Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
89/08.4TBVLF.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: AVAL
LIVRANÇA EM BRANCO
PACTO DE PREENCHIMENTO
VINCULAÇÃO CAMBIÁRIA CONDICIONAL
IMPUGNAÇÃO PAULIANA
Data do Acordão: 04/04/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA – V.N.F. CÔA – JUÍZO COMP. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 610º E 614º, Nº 2, DO C. CIVIL; 10º LULL.
Sumário: I - Nos casos em que um aval é aposto numa livrança em branco, só em caso de incumprimento da dívida subjacente à emissão da livrança é que esta poderá ser preenchida e exigido o seu pagamento, estando a constituição do direito cartular formal e materialmente dependente de um evento futuro e incerto, pelo que pode dizer-se que estamos perante uma vinculação cambiária condicional.

II – Daí que, para efeitos de verificação dos requisitos da impugnação pauliana, o crédito do beneficiário da livrança sobre o avalista deve ser equiparado aos créditos sob condição suspensiva, previstos no artigo 614º, n.º 2, do C. Civil.

III - O regime do 614º, n.º 2, do C. Civil é apenas aplicável durante a pendência da condição, ou seja, neste caso equiparável, entre o momento da aposição do aval e o preenchimento da livrança na sequência do incumprimento das obrigações garantidas com a emissão daquele título.

IV - Verificada a condição, tal como verificado o incumprimento da obrigação garantida, caso tenham ocorrido entretanto actos dissipadores do património do avalista, o credor já poderá recorrer à impugnação pauliana para poder executar os bens alienados no património do adquirente.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

O Banco A..., S.A., interpôs acção declarativa contra A... e mulher M..., e E..., pedindo:

A título principal:

- que seja declarado nulo e de nenhum efeito o contrato de doação constante da escritura notarial de 13 de Fevereiro de 2006, outorgada no Cartório Notarial de ..., através da qual A... e mulher M... declararam doar a E... os prédios melhor identificados no artigo 1.º da petição inicial;

- que seja ordenado o cancelamento do registo predial respeitante à aquisição de tais imóveis, efectuado a favor de E...;

A título subsidiário:

- que seja declarada ineficaz a doação efectuada por A... e mulher M... a E..., ficando o Autor, no que for necessário para satisfazer o seu crédito, com o direito de praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei e os de executar esses imóveis no património de E...

Para tanto alegou, em síntese, o seguinte:

 - a escritura de doação acima referida foi feita com o exclusivo propósito, comum a todos os intervenientes, de defraudar e prejudicar o Autor;

- o Autor é credor de A... no montante de, pelo menos, 3.249.856,92 €, sendo legítimo portador de livranças avalizadas por este que, com juros de mora, ascendem àquele montante global;

- a escritura de doação foi a forma que A... e mulher M... utilizaram para dissiparem o seu património e assim se furtarem ao pagamento das responsabilidades de A... para com o Autor.

Os demandados contestaram, alegando, em síntese:

- a escritura de doação, ao contrário do alegado pelo Autor, foi um negócio pretendido por todos os intervenientes;

- a decisão de A... e mulher M... de doar os prédios à sua filha, E..., a 2.ª Ré, foi feita com o intuito de facilitar as partilhas, sendo que aquela não tinha conhecimento da alegada dívida;

- o demandado marido desconhecia o significado da palavra aval quando as livranças dos autos lhe foram dadas para assinar, bem como as suas implicações;

- o banco Autor não cumpriu o dever de informação quanto ao clausulado dos contratos de empréstimo, tendo as livranças sido objecto de preenchimento abusivo;

- é ineficaz o acordo de renovação e alteração da facilidade de crédito em relação ao demandado marido, já que não foi assinado em conformidade com o que nele consta;

- o aval é nulo por indeterminabilidade do seu objecto, não sendo possível estabelecer através dos contratos quais os créditos que visavam acautelar;

- não estão preenchidos os requisitos da impugnação pauliana, nomeadamente os previstos no art.º 610.º, alíneas a) e b), do Código Civil;

- uma vez que a demandada mulher nada deve ao Autor, por não estarmos perante uma dívida comum do casal, não pode a impugnação pauliana proceder relativamente a ela.

Concluíram, pedindo a improcedência da acção, ou, caso assim se não entenda, que seja a mesma julgada improcedente na quota-parte respeitante à meação de M...

O Autor replicou, alegando, em síntese:

- o demandado marido tinha pleno conhecimento de que se estava a obrigar pessoalmente pelo pagamento das quantias mutuadas;

- a postura do banco Autor sempre foi de profundo esclarecimento dos factos, prestando sempre todas as informações necessárias à concretização dos negócios;

- o demandado marido, após conversações tidas com as Cooperativas, aceitou renovar a «Facilidade de Crédito em Conta Corrente”, constituindo abuso de direito a pretensão ora aduzida;

- o montante das responsabilidades dos devedores está quantitativamente determinado;

- inexistindo bens próprios do demandado marido, é inevitável que esta acção incidisse também sobre os bens comuns do casal.

Concluiu como na petição inicial.

Na pendência da causa, faleceu o demandado marido, A..., tendo sido habilitadas a prosseguir os termos da demanda, no lugar do falecido, a 1.ª Ré, sua mulher, e a 2.ª Ré, filha de ambos.

Foi proferida sentença que julgou a acção procedente e declarou nulo e de nenhum efeito o contrato de doação impugnado, tendo ordenado o cancelamento do registo predial respeitante aos referidos prédios doados, efectuado a favor da 2.ª Ré, na Conservatória do Registo Predial de ....

As Rés interpuseram recurso desta decisão, formulando as seguintes conclusões: ...

O Autor apresentou contra-alegações, defendendo a manutenção do decidido.

Para a eventualidade do recurso ser julgado procedente foram as partes notificadas para se pronunciarem, querendo, sobre o mérito do pedido subsidiário de impugnação pauliana deduzido pelo Autor, nos termos do art.º 665º, n.º 3, do C. P. Civil, tendo o Autor defendido a procedência desse pedido e as Rés a sua improcedência.

1. Do objecto do recurso

Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do Recorrente, cumpre apreciar as seguintes questões:

a) Os factos constantes dos pontos 13, 14, 27, 28, 29 e 30 da decisão recorrida devem ser considerados não provados?

b) Os factos constantes das alíneas j), k), l), m), n), o), p), q) r) s), u) e v) da decisão recorrida devem ser considerados provados?

c) Não se provou que a doação outorgada não fosse querida pelos outorgantes?

d) Não estão preenchidos os requisitos da impugnação pauliana?

e) A declaração de ineficácia da doação não atinge a quota-parte da 1.ª Ré nos bens doados?

2. Dos factos

2.1. Da impugnação da matéria de facto

As Recorrentes pretendem que os factos julgados provados pela sentença recorrida sob os números 13, 14, 27, 28, 29 e 30 sejam considerados não provados e que os factos julgados não provados na mesma sentença sob as alíneas j), k), l), m), n), o), p), q) r) s), u) e v) sejam julgados provados.

Conforme adiante melhor se explicará, aquando da análise jurídica das questões colocadas no presente recurso, os factos constantes dos pontos 27 a 30 e das alíneas p), q), r), s), u) e v) da sentença recorrida são irrelevantes para o juízo a efectuar sobre a procedência do presente recurso. Na verdade, não só os factos que foram julgados provados não são suficientes para se concluir pela existência de um negócio simulado, como estando nós perante um negócio gratuito é irrelevante a boa ou má-fé dos seus outorgantes aquando da sua celebração. Daí que, saber se, na data referida em 7-, todos os Réus tinham conhecimento da emissão das livranças referidas em 1- e 3- (27) e sabiam que as mesmas não conseguiriam ser pagas pela subscritora e pelos outros dois co-avalistas (28), pelo que decidiram celebrar a escritura pública referida em 7- (29) com o intuito de frustrar a recuperação do crédito pelo Autor (30); ou se foi em virtude do referido em 43- e 44-, que o 1.º Réu marido decidiu celebrar a escritura pública referida em 7- (p), receando também o 1º Réu marido que, com a sua morte, a 2.ª Ré tivesse dificuldades na partilha, caso a 1.ª Ré mulher viesse a ser interditada (q); e se a 2.ª Ré aceitou a doação referida em 7- devido ao estado de saúde do 1.º Réu e por não querer enervá-lo com a sua recusa (r) desconhecendo que o 1.º Réu marido, seu pai, assinava livranças ou era avalista das mesmas enquanto tesoureiro da “Adega Cooperativa de ...” e da “Cooperativa de Olivicultores de ..., CRL” (s); e ainda que a 1.ª Ré mulher, à data referida em 7-, e em virtude da depressão de que padecia, alheava-se do que a rodeava e esquecia-se do que fazia e do que lhe diziam (u); são factos totalmente irrelevantes para o desfecho do presente recurso.

Por estas razões, em nome do princípio da economia processual, não se conhecerá da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, relativamente a todos estes pontos e alíneas da sentença recorrida

É o seguinte o conteúdo da restante matéria impugnada que importa apreciar: ...

2.2. Explicitação e aditamento de factos provados

No ponto 18 da sentença recorrida considerou-se provado que o Autor celebrou com a “Cooperativa de Olivicultores de ..., CRL”, um acordo escrito intitulado “contrato de abertura de conta empréstimo, tesouraria trimestral”, e nos pontos 19 a 21 que o Autor celebrou com a “Adega Cooperativa de ..., CRL”, três acordos escritos intitulados “contrato de abertura de crédito em conta corrente”.

Sendo esses acordos escritos os que constam dos doc. 25, 26, 27 e 28 juntos com a p. i. devem incluir-se na matéria de facto provado o conteúdo de algumas das suas cláusulas com interesse para a decisão da causa, o que se irá fazer nos termos permitidos pelo artigo 662.º do C. P. Civil.

No ponto 15 da sentença recorrida considerou-se provado que, por escritura pública designada “compra e venda”, celebrada no dia 09 de Fevereiro de 2005, no Cartório Privado da Dra. ..., os 1º Réu marido e a 2.ª Ré acordaram, respectivamente, comprar e vender “a fracção autónoma, designada pela letra “M”, correspondente ao primeiro andar – escritório número sete e arrecadação, do prédio urbano situado em ..., descrito na ...

Encontra-se junta aos autos uma cópia dessa escritura a fls. 190 e seg., donde se constata que o preço declarado dessa compra e venda foi de €110.000,00, pelo que esse dado deve também integrar a matéria de facto provada, o que se irá aditar nos termos permitidos pelo art.º 662º do C. P. Civil.

O Autor alegou na p.i. que A... havia assinado, na qualidade de garante, os acordos mencionados nos pontos 18.º a 21.º dos factos provados.

Na contestação apresentada pelos demandados aceitou-se tacitamente este facto, pelo que o mesmo deve ser considerado provado, nos termos do art.º 662º do C. P. Civil.

2.3. Os factos provados

Assim, os factos provados são os seguintes:

3. O direito aplicável

3.1. Da prova da simulação

O Autor veio pedir em primeiro lugar a declaração de nulidade da doação efectuada pelos 1.ºs demandados, com fundamento em se tratar de negócio simulado.

A simulação negocial constitui uma divergência intencional entre o sentido da declaração das partes e os efeitos que elas visam prosseguir com a celebração do negócio jurídico, sendo a simulação objectiva aquela que diz respeito ao objecto e conteúdo do negócio.

O art.º 240º, n.º 1, do C. Civil, estabelece três requisitos para a verificação de um negócio simulado:

 - um pacto simulatório entre o declarante e o declaratário;

- a divergência intencional entre o sentido e a vontade da declaração e os efeitos do negócio jurídico – simuladamente – celebrado;

- o intuito de enganar terceiros.

Encontra-se provado que A... e mulher declararam, em escritura pública, doar vários imóveis à sua filha e que esta aceitou essa doação.

Provou-se ainda que, na data da celebração deste contrato, todos os intervenientes tinham conhecimento da emissão das livranças avalizadas por A... e sabiam que as mesmas não conseguiriam ser pagas pela subscritora dessas livranças e pelos outros dois co-avalistas, pelo que decidiram concretizar a referida doação, com o intuito de frustrar a recuperação do crédito pelo Autor.

Do exposto não resulta que doadores e donatária não tenham realmente querido transmitir gratuitamente os bens doados do património dos primeiros para o património da segunda, mas apenas que o fizeram com o intuito de evitar que os mesmos respondessem pelas dívidas do doador marido, pelo que não está provada qualquer divergência intencional entre o sentido e vontade do declarado e os efeitos do negócio jurídico realizado – a transmissão gratuita dos bens doados para o património da donatária – assim como, não se alegou e consequentemente não se provou a existência qualquer acordo simulatório entre doadores e donatária.

Não resultando dos factos dados como provados na 1.ª instância os requisitos essenciais de um negócio simulado, não deveria ter sido decretada a sua nulidade, procedendo o recurso interposto pelas Rés.

3.2. Da impugnação pauliana

Contudo, subsidiariamente, o Autor havia deduzido um pedido de impugnação pauliana contra a mesma doação.

Tendo a apreciação desta questão ficado prejudicada pelo acolhimento dado pela sentença recorrida à pretensão do Autor formulada a título principal - a declaração de nulidade do negócio impugnado, por simulação -, cumpre a este tribunal de recurso apreciar o pedido subsidiário deduzido pelo Autor, nos termos do art.º 665º, n.º 2, do C. P. Civil.

Relativamente ao património do devedor como garantia comum aos direitos de crédito, como escreveu Antunes Varela, a lei não se limita a conceder ao credor o direito de promover a execução forçada da prestação no caso de o devedor não cumprir voluntariamente e de se ressarcir à custa do património do obrigado, se a realização coactiva da prestação não for possível», mas «concede-lhe ainda os meios necessários para o credor defender a sua posição contra os actos praticados pelo devedor, capazes de prejudicarem a garantia patrimonial da obrigação, diminuindo a consistência prática do seu direito de agressão sobre os bens do obrigado [1].

Ora, um dos instrumentos de tutela consagrados na lei para a preservação da consistência prática do direito de crédito é precisamente a chamada impugnação pauliana, a qual confere ao credor o poder de reagir contra os actos praticados pelo devedor (ainda que válidos) que envolvam diminuição da garantia patrimonial, seja porque diminuam o activo, seja porque aumentem o passivo do património do devedor.

São os seguintes os requisitos de procedência da impugnação pauliana que tenha por objecto negócios gratuitos enunciados nos art.º 610º e 611º do C. Civil:

- A existência de determinado crédito: exige o art.º 610º do C. Civil que o impugnante seja titular de um direito de crédito, em princípio constituído em data anterior à realização do acto impugnado;

- A verificação do acto impugnado: ao credor impugnante incumbe alegar e provar o acto impugnado, que, para ser relevante, nos termos do art.º 610º do C. Civil, tem de envolver diminuição da garantia patrimonial do crédito em causa, seja por redução do activo do devedor, seja por aumento do seu passivo;

- A impossibilidade ou agravamento para a satisfação integral do crédito: o art.º 610º, al. b), do C. Civil, exige também, como requisito geral, que, do acto impugnado, resulte a impossibilidade prática da satisfação integral do crédito do impugnante ou o agravamento dessa impossibilidade, ainda que não se trate de uma situação de pura insolvência; nos termos do art.º 611º do C. Civil a prova deste requisito resulta do balanço entre a prova do montante das dívidas, a cargo do credor, e a prova do valor dos bens penhoráveis possuídos pelo devedor, a cargo deste ou do terceiro interessado na manutenção do acto.

- Nexo de causalidade entre o acto impugnado e a impossibilidade ou agravamento: do art.º 610º, al. b), do C. Civil, decorre que tem de se verificar um nexo de causalidade entre o acto impugnado e a situação patrimonial do devedor, traduzida em impossibilidade ou agravamento para a satisfação do crédito, sendo que, em regra, aquele nexo resultará precípuo do próprio acto impugnado, devendo atender-se à data deste para determinar essa impossibilidade ou o seu agravamento.

Vejamos se está preenchido o primeiro requisito acima apontado, cujo ónus de prova pertence ao Autor, nos termos do art.º 342º, n.º 1, do C. Civil.

Provou-se que o Autor é portador das seguintes livranças, apresentadas em acções executivas, as quais se encontram avalizadas por A...:

- subscrita por Cooperativa dos Olivicultores de ..., CRL, com data de 2002.11.16, no valor de € 383.149,06 e vencimento em 2007.07.05;

- subscrita por Adega Cooperativa de ..., CRL, com data de 2001.09.19, no valor de € 550.056,98, e vencimento em 2007.07.05;

- subscrita por Adega Cooperativa de ..., CRL, com data de 2002.03.15, no valor de € 550.056,98, e vencimento em 2007.07.05;

- subscrita por Adega Cooperativa de ..., CRL, com data de 2002.03.15, no valor de € 1.650.170,94 e vencimento em 2007.07.05.

O dador de um aval numa livrança a favor do subscritor é responsável pelo pagamento do valor da livrança da mesma maneira que o seu subscritor – art.º 32º da LULL, ex vi do art.º 77º do mesmo diploma –, sendo o portador da livrança credor do avalista pelo montante da livrança.

Na contestação, os demandados alegaram que A... havia aposto o aval nas referidas livranças sem consciência das consequências de tal acto, pelo que não teria tido a consciência de que estava a produzir uma declaração negocial que o vinculava pessoalmente, o que determinaria a total ineficácia do aval aposto, nos termos do art.º 246º do C. Civil, ou a sua anulabilidade, por erro sobre o objecto do negócio, nos termos do art.º 251º do C. Civil.

Não se provou que A... não tivesse consciência dos efeitos da aposição do aval nas livranças acima referidas, pelo que não se suscita a aplicação das consequências previstas nos art.º 246º e 251º do Código Civil.

Os demandados também alegaram que os contratos de Abertura de Crédito que presidiram à subscrição das referidas livranças e aposição de avais não foram objecto de qualquer negociação, estando, por isso, sujeitos ao regime das cláusulas contratuais gerais, sendo nulas as cláusulas onde se acordou a emissão e preenchimento das referidas livranças, por falta de informação ao garante, o que determina que essas livranças não produzam quaisquer efeitos, assim como os avais prestados.

Ora, também não se provou que os referidos contratos tenham sido celebrados sem prévia negociação, não sendo, pois, aplicável o regime das cláusulas contratuais gerais constante do D L n.º 446/85, de 25 de Outubro, nos termos do artigo 1º do referido diploma, não havendo, por isso, razões para considerar nulas as cláusulas onde se previu a subscrição de livranças avalizadas.

Alegaram ainda os demandados que os contratos de Abertura de Crédito onde se clausulou a subscrição de livranças avalizadas foram objecto de renovação e alteração, não tendo esse novo acordo sido subscrito por A..., pelo que os novos acordos não o vinculam, deixando os avais de produzir qualquer efeito por carecer de autorização o preenchimento das livranças.

 Conforme tem sustentado a doutrina e a jurisprudência o aval é um acto jurídico unilateral, não receptício, autónomo, independente e formal e que se constitui como uma garantia cambiária com as características imanentes a este tipo de relações cartulares, a saber a abstracção, a literalidade e a autonomia. Como se refere no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº4/2013, de 11.12.2012 [2], trata-se de uma garantia cambiária típica, dado que a obrigação do avalista se encontra desligada do avalizado; a obrigação deste torna-se abstracta e literal como direito autónomo para o portador do documento, se bem que existindo uma obrigação formal com o acto avalizado se considere como um nexo de posição, sem que se requeira uma substancial posição entre ambas as obrigações cambiárias. Em virtude disso, o avalista assume uma obrigação directa e pessoal, não com o do seu avalizado, e portanto responde, directa e pessoalmente, perante o credor cambiário, pelo pagamento do título e não pelo cumprimento deste. O avalista não assegura que o avalizado pagará, mas sim que o título será pago; não participa da obrigação de outros, mas, ao invés, fá-la própria (non alienae obligationi accedit sed alienam facit propriam); a designação da pessoa a favor a quem se presta o aval tem tão só a finalidade de fazer assumir ao avalista uma responsabilidade cambiária de igual grau que a do avalizado.

Daí que não possam ser opostas ao portador da livrança pelo avalista as excepções relativas às relações entre o avalizado e o portador da livrança, com excepção do pagamento, designadamente a violação de um pacto de preenchimento outorgado entre estes. Mas o avalista já poderá opor esta excepção quando ele próprio tenha participado nesse pacto, uma vez que nessa matéria se situa no domínio das relações imediatas com o portador da letra [3].

Dispõe o art.º 10º da LULL, aplicável às livranças, face ao estatuído no artigo 77º da mesma lei:

Se uma letra incompleta no momento de ser passada tiver sido completada contrariamente aos acordos realizados, não pode a inobservância desses acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido a letra de má-fé ou, adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave.

Estamos perante a figura jurídica da “livrança em branco”, devendo a livrança assim emitida ser preenchida em conformidade com o acordo de preenchimento, sem prejuízo dos direitos do portador estranho a esse mesmo acordo e de boa-fé.

O pacto de preenchimento constitui o ato pelo qual as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo e o tempo do vencimento, competindo ao obrigado cambiário a demonstração de ter sido incumprido o pacto de preenchimento, o que pode ser invocado no domínio das relações imediatas.

Estas regras são válidas para os avalistas, desde que tenham subscrito o pacto de preenchimento, podendo excepcionar a violação desse pacto no domínio das relações imediatas ou perante terceiro de má-fé de forma a evitar o pagamento da livrança.

No presente caso, verifica-se que as livranças aqui em causa foram emitidas como garantia do cumprimento das obrigações assumidas pela “Cooperativa de Olivicultores de ..., CRL”, no contrato de abertura de crédito celebrado com o Autor no dia 15 de Novembro de 2002, e pela “Adega Cooperativa de ..., CRL”, nos contratos de abertura de crédito celebrados também com o Autor em 19 de Setembro de 2001, e 15 de Março de 2002 (2 contratos).

Em todos estes contratos, subscritos por A..., na qualidade de garante, se clausulou o seguinte:

1. Para garantia do bom pagamento de todas as responsabilidades que advém para o Cliente do não cumprimento pontual e integral de qualquer obrigação para ele resultante do presente contrato, nomeadamente e entre outras, o reembolso de capital, o pagamento de juros remuneratórios e moratórios, despesas judiciais ou extrajudiciais, honorários de advogados e custas, bem como saldos devedores de quaisquer contas bancárias de que o cliente seja titular ou co-titular que tenham como origem obrigações para este do presente contrato, o Cliente entregou ao B... uma livrança devidamente subscrita e avalizada pelo Garante, podendo o B... accioná-la ou descontá-la caso se verifique o incumprimento das obrigações assumidas.

2. O B... fica autorizado a preencher a referida livrança nos seguintes termos:

a) data de vencimento – posterior ao vencimento de qualquer obrigação ou obrigações que resultem para o Cliente da celebração do presente contrato;

b) valor – qualquer quantia devida pelo Cliente ao abrigo do presente contrato.

3. O Garante aceita o acordo de preenchimento acima estabelecido a avaliza a livrança nos seus precisos termos.

As livranças em causa foram, pois, emitidas em branco, tendo sido celebrado um pacto de preenchimento onde interveio o avalista A..., pelo que este (ou os seus sucessores), podem invocar perante o Autor, a existência de uma violação desse pacto, no modo como foram preenchidas posteriormente as livranças, uma vez que nos situamos no âmbito das relações imediatas.

Invocam os demandados que estes contratos foram objecto de renovação e alteração na qual não interveio A..., na qualidade de avalista, pelo que o Autor, ao preencher posteriormente as livranças, violou aqueles pactos de preenchimento com o avalista, uma vez que os mesmos apenas permitiam o preenchimento das livranças para satisfação de obrigações resultantes dos contratos originais.

Recorde-se que é ao obrigado cambiário que incumbe demonstrar a existência de uma violação do pacto de preenchimento para se eximir ao pagamento do título assinado em branco, nos termos do art.º 342º, n.º 2, do C. Civil. 

Em primeiro lugar, não se encontra demonstrado, relativamente ao contrato de Abertura de Conta Empréstimo Tesouraria Trimestral celebrado entre o Autor e a “Cooperativa de Olivicultores de ..., CRL”, que o mesmo tenha sido objecto de qualquer renovação/alteração, pelo que este argumento não vale para este contrato e respectiva livrança de garantia.

Quanto aos restantes contratos outorgados entre o Autor e a “Adega Cooperativa de ..., CRL”, constata-se que apesar de terem um prazo de vigência, na cláusula 2ª, n.º 1, estabelecia-se que os mesmos eram sucessivamente renovados por períodos trimestrais se não fossem denunciados pelo B... ou pelo Cliente.

Contudo, verifica-se que, por carta de aceitação expedida pelo Autor em 12 de Setembro de 2002 à Cooperativa mutuária, a qual deu o seu acordo, tais contratos foram renovados com algumas alterações, não se mostrando que A... tenha subscrito, enquanto garante, estes acordos de renovação dos contratos, com alterações.

É verdade que o pacto de preenchimento acordado entre o Autor, as subscritoras das livranças e A..., como avalista dessas livranças, apenas contemplava a utilização destes títulos para cobrança de obrigações com origem nos contratos iniciais, não se tendo estendido essa autorização, relativamente ao avalista A..., às obrigações constituídas após a renovação/alteração daqueles contratos, uma vez que este, enquanto avalista, não participou em tal renovação/alteração. Contudo, não se alegou e consequentemente não se provou, e o ónus da prova recaía sobre as Rés, que os montantes inscritos pelo Autor naquelas livranças respeitavam a obrigações mutuárias constituídas após a referida renovação/alteração e não a obrigações mutuárias constituídas na fase de vigência inicial daqueles contratos, pelo que não está demonstrado que o Autor ao preencher as referidas livranças tenha violado os pactos de preenchimento constantes desses contratos.

Os demandados alegaram que os avais prestados são nulos por indeterminabilidade do montante que poderia ser inscrito nas livranças quando foram prestados, citando em seu favor o disposto no Acórdão do S.T.J. de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2001 [4], segundo o qual é nula, por indeterminabilidade do seu objecto, a fiança de obrigações futuras, quando o fiador se constitua garante de todas as responsabilidades provenientes de qualquer operação em direito consentida, sem menção expressa da sua origem ou natureza e independentemente da qualidade em que o afiançado intervenha.

Não se tendo demonstrado que o preenchimento das livranças tenha sido efectuado em violação do respectivo pacto de preenchimento, a nulidade, por indeterminabilidade do objecto, só poderia recair sobre esse pacto e não sobre o aval prestado, uma vez que este estava perfeitamente determinado pelo pacto estabelecido [5].

Nestes pactos como vimos autorizou-se o Autor a inserir nas livranças qualquer quantia devida pelo Cliente ao abrigo dos contratos de abertura de crédito celebrados, os quais tinham um valor máximo.

Encontrando-se perfeitamente delimitadas as relações jurídicas de onde poderão resultar as obrigações cujo valor será inserido nas livranças, acompanhado de um tecto máximo do valor a inscrever, pode afirmar-se, em consonância com a jurisprudência dominante, emitida em casos semelhantes [6], que um pacto de preenchimento com estas indicações delimita com o mínimo de determinabilidade exigível o valor a inscrever naquelas livranças, permitindo ao avalista das mesmas ter uma perspectiva do alcance da responsabilidade por si assumida.

Por esta razão também não colhe o argumento dos demandados que o aval prestado por A... seja nulo, por indeterminabilidade.

Por todas estas razões concluímos que o Autor é credor cambiário de A... no valor titulado pelas referidas livranças.

Mas para a verificação do primeiro requisito de procedência da impugnação pauliana acima indicado não basta o impugnante demonstrar que é credor do autor do acto impugnado, é também necessário provar que esse crédito se constituiu em data anterior à do acto impugnado.

Aqui estamos perante créditos cambiários resultantes da aposição de avais em livranças das quais o Autor é portador, tendo esses avais sido apostos com a livrança em branco, a qual foi posteriormente preenchida pelo Autor.

Não tem sido isenta de dúvidas a determinação de qual a data que deve ser considerada para efeitos de verificação deste requisito da impugnação pauliana, em situações em que o título cambiário foi assinado em branco, tendo este sido posteriormente preenchido.

A exigência de que o crédito seja anterior ao acto tem como pressuposto a ideia que o acto praticado anteriormente à constituição do crédito não é susceptível de provocar um empobrecimento do património que garantiu a satisfação da obrigação assumida, uma vez que os bens alienados por esse acto já não o integravam [7]. O credor, à data da constituição do crédito, não podia contar com bens que já não se encontravam no património do devedor.

Nestas situações suscita-se a dúvida sobre quando se deve considerar para este efeito que se constituiu o crédito. Terá sido na data em que foi aposto o aval na livrança ainda em branco, como tem decidido dominantemente a jurisprudência? [8] Ou foi na data em que a livrança foi preenchida face ao incumprimento da relação subjacente pelo devedor da livrança? [9] Afastada está, seguramente, a hipótese da data de vencimento do título cambiário, uma vez que o artigo 614º, n.º 1, do C. Civil dispõe que não obsta ao exercício da impugnação, o facto de o direito do credor não ser ainda exigível.

Nesta discussão, mais importante do que tomar posição sobre quais os efeitos jurídicos da aposição de um aval numa livrança em branco importa ponderar o peso dos interesses do avalista e do credor nestas situações. Se, por um lado, se revela excessivo que o avalista veja a liberdade de disposição do seu património cerceada com a aposição do aval numa letra em branco, com funções de garantia, dado que a possibilidade do credor utilizar aquela livrança, face ao pacto de preenchimento estabelecido, está dependente de se verificar um incumprimento da relação subjacente pelo subscritor daquele título, estando, pois, condicionada à verificação de uma eventualidade; por outro lado, há que ponderar que o credor muniu-se da garantia que constitui a livrança avalizada, tendo certamente, em consideração, “as posses” do avalista no momento em que este apôs o seu aval, tendo, por isso, a expectativa legítima que a sua situação patrimonial se mantenha.

Carolina Cunha refere que no regime jurídico da impugnação pauliana é possível encontrar uma pista para a descoberta de uma solução que concilie de forma justa e equitativa aqueles dois interesses em conflito [10]. Na verdade, o art.º 614º, n.º 2, do C. Civil, atribui ao credor sob condição suspensiva, durante a pendência da condição, verificados os requisitos da impugnabilidade, o direito de exigir a prestação de caução. Como este crédito ainda não é certo, entendeu-se não ser razoável conceder ao respectivo titular o direito a interferir nos efeitos dos actos praticados pelo devedor no seu património, mas, face ao perigo da perda definitiva de bens do devedor, possibilitou-se, como paliativo [11], que este possa exigir a prestação de uma caução que garanta a satisfação deste tipo de créditos, enquanto ainda se desconhece se o crédito virá ou não a constituir-se. Durante a pendência da condição, apesar do credor não ter um direito exercitável, existe já um grau de vinculação aos efeitos do negócio que permite a sujeição a esta prestação de garantia, de acordo com os princípios subjacentes ao disposto nos artigos 272º, 273º e 274º do Código Civil. [12]

Ora, como vimos, em situação semelhante se encontra o avalista da livrança em branco que, só em caso de incumprimento da dívida subjacente à emissão da livrança, é que poderá ver esta preenchida e exigido o seu pagamento. A constituição do direito cartular está formal e materialmente dependente de um evento futuro e incerto, pelo que estamos perante uma vinculação cambiária condicional, como refere alguma doutrina alemã [13], pelo que concorda-se que o disposto no art.º 614º, n.º 2, do C. Civil, seja aplicado, por analogia – art.º 13º do C. Civil –, ao tipo de situações aqui em discussão [14].

Contudo, este regime paliativo, conforme resulta do disposto no art.º 614º, n.º 2, do C. Civil, é apenas aplicável durante a pendência da condição, ou seja, neste caso equiparável, entre o momento da aposição do aval e o preenchimento da livrança na sequência do incumprimento das obrigações garantidas com a emissão daquele título. Verificada a condição, tal como verificado o incumprimento da obrigação garantida, caso tenham ocorrido entretanto actos dissipadores do património do avalista, o credor já poderá recorrer à impugnação pauliana para poder executar os bens alienados [15]. Tal como ocorre nos créditos sob condição suspensiva, em que a verificação da condição faz retroagir o direito à data da celebração do negócio – art.º 276 º do C. Civil –, também nesta situação, a verificação do facto que permite ao credor preencher a livrança – o incumprimento da obrigação garantida pela livrança – determina, para efeitos de verificação do requisito previsto no art.º 610º, a), do C. Civil, que se considere que o crédito se constituiu no momento da aposição do aval.

Por esta razão mostra-se integralmente preenchido o requisito da anterioridade do crédito do Autor.

O acto impugnado – a doação de bens imóveis efectuada por A... e mulher à sua filha – determinou necessariamente a diminuição da garantia patrimonial do crédito em causa, por redução do activo do devedor.

A demonstração que deste acto resultou a impossibilidade para o credor de obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade – art.º 610º, b), do C. Civil –, como acima se disse, resulta da comparação do montante das dívidas, a provar pelo credor, com o valor do património após a prática do acto impugnado, a provar pelo devedor ou terceiro interessado – art.º 611º do C. Civil).

O Autor logrou provar que A... era devedor de €3.249.856,92, o valor das livranças por ele avalizadas, acrescido de juros de mora, enquanto as Rés apenas provaram que em 9.2.2005 A... adquiriu um imóvel pelo preço de €110.000,00.

Sendo apenas este o bem que as Rés provaram existir no património do devedor, o mesmo revela-se insuficiente para garantir o pagamento das dívidas, pelo que está demonstrado que da doação efectuada resultou a impossibilidade para o Autor de obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade, na hipótese dos bens doados, não terem um valor suficiente para garantir a cobrança integral dos créditos do Autor.

Alegam as demandadas que não tendo os bens doados um valor que possibilitasse a cobrança dos créditos do Autor não se pode dizer que esse acto agravou a impossibilidade de satisfação desses créditos, uma vez que a mesma já existia ab initio.

Note-se que a impugnação pauliana não é apenas admissível quando o acto impugnado determinou a impossibilidade de satisfação integral dos créditos, uma vez que esse acto dissipou bens que eram suficientes para garantir tal satisfação, mas também, conforme consta da parte final da alínea b) do art.º 610º do C. Civil, quando o acto agravou uma impossibilidade já existente, uma vez que o património que existia ab initio já não era suficiente para garantir o pagamento dos créditos.

Daí que, independentemente do valor dos bens doados, que não se provou, sempre do acto praticado resultaria a verificação do requisito da alínea b) do art.º 610º do C. Civil, perante a não demonstração que no património do devedor, após a prática do acto, permaneceram bens suficientes para satisfazer as dívidas apuradas.

Os demandados alegaram ainda que, tendo o devedor adquirido após a constituição dos créditos um imóvel de valor superior aos bens que foram doados, não há prejuízo para o credor que, com a doação realizada, não viu diminuído o valor do património que no momento da constituição dos créditos contava que pudesse garantir a sua satisfação.

Independentemente da relevância, para efeitos da verificação do requisito previsto no art.º 610º, b), do C. Civil, que possa ter a aquisição de bens pelo devedor em data posterior à constituição dos créditos e anterior à prática do acto impugnado, no presente caso, não só não se provaram os valores de mercado dos bens doados nem o do bem adquirido, como haveria sempre que ter em consideração que à entrada deste no património do devedor correspondeu uma saída do montante do preço da compra, pelo que a alegada aquisição do imóvel em 9.2.2005 por A... não é susceptível de impedir a verificação do requisito previsto no art.º 610º, b), do C. Civil.

Subsidiariamente, os demandados sustentaram a improcedência da impugnação pauliana, relativamente à quota-parte nos bens comuns de que é titular M...

Alegaram que, sendo devedor apenas o seu marido, A..., e tendo sido doados pelo casal bens comuns, uma vez que eram casados no regime de comunhão geral de bens, apenas a meação do devedor pode ser afectada com a impugnação pauliana.

Se esta foi uma posição em tempos acolhida pela jurisprudência e a doutrina [16], já não corresponde à perspectiva actual sobre tal questão.

Na verdade, atentou-se que os bens que se pretendem executar com a dedução da impugnação pauliana já foram transmitidos para terceiro, neste caso a 2.ª Ré, tendo deixado de pertencer ao casal onde se insere o devedor, pelo que não há qualquer meação de um cônjuge não devedor a respeitar [17].

Dir-se-á que tal solução amplia o património com o qual o credor contava para a satisfação da dívida, uma vez que, sendo a dívida da responsabilidade de um dos cônjuges, a execução vai recair sobre bens que integravam a comunhão conjugal.

Contudo, não só essa ampliação pode sempre ocorrer pelos mais diversos motivos, sem que tal enriquecimento impeça o credor de executar bens que não existiam no património do devedor à data da constituição do crédito, como há que ter em consideração que a eliminação do anterior regime-regra da moratória forçada, efectuada pelo D L n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, que modificou a redacção dos art.º 1696º do C. Civil e 825º do C. P. Civil, mais tarde confirmada pelo D L n.º 38/2003, de 8 de Março, que voltou a alterar o texto daquele último artigo, passou a permitir que bens comuns respondessem pela satisfação de dívidas que apenas responsabilizavam um dos cônjuges. Na verdade, em vez da admissibilidade da simples penhora da meação do devedor no património comum, passou a permitir-se que na execução movida contra apenas um dos cônjuges se penhorassem os bens comuns do casal, desde que o cônjuge não devedor não requeira a separação de bens. Por essa razão, a possibilidade do credor poder executar os bens transmitidos na sua totalidade no património do terceiro adquirente, quando o devedor era apenas um dos cônjuges de um casal, não é estranha ao actual regime de responsabilidade por dívidas no casamento.

Pelo exposto, não deve ser limitado o alcance da impugnação pauliana, declarando-se a ineficácia, relativamente ao Autor, da doação acima referida no ponto 7, e reconhecendo-se a este o direito praticar os actos de conservação da garantia patrimonial e de executar os imóveis que foram objecto daquela doação no património da 2.ª Ré.

Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso procedente e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, julgando-se improcedente o pedido principal formulado pelo Autor.

Apreciando-se o mérito do pedido subsidiário, nos termos do artigo 665º, n.º 2, do Código de Processo Civil, julga-se o mesmo procedente e, em consequência, declara-se ineficaz, relativamente ao Autor, a doação descrita no ponto 7 da matéria de facto provada, reconhecendo-se a este o direito de praticar os actos de conservação da garantia patrimonial e de executar os imóveis objecto da doação no património da Ré E...

Custas da acção e do recurso em igual proporção por Autor e Rés.

Relatora: Sílvia Pires

Adjuntos: Maria Domingas Simões

                  Jaime Ferreira


***

[1] Em Das obrigações em geral, vol. II, pág. 421, 4.ª ed., Almedina.

[2] Publicado no D.R. I Série de 21.1.2013.

[3] Neste sentido, Carolina Cunha, in Letras e Livranças, pág. 598, ed. 2012, Almedina.

[4] Publicado no D.R. I Série de 8 de Março de 2001.

[5] Neste sentido, Carolina Cunha, ob. cit., pág. 598, e os seguintes acórdãos acessíveis en www.dgsi.pt:

- do T. R. P., de 8.7.2015, relatado por Fernando Samões;

- da Relação do Porto, de 19.1.2015, relatado por Eusébio de Almeida;

[6] Cfr. os seguintes acórdãos, acessíveis em www.dgsi.pt:

- do T. R. P., de 3.4.2014, relatado por Leonel Serôdio;

- do T. R. P., de 19.12.2012, relatado por Teles de Menezes;

- do T. R. P., de 14.9.2010, relatado por Rodrigues Pires;

- do T. R. L., de 12.11.2013, relatado por Gouveia de Barros;

- do T. R. L., de 13.4.2010, relatado por Rijo Ferreira.

- do T. R. C., de 20.5.2014, relatado por Maria Domingas.

[7] João Cura Mariano, Impugnação pauliana, pág. 157, 2ª ed., Almedina.

[8] Neste sentido, decidiram os seguintes acórdãos, acessíveis em www.dgsi.pt, com excepção daquele que contém outra indicação:

- do S.T.J., de 24.10.2002, relatado por Araújo de Barros.

- do S.T.J., de 22.1.2004, relatado por Bettencourt Faria.

- do T. R. G., de 4.2.2004, relatado por Vieira e Cunha.

- do S.T.J., de 22.6.2004, relatado por Lopes Pinto.

- do T. R. L., de 23.2.2006, relatado por Ana Luísa Geraldes.

- do S.T.J., de 29.11.2011, relatado por Alves Velho.

- do S.T.J., de 20-3-2012, relatado por Martins de Sousa.

- do T. R. C., de 11.9.2012, relatado por Alberto Ruço, na C.J., Ano XXXVII, tomo IV, pág. 6.

- do T. R. L., de 26.2.2013, relatado por Gouveia de Barros.

- do T. R. G., de 2.5.2013, relatado por Rita Romeira.

- do T. R. C., de 28.6.2016, relatado por Arlindo Oliveira.

[9] Neste sentido, Carolina Cunha, na ob. cit., pág. 637-641, e o Acórdão do S.T.J. de 12.5.2005, relatado por Salvador da Costa, acessível em www.dgsi.pt .

[10] Carolina Cunha, ob. cit., pág. 640.

[11] Carolina Cunha, ob. cit., pág. 640.

[12] João Cura Mariano, ob. cit., pág. 169.

[13] Carolina Cunha, ob. cit., pág. 641, nota 290.

[14] João Cura Mariano, ob. cit., pág. 170, apoiado na doutrina italiana, sustenta a extensão do disposto no art.º 614º, n.º 2, do Código Civil, aos chamados credores eventuais, embora de iure constituendo, defenda a substituição da solução prevista naquele preceito pela admissão de uma impugnação pauliana condicional.

[15] Neste sentido, João Cura Mariano, ob. cit., pág. 169, relativamente aos créditos sob condição suspensiva.

[16] Cfr. Menezes Cordeiro, na Anotação ao Acórdão do S.T.J. de 19-2-1991, na Revista da Ordem dos Advogados, Ano 51 (1991), n.º II, pág. 559-560, Maria do Patrocínio Paz Ferreira, em Anotação ao Acórdão do S.T.J. de 5-7-1988, na Revista da Banca, n.º 21, pág. 92, e nos seguintes Acórdãos:

- do S.T.J., de 5.7.1988, relatado por Alcides de Almeida, na Revista da Banca, n.º 21, pág. 77.

- do S.T.J., de 29.9.1993, relatado por Zeferino Faria, na C.J.(Ac. do S.T.J.), Ano I, tomo 3, pág. 35.

- do S.T.J., de 24.10.2002, relatado por Araújo de Barros, acessível em www.dgsi.pt.

- do T. R. C., de 28.1.2003, relatado por Garcia Calejo, na C.J., Ano XXVII, tomo 1, pág. 26.

- do S.T.J., de 5.6.2003, relatado por Quirino Soares, acessível em www.dgsi.pt.

- do T. R. P., de 6.5.2004, relatado por Pinto de Almeida, acessível em www.dgsi.pt.

[17] Neste sentido leiam-se Paula Costa e Silva, em Impugnação pauliana e execução, em “Cadernos de Direito Privado”, nº 7 (2004), pág. 59 e seg., Pedro Romano Martinez/Pedro Fuzeta da Ponte, em Garantias de cumprimento, pág. 35-38, 5.ª ed., Almedina, Menezes Cordeiro, em Tratado de Direito Civil, vol. X, pág. 361, ed. de 2015, Almedina, João Cura Mariano, ob. cit. pág. 103-104, e os seguintes acórdãos:

- do T. R. L., de 2.10.2003, acessível no site www.dgsi.pt, relatado por Salazar Casanova.

- do T. R. C., de 27.1.2004, na C.J., Ano XXIX, tomo 1, pág. 32, relatado por Coelho de Matos.

- do S.T.J., de 9.12.2004, na C.J. (Ac. do S.T.J.), Ano XII, tomo 3, pág. 134, relatado por Moreira Camilo.

- do S.T.J., de 15.3.2005, acessível no site www.dgsi.pt, relatado por Lopes Pinto.

- do T. R. P., de 6.10.2005, acessível no site www.dgsi.pt, relatado por Fernando Baptista.

- do S.T.J., de 13.12.2005, na C.J. (Ac. do S.T.J.), Ano XIII, tomo 3, pág. 162, relatado por Moreira Camilo.

- do S.T.J., de 14.12.2006, na C.J. (Ac. do S.T.J.), Ano XIV, tomo 3, pág. 168, relatado por Ferreira Girão.

- do T. R. P., de 6.3.2007, acessível no site www.dgsi.pt, relatado por Augusto Castilho.

- do T. R. P., de 4.12.2007, acessível no site www.dgsi.pt, relatado por Cândido Lemos.

- do T. R. P., de 14.7.2008, acessível no site www.dgsi. pt, relatado por Pinto de Almeida.

- do S.T.J., de 6.11.2008, acessível no site www.dgsi.pt., relatado por Maria dos Prazeres Beleza.

- do T. R. P., de 19.3.2009, acessível no site www.dgsi.pt, relatado por Madeira Pinto.

- do T. R. C., de 8.5.2012, acessível no site www.dgsi.pt, relatado por Francisco Caetano.

- do T. R. L., de 11.11.2014, acessível no site www.dgsi.pt., relatado por Manuel Marques.

- do S.T.J., de 24.2.2015, acessível no site www.dgsi.pt, relatado por Gabriel Catarino.

- do S.T.J., de 13.12.2015, acessível no site www.dgsi.pt, relatado por Garcia Calejo.