportado pelo FGADM

Que dizer?

Consabidamente, a Lei nº 75/98, de 19.11., regulamentada pelo DL nº 164/99, de 15.05., criou o Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores (gerido pelo Instituto de Gestão Financeira e Social) e preceitua no seu artigo 1º que[2]:

Quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos a menor residente em território nacional não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189º do Decreto-Lei nº 314/78, de 27 de Outubro, e o alimentado não tenha rendimento ilíquido superior ao valor do indexante dos apoios sociais (IAS) nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, o Estado assegura as prestações previstas na presente lei até ao início do efectivo cumprimento da obrigação”.

 É, assim, através do Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores (doravante FGADM) que o Estado assegura essas prestações.

E para que o FGADM em substituição do devedor, pague uma prestação alimentar ao menor, é necessário, nos termos do arts. 1º e 2º da Lei nº 75/98 e art. 3º n.º 3 do DL n.º 164/99[3], supra citados, que se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos:

a) existência de sentença que fixe os alimentos devidos a menor;

b) residência do menor em território nacional;

c) O alimentado não ter rendimento ilíquido superior ao valor do indexante dos apoios sociais (IAS) nem beneficie, nessa medida, de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre (entendendo-se que o alimentado não beneficia de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, superiores ao IAS, no valor, actual, de € 419,22, quando a capitação de rendimentos do respectivo agregado familiar não seja superior a esse valor, de acordo com o disposto no art. 3º, do DL nº 164/99, de 13/05);

d) não pagamento por parte do devedor, das quantias em dívida através de uma das formas previstas no artigo 189º da OTM. [4]

Tenha-se presente que é o próprio preâmbulo do DL nº 164/99, de 13.05., que regulamentou a citada Lei nº 75/98, que admite a necessidade do Estado assegurar esses direitos das crianças constitucionalmente consagrados e expressamente refere que “de entre os factores que relevam para o não cumprimento da obrigação de alimentos assumem frequência significativa a ausência do devedor e a sua situação sócio-económica.”

Igualmente importa não olvidar que os arts. 6º, nº 3 da Lei nº 75/98 e 5º, nº1 do DL 164/99, estabelecem que “o Fundo fica sub-rogado em todos os direitos do menor a quem sejam atribuídas prestações, com vista à garantia do respectivo reembolso” e, por isso, nas situações em que o obrigado a alimentos tiver património o Estado poderá sempre ser reembolsado das prestações pagas em substituição do devedor.

Donde, e considerando a finalidade dos referidos diplomas – Lei nº 75/98 e DL nº164/99 – assegurar o direito aos menores de condições de subsistência mínimas – pode e deve concluir-se “ser apenas relevante para a intervenção do Fundo que não seja possível a satisfação pelo devedor das quantias em dívidas através dos meios previstos no art.189º do O.T.M., único meio que assegura a celeridade necessária para que a cobrança dos alimentos devidos ao menor garanta a sua sobrevivência[5].

Isto é, tem-se muito claramente em vista garantir a sobrevivência do(s) menor(es) a quem os alimentos eram devidos e a favor de quem estavam fixados, face ao que cremos ser legítimo concluir que se trata então de assegurar o mínimo de subsistência material necessário à salvaguarda dos seus direitos e interesses basilares e da sua própria dignidade humana.

Daí que muito legitimamente se possa e deva dizer que se a obrigação/intervenção do FGADM se assume, por um lado, como apenas subsidiária, substitutiva e tendencialmente provisória (relativamente à obrigação do progenitor incumpridor), por outro lado configura-se como uma obrigação nova e autónoma, autonomia esta que assenta “na sua própria génese, ratio e teleologia: ela não radica na obrigação natural, legalmente acolhida, derivada dos laços familiares, mas antes dimana da função social do Estado que lhe impõe que garanta aos seus cidadãos, maxime os de tenra idade que não podem prover ao seu sustento, o mínimo de subsistência material necessário à salvaguarda dos seus direitos e interesses basilares e da sua própria dignidade humana.”[6]

Assim, ponderadamente se cuidou na decisão recorrida de só determinar a quota do pagamento por parte e a cargo do FGADM depois de apurada a incoercibilidade parcial junto do obrigado/devedor de alimentos, no quadro do previsto no art. 189º da OTM, que o mesmo é dizer, depois de esgotadas as diligências/procedimentos previstos nesse normativo.

Discorda o progenitor recorrente da decisão recorrida, desde logo por ter deferido o desconto de um montante – do parcial de € 110,32, do total auferido de € 307,87 – face a cuja privação entende estar a ser posto em causa o eminente princípio da dignidade da pessoa humana.   

Recordemos que no referenciado normativo (art. 189º da OTM) se prevê a satisfação coerciva da prestação de alimentos a favor do respectivo titular, através de execução de vencimento, salário ou qualquer prestação remuneratória ou de qualquer espécie ("rendas, pensões, subsídios, comissões, percentagens, emolumentos, gratificações, comparticipações ou rendimentos semelhantes") de que o obrigado seja credor.

Mas de todo e qualquer montante?

Esta é que é efectivamente a questão decidenda.

Nos termos do art. 6º, nº3 da citada Lei nº 75/98, “o Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores fica sub-rogado em todos os direitos dos menores a quem sejam atribuídas prestações, com vista à garantia do respectivo reembolso”.

O que é reafirmado no art. 5º, nº1 do DL nº 164/99, no qual se dispõe que “o Fundo fica sub-rogado em todos os direitos do menor a quem sejam atribuídas prestações, com vista à garantia do respectivo reembolso”.

Consabidamente trata-se de uma sub-rogação legal.

De facto, nos termos legais, o FGADM fica subrogado na medida do que pagar (a sub-rogação não se verifica em relação a prestações futuras) e dos direitos do beneficiário de alimentos (com a correspondente obrigação do devedor dos mesmos).

O sub-rogado adquire, na medida da satisfação dada ao direito do credor, os poderes que a este competiam (cf. art. 593º, nº1 do C.Civil).

Por outro lado, essa sub-rogação pode ser total ou parcial.

O FGADM só pode ficar sub-rogado nos direitos do menor, a quem efectua o pagamento das prestações, contra o devedor dos alimentos e não em relação a outras prestações a cujo pagamento o devedor de alimentos não estava obrigado.

Donde, se a prestação for de valor superior à obrigação do devedor dos alimentos, não está liminarmente vedado que a sub-rogação seja apenas parcial.

Ora se assim é, importa agora atentar no regime que se encontra estatuído para os casos em que à partida está apurado e assente que o rendimento do obrigado/devedor de alimentos é insuficiente para os fins do cumprimento da sua obrigação.

 Com efeito, preceitua-se complementarmente no citado art. 5º do DL nº 164/99 que

«3 - Decorrido o prazo para reembolso sem que este tenha sido efectuado, se o devedor não iniciar o pagamento das prestações de alimentos devidos ao menor, o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social pode, desde logo, requerer a execução judicial para reembolso das importâncias pagas, nos termos da lei do processo civil, salvo se se verificar existir manifesta e objectiva impossibilidade de pagamento.

4 - Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se que se verifica manifesta e objectiva impossibilidade de pagamento por parte do devedor quando este se encontre numa situação de ausência ou insuficiência de recursos que lhe permitam pagar a prestação de alimentos, nomeadamente por razões de saúde ou por se encontrar desempregado.»

A esta luz, temos que o reembolso pode nunca acontecer por manifesta e objectiva impossibilidade de pagamento por parte do devedor e, de facto, o Fundo de Garantia ter de assumir, pontualmente e por essa razão, a título definitivo, o encargo com as prestações que, por decisão do tribunal, pagou ao menor.

Obviamente que nessa situação, como naquela em que a prestação devida pelo devedor dos alimentos seja tão exígua que não permita condições mínimas de subsistência, terá o Estado, na concretização dos princípios que presidem aos diplomas legais referidos, e dos objectivos visados com a criação do regime de garantia dos alimentos devidos a menores, assumir a responsabilidade pelo pagamento das prestações necessárias a assegurar ao menor condições mínimas de subsistência condigna, mesmo sem a esperança do reembolso por parte do possível obrigado a alimentos.

Pois que, só dessa forma fica verdadeiramente protegida a dignidade da criança como pessoa e o direito a uma vida condigna.[7]

Ora se assim é, temos para nós que se pode falar de paralelismo de situações – para os efeitos do previsto no art. 189º da OTM – entre uma situação de inviabilidade de facto (por desemprego e/ou ausência de rendimentos no território nacional) e uma situação de inadmissibilidade legal (por insuficiência do rendimento do obrigado/devedor de alimentos para os fins do cumprimento da sua obrigação).

Face ao que, por identidade de razões, a ambas as situações pode e deve ser aplicado o mesmo regime.

Dito de outra forma: ocorrendo uma situação em que a ter lugar a dedução ao rendimento/vencimento auferido pelo obrigado a alimentos de prestação para esse fim, resultaria que esse obrigado a alimentos ficava privado do rendimento necessário à satisfação das suas necessidades mínimas essenciais, podia e devia ser inviabilizado/dispensado o desconto/dedução nas quantias que lhe são pagas, de um limite mínimo – em obediência ao princípio da dignidade humana, consabidamente com recorte e protecção constitucional – em ordem a colocá-lo fora do eminente risco de subsistência.

Que dizer no caso vertente?

É certo que se cuidou na decisão recorrida de “preservar” mensalmente para o progenitor ora recorrente o montante de € 197,55, da sua pensão mensal de € 307,87 (sendo que este é efectivamente o único rendimento de que dispõe).

Ora se assim foi, encontra-se por via de tal, o limite mínimo a uma subsistência condigna do mesmo, em causa?

 Cremos que em alguma medida sim!

 Com efeito, admitindo que sempre será difícil – por remeter para o eminente mas relativo valor da dignidade da pessoa humana – e discutível a definição correspondente, pode desde logo invocar-se o ensaio/tentativa constante do acórdão deste mesmo Tribunal da Relação de Coimbra de 02/10/2008, no proc. nº 0835440.[8] 

Aí, após se historiar os termos da questão e o seu enquadramento jurisprudencial, designadamente em arestos do Tribunal Constitucional, concluiu-se pelo critério do rendimento social de inserção (doravante RSI)[9], isto é, ser este o referencial para o rendimento intangível, adequado ao balanceamento dos interesses em conflito.

Vejamos agora a situação reportada ao momento temporal do caso (ano de 2014).

Na verdade, o Governo, através da Portaria nº 378-B/2013, de 31/12, procedeu à actualização (1%) das pensões de invalidez e velhice para 2014, mantendo em € 419,22 o valor referência do Indexante dos Apoios Sociais (IAS), sendo que os valores das pensões são os seguintes: - Pensão mínima (regime geral): €259,36;
Regime não contributivo e equiparados - Pensão social: €199,53;
Regime especial da Segurança Social das actividades agrícolas: € 239,43.

Consabidamente o Indexante dos Apoios Sociais (IAS) definido pela Lei n.º 53-B/2006, de 29 de Dezembro, veio substituir a Retribuição Mínima Mensal Garantida (RMMG) enquanto referencial determinante da fixação, cálculo e actualização das contribuições, das pensões e outras prestações sociais.

Temos assim que por força da conjugação do DL nº13/2013, de 25 de Janeiro (cf. art. 7º) com a Portaria nº 257/2012, de 27 de Agosto (cf. art. 31º), o valor do rendimento social de inserção (RSI) para o ano de 2014 era de € 178,15 ( =  € 419,22 x 42,495 %).

Ora se assim é, daqui resulta que o dito valor de € 197,55 que resultaria para o progenitor obrigado P ... – a ter lugar a dedução de € 110,32 na sua pensão, como determinado na decisão recorrida – é, ainda assim, superior a este valor de € 178,15 (do RSI).

Por outro lado, se a questão fosse apreciada à luz da actual redacção do art. 738º, nº4 do n.C.P.Civil (com a epígrafe de “Bens Parcialmente Penhoráveis”), resultaria liminarmente que quando está em causa um crédito de alimentos, apenas é impenhorável a quantia equivalente à totalidade da pensão social do regime não contributivo (que sabemos ser de € 199,53 para o ano de 2014)…

À luz desta ordem de argumentos, cremos que o progenitor obrigado ora recorrente não se podia considerar “injustiçado” pela decisão recorrida (acrescendo até que, a ser aplicado o critério que podia ser, maior seria a dedução da sua pensão a reverter para os seus filhos)!

Contudo, isso seriam soluções sempre tributárias de uma jurisprudência dos conceitos, pelo que, dando prevalência a uma jurisprudência dos valores, em ordem a que não fique no caso comprometida a dignidade pessoal de um progenitor que apenas tem como rendimento mensal uma pensão de invalidez do parco valor de € 307,87.

De facto, atenta a multiplicidade de necessidades que cada pessoa humana tem numa sociedade actual, ficaria salvaguardada no caso, sequer no seu limite mínimo, a dignidade pessoal com um montante mensal na ordem dos € 190,00?

Sobretudo quando o mesmo apenas tem como único rendimento uma pensão de invalidez, o que legitimamente faz presumir a incapacidade física, quiçá definitiva, de angariar outro qualquer meio de subsistência?

Ora, como doutamente tem sido sustentado, «(…)a jurisprudência de conceitos, desde a 2.ª Grande Guerra criticada pela ciência jurídica, deve ser complementada e corrigida pela jurisprudência de valores, corrente que defende que as decisões judiciais devem orientar-se, não tanto pela coerência lógica dos conceitos, mas pelo princípio da coerência axiológica ou valorativa do ordenamento jurídico, sobretudo, quando estão em causa direitos fundamentais da pessoa humana. Os conceitos são meras simplificações da realidade jurídica, que os tribunais e a ciência jurídica têm muitas vezes de adaptar à realidade jurídica concreta (…)»[10]

Nesta linha de entendimento, entendemos que o eminente valor da dignidade pessoal deste concreto progenitor ora recorrente, só ficará salvaguardado desde que se preserve para o mesmo um valor de € 220,00 mensalmente.

Procede assim parcialmente a apelação interposta pelo progenitor obrigado P ... , revogando-se em conformidade o sentido da decisão recorrida, a saber, decide-se agora que não pode ser ordenado desconto sobre a pensão do mesmo até ao montante de € 220,00 mensalmente.

                                                                       *

            5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

I – Um obrigado a alimentos não deve ficar privado do rendimento necessário à satisfação das suas necessidades mínimas essenciais, pelo que pode e deve ser inviabilizado/dispensado o desconto/dedução nas quantias que lhe são pagas, de um limite mínimo – em obediência ao princípio da dignidade humana, consabidamente com recorte e protecção constitucional – em ordem a colocá-lo fora do eminente risco de subsistência.

II – Uma primeira solução seria a de adoptar o critério do rendimento social de inserção (RSI) como referencial para a definição desse rendimento intangível, adequado ao balanceamento dos interesses em conflito (o qual para o ano de 2014 é de € 178,15).

III – Podia ainda invocar-se em apoio desse entendimento a actual redacção do art. 738º, nº4 do n.C.P.Civil, com a epígrafe de “Bens Parcialmente Penhoráveis”, da qual resultaria que quando está em causa um crédito de alimentos, apenas é impenhorável a quantia equivalente à totalidade da pensão social do regime não contributivo (que era de € 199,53 para o ano de 2014).

IV – Contudo, isso seriam soluções sempre tributárias de uma jurisprudência dos conceitos, pelo que, dando prevalência a uma jurisprudência dos valores, em ordem a que não fique no caso comprometida a dignidade pessoal de um progenitor que apenas tem como rendimento mensal uma pensão de invalidez do parco valor de € 307,87, é de determinar que não pode ser ordenado desconto sobre o valor dessa pensão que não salvaguarde para o mesmo o montante de € 220,00 mensalmente.

                                                                       *

6 - DISPOSITIVO

            Pelo exposto, julga-se a apelação parcialmente procedente, e alterando-se o sentido da decisão recorrida, determina-se agora que não pode ser ordenado desconto sobre a pensão do progenitor ora recorrente até ao montante de € 220,00 mensalmente.

Sem custas.

                                                                       *

                                                                                   Coimbra, 19 de Maio de 2015

                                               _________________

                                                  Luís Filipe Cravo( Relator)

                                               António Carvalho Martins

Carlos Moreira


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Carvalho Martins
  2º Adjunto: Des. Carlos Moreira

[2] Na redacção dada pela Lei nº 66-B/2012, de 31/12.

[3] Este na redacção introduzida pelo DL nº 64/2012, de 20/12.
[4] Cf., neste sentido, REMÉDIO MARQUES, in “Algumas Notas Sobre Alimentos Devidos a Menores”, págs. 221 e 222.
[5] Como vincado no Ac. do T.R.do Porto de 20-01-2011, proc. nº  660/07.1TBAMT.P1, acessível in www.dgsi.pt/jtrp.
[6] Citámos agora o acórdão do T.R.Coimbra de 10-12-2013, no proc. nº 3310/08.5TBVIS-E.C1, acessível em www.dgsi.pt/jtrc, no qual, aliás, se faz a devida ponderação da argumentação de sinal contrário, constante de arestos jurisprudenciais, em termos que, no global, merecem o nosso acolhimento.
[7] Nesta linha, vide os acórdãos do T.R.Coimbra de 05/03/2002 (no proc. nº 3431/2001), e de 02/12/2003 (no proc. nº 3265/03), ambos acessíveis em www.dgsi.pt/jtrc.
[8]  igualmente acessível em www.dgsi.pt/jtrc.
[9] que consabidamente estava indexado ao valor da pensão social do regime não contributivo – cfr. art. 9.º da Lei 13/2003 de 21 de Maio – e que então, nesse ano de 2007, ascendia a € 177,05. 
[10] Citámos o douto segmento constante de voto de vencido no recente Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do S.T.J. nº 5/2015, de 19.03.2015, no proc. nº 252/08.8TBSRP-B-A.E1.S1-A, acessível em www.dgsi.pt/jstj.