Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3070/09.2TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS GIL
Descritores: ACIDENTE FERROVIÁRIO
CULPA
ALTERAÇÃO
CAUSA DE PEDIR
DANO
PRIVAÇÃO DE USO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Data do Acordão: 06/26/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA 4º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.487, 497, 503, 566 CC, DL Nº 568/99 DE 23/12, ARTS. 3, 264, 265, 273, 458 CPC
Sumário: 1. O aditamento factual incidente sobre os pressupostos da ilicitude do facto e da culpa do agente, determina uma reconfiguração da causa de pedir em dois dos seus pressupostos essenciais, gerando assim uma alteração parcial da causa de pedir, por cumulação sucessiva, não sendo legalmente admissível a sua introdução no processo sem o acordo da parte contrária.

2. O recurso de apelação é um meio processualmente inadequado para suscitar o conhecimento de nulidade processual atípica alegadamente cometida perante o tribunal a quo e que, ao menos, não se ache implicitamente coberta por decisão judicial, pelo que, não sendo viável a convolação do recurso em reclamação da nulidade em virtude daquele ter sido interposto para além do prazo em que deve ser suscitada a reclamação da nulidade, existe um obstáculo de ordem processual ao conhecimento do objecto do recurso.

3. Age ilicitamente e com culpa o condutor de veículo pesado bloqueado numa passagem de nível que tenta durante quinze minutos retirá-lo desse local e que, face ao insucesso de tais tentativas, só então estabelece contacto telefónico com a GNR para informar da existência de um obstáculo na via férrea.

4. A privação do uso de uma automotora durante o tempo necessário à sua reparação não constitui um dano reparável em sede de responsabilidade civil quando a titular do veículo imobilizado está legalmente obrigada a manter uma frota de reserva para fazer face a avarias e acidentes, não sendo estes custos causados pelo facto que levou à imobilização daquele veículo.

5. Age com negligência grave a autora que alega um facto nuclear na construção da causa de pedir que é falso, sem previamente curar de aferir da veracidade de tal facto, sendo do seu conhecimento que existe prova documental que suscita dúvidas sobre a veracidade desse facto, tratando-se de facto cuja veracidade facilmente se apurava.

Decisão Texto Integral:             Acordam, em audiência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

            1. Relatório

            A 28 de Maio de 2009, no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Caminhos de Ferro Portugueses, E.P, interpôs a vertente acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra G(…) - Companhia de Seguros, S.A, presentemente, Companhia de Seguros (…) S.A., pedindo a condenação desta no pagamento do montante global de € 520.675,09.

Para fundamentar a sua pretensão condenatória, em síntese, a autora alegou que, no dia 16 de Junho de 2006, ao quilómetro 157,508 da linha do Oeste, no sítio de Picheleiro, freguesia da Barosa, concelho de Leiria, onde existe uma passagem de nível sem guarda, dotada de sinalização automática, pelas 15.02 horas, ocorreu uma colisão entre o comboio nº 6459 e um veículo pesado de mercadorias de matrícula PQ (..), pertencente à sociedade (…), S.A., achando-se transferida para a ré a responsabilidade por danos causados a terceiros emergentes da circulação deste veículo. A rua que atravessa a passagem de nível, à data do sinistro, tinha sinal indicativo da passagem de nível, bem com um sinal que proibia o trânsito a veículos com peso superior a 5,5 toneladas, sendo que o veículo de matrícula PQ (..) era de três rodados e transportava 6254 kgs. de carga, o que determinou a imobilização do veículo em plena via férrea, em virtude do pára-choques traseiro do veículo ter assentado na zona de intercepção da rua com a passagem de nível, assim ocasionando o sinistro. Em consequência da colisão resultaram para a autora danos, nomeadamente: com a deslocação do comboio de socorro para carrilamento, pagou a autora à EMEF a quantia de € 3.280,56 acrescida de IVA à taxa de 21%, num total de € 3.969,48; para reabilitar a UDD 463 a fim de que esta circulasse entre a Figueira da Foz e as oficinas do Porto, despendeu a autora € 228,34; pela reparação efectuada da UDD 463 nas oficinas da EMEF despendeu a autora a quantia de € 198.062,88, aos quais acrescem 21% de IVA; desde a data do acidente e até 12 de Outubro de 2007, quando a automotora 463 ficou totalmente apta para reentrar ao serviço, a autora esteve impossibilitada de a utilizar, o que lhe provocou um prejuízo de € 273.050,49; em consequência dos atrasos de outros comboios que tiveram origem na circunstância da Linha do Oeste ter estado impedida durante 5 horas, a autora suportou prejuízos no montante de € 3.614,22; pagou ao revisor do comboio o valor de diversos objectos pessoais existentes numa pasta que desapareceu quando se verificou o acidente, no montante de € 176,49.

Efectuada a citação da ré, esta contestou impugnando alguns dos factos articulados pela autora, nomeadamente que o sinal de proibição de trânsito a veículos com peso superior a 5,5 toneladas existisse, à data, no local, alegando que, como bem sabe a autora, tal sinal ali foi colocado depois do sinistro e justamente por causa deste, sustentando que a causa do acidente se deveu à forma como se acha implantada a passagem de nível e ao excesso de velocidade do veículo ferroviário, impugnando, ainda, os montantes pretendidos pela autora, a título de indemnização.

            Realizou-se audiência preliminar, proferindo-se despacho saneador tabelar por escrito e procedendo-se à condensação da factualidade considerada relevante para a boa decisão da causa, discriminando-se a factualidade assente da controvertida, esta última a integrar a base instrutória.

            As partes ofereceram as suas provas em prazo que lhes foi concedido, sendo requisitadas as informações solicitadas por ambas as partes e produzidas as provas periciais requeridas pela ré.

            A 08 de Setembro de 2011, a autora veio requerer a ampliação do pedido, pretendendo a condenação da ré ao pagamento da quantia global de € 607.797,70, aditando aos valores já mencionados na petição inicial mais € 95.091,13 relativos ao custo de reparação da UDD 463.

A parte contrária opôs-se a esta pretensão por, em seu entender, configurar uma alteração extemporânea do pedido e, à cautela, excepcionou a prescrição da obrigação de indemnizar os montantes ora peticionados pela autora.

            A 04 de Outubro de 2011 foi proferido despacho que indeferiu a ampliação do pedido pedida pela autora, vindo esta, em requerimento entrado a 04 de Outubro de 2011, pelas 18h08, responder à excepção de prescrição invocada pela ré, pronunciando-se pela sua inverificação.

            Realizou-se a audiência de discussão e julgamento em três sessões gravando-se a prova pessoal aí produzida, em consonância com o requerido por ambas as partes.

            Na sessão da audiência de discussão e julgamento realizada a 19 de Outubro de 2011, a autora requereu a ampliação da base instrutória, atento o depoimento prestado pela testemunha (…), no que respeita às causas da imobilização do veículo automóvel na via férrea, requerendo a efectivação de novas diligências probatórias, opondo-se a ré à requerida ampliação da base instrutória.

            Na sessão da audiência de discussão e julgamento realizada a 15 de Dezembro de 2011, proferiu-se despacho considerando que a matéria que a autora requereu fosse aditada à base instrutória configurava uma ampliação da causa de pedir, para a qual a ré não deu o seu acordo e referindo, subsidiariamente, não ter sido produzida prova do conhecimento da superveniência subjectiva dos factos que se pretendiam ver incluídos na base instrutória, o que determinou o indeferimento do requerimento da autora para ampliação da base instrutória.

            Proferiu-se decisão sobre a matéria de facto e, seguidamente, a 07 de Fevereiro de 2012, elaborou-se sentença que julgou a acção totalmente improcedente e determinou a audição das partes para, querendo, se pronunciarem sobre eventual litigância de má fé da autora.

            A autora pronunciou-se pela inverificação dos requisitos para a condenação como litigante de má fé, enquanto a ré sustentou posição inversa e pediu a condenação da autora ao pagamento de indemnização em montante a fixar pelo tribunal.

            A 27 de Fevereiro de 2012 foi proferida decisão que condenou a autora como litigante de má fé na multa de quatro unidades de conta.

            Inconformada com a sentença, bem como com outras decisões que identifica no recurso, a 12 de Março de 2012, a autora interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes prolixas conclusões:

(…)

A final, a recorrente imputa à sentença recorrida a violação dos artigos “506º al. C) e numero 6, art. 507º, art. 519º, artigo 456º, todos do Código de Processo Civil, bem como os artigos 483º, art. 499º, art. 503º, art. 505º, art. 506º, art. 563º, art. 566º e art. 1305, todos do Código Civil, e ainda o artigo 22º nº 1 do DL 39.780 de 21/08/1954 e por ultimo, o artigo 22º nº 1 e numero 3 al. e) e f) e art. 24º nº 4 al. c), todos do DL 568/99 de 23/12”.

A ré contra-alegou pugnando pela integral confirmação das decisões impugnadas.

Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

            2. Questões a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 684º, nº 3 e 685º-A nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil

2.1 Da ilegalidade do despacho proferido a 19 de Outubro de 2011 e que indeferiu o requerimento da autora para ampliação da base instrutória;

2.2 Da nulidade processual cometida por não ter sido disponibilizada na plataforma citius a decisão contendo a decisão sobre a matéria de facto;

2.3 Da impugnação da resposta ao artigo 10º da base instrutória;

2.4 Da responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco da segurada da ré;

2.5 Da inverificação dos pressupostos legais para o sancionamento da autora como litigante de má fé.

3. Fundamentos

3.1 Da ilegalidade do despacho proferido a 19 de Outubro de 2011 e que indeferiu o requerimento da autora para ampliação da base instrutória

A recorrente pugna pela revogação do despacho que indeferiu a ampliação da base instrutória por si requerida no dia 15 de Dezembro de 2011, em virtude do depoimento prestado pela testemunha (…) “revelar novos factos constitutivos, modificativos e extintivos do direito da recorrente de elevada importância para a descoberta da verdade quanto à origem da imobilização do veículo segurado pela Recorrida na passagem de nível. A recorrente fundamenta juridicamente a sua pretensão de ampliação da base instrutória no disposto nos artigos “506º, al. C, nº 6, 507º e 519º todos do Código de Processo Civil.

Na decisão recorrida, entendeu-se que a matéria factual que a ora recorrente pretendia ver incluída na base instrutória configurava uma ampliação da causa de pedir, sem acordo da ré e, além disso, que a ora recorrente não curou de demonstrar que só então teve conhecimento da aludida factualidade, tudo a determinar o indeferimento dessa pretensão.

Cumpre apreciar e decidir.

De acordo com o princípio do dispositivo incumbe às partes “pedir a resolução do conflito, enunciando-o e elegendo o meio concreto de tutela que pretendem perante a alegada violação do direito, carreando os factos e as provas que reputem adequados e formulando os pedidos correspondentes, incumbindo ainda ao réu fixar os termos e meios da sua defesa, cabendo também às partes a faculdade de pôr termo ao processo antes do julgamento, ou seja, e visto noutra perspectiva, e na pureza do princípio, não é o juiz que, “ex oficio”, tem o poder de iniciar a lide, nem de sugerir ao réu o uso dos meios da sua defesa, nem ainda de impulsionar a prática dos actos que constituem o devir processual[1].

O princípio do dispositivo decorre, essencialmente, do disposto no artigo 264º do Código de Processo Civil, embora existam noutras normas processuais manifestações claras deste princípio (veja-se, por exemplo a primeira parte do nº 1, do artigo 3º do Código de Processo Civil). Trata-se de um princípio geral na jurisdição contenciosa, embora com limitações (veja-se, por exemplo, o artigo 265º, do Código de Processo Civil), não regendo no domínio da jurisdição voluntária no que respeita a investigação dos factos, a recolha e a produção das provas (artigo 1409º, nº 2, do Código de Processo Civil).

O princípio do dispositivo é um princípio fundamental para a preservação da independência e imparcialidade do julgador na medida em que defere às partes a responsabilidade pela definição dos termos do litígio mediante a pertinente alegação dos núcleos fácticos essenciais, a organização da estratégia probatória e a determinação dos efeitos jurídicos concretamente pretendidos.

Às partes cabe o ónus de alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções (artigo 264º, nº 1, do Código de Processo Civil).

Por isso, em princípio, o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes, sem prejuízo do conhecimento oficioso pelo tribunal dos factos notórios, dos factos conhecidos no exercício das suas funções, do conhecimento oficioso de factualidade reveladora de um uso anormal do processo e ainda da consideração dos factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa (artigos 264º, nº 2, 514º e 665º, todos do Código de Processo Civil). Anote-se que os factos instrumentais são factos probatórios, no sentido de que não interferem na conformação da causa de pedir ou das excepções, mas apenas relevam para a prova dos factos essenciais conformadores do objecto da lide na sua vertente activa e passiva[2].

 Não obstante o papel atribuído às partes de conformação da causa de pedir e das excepções nos seus articulados (artigo 151º, nº 1, do Código de Processo Civil)[3], poderão ainda ser considerados na decisão final os factos essenciais à procedência das pretensões formuladas ou das excepções deduzidas que sejam complemento ou concretização de outros que as partes hajam oportunamente alegado e que resultem da instrução e discussão da causa, desde que a parte interessada nessa consideração manifeste a vontade de se aproveitar de tais factos e que seja facultado o exercício do contraditório à parte contrária (artigo 264º, nº 3, do Código de Processo Civil)[4]. Factos complementares são aqueles que se integram numa factualidade já alegada e que a completam, sendo o facto complementado, sem o facto complementar, um facto incompleto; factos concretizadores são aqueles que singularizam ou circunstanciam enunciados fácticos excessivamente genéricos ou conclusivos, permitindo, nesta última vertente, identificar as bases factuais subjacentes à formulação de certas conclusões.

            Nos termos do disposto no artigo 268º do Código de Processo Civil, “citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei.

            “Havendo acordo das partes, o pedido e a causa de pedir podem ser alterados ou ampliados em qualquer altura, em 1ª ou 2ª instância, salvo se a alteração ou ampliação perturbar inconvenientemente a instrução, discussão e julgamento do pleito” (artigo 272º do Código de Processo Civil).

Na falta de acordo, a alteração ou ampliação da causa de pedir, exceptuando o caso de resultar de confissão feita pelo réu e aceita pelo autor, só pode ser feita na réplica, se o processo a admitir (artigo 273º, n.º 1, do Código de Processo Civil).

No que respeita o pedido, o mesmo pode ser alterado ou ampliado na réplica e, além disso, pode ser ampliado até ao encerramento da discussão em 1ª instância, se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo (artigo 273º, nº 2, do Código de Processo Civil).

Na nossa perspectiva, na ampliação da causa de pedir e do pedido pressupõe-se uma identidade qualitativa da causa de pedir e do pedido e uma mera mutação quantitativa destas, como sucede, por exemplo, relativamente às consequências do facto danoso, no caso da responsabilidade por facto ilícito. Em todo o caso, na falta de acordo das partes, não sendo a ampliação do pedido mero desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo, estas modificações objectivas da instância apenas são viáveis em sede de réplica (artigo 273º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil)

            Finda a fase dos articulados, a introdução na lide de factos novos só é possível com recurso à figura dos articulados supervenientes (artigos 506º e 507º, ambos do Código de Processo Civil).

Através dos articulados supervenientes podem ser trazidos à lide factos cuja superveniência seja objectiva ou subjectiva. Tais factos podem ser constitutivos, modificativos e extintivos do direito (artigo 506º, nº 1, do Código de Processo Civil).

            Importa ainda não perder de vista que, “sem prejuízo das restrições estabelecidas noutras disposições legais, nomeadamente quanto às condições em que pode ser alterada a causa de pedir, deve a sentença tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à acção, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão” (artigo 663º, nº 1, do Código de Processo Civil). Esclarece o nº 2 deste normativo que “só são, porém, atendíveis os factos que, segundo o direito substantivo aplicável, tenham influência sobre a existência ou conteúdo da relação controvertida.

A causa de pedir numa acção em que se visa efectivação a obrigação de indemnizar com base em responsabilidade por facto ilícito, como sucede na presente acção, a título principal, consiste no facto jurídico de que deriva a pretensão indemnizatória da autora (artigo 498º, nº 4, do Código de Processo Civil). Essa causa de pedir tem natureza complexa, sendo integrada por todos os factos que preenchem os pressupostos da obrigação de indemnizar, ou seja, na formulação clássica sustentada pelo Professor Antunes Varela, o facto, a ilicitude do facto, o nexo de imputação do facto ao agente, o dano e o nexo causal entre o facto e o dano[5].

No caso em apreço, a autora fundamentou a ilicitude da conduta do motorista do veículo automóvel na violação da proibição de circulação naquela via, por ter tonelagem superior à permitida de acordo com sinalização vertical implantada antes da passagem de nível[6].

A factualidade que a recorrente pretende seja incluída na base instrutória integra outro fundamento de ilicitude da conduta do referido motorista e resultaria de um mau acondicionamento da carga que por força do desnível na passagem de nível se teria deslocado para a traseira do veículo, bloqueando-o sobre a via férrea (veja-se o artigo 56º, nº 3, alínea a), do Código da Estrada, na redacção vigente na data do sinistro)[7].

A factualidade que a autora pretende seja incluída na base instrutória integra a violação de um outro dever jurídico por parte do motorista do veículo automóvel, fundamentando-se a ilicitude do facto e a própria culpa do agente, numa materialidade fáctica diferente daquela que havia sido alegada na petição inicial, materialidade que tem um enquadramento normativo distinto daquele que correspondia à factualidade alegada na petição inicial.

Na nossa perspectiva, não está em causa uma mera variação quantitativa na causa de pedir, mas antes uma alteração, por adjunção, de dois dos pressupostos da obrigação de indemnizar com base em facto ilícito. Na verdade, a pretensão indemnizatória da autora tanto pode proceder apenas com base na violação legal primeiramente alegada na petição inicial, como com base apenas nesta que pretende ver incluída na base instrutória e até com base nas duas violações. O aditamento factual pretendido pela recorrente, ao incidir sobre os pressupostos da ilicitude do facto e da culpa do agente, determina uma reconfiguração da causa de pedir em dois dos seus pressupostos essenciais, gerando assim uma alteração parcial da causa de pedir, por cumulação sucessiva.

Neste circunstancialismo, atendendo a que os autos se encontravam na fase de audiência de discussão e julgamento quando a autora requereu a ampliação da base instrutória e que a ré se opôs a esta pretensão da autora, face ao disposto no 273º, nº 1, do Código de Processo Civil, é patente que a pretensão da autora tinha que ser, como foi, indeferida.

Por outro lado, a ampliação da base instrutória ao abrigo do disposto no artigo 650º, nº 2, alínea f), do Código de Processo Civil, como agora aventa a recorrente, faz-se sempre no estrito respeito das regras levais que disciplinam a conformação do objecto do processo (artigo 264º do Código de Processo Civil).

Ora, a factualidade que a recorrente pretendia ver aditada à base instrutória, não só não foi alegada por qualquer das partes, como também não tem natureza instrumental, pois pelo exposto anteriormente tem relevo normativo autónomo, não se destinando à mera prova dos factos essenciais já alegados pelas partes. Por isso, é patente que não estavam reunidas as condições legais para o tribunal a quo ampliar a base instrutória nos termos previstos no artigo 650º, nº 2, alínea f), do Código de Processo Civil, acolhendo na base instrutória a matéria que a recorrente aí pretendia ver incluída.

Pelo exposto, bem andou o tribunal a quo ao indeferir o requerimento da autora formulado na sessão da audiência de discussão e julgamento realizada a 19 de Outubro de 2011, no sentido de se proceder à ampliação da base instrutória, devendo por isso ser confirmada.

3.2 Da nulidade processual cometida por não ter sido disponibilizada na plataforma citius a decisão contendo a decisão sobre a matéria de facto

A recorrente afirma que apenas a 07 de Março de 2012 obteve cópia da respostas à matéria vertida na base instrutória, não obstante os diversos contactos telefónicos mantidos com o tribunal a quo para esse efeito. Alega ainda que foram violados os artigos 20º e 22º da Portaria nº 1538/2008, de 30 de Dezembro, em virtude das aludidas respostas não terem sido disponibilizadas na plataforma citius.

Cumpre apreciar e decidir.

Antes de mais, para a decisão da questão ora colocada importa relevar a seguinte factualidade que resulta dos autos:

- na sessão da audiência de discussão e julgamento realizada a 15 de Dezembro de 2011, na qual se achava presente o Sr. Advogado da recorrente, com o acordo de ambos os mandatários das partes, foi designado o dia 11 de Janeiro de 2012, pelas 13 horas e 30 minutos, para leitura das respostas à matéria vertida na base instrutória;

- o Sr. Advogado da recorrente não compareceu à sessão da audiência de discussão e julgamento designada para 11 de Janeiro de 2012, pelas 13 horas e 30 minutos;

- a decisão sobre a matéria vertida na base instrutória não foi executada em suporte informático através do sistema informático CITIUS – Magistrados Judiciais com aposição de assinatura electrónica qualificada ou avançada.

Nos termos do disposto no 17º, nº 1, da Portaria nº 114/2008, de 06 de Fevereiro, os actos processuais dos magistrados judiciais são sempre praticados em suporte informático através do sistema informático citius – Magistrados Judiciais com aposição de assinatura electrónica qualificada ou avançada. Esta obrigação legal dos Magistrados Judiciais praticarem os actos processuais no sistema informático citius vigora desde 05 de Janeiro de 2009 (veja-se o artigo 28º, nº 3, da Portaria nº 114/2008, de 06 de Fevereiro, na redacção da Portaria nº 457/2008, de 20 de Junho). Claro está que esta obrigação legal, como toda e qualquer obrigação legal, pode ser justificadamente violada, por exemplo em caso de força maior, por inoperacionalidade do sistema citius, devendo essa violação ser fundamentada pelo respectivo Magistrado Judicial.

No caso em apreço é patente a violação da obrigação legal por parte da Sra. Juíza a quo de usar o sistema informático citius no processamento das respostas à matéria vertida na base instrutória, sendo certo que no despacho em que foram exaradas as respostas à matéria incluída na base instrutória, nenhuma justificação foi dada para o procedimento adoptado.

A violação de tal dever legal impede a consulta electrónica dos autos por parte dos Senhores Advogados (artigo 22º, nº 1, alínea a), da Portaria nº 114/2008, de 06 de Fevereiro) e constitui a violação de uma formalidade legal dos actos processuais praticados por Magistrados Judiciais, admitindo-se que possa influir negativamente no exame ou na decisão da causa, na medida em que dificulta o exercício do patrocínio judiciário. Deste modo, a violação suscitada em via de recurso pela recorrente constitui uma nulidade processual (artigo 201º, nº 1, do Código de Processo Civil).

Nos termos do disposto no artigo 201º, nº 1, do Código de Processo Civil, não sendo caso de nulidade legalmente tipificada (nos artigos anteriores ao artigo 201º ou em disposição avulsa que comine tal vício à infracção em causa), a prática de acto que a lei não admita, bem como a omissão de acto ou formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.

Não estando em causa nenhuma das nulidades previstas nos artigos 193º, 194º, na segunda parte do nº 2 do artigo 198º e nos artigos 199º e 200º, todos do Código de Processo Civil, ou em que a lei permita o seu conhecimento oficioso, o tribunal apenas poderá conhecer de um tal vício após reclamação do interessado (artigo 202º do Código de Processo Civil). As nulidades que não sejam de conhecimento oficioso devem ser apreciadas logo que reclamadas (artigo 206º, nº 3, do Código de Processo Civil).

O prazo para a dedução de reclamação contra eventual nulidade que não seja de conhecimento oficioso é de dez dias, sempre que a parte não esteja presente, por si ou por mandatário, no momento em que é cometida (artigos 205º, nº 1, 2ª parte e 153º, ambos do Código de Processo Civil), sendo o termo inicial de tal prazo o dia em que depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum acto praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele mas, neste último caso, só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência. Nesta eventualidade, sendo o processo expedido em recurso antes de findar o prazo para a dedução da reclamação, a arguição da nulidade pode ser feita perante o tribunal superior, contando-se o prazo desde a distribuição (artigo 205º, nº 3, do Código de Processo Civil).

As disposições legais que se têm vindo a citar permitem concluir, com toda a segurança, que o meio próprio de reacção contra a prática de nulidades processuais atípicas é a reclamação para o órgão que praticou ou omitiu o acto contrário à lei e não o recurso. Só assim não será quando o vício esteja explícita ou implicitamente coberto por uma decisão judicial. Daí que seja corrente a afirmação de que “dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se[8].

Provocada a decisão do autor da acção ou omissão integradora de nulidade processual mediante a pertinente reclamação, então caberá recurso, nos termos gerais (artigo 691º do Código de Processo Civil), da decisão que venha a ser proferida sobre essa reclamação.

Ainda que a conclusão quanto à impropriedade processual de arguição de nulidade processual atípica em via de recurso não resultasse de tudo quanto antes se expôs, sempre à mesma conclusão se chegaria atentando no figurino próprio do recurso que, em regra, consiste na reapreciação de questões que tenham sido objecto de decisão pelo tribunal a quo.

Na verdade, em via de recurso, não se tratando do conhecimento de arguição de nulidade por omissão de pronúncia, de questão de conhecimento oficioso, de mera operação de qualificação jurídica diversa da factualidade alegada, nem tendo havido, nos termos legais, alteração do pedido, em segunda instância, por acordo das partes, não se deve conhecer de questão nova que não haja sido suscitada junto do tribunal a quo.

Ora, no caso em apreço, a recorrente, logo no dia designado para a leitura da decisão sobre a matéria de facto, teve oportunidade de poder constatar que a aludida decisão não se achava disponível na plataforma citius, pois havia sido notificada da data dessa diligência e não compareceu à mesma. Nesta medida, agindo com a diligência devida, a recorrente, logo nesse dia, estava em condições de constatar a violação da aludida formalidade legal, dispondo de dez dias para reclamar perante o juiz a quo contra a referida violação legal.

Não tendo a recorrente reclamado suscitando a apontada violação daquela formalidade legal, nos dez dias subsequentes àquele em que poderia dela ter tomado conhecimento (22 de Janeiro de 2012), aquele vício sanou-se. Além disso, não se achando a violação praticada coberta explícita ou implicitamente por qualquer decisão judicial, sempre o recurso é um meio impróprio para suscitar essa questão, apresentando-se como uma questão nova, de conhecimento não oficioso e, por isso, insusceptível de ser conhecida em via de recurso[9]. Finalmente, porque o aludido vício foi invocado muito para além dos dez dias de que a autora dispunha para o arguir, está de todo afastada a possibilidade de aproveitamento do acto praticado com recurso a meio processual inadequado.

Pelo exposto, não se conhece deste fundamento do recurso.

3.3 Da impugnação da resposta ao artigo 10º da base instrutória

(…).

 Pelo exposto, decide-se manter a resposta restritiva ao artigo 10º da base instrutória, julgando-se improcedente a impugnação da resposta dada a esse artigo pelo tribunal a quo.

3.4 Fundamentos de facto


3.4.1

No dia 16 de Junho de 2006, ao km 157,508 da Linha do Oeste, Picheleiro, Barosa, Leiria, numa passagem de nível sem guarda, mas com sinalização automática, pelas 15 horas e 2 minutos, ocorreu uma colisão entre o comboio n.º 6459, constituído pela Unidade Dupla Diesel n.º 463 e o veiculo pesado, marca Volvo, matrícula PQ (..), que se encontrava imobilizado na aludida passagem de nível (alínea A dos factos assentes).

3.4.2

O PQ era propriedade da (…), S.A. era conduzido por J (…) motorista profissional, sendo constituído por três rodados e transportava de carga 6254 Kg (alínea B dos factos assentes).

3.4.3

O comboio pertencente à autora circulava no sentido sul/norte, Caldas da Rainha/Figueira da Foz, a uma velocidade de 111 km/h, pelo que não foi possível evitar a colisão aludida em 3.4.1 (alínea C dos factos assentes).

3.4.4

A rua que atravessa a passagem de nível aludida em 3.4.1 e que liga à EN 242, denominada Rua das Acácias, no sentido Picheleiro/Marinha Grande em que seguia o PQ, está provida de sinais rodoviários de passagem de nível sem guarda, sinal de aproximação de passagem de nível sem guarda e sinal de passagem de nível sem guarda com semáforo indicador de passagem (alínea D dos factos assentes).

3.4.5

Considerando o sentido de trânsito do PQ, a Rua das Acácias, logo após a passagem de nível, apresenta um traçado curvo à esquerda de sentido ascendente, o eixo da estrada, em perfil longitudinal, caracteriza-se por um aclive antecedente à passagem de nível de 3,10%, desenvolvendo-se esta em declive de 7,27%, após a referida passagem de nível a estrada desenvolve-se em subida, inicialmente com 11,78%, ao longo de 5,60 metros e depois com 12,91% nos 5,10 metros seguintes e fora do eixo da estrada, considerando o sentido de trânsito do PQ, no alinhamento esquerdo a inclinação após a mesma é de 14% (alínea E dos factos assentes).

3.4.6

Considerando o sentido do comboio a linha-férrea, antes e depois da passagem de nível, apresenta um traçado curvo à esquerda (alínea F dos factos assentes).

3.4.7

O pavimento da Rua das Acácias no local da passagem de nível encontra-se em condições deficientes de conservação, sendo esta composta por barrotes de madeira os quais se encontravam rebaixados por reporte à faixa de rodagem desta Rua (alínea G dos factos assentes).

3.4.8

O condutor do PQ chegou à passagem de nível sem que a sinalização sonora e luminosa de aviso de aproximação de comboio estivesse ligada, pelo que iniciou a travessia, mas após a parte da frente do veículo ter atravessado a mesma, a parte traseira do veículo, que ainda não havia entrado na zona da passagem de nível, baixou desse modo tocando e raspando no asfalto localizado antes das tábuas de madeira que compõem esta (alínea H dos factos assentes).

3.4.9

O condutor do PQ, por ter sentido que a parte de trás do veículo havia tocado e raspado no asfalto, parou o veículo e saiu do mesmo, verificando que a circunstância da parte de trás do veículo ter entrado em contacto com o asfalto provocou a sua imediata imobilização, face à existência de lombas que provocam uma zona de circulação com um nível mais elevado que o da faixa de rodagem regular (alínea I dos factos assentes).

3.4.10

O condutor do PQ, durante 15 minutos, tentou várias manobras de marcha avante e de marcha-atrás, a fim de tentar que o mesmo saísse da passagem de nível, sem

sucesso, em virtude de estar preso pelo asfalto que ladeia esta e face ao desnível que esta apresenta, não dispondo de tracção própria que lhe permitisse deslocar-se para fora da passagem de nível (alínea J dos factos assentes).


3.4.11

Perante esta situação o[10] condutor do PQ procurou avisar a autora do sucedido, ou qualquer outra entidade, mas não existia qualquer sinal ou indicação de telefone para

o qual ligar em caso de emergência, pelo que ligou à GNR e quando iniciava a explicação do que estava a suceder a sinalização sonora e luminosa começou a funcionar (alínea L dos factos assentes).


3.4.12

As características que o traçado da estrada apresenta nas imediações da passagem de nível de Picheleiro, no que concerne ao perfil longitudinal e às características geométricas das respectivas concordâncias, não são perceptíveis para os condutores de veículos[11] (alínea M dos factos assentes).

3.4.13

O comboio ao desfazer a última curva, tendo previamente feito uso do sinal sonoro, quando se lhe deparou o PQ accionou o travão de emergência e como lhe surgiu a pelo menos 200 metros, aquele não conseguiu evitar o embate (resposta ao artigo 3º da base instrutória).

3.4.14

O limite de velocidade para o comboio no local aludido em 3.4.1 é de 120 km/h (resposta ao artigo 13º da base instrutória).

3.4.15

Em consequência da colisão referida em 3.4.1, um rodado da composição descarrilou e a estrutura ficou empenada, provocando ferimentos, nomeadamente, em V... (resposta ao artigo 4º da base instrutória).

3.4.16

Face à colisão aludida em 3.4.1, foi pedido um comboio de socorro, tendo, previamente à sua chegada, sido realizada a reparação e limpeza da via, e mais havendo sido realizado o carrilamento do comboio acidentado (resposta ao artigo 5º da base instrutória).

3.4.17

Face ao referido em 3.4.1, foram suprimidos alguns comboios (resposta ao artigo 6º da base instrutória).

3.4.18

Face ao referido em 3.4.1, foi efectuado transbordo rodoviário dos passageiros de alguns comboios, entre Martingança e Leiria, e foram penalizados 24 comboios em 1120 minutos (resposta ao artigo 7º da base instrutória).

3.4.19

Com a deslocação do comboio de socorro para carrilamento, pagou a autora à EMEF a quantia de € 3.280,56, acrescida de IVA à taxa de 21%, num total de € 3.969,48 (resposta ao artigo 8º da base instrutória).

3.4.20

Para reabilitar a UDD 463 de forma a que esta circulasse entre a Figueira da Foz e as oficinas do Porto, despendeu a autora € 228,34 e para a sua reparação nas oficinas da EMEF despendeu € 198.062,88, a que acresce IVA a 21%, perfazendo um total de € 239.656,08 (resposta ao artigo 9º da base instrutória).

3.4.21

Desde a data referida em 3.4.1 e até 12 de Outubro de 2007, quando a automotora 463 ficou apta para reentrar ao serviço, a autora esteve impossibilitada de a utilizar (resposta ao artigo 10º da base instrutória).

3.4.22

Com a realização dos transbordos de passageiros aludida supra, a autora despendeu as quantias de € 700 em aluguer de dois autocarros e de € 111,34 em pagamento de serviços de táxis (resposta ao artigo 11º da base instrutória).

3.4.23

A autora pagou ao revisor do comboio a quantia de € 176,49, correspondente ao valor de diversos objectos pessoais existentes numa pasta que desapareceu do comboio aquando da colisão referida em 3.4.1 (resposta ao artigo 12º da base instrutória).

3.4.24

No local referido em 3.4.1, a sinalização de proibição de circulação a veículos com tonelagem superior a 5,5 toneladas foi implementada em 04/07/2006 (facto considerado plenamente provado com base em documento autêntico).

3.4.25

Entre a A... e a ré G...– Companhia de Seguros, S.A. foi celebrado um acordo escrito mediante o qual aquela se compromete a pagar a terceiros os danos emergentes da circulação do veículo pesado PQ (.., em vigor à data dos factos e titulado pela apólice nº 96039391 (alínea N dos factos assentes).

4. Fundamentos de direito

4.1 Da responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco da segurada da ré

A recorrente critica a sentença sob censura pugnando pela sua revogação porque, em seu entender, está comprovada a violação de diversas regras legais por parte do condutor do veículo de matrícula PQ (... Assim, sustenta que é do senso comum que a caixa de carga de um veículo mantém sempre uma distância à via de pelo menos um metro e que a diminuição dessa distância só pode resultar da carga transportada e que por outro lado, não estando o atravessamento da passagem de nível interdito à circulação de veículos, não obstante o rebaixamento que tem relativamente à via, nunca superior a dez centímetros, forçosa é a conclusão de que a imobilização na passagem de nível se deve imputar ao condutor do veículo pesado, às características do veículo e à carga nele transportada, tendo violado o disposto no artigo 22º, nº 1, 22º, nº 3, alíneas e), f) e j) e nº 4, alínea c), todos do decreto-lei nº 568/99, de 23 de Dezembro e ainda o disposto no artigo 288º, nº 1, alíneas b) e d), do Código Penal. Refere ainda a recorrente que a factualidade provada não permite a ilisão da presunção de culpa que incide sobre o condutor do veículo de matrícula PQ (.. e emergente do nº 1, do artigo 503º do Código Civil.

Cumpre apreciar e decidir.

Recordemos, antes de mais, alguns dos normativos legais que a recorrente convoca para firmar a sua pretensão de revogação da sentença do tribunal a quo, na parte em que absolveu a ré do pedido.

Nos termos do disposto no artigo 22º, nº 1, do Regulamento das Passagens de Nível, aprovado pelo decreto-lei nº 568/99, de 23 de Dezembro, “Os utentes das PN públicas só devem proceder ao atravessamento destas depois de terem tomado todas as precauções para o poderem fazer sem perigo, quer para si quer para terceiros.

Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, é, em especial, proibido aos utentes: (…)

e) Demorar mais de dez segundo a atravessar as PN, excepto em caso de situação anormal e de cuja ocorrência não lhe seja imputável responsabilidade;

f) Atravessar as PN, se a altura do veículo conjugada com o afastamento entre eixos ou a disposição da carga puder provocar apoio nas lombas das PN; (…)

j) Parar ou estacionar dentro das PN” (alíneas e), f) e j), do nº 3, do artigo 23º do Regulamento das Passagens de Nível).

Os utentes são obrigados a: (…)

c) Em caso de imobilização forçada de veículo ou animal ou de queda da respectiva carga numa PN, o respectivo condutor deve promover a sua imediata remoção ou, não sendo esta possível, tomar as medidas necessárias para que os condutores dos veículos ferroviários que se aproximem se possam aperceber da presença do obstáculo” (alínea c) do nº 4, do artigo 23º do Regulamento das Passagens de Nível).

Nos termos do disposto no artigo 288º, nº 1, alíneas b) e d) do Código Penal, na redacção que vigorava na data do acidente[12], “Quem atentar contra a segurança de transporte por ar, água ou caminho de ferro: (…)

b) Colocando obstáculo ao funcionamento ou circulação;

(…)

d) Praticando acto do qual possa resultar desastre;

e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos.

As violações legais que a recorrente invoca nas conclusões do seu recurso não foram por si invocadas na petição inicial, pois fundou a ilicitude da conduta do condutor do veículo automóvel pesado no desrespeito dos sinais de perigo de aproximação de passagem de nível e de trânsito proibido a veículos com peso superior a 5,5 toneladas. Não obstante, isso não basta para que as violações legais invocadas nas conclusões do recurso sejam qualificadas como questões novas, já que o tribunal é livre na qualificação jurídica dos factos (artigo 664º do Código de Processo Civil) e decisivo para este efeito será a existência de factualidade provada que permita suportar as referidas violações. Porém, quiçá ciente dos referidos constrangimentos fácticos, a recorrente além da invocação de violações legais que não referiu na petição inicial, vai introduzindo dados de facto que não estão provados, apelando para tanto àquilo que denomina de senso comum ou ao conteúdo dos depoimentos produzidos em audiência, assim sucedendo, nomeadamente, com a alegação de que a parte traseira de um camião de três rodados mantém sempre uma distância à via de rodagem de pelo menos um metro, que o rebaixamento da passagem de nível relativamente à faixa de rodagem não impedia a circulação de qualquer veículo, que o desnível da passagem de nível relativamente à faixa de rodagem não poderia ser superior a 10 centímetros, que as lombas nas quais assentou a traseira do veículo não teriam uma altura superior a 10 centímetros, que houve uma deslocação da carga transportada no veículo para a sua traseira por não ir devidamente acondicionada, que a via estava molhada[13], que o condutor do veículo pesado já por ali tinha passado com um camião de dois eixos, pelo que conhecia bem a via e as suas características. Ora, relativamente a esta factualidade nova que não foi oportunamente articulada e por isso sujeita a contraditório, seja na fase dos articulados, seja em audiência de discussão e julgamento e que não constitui factualidade meramente instrumental[14] e que, para além disso, não está sequer provada, este tribunal da Relação não a poderá tomar em consideração, pois tem que cingir-se aos fundamentos de facto exarados na decisão recorrida.

Ainda assim sempre se dirá que algumas das considerações que a recorrente tece para demonstrar que a imobilização do veículo se deu por deficiente acondicionamento da carga, por ser a única explicação para que a traseira de um veículo com uma tal altura ao solo pudesse assentar na via, olvidam dados fácticos essenciais, como sejam o denominado ângulo de saída do veículo pesado, a distância que vai do último eixo do veículo até à traseira do mesmo (quanto maior é essa distância, menor é o ângulo de saída do veículo), o comprimento total do veículo pesado, a largura total da passagem de nível, dados fácticos estes que poderiam dar uma explicação mais cabal e eventualmente diferente daquela que a recorrente ora adianta como causal da imobilização do veículo pesado na via férrea. Na verdade, com um veículo pesado a iniciar uma subida, a traseira desse veículo fica a uma distância menor da via do que aquela a que habitualmente se acha, podendo mesmo roçar na via se essa subida for muito acentuada.

A factualidade provada não permite concluir que o condutor do veículo pesado tenha iniciado o atravessamento da via com violação das precauções exigíveis, não obstante as condições difíceis de inserção da passagem de nível na via. A abertura de uma passagem de nível ao trânsito de veículos automóveis, sem qualquer condicionamento à circulação, que não os decorrentes da perigosidade inerente a qualquer passagem de nível, é suficiente para que se gere a confiança na inexistência de qualquer entrave ao seu atravessamento por qualquer veículo e isso de forma mais acentuada quando, como resulta da factualidade provada, as características que o traçado da estrada apresenta nas imediações da passagem de nível de Picheleiro, no que concerne ao perfil longitudinal e às características geométricas das respectivas concordâncias, não são perceptíveis para os condutores de veículos (ponto 3.4.12 dos fundamentos de facto). Não por acaso, pouco após o acidente objecto destes autos (veja-se a matéria de facto provada no ponto 3.4.24 dos fundamentos de facto), foi colocada sinalização vertical a proibir o atravessamento da passagem de nível em causa a veículos pesados com mais de 5,5 toneladas. Neste circunstancialismo fáctico, não era exigível ao condutor do veículo pesado, aquando da transposição da passagem de nível, que saísse do seu veículo a fim de verificar as condições de atravessamento da passagem de nível, como em certa medida parece sustentar a recorrente na sua conclusão jj). Pelo que precede, não existem dados de facto que permitam concluir que o condutor do veículo pesado violou o disposto no artigo 22º, nº 1, do Regulamento das Passagens de Nível.

Ao invés daquilo que vem afirmado pela recorrente, não resulta da factualidade provada que o veículo pesado se tenha demorado na passagem de nível mais do que o necessário ao seu atravessamento, pois o que resultou dessa factualidade foi que o veículo se imobilizou na passagem de nível por facto independente da conduta do motorista do pesado (vejam-se os pontos 3.4.8 e 3.4.9 dos fundamentos de facto). A factualidade provada permite concluir que essa imobilização se verificou por força das características da passagem de nível, da sua inserção na via destinada à circulação dos veículos automóveis, na inexistência de qualquer sinalização a vedar o atravessamento daquela passagem de nível a veículos como aquele que no dia do sinistro ali se imobilizou. Por isso, também não está comprovada a violação do disposto no artigo 22º, nº 3, alínea e), do Regulamento das Passagens de Nível.

Atenta a imperceptibilidade das limitações à circulação de certo tipo de veículos naquela passagem de nível (ponto 3.4.12 dos fundamentos de facto), não se pode considerar violado o disposto na alínea f), do nº 3, do artigo 22º do Regulamento das Passagens de Nível.

A imobilização forçada do veículo pesado na passagem de nível não constitui paragem ou estacionamento do mesmo. Na verdade, paragem é a imobilização de um veículo pelo tempo estritamente necessário para a entrada ou saída de passageiros ou para breves operações de carga ou descarga, desde que o condutor esteja pronto a retomar a marcha e o faça sempre que estiver a impedir ou a dificultar a passagem de outros veículos (artigo 48º, nº 1, do Código da Estrada). Por outro lado, considera-se estacionamento a imobilização de um veículo que não constitua paragem e que não seja motivada por circunstâncias próprias da circulação (artigo 48º, nº 2, do Código da Estrada). Assim, também não se comprova a violação do disposto no artigo 22º, nº 3, alínea j), do Regulamento das Passagens de Nível.

A última violação do Regulamento das Passagens de Nível que a recorrente imputa ao condutor do veículo pesado resultaria deste, confrontando-se com uma imobilização forçada do veículo que conduzia, não ter tomado as medidas necessárias para o remover, ou, na impossibilidade de remoção, para que os condutores dos veículos ferroviários que se aproximavam se pudessem aperceber da presença do obstáculo (artigo 22º, nº 4, alínea c), do Regulamento das Passagens de Nível). Esta previsão legal corresponde ao disposto no artigo 68º, nº 1, do Código da Estrada.

Na decisão recorrida, apreciando-se da verificação desta violação legal, escreveu-se que, “No concreto caso, em face da leitura conjunta dos factos apurados, não se vislumbra qualquer concreta diligência que o condutor do pesado, que se viu impossibilitado de o remover da passagem de nível, onde ficara preso em virtude das características do local, pudesse ter encetado com vista a dar conhecimento do obstáculo, à autora ou à entidade gestora da infraestrutura ferroviária, tanto mais que – contrariamente ao que seria desejável, em face do disposto no artigo 15º do Regulamento de Passagens de Nível -, não existia no local telefone para uso do público.

Provou-se: O condutor do PQ chegou à passagem de nível sem que a sinalização sonora e luminosa de aviso de aproximação de comboio estivesse ligada, pelo que iniciou a travessia, mas após a parte da frente do veículo ter atravessado a mesma, a parte traseira do veículo, que ainda não havia entrado na zona da passagem de nível, baixou desse modo tocando e raspando no asfalto localizado antes das tábuas de madeira que compõem esta (alínea H dos factos assentes); o condutor do PQ, por ter sentido que a parte de trás do veículo havia tocado e raspado no asfalto, parou o veículo e saiu do mesmo, verificando que a circunstância da parte de trás do veículo ter entrado em contacto com o asfalto provocou a sua imediata imobilização, face à existência de lombas que provocam uma zona de circulação com um nível mais elevado que o da faixa de rodagem regular (alínea I dos factos assentes); o condutor do PQ, durante 15 minutos, tentou várias manobras de marcha avante e de marcha-atrás, a fim de tentar que o mesmo saísse da passagem de nível, sem sucesso, em virtude de estar preso pelo asfalto que ladeia esta e face ao desnível que esta apresenta, não dispondo de tracção própria que lhe permitisse deslocar-se para fora da passagem de nível (alínea J dos factos assentes); perante esta situação o condutor do PQ procurou avisar a autora do sucedido, ou qualquer outra entidade, mas não existia qualquer sinal ou indicação de telefone para o qual ligar em caso de emergência, pelo que ligou à GNR e quando iniciava a explicação do que estava a suceder a sinalização sonora e luminosa começou a funcionar (alínea L dos factos assentes).

Na nossa perspectiva, da factualidade que se acaba de rememorar resulta que o condutor do veículo pesado tentou durante quinze minutos remover o veículo da passagem de nível e que, face ao insucesso das manobras de remoção do veículo da via, tentou avisar a autora do sucedido. Na falta de qualquer sinal ou indicação de telefone para o qual ligar em caso de emergência, ligou à GNR. Quando iniciava a explicação do que estava a suceder, a sinalização sonora e luminosa da passagem de nível começou a funcionar.

A nosso ver, dada a perigosidade da situação, não se justifica que as tentativas de remoção do veículo da via férrea se prolongassem por quinze minutos e que apenas após o insucesso dessas manobras se tentasse avisar a autora do obstáculo existente na via férrea. Não se perca de vista que o atravessamento de uma passagem de nível não deve, salvo situação anormal não imputável ao agente que efectua o atravessamento, exceder dez segundos (artigo 22º, nº 2, alínea e), do Regulamento das Passagens de Nível). A situação perigosa em que se achava o veículo pesado aconselhava que face à imediata verificação da impossibilidade de remoção do pesado da via férrea e ao insucesso das primeiras tentativas, se tentasse estabelecer logo de seguida contacto com a autora, a fim de a prevenir da existência de obstáculo na via férrea. É um dado da experiência comum que, em regra, as condições de tracção de um veículo vão piorando com as sucessivas tentativas que se efectuam para o remover de uma situação de bloqueio, quer porque os pneus vão aquecendo e deixando borracha no piso, polindo-o, quer ainda porque o veículo com as sucessivas tentativas infrutíferas tende a “assentar”. Salvo melhor opinião, atenta a perigosidade da situação e mesmo tendo em conta a situação de “stress” em que o motorista se acharia, quinze minutos em tentativas para remoção do veículo da via férrea são um tempo excessivo que vai muito para além do que constitui uma tentativa de imediata remoção do veículo. Na nossa perspectiva, esse lapso temporal era mais do que suficiente para que o motorista do pesado constatasse a impossibilidade de remoção imediata do veículo e diligenciasse por que o comboio em circulação fosse prevenido do obstáculo existente na via.

A passagem de nível onde se verificou o acidente era desguarnecida, já que era sem guarda, pelo que a instalação de telefone para uso do público em caso de emergência era facultativa[15] e só no caso de instalação de telefones para uso do público estes devem ser devidamente sinalizados e devem dispor de instruções necessárias para a sua utilização (artigo 15º, nº 3, do Regulamento das Passagens de Nível). De todo o modo, face à factualidade provada, não resulta que o condutor do veículo pesado tivesse uma qualquer dificuldade no estabelecimento de uma ligação telefónica, pois estabeleceu contacto com a GNR.

A culpa do agente afere-se pela conduta que um bom pai de família adoptaria no caso concreto (ver artigo 487º, n.º 2, do Código Civil – a culpa é apreciada em abstracto, por referência a um padrão ideal de Homem). Ora, por tudo quanto precede, conclui-se que a conduta do motorista do veículo pesado não obedeceu ao padrão ideal de Homem, no caso concreto ao padrão de um condutor de veículos automóveis, sendo certo que se tratava de um motorista profissional, sendo por isso acrescidas as exigências que sobre ele incidiam.

Assim, tudo sopesado, concluímos que o condutor do veículo pesado violou o disposto no artigo 22º, nº 4, alínea c), do Regulamento das Passagens de Nível que temos vindo a citar, tal como violou o disposto no artigo 68º, nº 1, do Código da Estrada, de conteúdo similar ao normativo citado anteriormente, agindo de forma ilícita e culposa, porquanto a violação destas disposições legais foi também causal do sinistro que se veio a verificar e que poderia ter sido evitado se o aludido condutor tem estabelecido prontamente contacto com a autora prevenindo-a do que se estava a passar.

Ao invés do que é afirmado pela recorrente, a matéria de facto não permite concluir pela violação do nº 1, do artigo 22º do decreto-lei nº 39780 de 21 de Agosto de 1954, desde logo porque tal artigo não tem qualquer número 1 e ainda porque tal artigo se refere ao dever de construção de instalações nas estações e apeadeiros adequadas à comodidade dos passageiros.

A recorrente sustenta ainda a responsabilidade da ré em virtude de, não sua perspectiva, não ter sido ilidida a presunção de culpa do artigo 503º, nº 1, do Código Civil.

Salvo melhor opinião, a factualidade alegada pela ora recorrente na petição inicial e provada não é bastante para concluir que o condutor do veículo pesado o fazia na qualidade de comissário, pois apenas se provou que o veículo pertencia a uma sociedade comercial e que o seu condutor era motorista profissional. A ora recorrente não alegou que o aludido condutor conduzia o citado veículo no exercício da sua profissão e sob as ordens e no interesse da dona do mesmo[16], pelo que não estão demonstrados factos suficientes para que seja aplicável a presunção de culpa prevista no nº 3, do artigo 503º do Código Civil e não no nº 1, do mesmo artigo, conforme alega a recorrente.

Finalmente, não está preenchido o tipo penal que a recorrente imputa ao condutor do veículo pesado, pois não resulta da factualidade provada que tivesse agido com dolo de perigo para a vida, para a integridade física de outrem ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado.

Assim, verificada uma actuação ilícita e culposa[17] do condutor do veículo pesado que se imobilizou na via férrea, bem como danos materiais e patrimoniais na esfera jurídica da autora em consequência da colisão que se veio a registar, não sendo a conduta do condutor do veículo pesado de todo indiferente relativamente aos aludidos danos, preenche-se o nexo causal entre a conduta do agente e o dano, na sua formulação negativa, bem como o pressuposto dano, reunindo-se todos os requisitos da responsabilidade civil por facto ilícito.

Preenchendo-se todos os pressupostos da responsabilidade por facto ilícito relativamente ao condutor do veículo de matrícula PQ (.., a obrigação de indemnizar recai sobre a ré, seguradora da responsabilidade civil emergente de acidentes decorrentes da circulação do aludido veículo (veja-se o artigo 8º do decreto-lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, donde resulta que o seguro pode abranger também casos de detenção ilegítima do veículo).

Antes ainda de entrar na determinação dos danos a ressarcir, bem como da fixação dos respectivos montantes, importa determinar se o condutor do veículo pesado é o único e exclusivo responsável pelo sinistro ou se essa responsabilidade deve ser repartida com outras entidades, nomeadamente a responsável pela implantação da passagem de nível com aquelas características e a responsável pela omissão de colocação de sinalização vertical adequada a evitar a imobilização do veículo pesado na passagem de nível, tal como se veio a verificar.

A então Refer EP era a responsável pela gestão da infra-estrutura integrante da rede ferroviária nacional (artigo 2º, nº 2, do decreto-lei nº 104/97, de 29 de Abril). A sinalização da via pública era da competência da entidade prevista na legislação rodoviária, embora sujeita à aprovação da entidade competente para a gestão da infra-estrutura ferroviária (artigo 10º, nº 1, do Regulamento das Passagens de Nível).

No caso em apreço, é patente que quer a forma como foi implantada a passagem de nível em que se verificou o sinistro, quer a omissão de sinalização da mesma em termos de proibir o seu atravessamento a veículo com as características do veículo de matrícula PQ (.., foram determinantes para a verificação do sinistro, devendo, na nossa perspectiva, assacar-se a estas entidades a parte mais substancial da responsabilidade pelo sinistro ocorrido. Na verdade, com adequada sinalização, só se o condutor do veículo pesado a infringisse é que o sinistro se verificava. Por outro lado, construir uma passagem de nível sem estabelecer quaisquer condicionamentos ao seu atravessamento quando dada a sua concreta implantação não permite a passagem de certo tipos de veículos é criar uma verdadeira armadilha para estes veículos. Neste circunstancialismo, tendo em conta a confiança que os utentes das vias devem justamente depositar na inexistência de uma situação tão anormal como a que se verificou nestes autos, afigura-se equilibrado atribuir uma responsabilidade de 15 % ao condutor do veículo pesado.

Porém, esta medida da responsabilidade do condutor do veículo pesado não impede que a ré seja responsabilizada pela totalidade dos danos por força do disposto no nº 1, do artigo 497º do Código Civil, apenas relevando em sede de exercício do direito de regresso, de acordo com o disposto no nº 2, do artigo 497º do Código Civil[18]. É que não se trata de uma hipótese de culpa do lesado, a relevar em sede de fixação do montante da obrigação de indemnizar (artigo 570º, nº 1, do Código Civil).

É tempo agora de entrar na fixação do montante da obrigação de indemnizar que recai sobre a recorrida.

            A obrigação de indemnização tem como finalidade precípua a remoção do dano causado ao lesado. Por isso, prescreve o artigo 562º do Código Civil que “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.”

O nosso legislador acolheu prioritariamente a via da reconstituição natural (ver artigo 566º, n.º 1, do Código Civil) e, sempre que a indemnização é fixada em dinheiro, determina que se fixe por referência à medida da diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos (artigo 566º, n.º 2, do Código Civil).

Embora vigore a regra da prioridade da restauração natural, tem-se entendido que o lesado pode optar pela indemnização em dinheiro[19].

No caso em apreço, a ora recorrente pediu a condenação da ré ao pagamento de diversas importâncias para reparação de diversos danos patrimoniais que afirma serem resultantes do sinistro objecto destes autos.

Assim, em primeiro lugar, a recorrente peticionou a quantia de € 3.969,48, a título de custos com o comboio de socorro para carrilamento, tendo-se provado esta alegação da autora (veja-se o ponto 3.4.19 dos fundamentos de facto).

Em segundo lugar, a recorrente alegou que para reabilitar a UDD 463 de forma a que esta circulasse entre a Figueira da Foz e as oficinas do Porto, despendeu € 228,34 e para a sua reparação nas oficinas da EMEF despendeu € 198.062,88, a que acresce IVA a 21%, perfazendo um total de € 239.656,08, alegações que se provaram (veja-se o ponto 3.4.20 dos fundamentos de facto).

Em terceiro lugar, a recorrente referiu que desde a data do sinistro até 12 de Outubro de 2007, data em que a automotora ficou apta para reentrar ao serviço, esteve impossibilitada de a utilizar, o que lhe provocou um prejuízo de € 273.050,49, apenas se tendo provado que desde a data do sinistro até 12 de Outubro de 2007, quando a automotora 463 ficou apta para reentrar ao serviço, a autora esteve impossibilitada de a utilizar (veja-se o ponto 3.4.21 dos fundamentos de facto).

Em quarto lugar, a recorrente alegou que em consequência dos atrasos de outros comboios que tiveram origem na circunstância da Linha do Oeste ter estado impedida durante cinco horas, suportou um prejuízo no montante de € 3.614,22, incluindo o pagamento realizado a uma empresa de transportes com a realização dos transbordos de passageiros despendeu as quantias de € 700 em aluguer de dois autocarros e de € 111,34 em pagamento de serviços de táxis e ainda trabalho extraordinário da tripulação do comboio, apenas se tendo provado que com a realização dos transbordos de passageiros despendeu as quantias de € 700 em aluguer de dois autocarros e de € 111,34 em pagamento de serviços de táxis (veja-se o ponto 3.4.22 dos fundamentos de facto).

            Em quinto lugar, a recorrente articulou que pagou ao revisor do comboio a quantia de € 176,49, correspondente ao valor de diversos objectos pessoais existentes numa pasta que desapareceu do comboio aquando da colisão objecto destes autos, alegação que se provou (veja-se o ponto 3.4.23 dos fundamentos de facto).

            Em sexto lugar, a recorrente peticionou juros legais contados sobre o montante total por si peticionado, desde a citação e até efectivo e integral pagamento.

            Analisando a factualidade atinente aos danos cuja reparação a autora peticionou nestes autos e que se acaba de rememorar verifica-se que a mesma demonstrou a quase totalidade dos custos que afirmou ter suportado, apenas tendo ficado por demonstrar o valor correspondente ao dano de imobilização da composição sinistrada, ao custo dos atrasos dos comboios e ao trabalho extraordinário da tripulação do comboio.

            Os custos que a ora recorrente suportou por causa do sinistro objecto destes autos em conformidade com a prova produzida totalizam o montante global de € 244.841,73, montante que a recorrida está obrigada a pagar à autora.

            Importa agora abordar a questão do dano da privação do uso que a recorrente contabilizou no montante de € 273.050,49.

A questão que ora importa apreciar não é virgem e nem sempre tem tido soluções consonantes[20].

O titular do direito de propriedade goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas (artigo 1305º do Código Civil).

No caso dos autos, o sinistro causado pelo veículo seguro na ré levou à danificação do veículo da autora em termos tais que o mesmo ficou impossibilitado de circular durante todo o tempo que demorou a sua reparação. Ora, assim sendo, por efeito daquele sinistro, a autora ficou privada do gozo de um bem que lhe pertencia.

A autora não alegou o uso concreto que dava ao veículo sinistrado, embora seja legítimo inferir pela forma como computou este dano que o utilizava na actividade que constitui o seu objecto social, como se verificava no dia do sinistro. 

Assim, a autora viu-se privada da possibilidade de utilização daquele bem na sua actividade de prestação de serviços, privação que, à primeira vista, constitui o dano real por ela sofrido.

Além de tal privação do gozo, deve também ter-se em conta que o bem danificado é um bem sujeito a deteriorar-se com o passar do tempo e que tal deterioração existe mesmo quando o bem não é usado e que pode até ser acelerada quando o bem se acha danificado.

O envelhecimento do bem cuja privação do uso se verifica é inexorável e insusceptível de ser restituído. No entanto, as reparações efectuadas nos veículos sinistrados podem em certa medida atenuar o efeito negativo do envelhecimento, na medida em que se traduzam na substituição de peças velhas danificadas por peças novas.

Acresce que durante o período da privação do gozo a autora pode ter suportado algumas despesas por causa do veículo sinistrado, sem retirar as vantagens inerentes ao gozo do mesmo veículo.

Se no caso de um vulgar proprietário de um bem danificado num sinistro não oferece dúvidas que a simples privação do gozo do bem é em si mesma geradora da privação da utilidade propiciada por esse bem, sendo de presumir que a aquisição do bem visou a satisfação de necessidades concretas, o caso em análise tem uma singularidade resultante da autora ser uma entidade empresarial que deve assegurar, continuamente, o serviço ferroviário[21]. De facto, de acordo com o disposto no artigo 9º, nº 1, do Regulamento de Exploração e Polícia dos Caminhos de Ferro, aprovado pelo decreto-lei nº 39780, de 21 de Agosto de 1954, “A empresa é obrigada a ter as locomotivas, tractores, automotoras, carruagens, vagões, máquinas e utensílios, aparelhos de via, reservatórios e gruas hidráulicas, guindastes, aparelhos de sinalização, telégrafos, telefones e, em geral, todo o material fixo e circulante que for necessário para assegurar a regularidade e eficiência da exploração.” Deste normativo resulta que a autora está legalmente obrigada a ter uma frota de reserva para fazer face aos sinistros e avarias que se verifiquem em ordem a assegurar a regularidade e eficiência da exploração. Por isso, verificando-se um sinistro ou uma avaria, a autora recorre à frota de reserva para suprir as faltas verificadas, não sofrendo por força de tais contingências um acréscimo de custos, pois a natureza da actividade que desenvolve e as obrigações legais que sobre ela impendem levam a que, antecipadamente, deva constituir uma reserva de material circulante para fazer face a tais vicissitudes.

Os custos com a frota de reserva que a autora vai suportando para constituir e manter essa frota não resultam dos sinistros ou das avarias que obrigam ao recurso a essa frota de reserva, antes resultam da lei que lhe impõe essa obrigação e da própria actividade, tendo em conta a obrigação de proporcionar uma prestação regular e eficiente de serviço ferroviário.

Não há assim qualquer nexo causal entre os custos necessários à constituição e manutenção de uma frota de reserva e o sinistro que determina a necessidade de recorrer a tal frota.

No caso em apreço a autora apenas logrou demonstrar a imobilização da automotora durante o tempo em que esteve a ser reparada, nada mais tendo sido alegado e demonstrado em ordem a integrar o dano de privação do uso que se pretende seja reparado. Em nosso entender, atenta a obrigação legal que a autora tem de constituir uma frota de reserva, aquela simples privação do gozo não constitui um dano ressarcível, pelo que improcede esta pretensão da autora.

            A última pretensão formulada pela autora é relativa ao pagamento de juros de mora. Este pedido funda-se no disposto no 805º, nº 3, do Código Civil e, não sendo os valores peticionados pela autora valores actualizados neste momento, não há que tomar em consideração o acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 4/2002, no qual se dispôs que “sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação.

A Portaria n.º 291/2003, de 08 de Abril, em vigor desde 01 de Maio de 2003, fixou a taxa supletiva dos juros de mora em 4 %.

            A ré foi citada para contestar a presente acção a 02 de Junho de 2009 (folhas 32), dia em que ainda podia pagar a indemnização à autora sem incorrer em mora. Por isso, está obrigada ao pagamento de juros de mora contados à taxa de 4 % ao ano, sobre a quantia de € 244.841,73, desde 03 de Junho de 2009 até efectivo e integral pagamento, sem prejuízo da aplicação de ulteriores taxa supletivas legais que venham a vigorar aos juros corridos na sua vigência.

            Face ao exposto, o recurso de apelação procede parcialmente, devendo a sentença recorrida ser revogada.

4.2 Da inverificação dos pressupostos legais para o sancionamento da autora como litigante de má fé

A recorrente pugna pela revogação da sua condenação como litigante de má fé por, em seu entender, não resultar que tenha alegado dolosamente ou com culpa grave a existência de sinalização vertical a proibir a circulação de veículos com mais de 5,5 toneladas, na via por onde circulava o veículo pesado antes de entrar na passagem de nível.

A forma como a recorrente se insurge contra a sua condenação como litigante de má fé, questionando apenas o tipo subjectivo desse instituto, faz com que exorbite do objecto do recurso a questão da legalidade do seu sancionamento directo, em virtude de se tratar de uma pessoa colectiva (veja-se o artigo 458º do Código de Processo Civil[22]).

Apreciemos então se se preenche o tipo subjectivo da litigância de má fé.

Na decisão recorrida fundou-se a condenação da autora como litigante de má fé, do ponto de vista subjectivo, na circunstância de na participação policial não vir mencionada a existência do sinal de proibição de atravessamento da passagem de nível a veículos com peso superior a cinco toneladas e meia e à circunstância da autora ter mandado proceder a um inquérito interno logo após o sinistro. Refere-se ainda que a autora tinha a obrigação de se procurar esclarecer sobre a implantação daquele sinal no momento do acidente face à omissão existente na participação policial e porque se tratava de um dado factual nuclear na construção da causa de pedir.

Na petição inicial a autora alicerçou a afirmação da ilicitude da conduta do motorista do veículo pesado na violação dos sinais de aproximação de passagem de nível e de proibição de circulação a veículos com peso superior a 5,5 toneladas. Tal como se refere na decisão recorrida, na participação policial elaborada por causa do sinistro objecto destes autos, não vem mencionada a existência de sinalização vertical a proibir a circulação de veículos com peso superior a 5,5 toneladas. Embora esta omissão pudesse ter origem em erro ou lapso, impunha-se à autora a efectivação de diligências em ordem a apurar o que se verificava à data do acidente. A autora tinha um meio expedito de verificar se essa sinalização já se encontrava aposta no local na data do sinistro, bastando para tanto dirigir-se à entidade que deve aprovar a colocação dessa sinalização: a Refer (veja-se o artigo 10º, nº 1, do Regulamento das Passagens de Nível). Na eventualidade da resposta desta entidade suscitar dúvidas[23], a recorrente deveria dirigir-se à entidade competente para a colocação da sinalização.

Na nossa perspectiva, num quadro em que se suscitavam dúvidas sobre a existência da sinalização vertical de proibição de circulação de veículos com peso superior a 5,5 toneladas, a autora, alegando um facto na petição inicial de importância crucial para a afirmação da ilicitude e da culpa do condutor do veículo pesado, sem antes curar de verificar da sua veracidade, procedeu de forma negligente. Esta negligência é grave porque se trata de um facto cuja veracidade facilmente se apurava e ainda porque resultou da omissão de uma conduta que a generalidade das pessoas não omitiria; só alguém particularmente descuidado e leviano correria o risco de alegar aquela factualidade sem curar de previamente aferir da sua veracidade. Na nossa perspectiva, a actuação da autora situa-se nas fronteiras da negligência consciente com o dolo eventual.

Assim, por tudo quanto precede, deve ser confirmada a decisão de condenação da autora como litigante de má fé, a isso não obstando a revogação da sentença recorrida, pois o vencedor pode ser condenado como litigante de má fé[24].

5. Dispositivo

Pelo exposto, em audiência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, na parcial procedência da apelação interposta por Caminhos de Ferro Portugueses, E.P acordam:

a) em confirmar o despacho proferido a 19 de Outubro de 2011 que indeferiu o requerimento da recorrente no sentido da base instrutória ser ampliada;

b) em não conhecer do objecto da apelação no segmento em que suscitou a nulidade processual decorrente da não introdução da decisão sobre a matéria de facto na plataforma citius;

c) em julgar improcedente a impugnação da resposta ao artigo 10º da base instrutória;

d) em revogar a sentença recorrida e, consequentemente, em julgar a acção parcialmente procedente por provada condenando-se a Companhia de Seguros (…), S.A. a pagar à autora a quantia de duzentos e quarenta e quatro mil oitocentos e quarenta e um euros e setenta e três cents, acrescida de juros de mora contados sobre aquele montante, à taxa supletiva legal, presentemente de 4 % ao ano, desde 03 de Junho de 2009 até efectivo e integral pagamento, sem prejuízo da aplicação de ulteriores taxas supletivas legais que venham a vigorar aos juros corridos na sua vigência;

e) em confirmar a decisão proferida a 27 de Fevereiro de 2012 de condenação da autora como litigante de má fé;

f) custas do recurso de apelação na proporção de 3/5 a cargo da recorrente e de dois quintos, a cargo da recorrida, sendo as custas em primeira instância na exacta proporção do decaimento, aplicando-se à taxa do recurso a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais.


***

Carlos Gil ( Relator )

Fonte Ramos

Carlos Querido



[1] Citação extraída da obra intitulada Reforma do Processo Civil, Princípios Fundamentais, Lex 1997, J. Pereira Batista, página 16.
[2] Para a definição dos factos instrumentais, por todos, veja-se, Comentários ao Código de Processo Civil, 2ª edição 2004, Volume I, Almedina, Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego, páginas 252 e 253, anotação II. Em sentido similar, ainda que com diferente terminologia, contrapondo factos principais a factos secundários, veja-se La Prueba de los Hechos, Michele Taruffo, Editorial Trotta, cuarta edición, 2011, páginas 119 a 128.
[3] Não se desconhece que a alegação de factos se pode fazer por meio de junção de documentos (veja-se a propósito da admissibilidade da contestação por simples junção de documentos, Noções Elementares de Processo Civil, com a colaboração do Prof. Antunes Varela, nova edição revista e actualizada pelo Dr. Herculano Esteves, Coimbra Editora 1979, página 145; em geral, sobre a alegação por remissão para documentos vejam-se Comentário ao Código de Processo Civil, Volume 2º, Coimbra Editora 1945, Prof. Alberto dos Reis, página 364 e Temas da Reforma do Processo Civil, I Volume, 2ª edição revista e ampliada, Almedina 1998, António Santos Abrantes Geraldes, página 201, nota 353). No entanto, sempre que seja oferecido um articulado e documentos que o instruem, estes últimos serão em regra meros meios de prova dos factos alegados naquela peça, só podendo considerar-se como alegação autónoma de factos quando tal ressalte de remissão para eles expressa ou pelo menos implícita no articulado com que foram juntos.
[4] Na Proposta de Reforma do Código de Processo Civil, o artigo 264º sofre profundas alterações, sendo revogado o seu nº 3. De acordo com a referida proposta, as partes têm o ónus de alegar os factos essenciais integradores da causa de pedir e das excepções (artigo 264º, nº 1); além dos factos articulados pelas partes, o juiz considerará os factos instrumentais que resultem da instrução da causa, os factos que sejam complemento ou concretização de factos essenciais que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar, os factos notórios e aqueles de que o tribunal tenha conhecimento por virtude do exercício das suas funções (artigo 264º, nº 2).
[5] Veja-se, Das Obrigações em Geral, 6ª edição, João de Matos Antunes Varela, Almedina 1989, páginas 494 a 496.
[6] Esta factualidade releva também para a determinação da culpa do agente porquanto a violação de preceitos legais causais do sinistro faz presumir a culpa, cabendo ao onerado com tal culpa o ónus de contraprova, já que se trata de uma simples presunção natural (vejam-se os artigos 351º e 346º, ambos do Código Civil). Acerca desta questão veja-se, Responsabilidade Civil por Conselhos, Recomendações ou Informações, Jorge Ferreira Sinde Monteiro, Almedina 1989, páginas 260 a 267.
[7] À semelhança do que se referiu relativamente ao dever legal que a autora afirmou ter sido violado pelo motorista do veículo automóvel, a violação do dever legal de acondicionamento da carga em condições de segurança, quando causal do sinistro, fará também presumir a culpa do agente.
[8] A este propósito veja-se o Comentário ao Código de Processo Civil do Sr. Professor José Alberto dos Reis, volume 2º, Coimbra Editora 1945, página 507.
[9] Neste sentido veja-se, Manuel dos Recursos em Processo Civil, 9ª edição, Fernando Amâncio Ferreira, Almedina, páginas 156 a 158.
[10] Corrigiu-se lapso de escrita ostensivo (veja-se o artigo 27º da contestação) substituindo-se “do” por “o”.
[11] Esta matéria é conclusiva. Porém, como resultou dos factos assentes em sede de audiência preliminar, aceitando as partes o juízo conclusivo aí formulado, entende-se não ser caso de extirpar essa matéria dos fundamentos de facto.
[12] Trata-se da redacção introduzida pelo decreto-lei nº 48/95, de 15 de Março.
[13] Na participação policial, no item relativo ao estado do tempo, consta que havia chuva. Porém, a autora não curou de alegar esse facto na petição inicial, nem resulta desse articulado que pretenda prevalecer-se de tal facto.
[14] Na nossa perspectiva, a anterior passagem do motorista do veículo pesado por aquele local com outro veículo pesado poderia constituir factualidade instrumental relativamente a um alegado conhecimento anterior das características do local por parte do motorista do veículo pesado. Porém, nada disso foi oportunamente alegado.
[15] Veja-se o artigo 15º, nº 2, do Regulamento das Passagens de Nível. Embora as partes não tenham tido o cuidado de alegar que tipo de passagem de nível era aquela em que se verificou o acidente, do documento junto a folhas 9 resulta que seria uma passagem de nível de tipo C.
[16] A este propósito veja-se o acórdão do pleno das secções cíveis do Supremo Tribunal de Justiça publicado na segunda série do Diário da República de 24 de Junho de 1996, onde se estatuiu que “O dono do veículo só é responsável, solidariamente, pelos danos causados pelo respectivo condutor quando se alegue e prove factos que tipifiquem uma relação de comissão, nos termos do artigo 500.º, n.º 1, do Código Civil, entre o dono do veículo e o condutor do mesmo.
[17] No que tange o nexo de imputação do facto ao agente e, mais especificamente, a imputabilidade, deve, em nosso entender, considerar-se demonstrada por presunção natural, pois, a regra e a normalidade das situações nos levam a concluir que, quem age, tem normalmente capacidade de querer e entender. Por isso, deve considerar-se demonstrada por presunção natural a imputabilidade e enquanto não for feita contraprova que abale a referida presunção. O Sr. Dr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, in Direito das Obrigações, volume I, Almedina 7ª edição, página 316, nota 652, sustenta existir a contrario sensu, uma presunção legal de imputabilidade para os maiores de sete anos, presunção que extrai do disposto no artigo 488º, n.º 2, do Código Civil.
[18] Importa esclarecer que a medida da responsabilidade que se determinou nesta sede não forma caso julgado relativamente às entidades co-responsáveis em virtude de não terem tido intervenção nestes autos. Aliás, segundo cremos, falece aos tribunais comuns competência para responsabilizar tais entidades pelas suas acções e omissões.
[19] Veja-se assim, Dario Martins de Almeida, Manual dos Acidentes de Viação, 1987, página 115; em sentido oposto vejam-se, Direito das Obrigações, Pessoa Jorge, edição de 75/76 da AAFDL, páginas 585 a 587 e Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, Coimbra Editora 2008, volume II, Paulo Mota Pinto, páginas 1490 e 1491.
[20] Sobre a questão do dano da privação do uso vejam-se por todos, Temas da Responsabilidade Civil, I Volume, Indemnização do Dano da Privação do Uso, 2ª edição, Almedina 2005, António Santos Abrantes Geraldes; Paulo Mota Pinto, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, Volume I, Coimbra Editora 2008, Paulo Mota Pinto, páginas 568 a 596 e especialmente relevante para o caso em análise páginas 593 a 596, nota 1700.
[21] Sobre este concreto problema, em sentidos díspares, vejam-se os acórdãos incluídos em Temas da Responsabilidade Civil, I Volume, Indemnização do Dano da Privação do Uso, 2ª edição, Almedina 2005, António Santos Abrantes Geraldes, páginas 89 a 93 e 95 a 100. Não se cita o acórdão incluído na mesma obra nas páginas 145 a 153, em virtude do sumário não ter qualquer correspondência com a decisão efectivamente tomada pelo Supremo Tribunal de Justiça.
[22] No Projecto de Reforma do Processo Civil altera-se o artigo 458º do Código de Processo Civil, restringindo o seu âmbito subjectivo aos incapazes, assim passando as pessoas colectivas a poder ser responsabilizadas directamente por litigância de má fé.
[23] A Refer deu no âmbito destes autos uma resposta dúbia relativamente a esta questão (veja-se folhas 116), pouco consentânea com a aprovação que lhe compete da sinalização vertical que seja eventualmente aposta nas imediações das passagens de nível.
[24] Sobre esta questão veja-se, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 2ª edição, Coimbra Editora 2008, José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, páginas 220 e 221, anotação 4.