Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5542/13.5TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
SECÇÃO DE COMÉRCIO
DIREITOS SOCIAIS
Data do Acordão: 09/22/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - INST. CENTRAL - SECÇÃO CÍVEL - J3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.16, 71, 72, 78, 79, 255, 257 CSC, 60, 64, 95, 96 CPC, 128 Nº1 C) DA LEI 62/2013 DE 26/8 ( LOSJ)
Sumário: 1. Os direitos sociais são os direitos cuja matriz, directa e imediatamente, se funda na lei societária (lei que estabelece o regime jurídico das sociedades comerciais) e/ou no contrato de sociedade.

2. Podem ser titulares de direitos sociais a sociedade, os sócios, os credores sociais e terceiros.

3. Na atribuição de competência especializada às Secções de Comércio para preparar e julgar as acções relativas ao exercício dos direitos sociais releva a circunstância de estarmos perante matérias que exigem especial preparação técnica e sensibilidade e envolvem dificuldades/complexidades que podem repercutir-se também na respectiva solução.

4. Importando analisar a actuação societária à luz de critérios de racionalidade empresarial, para a sua compreensão e para determinar as respectivas consequências, designadamente, em sede de responsabilidade civil, são necessários conhecimentos especiais para que estão mais vocacionados os tribunais a que foi atribuída competência especializada nessa área.

5. Invocando o autor, na petição inicial, a qualidade de sócio gerente e a sua destituição sem justa causa, e reclamando da sociedade (ré), além do mais, a indemnização pela destituição da gerência - relevando, assim, nomeadamente, a actuação societária e o interesse da sociedade -, deverá entender-se que tal acção se reporta a direitos sociais, integrando-se na previsão da alínea c) do n.º 1 do art.º 121º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26.8).

6. Como tal, a competência material para o seu julgamento pertence à Secção de Comércio.

Decisão Texto Integral:
            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
           

            I. Em 11.12.2013, P (…) intentou, no Tribunal Judicial de Leiria, a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra G (…), Lda., pedindo a condenação desta a pagar-lhe, a título de indemnização pelos prejuízos causados com a destituição, sem justa causa, das suas funções de gerente, a importância de € 47 848, acrescida de juros de mora à taxa legal civil que se vencerem desde a citação até efectivo pagamento, e, a título de retribuições vencidas e não pagas, a importância de € 19 937,33 acrescida dos juros de mora desde a data de vencimento da respectiva obrigação até integral pagamento.

            Alegou, em síntese: é sócio da Ré; em 05.02.2009 foi nomeado gerente desta; nem o contrato de sociedade, nem o acto de designação, fixam ou fixaram prazo para o mandato; no dia 17.12.2012 foi destituído da gerência, pelos restantes sócios da Ré, sem justa causa, pelo que tem direito a ser indemnizado pelos prejuízos sofridos com a destituição (retribuição que deixou de auferir pelo desempenho da sua função de gerente e que não se encontra compensada pela posterior obtenção de qualquer outra retribuição); assiste-lhe ainda o direito às retribuições vencidas e não pagas à data da destituição.

            A Ré contestou, invocando, como “questão prévia”, a existência de uma outra acção onde se discute a validade da mencionada deliberação de destituição do A. da qualidade de gerente (acção n.º 277/13.1TBLRA/”causa prejudicial”), elemento ou pressuposto da pretensão formulada na presente causa, cuja resolução irá interferir e influenciar, destruindo ou modificando os fundamentos em que esta se baseia; referiu ainda, designadamente, que o A. não foi destituído sem justa causa, atento o circunstancialismo aduzido nos art.ºs 26º e seguintes da contestação, e que o A. não alega factos que sustentem o seu pedido. Concluiu pela improcedência da acção.

            Depois da pronúncia do A. sobre a dita “questão prévia” (fls. 245) e da junção de certidão da petição inicial da respectiva acção (fls. 249 e 252), o Tribunal a quo, por sentença de 23.02.2015, conhecendo oficiosamente de excepção dilatória de incompetência absoluta em razão da matéria, declarou a Instância Central - Secção Cível, do Tribunal da Comarca de Leiria, incompetente, em razão da matéria, para preparar e julgar a presente acção e determinou a remessa dos autos à 1ª Secção de Comércio de Leiria.

            Inconformado, o A. apelou formulando as seguintes conclusões:

            1ª - A decisão proferida pelo Tribunal a quo é ilegal e faz uma incorrecta interpretação e aplicação do direito.

            2ª - Para efeitos do disposto na alínea c) do n.º 1 do art.º 128º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), entendem-se por direitos sociais aqueles que nascem na esfera jurídica do sócio, enquanto tal, e se destinam à protecção dos seus interesses sociais.

            3ª - Os direitos reclamados na presente acção, relacionam-se, única e exclusivamente, com o exercício da função de gerente, na Ré/Recorrida.

            4ª - Os pedidos deduzidos pelo Recorrente não se destinam ao exercício de quaisquer direitos sociais, mas, ao invés, ao apuramento de responsabilidade civil, por parte da Recorrida.

            5ª - Nesse pressuposto, a competência, em razão da matéria, para a preparação e julgamento da presente acção incumbe à Secção Cível, ao abrigo do disposto no art.º 117º da LOSJ.

            6ª - Ao declarar-se incompetente, em razão da matéria, para preparar e julgar a presente acção, o Tribunal a quo violou o disposto nos art.ºs 117º e 128º da LOSJ e nos art.ºs 65º e 96º do CPC.

            7ª - Por venda judicial levada a cabo no âmbito do processo de execução fiscal n.º 1449201101047329, a quota de que o Recorrente era titular na sociedade Recorrida foi alienada, conforme Menção constante da certidão permanente da sociedade.

            8ª - Ainda que se entendesse que, por força da qualidade de sócio, o Recorrente estaria, necessariamente, por força da presente acção, a exercer direitos sociais, tal situação deixa, presentemente, de se verificar com a perda dessa qualidade, caso se entenda que esse exercício se reportará não à data da entrada desta acção, mas, pelo contrário, ao momento da decisão.

            9ª - O exercício de direitos sociais verifica-se, apenas, relativamente aos sócios de sociedades comerciais, e não relativamente aos meros gerentes ou administradores. 

            10ª - Com a perda da qualidade de sócio, não poderá o Recorrente, através da presente acção, exercer qualquer eventual direito inerente a essa qualidade e destinado à protecção dos seus interesses enquanto sócio, caso se entenda, igualmente, que esses direitos não podem vir a ser exercidos por quem perde essa qualidade, posteriormente, à data da entrada em juízo da acção.

            11ª - Resta, assim, ao Recorrente o exercício dos direitos inerentes à função de gerente, designadamente, o pagamento de indemnização pela sua destituição da gerência, sem justa causa, bem como o pagamento de remunerações em atraso.

            12ª - A reclamação de tais direitos consubstancia uma acção de responsabilidade civil, cuja competência material incumbe aos tribunais cíveis comuns/secções cíveis.

            Pugna, assim, para que, revogada a decisão recorrida, se declare a Instância Central – Secção Cível competente, em razão da matéria, para preparar e julgar a presente acção.

            Não houve resposta.

            Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa verificar e decidir, apenas, qual das secções – cível da instância central ou secção de comércio – é a competente, em razão da matéria, para preparar e julgar a acção proposta pelo A. e com a configuração que lhe é dada nos autos.

*

            II. 1. Para a decisão do recurso releva o que se descreve no antecedente relatório e ainda o seguinte[1]:

            a) Na acção n.º 277/13.1TBLRA o A. pediu que fosse declarada a “anulação da deliberação aprovada em acta da assembleia geral extraordinária de sócios realizada no passado dia 17 de Dezembro de 2012, pelas 10:00 horas, na sede social da Ré, a destituir da gerência o ora Autor, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 58º do CSC.”

            b) Nesses autos, em 10.3.2015 a Ré G (…), Lda., requereu a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, porquanto a quota detida pelo A. sobre o capital social da Ré fora penhorada e vendida no âmbito de um processo de execução fiscal, deixando de se verificar quanto àquele os pressupostos legais que lhe concediam o direito de acção nos termos do art.º 59º do CSC.

            c) Notificado, o A. pronunciou-se no sentido de não se mostrarem verificados os pressupostos substantivos e adjectivos para acolher tal pretensão.

            d) Por sentença do Mm.º Juiz da 1ª Secção de Comércio-J3/Instância Central da Comarca de Leiria, de 16.4.2015, transitada em julgado, foi nos referidos autos declarada a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, por se considerar que o A. perdera, no decurso da acção, “a qualidade de sócio que legitimava, de facto e de direito, atenta a forma como a configurou (…), o recurso à presente acção” e que, “uma vez que a nomeação de gerente do A. foi a título de sócio e atenta a concreta deliberação cuja anulação se pede no confronto com aquela que é a causa de pedir da acção”, esta “perdeu para si (…) qualquer utilidade prática, para além de ter perdido legitimidade processual para a sua promoção”.

            e) Concluiu o A./Recorrente, no seu requerimento de 17.8.2015, junto aos presentes autos, que “nos termos daquela sentença, a perda da qualidade de sócio, por parte do ora Recorrente, fez precludir a sua capacidade para exercer direitos sociais contra a ora Recorrida, mormente, o direito a obter a anulação de uma deliberação social”.

            f) E que, “ainda que outro fundamento não existisse, sempre a perda da qualidade de sócio, por parte do ora Recorrente, retiraria à presente a natureza de acção destinada ao exercício de direitos sociais, conforme se alega” nas “conclusões de recurso”.

            2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

 Sabemos que a competência material do tribunal se afere em função dos termos em que o autor fundamenta ou estrutura a pretensão que quer ver reconhecida[2] e que o meio de tutela jurisdicional pretendido pelo autor (i. é, o pedido) se encontra necessariamente correlacionado com o facto concreto que lhe serve de fundamento/causa de pedir.

Assim, ao determinar o tribunal competente em razão da matéria para o conhecimento da lide, temos de atentar, sobretudo, na alegação do A. e no efeito jurídico pretendido.

            3. Além das regras relativas à competência previstas na lei civil adjectiva e do contributo da doutrina e da jurisprudência, no caso em análise, relevam também as normas da recente (re)organização judiciária.

Para melhor configurar e enquadrar a situação dos autos, importa, pois, indicar tais normas e a perspectiva que se afigura mais adequada à sua compreensão.

            4. A competência dos tribunais judiciais, no âmbito da jurisdição civil, é regulada conjuntamente pelo estabelecido nas leis de organização judiciária e pelas disposições do Código de Processo Civil. Na ordem interna, a jurisdição reparte-se pelos diferentes tribunais segundo a matéria, o valor da causa, a hierarquia judiciária e o território (art.º 60º, do Código de Processo Civil/CPC).

            Quando ocorra alteração da lei reguladora da competência considerada relevante quanto aos processos pendentes, o juiz ordena oficiosamente a sua remessa para o tribunal que a nova lei considere competente (art.º 61º, do CPC).

            São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (art.º 64º, do CPC).

            As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada (art.º 65º, do CPC).

            A infracção das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal (art.º 96º, al. a), do CPC).

            Nos termos da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ/Lei n.º 62/2013, de 26.8), que estabeleceu as normas de enquadramento e de organização do sistema judiciário:

            - Compete à secção cível da instância central: a) A preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de processo comum de valor superior a € 50 000; b) Exercer, no âmbito das acções executivas de natureza cível de valor superior a € 50 000, as competências previstas no Código de Processo Civil, em circunscrições não abrangidas pela competência de outra secção ou tribunal; c) Preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam acções da sua competência; d) Exercer as demais competências conferidas por lei (art.º 117, n.º 1).

             - Nas comarcas onde não haja secção de comércio, o disposto no número anterior é extensivo às acções que caibam a essas secções (n.º 2 do mesmo art.º).

            - Compete às secções de comércio preparar e julgar: a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização; b) As acções de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade; c) As acções relativas ao exercício de direitos sociais; d) As acções de suspensão e de anulação de deliberações sociais; e) As acções de liquidação judicial de sociedades; f) As acções de dissolução de sociedade anónima europeia; g) As acções de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais; h) As acções a que se refere o Código do Registo Comercial; i) As acções de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras (art.º 128º, n.º 1).

            A LOSJ entrou em vigor em 01.9.2014 - cf. art.º 188º, n.º 1, conjugado com o art.º 118º do DL n.º 49/2014, de 27.3, que procedeu à sua regulamentação e aprovou o regime aplicável à organização e funcionamento dos tribunais judiciais/RLOSJ.

            Com a entrada em vigor do RLOSJ (em 01.9.2014), extinguiram-se os anteriores distritos judiciais, círculos judiciais e comarcas (art.ºs 117º e 118º do DL n.º 49/2014, de 27.3).

            Em consonância com este princípio da extinção dos círculos judiciais e das comarcas e debruçando-se sobre a transição de processos pendentes, reza o art.º 104º do RLOSJ: Os processos que em cada uma das áreas se encontrem pendentes nos actuais tribunais de comarca, à data da instalação dos novos tribunais, transitam para as secções de competência especializada das instâncias centrais, de acordo com as novas regras de competência material e territorial, com excepção dos processos pendentes nos juízos de competência específica cível relativos às matérias da competência das secções de comércio, os quais transitam para as correspondentes secções da instância local (n.º 1). Os processos pendentes nas atuais varas cíveis, varas com competência mista cível e criminal e juízos de grande instância cível das comarcas piloto, independentemente do valor, transitam igualmente para as secções de competência especializada das instâncias centrais referidas no número anterior (n.º 2). Transitam para os tribunais de competência territorial alargada, à data da instalação dos novos tribunais, os processos pendentes nos atuais tribunais de competência especializada que lhes correspondam (n.º 3). Os processos pendentes nos actuais tribunais e juízos de competência especializada das comarcas piloto, não incluídos no número anterior, transitam, dentro do mesmo município, à data da instalação dos novos tribunais, para as secções de competência especializada das instâncias centrais, de acordo com as regras de competência material (n.º 4). Os processos pendentes nas actuais comarcas, não abrangidos pelas regras previstas nos números anteriores, transitam, à data da instalação dos novos tribunais, para as respectivas instâncias locais (n.º 5).

            5. Preceitua o art.º 257º do Código das Sociedades Comerciais/CSC (sob a epígrafe “destituição de gerentes”; na redacção conferida pelo DL n.º 280/87, de 08.7): Os sócios podem deliberar a todo o tempo a destituição de gerentes (n.º 1). O contrato de sociedade pode exigir para a deliberação de destituição uma maioria qualificada ou outros requisitos; se, porém, a destituição se fundar em justa causa, pode ser sempre deliberada por maioria simples (n.º 2). A cláusula do contrato de sociedade que atribui a um sócio um direito especial à gerência não pode ser alterada sem consentimento do mesmo sócio. Podem, todavia, os sócios deliberar que a sociedade requeira a suspensão e destituição judicial do gerente por justa causa e designar para tanto um representante especial (n.º 3). Existindo justa causa, pode qualquer sócio requerer a suspensão e a destituição do gerente, em acção intentada contra a sociedade (n.º 4). Se a sociedade tiver apenas dois sócios, a destituição da gerência com fundamento em justa causa só pelo tribunal pode ser decidida em acção intentada pelo outro (n.º 5). Constituem justa causa de destituição, designadamente, a violação grave dos deveres do gerente e a sua incapacidade para o exercício normal das respectivas funções (n.º 6). Não havendo indemnização contratual estipulada, o gerente destituído sem justa causa tem direito a ser indemnizado dos prejuízos sofridos, entendendo-se, porém, que ele não se manteria no cargo ainda por mais de quatro anos ou do tempo que faltar para perfazer o prazo por que fora designado (n.º 7).

            6. Como vimos, o art.º 128º, n.º 1, alínea c), da LOSJ comete às secções de comércio a preparação e o julgamento das acções relativas ao exercício de direitos sociais.

            Numa primeira perspectiva, os direitos sociais podem ser vistos como uma das manifestações da situação ou posição jurídica (conjunto de direitos, deveres, ónus, expectativas jurídicas) dos sócios perante a sociedade; nesta linha de entendimento, o direito social traduz sempre a situação jurídica de quem participa numa sociedade, titular do direito social é o sócio e pressuposto dessa titularidade é a existência de uma sociedade, a cujo corpo ele pertence.

            Assim, os direitos sociais são direitos dos membros da corporação ou pessoa jurídica, enquanto tais; o direito do sócio não e um direito único, mas antes um feixe de direitos diversos, de vária natureza e conteúdo, sendo esse conjunto que exprime a sua posição ou participação na sociedade – a sua quota – ou, de outro modo dito, o seu estado jurídico – o estado de sócio.

            Mas, sendo os sócios os sujeitos do contrato de sociedade, os direitos sociais não se esgotam na sua titularidade, desde logo, porque, gozando as sociedades de personalidade jurídica, será difícil recusar a qualificação de sociais aos direitos de que ela, uma vez constituída, é titular e que emergem especificamente do contrato de sociedade ou da lei societária (imperativa ou meramente supletiva).

            Com efeito, no desenvolvimento das actividades da sociedade na prossecução do respectivo objecto social (ou do que, como tal, for entendido) e na implementação das inerentes operações sociais podem gerar-se situações que reclamam tutela jurídica que não respeitam necessariamente aos sócios, mas a terceiros e à própria sociedade, pois que esta, como se sabe, sendo dotada de personalidade jurídica, é um centro autónomo de congregação e imputação de interesses que justificam certo tipo de procedimentos vocacionados para os assegurar, sem que isso signifique a existência de oposição ou conflito com outrem, sócios ou terceiros.

            Têm todos estes casos em comum a circunstância de sempre respeitarem à vida da sociedade, sendo através do recurso a juízo que se viabiliza e alcança o respectivo tratamento, com a consequente harmonização dos interesses envolvidos.[3]

            7. Uma vez constituída a sociedade, titulares dos direitos sociais tanto podem ser os sócios, como a própria sociedade; logo, os direitos sociais são os direitos cuja matriz, directa e imediatamente, se funda na lei societária (lei que estabelece o regime jurídico das sociedades comerciais) e/ou no contrato de sociedade.[4]

            8. Ora, entre estes direitos incluem-se os decorrentes da responsabilização dos administradores perante a sociedade (art.º 72º, do CSC), sendo que o reconhecimento e efectivação do direito a indemnização pelos danos causados pela respectiva actuação, este direito, porque conferido directamente pela lei societária, é um específico “direito social” da sociedade contra os seus administradores pois que se configura como sucedâneo do dever principal de prestação a que se encontravam vinculados - e que por eles foi alegadamente incumprido - ou seja, de observarem na gestão e administração os deveres de cuidado e de lealdade previstos no art.º 64º, n.º 1, do CSC, e que têm a respectiva matriz no contrato de administração ou de gestão (reconduzível ao de mandato) celebrado entre a sociedade e os administradores e também no contrato de sociedade e cuja violação acarreta para os administradores responsabilidade contratual perante a sociedade que, como entidade jurídica personalizada, é “dona da empresa”, num plano diverso dos respectivos sócios, apenas donos das acções ou das participações sociais.

            E, como já se referiu, os direitos sociais não são apenas os direitos de que são titulares os sócios; a sociedade, os sócios, os credores sociais e terceiros (cf., v. g., os art.ºs 78º e 79º do CSC), podem ser titulares de direitos sociais, porque expressamente conferidos pela lei societária (se o não forem pelo contrato de sociedade).[5]

            9. A competência dos tribunais de comércio prende-se com questões relacionadas com a actividade das sociedades comerciais.

            Ademais, na atribuição de competência especializada às Secções de Comércio (Tribunais de Comércio, na anterior terminologia) para preparar e julgar as acções relativas ao exercício dos direitos sociais e que têm por objecto questões relacionadas com a actividade das sociedades comerciais, releva a circunstância de estarmos perante matérias que exigem especial preparação técnica e sensibilidade e envolvem dificuldades/complexidades que podem repercutir-se também na respectiva solução; e importando analisar a actuação societária à luz de critérios de racionalidade empresarial (características do “gestor criterioso e ordenado” dotado de saber, competência e aptidão profissional para o bom desempenho e êxito do negócio), para a sua compreensão e para determinar as respectivas consequências, designadamente, em sede de responsabilidade civil, são necessários, naturalmente, conhecimentos especiais para que estão mais vocacionados os tribunais a que foi atribuída competência especializada nessa área (tribunais do comércio) relativamente aos tribunais cíveis.[6]

            10. Atendendo, designadamente, a que a nomeação de gerente do A. foi a título de sócio [cf., v. g., II. 1. d), supra] e que a atribuição da indemnização pedida poderá envolver a análise da sua actuação enquanto sócio e gerente, intervindo, necessariamente, factores de racionalidade técnica e empresarial, e podendo-se de algum modo dizer que, no apontado contexto, poderiam até surgir, de um lado, acções indemnizatórias instauradas pelos sócios ou pela sociedade visando a fixação de um crédito indemnizatório da sociedade contra os respectivos administradores ou gerentes, fundado em responsabilidade civil contratual destes por inobservância dos respectivos deveres legais e estatutários[7], e bem assim, de outro lado, acções, como a presente, que têm por objecto a atribuição de um crédito indemnizatório do sócio gerente (ou do gerente/administrador) decorrente da sua destituição sem justa causa[8], brotando, umas e outras, do estatuto legal do contrato de sociedade, e constituindo como que o anverso e o verso de uma mesma realidade, cujos interesses, aparentemente simétricos ou contrários, não deixam de convergir quanto ao fundamental propósito/desiderato de prosseguir o interesse da sociedade (e, no limite, até se poderá considerar ser do interesse da sociedade indemnizar o sócio gerente ou o gerente destituídos sem junta causa…), afigura-se, salvo o devido respeito por opinião em contrário, que nada justificará a introdução de diferenças na abordagem e no tratamento destas matérias, desde logo, quanto ao seu enquadramento na categoria dos “direitos sociais” (da sociedade contra os respectivos administradores ou do sócio gerente contra a sociedade, no entendimento supra referido), o que, naturalmente, convocará idêntico quadro normativo e funcional/organizacional, mormente ao nível das instituições judiciárias com competência para o seu julgamento.[9]

            11. Temos, assim, por correcto o entendimento do Mm.º juiz a quo, designadamente quando conclui que o A. alicerça a sua pretensão na circunstância, para além do mais, de ser sócio e gerente de sociedade, ou seja, pretende exercer direitos sociais reconhecidos, entre outros, nos art.ºs 16º, 71º, 79º, 255º e 257º, do Código das Sociedades Comerciais (não constituindo, assim, um mero direito de crédito)[10], pelo que, em face do descrito regime jurídico, e da especialidade da problemática a dilucidar, a competência para a preparação e julgamento desta causa está atribuída à Secção de Comércio.

            Perspectiva também de algum modo justificada pelas modificações/alterações verificadas no próprio sistema judiciário, sendo que a situação dos autos exigirá tratamento especializado, mormente por poderem estar em causa factos que no entendimento da Ré constituíram justa causa da destituição [matéria que, de resto, deixou de poder ser indagada no âmbito da acção aludida em II. 1. a), supra][11] e que, em princípio [e na generalidade das situações (similares)], terão a ver com a administração da sociedade e a sua participação no mundo dos negócios (sociais) de uma economia de mercado, tudo, razões que aconselham que tais matérias possam/devam ser apreciadas e julgadas por Tribunal especializado (em tal área da actividade económica).

            12. Nenhuma relevância poderá ser dada à circunstância de o A., em consequência da alienação da sua quota social e posterior registo desse acto, ter deixado de ser sócio da sociedade Recorrida, pela simples razão de que, considerada a pretensão feita valer em juízo, importará atender à situação à data da entrada da acção, e não ao momento da decisão – se é certo que o Recorrente deixou de ser sócio da Ré, a presente acção não ficou descaracterizada quanto ao respectivo objecto e razão de ser, continuando em causa o exercício de direitos sociais.[12]

            Acrescenta-se, e decorre do exposto, que não se encontra na lei uma definição concreta de “direitos sociais”, para efeitos de integração na previsão da alínea c) do n.º 1 do artigo 128º da LOSJ, realidade de algum modo traduzida nas dificuldades evidenciadas pela jurisprudência.[13]

            13. Sabendo-se que a determinação da competência material do tribunal deve assentar na estrutura do objecto do processo, envolvida pela causa de pedir e pelo pedido formulados na petição inicial da acção na altura em que é intentada, e não relevando agora eventuais questões atinentes ao concreto posicionamento das partes e aos respectivos ónus, mormente em matéria de alegação e prova, resta, pois, concluir pelo acerto da decisão recorrida.

            Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.

*

            III. Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

            Custas da apelação pelo A./apelante.

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22.9.2015

Fonte Ramos ( Relator)

Maria João Areias

Fernanda Ventura


 




[1] Tendo em conta os documentos juntos a fls. 252 e, na pendência do recurso, a 17.8.2015.
[2] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, págs. 91 e 95 e os Acórdãos do STJ de 12.01.1994, 22.01.1997, 20.5.1998 e 26.6.2001, in CJ-STJ, II, 1, 38 e V, 1, 65; BMJ, 477º, 389 e CJ-STJ, IX, 2, 129, respectivamente.
[3] Sobre esta problemática, vide João Labareda, Notícia sobre os processos destinados ao exercício dos direitos sociais, in Direito e Justiça, vol. XIII, Tomo I, 1999, págs. 44 e seguintes e, em geral, entre outros, A. Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, Vol. II, Sociedades Comerciais (Doutrina Geral), Universidade de Coimbra, 1968, págs. 348 e seguintes.
[4] Cf., sobretudo, o acórdão do STJ de 08.5.2013-processo 5737/09.6TVLSB.L1-S1, publicado no “site” da dgsi.
[5] Cf. o citado acórdão do STJ de 08.5.2013-processo 5737/09.6TVLSB.L1-S1.
[6] Cf., de entre vários, os acórdãos do STJ de 18.12.2008-processo 08B3907 e de 08.5.2013-processo 5737/09.6TVLSB.L1-S1 e da RL de 26.3.2009-processo 94/07.8TYLSB.L1-6, publicados no “site” da dgsi.
[7] Cf. ainda, de entre vários, os acórdãos do STJ 17.9.2009-processo 94/07.8TYLSB.L1.S1 e 11.01.2011-processo 1032/08.6TYLSB.L1.S1 e da RL de 23.3.2012-processo 111/11.7TVLSB.L1-6 e 26.6.2014-processo 5733/06.5TVLSB.L1-2, publicados no “site” da dgsi.

[8] Vide, entre outros, Raul Ventura, Sociedades por Quotas – Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, vol. III, Almedina, 1991, pág. 118 e os acórdãos do STJ de 15.02.2000 e 29.5.2014-processo 2387/08.8TBFAR.E1.S1, in BMJ 494º, 358 e “site” da dgsi, respectivamente.

[9] Com uma perspectiva que parece restringir a intervenção dos Tribunais especializados da área comercial às questões em que que o autor tenha a qualidade de sócio (ou tratando-se da própria sociedade) e o pedido formulado vise a protecção dos seus interesses sociais (ou o interesse da sociedade), cf., entre outros, os acórdãos da RP de 18.6.2008-processo n.º 0833654 e 29.3.2011-processo n.º 5326/07.0TBVLG e da RC de 15.11.2011-processo 2081/06.4TBAGD.C1, publicados no “site” da dgsi.
[10] No sentido de que a acção de indemnização proposta por administrador ou gerente destituído sem justa causa constituirá uma acção para o exercício de um direito de crédito e não de um direito social, vide Paulo Olavo Cunha, Lições de Direito Comercial, Almedina 2010, págs. 149 e seguinte.
[11] Não sendo pacífico o entendimento quanto às consequências decorrentes da forma como veio a ser elaborada a “acta n.º 17”, reproduzida a fls. 23 e seguinte, referente à deliberação de destituição do A., e bem assim no que concerne ao ónus de alegação e prova - cf., entre outros, os acórdãos do STJ de 23.6.1992, 09.7.1998 e 15.02.2000, in BMJ 418º, 793; 479º, 634 e 494º, 358, respectivamente -, sempre se dirá que as referidas problemáticas surgem em plano secundário, ante a decisiva questão da competência para preparar e julgar o processo.
[12] A propósito de uma situação com alguma similitude, estando em causa a aplicação do preceituado no art.º 77º, n.ºs 2 e 3, do CSC, cf. o acórdão do STJ de 18.12.2008-processo 08B3907, publicado no “site” da dgsi.
[13] Atente-se, por exemplo, no expendido no cit. acórdão do STJ de 08.5.2013-processo 5737/09.6TVLSB.L1-S1 e na crítica aí expressa a respeito do percurso argumentativo seguido, sobre as mesmas matérias, nalguns arestos do nosso mais alto Tribunal.