Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
233/11.4T2OBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MARINHO
Descritores: ACÇÃO DE DIVÓRCIO
LITISPENDÊNCIA INTERNACIONAL
SENTENÇA ESTRANGEIRA
TRATADOS
UNIÃO EUROPEIA
Data do Acordão: 05/08/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CBV OLIVEIRA DO BAIRRO FAMÍLIA E MENORES
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.497 E 498 CPC
Legislação Comunitária: 355 TFUE, REGULAMENTO(CE) DO CONSELHO DE 27/11/2003
Sumário: 1. As regras emergentes dos Tratados da União Europeia são apenas aplicáveis nas Ilhas do Canal (ilhas de Guernsey and Jersey) na medida do estritamente necessário para garantir a implementação de regimes específicos – vd. Protocolo 3 anexo ao Tratado de Adesão do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte in Jornal Oficial das Comunidades Europeias, L-73, de 27.03.1972, págs. 164 e 165 (matérias aduaneiras, restrições quantitativas, direitos alfandegários, produtos agrícolas e produtos processados com bases nestes).

2. Os Regulamentos relativos à Cooperação Judiciária Europeia em Matéria Civil e Comercial, entre os quais se situa o Regulamento (CE) N.º 2201/2003 do Conselho de 27 de Novembro de 2003 relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.º 1347/2000 não são aplicáveis aos processos do Bailiado de Jersey.

3. Resulta do n.º 3 do art. 497.º do Código de Processo Civil que não gera um quadro de litispendência o curso, em tribunal estrangeiro, de acção caracterizada pela identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, excepto se regime distinto resultar de normas de Direito Internacional pactício ou de preceito de Direito Europeu.

4. As sentenças estrangeiras – com excepção das dispensadas de «exequatur» nos termos previstos em diversos Regulamentos do domínio da cooperação judiciária europeia em matéria civil e comercial – só relevam no nosso ordenamento após um processo de acolhimento interno, seja no âmbito do processo especial de revisão de sentenças estrangeiras dos art.s 1094.º e seguintes do Código de Processo Civil seja no quadro do aludido Regulamento Europeu ou, entre outros, do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho de 22 de Dezembro de 2000 relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial.

5. Considerando a irrelevância da litispendência internacional excepto nos casos expressamente previstos e sabendo-se que, até à concessão do «exequatur», a sentença estrangeira é desprovida de efeitos no ordenamento jurídico nacional, nada obsta à instauração de acção perante Tribunal português, apesar do curso de processo assinalado pela coincidência dos apontados elementos ou do trânsito em julgado de decisão proferida em acção coincidente que tenha corrido em Tribunal estrangeiro, até acolhimento interno da mesma.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:
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I. RELATÓRIO                  

J (…), com os sinais identificativos constantes dos autos, instaurou acção de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges contra D (…), neles melhor identificada, por intermédio da qual solicitou que fosse decretado o divórcio entre ambos.
Foi agendada a realização de tentativa de conciliação que não atingiu os seus objectivos.
A Ré apresentou contestação tendo referido, em sede de excepção, que o divórcio foi já decretado, com trânsito em julgado, pelo Tribunal Real de Jersey e concluído pela incompetência absoluta do Tribunal «a quo».
O Autor respondeu a este articulado sustentando que: quando instaurou a acção no âmbito da qual surgiu o presente recurso, ainda não tinha transitado a decisão proferida no Reino Unido; tal decisão ainda não produziu os seus efeitos no nosso ordenamento jurídico uma vez que não foi pedida a revisão de sentença estrangeira; o aqui Autor não contestou a acção referente ao processo julgado nos Tribunais do Reino Unido tendo, por esse facto, sido decretado o divórcio e aparentemente dados por provados os factos alegados pela aqui Ré; no nosso ordenamento jurídico e atendendo à natureza do processo em causa, a circunstância de o Réu não contestar a acção não implica a confissão dos factos, sendo necessário ao Autor fazer prova dos factos que alega, desconhecendo-se se tal foi feito ou não nas instâncias britânicas; ainda que haja uma decisão a decretar o divórcio, tratando-se de uma decisão estrangeira, a mesma ainda não produziu os seus efeitos em Portugal e, como tal, ainda não se encontra declarado, no nosso ordenamento, o divórcio entre as partes,  pelo que nada obsta a que o presente Juízo conheça do mérito da acção.
Concluiu dever ser julgada improcedente por não verificada a excepção arguida pela Ré.
Foi, na sequência da junção deste articulado, proferido o despacho de fl. 55, com o seguinte teor:
«Quando a ré D (…) foi citada para os termos da presente acção de divórcio, proposta neste Juízo no dia 16/03/2011, já ela havia proposto na Divisão de Família do Tribunal Real de Jersey, Ilha de Jersey, Ilhas do Canal da Mancha, Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, no dia 06/05/2009, acção de divórcio, em cuja qual no dia 27/04/2011 veio a ser decretado o divórcio.
Assim sendo, como é, verifica-se uma situação de listispendência (art.º 497º e 498º, ambos do C. P. Civil), determinante da incompetência deste Juízo, ao abrigo do disposto no nº 3 do art.º 19º do Regulamento (CE) nº 2201/2003, do Conselho, de 27 de Novembro de 2003.
Em consequência, absolvo a Ré da presente instância, com custas a cargo do Autor – artºs 288º, nº 1, al. a) e e), 494º, al.s a) e i), 495º, 497º e 498º, todos do C. P. Civil.»
É desta decisão que vem a presente impugnação judicial interposta pelo Demandante, que apresentou as seguintes conclusões das suas alegações de recurso:
«A) O Tribunal a quo, aplicando as disposições constantes do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, julgando verificada uma situação de litispendência – como configurada por aquela legislação comunitária – absolveu a Apelada da Instância, violando desse modo a douta decisão recorrida o disposto nos artigos 65º e 65º-A do Código de Processo Civil
B) O Regulamento (CE) n.º 2201/2003, do Conselho, de 27 de Novembro de 2003 não tem aplicação nos presentes autos, já que não vincula as decisões judiciais proferidas pelos Tribunais da Ilha / Bailiado de Jersey, maxime, da decisão judicial que a Apelada juntou com a sua douta contestação.
C) Com efeito, a Ilha (Bailiado) de Jersey, não obstante estar sob o domínio britânico (responsável pela sua política externa e de defesa), tem autonomia própria, tendo parlamento, legislação e jurisdição próprias, não fazendo formalmente parte do Reino Unido já que gozam dessa ampla autonomia governativa e legislativa.
D) No que diz respeito à aplicação dos Tratados comunitários ao território da Ilha de Jersey dispõe o 299º n.º 6, alínea c), do Tratado da Comunidade Europeia que “em derrogação do disposto nos números anteriores: c) as disposições do presente Tratado só são aplicáveis às ilhas Anglo-Normandas e à ilha do Man, na medida em que tal seja necessário para assegurar a aplicação do regime previsto para essa ilhas no Tratado relativo à adesão de novos Estados-membros à Comunidade Europeia e à Comunidade da Energia Atómica, assinado em 22 de Janeiro de 1972.”
E) Estando a situação das Ilhas do Canal, face à Comunidade Europeia, hoje União Europeia e aos seus tratados, regulada no Protocolo 3 do Tratado de Adesão da Dinamarca, da Irlanda e o Reino Unido de 1972. Ora
F) O Regulamento que vem sendo mencionado nas presentes alegações de recurso e aplicado pelo Tribunal a quo, não obstante ser aplicado no Reino Unido e Irlanda, conforme se infere do ponto 30 do preâmbulo que refere “O Reino Unido e a Irlanda, nos termos do artigo 3º do protocolo relativo à posição do Reino Unido e da Irlanda, anexo ao Tratado da União Europeia e ao Tratado que institui a Comunidade Europeia [não confundir com o protocolo acima mencionado, este anexo ao Tratado de Adesão], manifestaram o desejo de participar na aprovação e aplicação do presente regulamento.”; contudo, em nenhuma das disposições de tal Regulamento, nem mesmo no preâmbulo é feita qualquer referência à extensão da sua aplicação aos territórios autónomos das Ilhas do Canal, onde se inclui a Ilha de Jersey.
G) Tanto mais que nas disposições iniciais do Regulamento que vem sendo citado sempre que se faz, em concreto referência ao Reino Unido o legislador comunitário utiliza a palavra “território”, sem acrescentar domínios ou sequer fazer referência às Ilhas Anglo-Normandas e à Ilha do Man – veja-se a título de exemplo os artigos 3º e 7º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003.
H) O Tribunal a quo decidiu pela aplicação do Regulamento que vem sendo citado e com base no artigo 19º n.º 3 do mesmo – “quando estiver estabelecida a competência do tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar, o tribunal em que o processo foi instaurado em segundo lugar declara-se incompetente a favor daquele.”
I) Contudo, se o Regulamento, nos termos do já exposto, não tem aplicação quanto às decisões judiciais de natureza matrimonial proferidas por Tribunal da Ilha de Jersey, nunca poderia ter decidido pela litispendência, a qual não se verifica, face ao direito interno português e muito menos se verifica a incompetência do Tribunal a quo.
J) Tanto mais que a Ilha / Bailiado de Jersey tem legislação própria referente ao direito da família, como também tem jurisdição própria, independente da hierarquia jurisdicional do Reino Unido e Pais de Gales.
K) Na data em que o Apelante propôs a presente acção de divórcio ainda não tinha transitado em julgado a decisão proferida pelas Instâncias Judiciais da Ilha de Jersey, porquanto
L) A presente acção deu entrada em juízo em 16 de Março de 2011 e a decisão que a Apelada juntou só se tornou definitiva ou como é dito na mesma “foi considerada final e absoluta”, em 27 de Abril de 2011.
M) E, como tal, a decisão proferida pelo Tribunal da Ilha de Jersey, nem na data da instauração dos presentes autos (onde ainda não tinha sido proferida) nem posteriormente – o que ainda se verifica – não produziu os seus efeitos no nosso ordenamento jurídico, uma vez que, por um lado o seu reconhecimento não é directo e também não foi pedida a revisão de sentença estrangeira; não obstando a que o Tribunal a quo conheça do mérito da acção.
N) Por outro lado, da análise do teor dos documentos juntos pela Apelada, infere-se que o Apelante não contestou a acção referente ao processo julgado no Tribunal da Ilha de Jersey, tendo, por esse, facto sido decretado o divórcio e aparentemente dados por provados os factos alegados pela aqui Apelada. Ora
O) No nosso ordenamento jurídico e atendendo à natureza do processo em causa, a circunstância de o réu não contestar a acção tal não implica a confissão dos factos, sendo necessário ao autor fazer prova dos factos que alega, o que se desconhece se foi feito ou não nas instâncias da Ilha de Jersey, até porque não se encontra junta certidão de todo o processo.
P) Contudo e ainda que a haja uma decisão a decretar o divórcio, tratando-se de uma decisão estrangeira a mesma ainda não produziu os seus efeitos em Portugal e, como tal, ainda não se encontra declarado, no nosso ordenamento, o divórcio entre as partes.
Q) Por outro lado, nos termos do artigo 1094º n.º 2 do Código de Processo Civil “não é necessária a revisão quando a decisão seja invocada em processo pendente nos tribunais portugueses, como simples meio de prova sujeito à apreciação de quem haja de julgar a causa.”
R) Sendo que, interpretando-se tal norma, nada impede que havendo uma decisão estrangeira, não se possa – antes de a mesma ser revista – que se intente uma mesma acção nos tribunais portugueses. Assim
S) Face a tal norma é por demais evidente não existir a alegada incompetência do Tribunal, tanto mais que a decisão referida pela Apelada ainda não foi revista.
T) À cautela e sem prescindir, desde já se requer ao abrigo do artigo 267º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, de forma a esclarecer-se – se dúvidas suscitarem a este Venerando Tribunal – da aplicação do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, do Conselho, de 27 de Novembro de 2003 ao eventual reconhecimento de decisões judiciais ou pendência de processo, em matéria matrimonial, proferidas pelos Tribunais da Ilha de Jersey quando em causa estão cidadãos de um outro Estado-membro que não o Reino Unido ou seja, se o referido regulamento, atendendo ao constante do Protocolo 3 do Tratado de Adesão da Dinamarca, Reino Unido e Irlanda assinado em 1972, é afastada a sua aplicação às Ilhas do Canal e Ilha do Man».
Não foi apresentada resposta às alegações do Recorrente.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
São as seguintes as questões a avaliar:
1. O Regulamento (CE) n.º 2201/2003, do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, não tem aplicação nos presentes autos já que não é aplicável às decisões judiciais proferidas pelos Tribunais da Ilha / Bailiado de Jersey?
2. Sendo assim, nunca o Tribunal «a quo» poderia ter decidido pela verificação da excepção de litispendência, que também não se verifica face ao direito interno português?
3. Resulta do disposto no n.º 2  do artigo 1094.º do Código de Processo Civil que nada impede que, perante uma decisão estrangeira, se intente uma mesma acção nos tribunais portugueses?
4. A situação em apreço justifica que, ao abrigo do disposto no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, se proceda ao reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia, com vista a obter resposta à questão da aplicabilidade do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, aos processos e decisões em matéria matrimonial dos Tribunais da Ilha de Jersey, no Reino Unido?

II. FUNDAMENTAÇÃO

Fundamentação de facto
Ao abrigo do disposto no n.º 6 do art. 713.º do Código de Processo Civil, remete-se, aqui, no que respeita à matéria de facto, para os termos da decisão da 1.ª instância.

Fundamentação de Direito
1. O Regulamento (CE) n.º 2201/2003, do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, não tem aplicação nos presentes autos, já que não é aplicável às decisões judiciais proferidas pelos Tribunais da Ilha / Bailiado de Jersey?
O Artigo 355.º do Tratado Sobre o Funcionamento da União Europeia – TFUE (ex-primeiro parágrafo do n.º 2 e n.ºs 3 a 6 do artigo 299.º do Tratado que Institui a Comunidade Europeia – TCE) estabelece que:
«c) As disposições dos Tratados só são aplicáveis às ilhas Anglo-Normandas e à ilha de Man na medida em que tal seja necessário para assegurar a aplicação do regime previsto para essas ilhas no Tratado relativo à adesão de novos Estados-Membros à Comunidade Económica Europeia e à Comunidade Europeia da Energia Atómica, assinado em 22 de Janeiro de 1972.»

O Reino Unido tem sob a sua responsabilidade três Dependências da Corôa e catorze Territórios Ultramarinos Dependentes. Integram aquelas dependências reais a Ilha de Man e as ilhas de Guernsey and Jersey, sendo estas últimas denominadas conjuntamente como Ilhas Anglo-Normandas, Ilhas da Mancha ou Ilhas do CanalChannel Islands na denominação local.

Trata-se de territórios na posse da coroa britânica que não fazem parte do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte e que estão dotados de parlamentos e sistemas jurídicos, administrativos e fiscais independentes, não pertencendo à União Europeia.

Extrai-se do preceito acima invocado que as regras emergentes dos Tratados são apenas aplicável nas Ilhas do Canal – e também na ilha de Man – na medida do estritamente necessário para garantir a implementação de regimes específicos – vd. Protocolo 3 anexo ao Tratado de Adesão do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte in Jornal Oficial das Comunidades Europeias, L-73, de 27.03.1972, págs. 164 e 165 (matérias aduaneiras, restrições quantitativas, direitos alfandegários, produtos agrícolas e produtos processados com bases nestes).

Extrai-se daqui, de forma cristalina, que os Regulamentos relativos à Cooperação Judiciária Europeia em Matéria Civil e Comercial, entre os quais se situa o  Regulamento (CE) N.º 2201/2003 do Conselho de 27 de Novembro de 2003 relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.º 1347/2000 (também conhecido no jargão do Direito Europeu como Regulamento Bruxelas II bis – RB2b) não são aplicáveis nos espaços territoriais sob referência. Já acontecia assim antes da dinâmica introduzida neste domínio pelo Tratado de Amesterdão e pelas conclusões do Conselho Europeu de Tampere de 15 e 16.10.1999, por exemplo com a Convenção de Bruxelas de 1968 Relativa à Competência Judiciária e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial.

Assim, à intervenção e decisões provenientes dos tribunais das aludidas Dependências da Coroa não se aplicam as normas do RB2b quer quanto à competência, quer quanto ao reconhecimento, quer quanto à respectiva execução.

A decisão posta em crise invocou, consequentemente, norma não aplicável ao caso em apreço – o n.º 3 do art. 19.º do Rb2b.
Impõe-se, pois, a formulação de resposta afirmativa à primeira questão proposta.

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2. Sendo assim, nunca o Tribunal «a quo» poderia ter decidido pela verificação da excepção de litispendência, que também não se verifica face ao direito interno português?
É dado assente, face ao que se deixou dito, que não era cogitável, invocável e susceptível de constituir fundamento da decisão a aplicação do regime relativo à litispendência do RB2b.
No que tange ao Direito interno nacional, é fundamental atender ao disposto no n.º 3 do art 497.º do Código de Processo Civil, com o seguinte teor:
«É irrelevante a pendência da causa perante jurisdição estrangeira, salvo se outra for a solução estabelecida em convenções internacionais».
Quer esta referência normativa significar que não gera um quadro de litispendência o curso de acção em tribunal estrangeiro caracterizada pela identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, excepto se regime distinto resultar de normas de Direito Internacional pactício (que o Preâmbulo do Decreto-Lei 329-A/95, de 12.12, que introduziu a referida redação, exemplificava fazendo referência à aludida Convenção de Bruxelas de 1968) ou – devemos acrescentar – de preceito de Direito Europeu.
Na situação sob avaliação, sendo seguro não se aplicar aos processos em curso em Tribunais de Jersey e decisões pelos mesmos proferidas o RB2b e não se aplicando também outro regime de Direito Europeu ou de Direito Internacional Público que atribua relevo à litispendência internacional, não havia razões que sustentassem a declaração de materialização de excepção de litispendência.
Mais uma vez se impõe, pois, responder de forma afirmativa à questão suscitada e ora analisada.
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3. Resulta do disposto no n.º 2  do artigo 1094.º do Código de Processo Civil que nada impede que, perante uma decisão estrangeira, se intente uma mesma acção nos tribunais portugueses?
As sentenças estrangeiras – com excepção das dispensadas de exequatur nos termos previstos em diversos Regulamentos do domínio da cooperação judiciária europeia em matéria civil e comercial dos quais o RB2b foi pioneiro, no quadro do direito de visita e do rapto parental –  só relevam no nosso ordenamento após um processo de acolhimento interno, seja no âmbito do processo especial de revisão de sentenças estrangeiras dos art.s 1094.º e seguintes do Código de Processo Civil seja no contexto do aludido Regulamento Europeu ou, entre outros, do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (Regulamento «Bruxelas I» – RB1).
Nestes termos, assente que está a irrelevância da litispendência internacional excepto nos casos expressamente previstos, nos termos sobreditos, e sabendo-se que, até à concessão do «exequatur», a sentença estrangeira é desprovida de efeitos no ordenamento jurídico nacional, nada obsta à instauração de acção perante Tribunal nacional apesar do curso de processo assinalado pela coincidência dos apontados elementos ou do trânsito em julgado de decisão proferida em acção coincidente que tenha corrido em Tribunal estrangeiro, até acolhimento interno da mesma.
4. A situação em apreço justifica que, ao abrigo do disposto no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, se proceda ao reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia, com vista a obter resposta à questão da aplicabilidade do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, aos processos e decisões em matéria matrimonial dos Tribunais da Ilha de Jersey no Reino Unido?
Face à clareza e carácter manifesto e insofismável da conclusão pela inaplicabilidade do RB2b à decisão em apreço nos autos, não se justifica o pretendido reenvio prejudicial.
Assim, ponderado o estabelecido no art. 267.º do TFUE, particularmente no seu parágrafo segundo, responde-se negativamente à questão proposta.

Sumário:

1. As regras emergentes dos Tratados da União Europeia são apenas aplicáveis nas Ilhas do Canal (ilhas de Guernsey and Jersey) na medida do estritamente necessário para garantir a implementação de regimes específicos – vd. Protocolo 3 anexo ao Tratado de Adesão do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte in Jornal Oficial das Comunidades Europeias, L-73, de 27.03.1972, págs. 164 e 165 (matérias aduaneiras, restrições quantitativas, direitos alfandegários, produtos agrícolas e produtos processados com bases nestes);

2. Os Regulamentos relativos à Cooperação Judiciária Europeia em Matéria Civil e Comercial, entre os quais se situa o  Regulamento (CE) N.º 2201/2003 do Conselho de 27 de Novembro de 2003 relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.º 1347/2000 não são aplicáveis aos processos do Bailiado de Jersey;
3. Resulta do n.º 3 do art. 497.º do Código de Processo Civil que não gera um quadro de litispendência o curso, em tribunal estrangeiro, de acção caracterizada pela identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, excepto se regime distinto resultar de normas de Direito Internacional pactício ou de preceito de Direito Europeu;
4. As sentenças estrangeiras – com excepção das dispensadas de «exequatur» nos termos previstos em diversos Regulamentos do domínio da cooperação judiciária europeia em matéria civil e comercial –  só relevam no nosso ordenamento após um processo de acolhimento interno, seja no âmbito do processo especial de revisão de sentenças estrangeiras dos art.s 1094.º e seguintes do Código de Processo Civil seja no quadro do aludido Regulamento Europeu ou, entre outros, do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho de 22 de Dezembro de 2000 relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial;
5. Considerando a irrelevância da litispendência internacional excepto nos casos expressamente previstos e sabendo-se que, até à concessão do «exequatur», a sentença estrangeira é desprovida de efeitos no ordenamento jurídico nacional, nada obsta à instauração de acção perante Tribunal português, apesar do curso de processo assinalado pela coincidência dos apontados elementos ou do trânsito em julgado de decisão proferida em acção coincidente que tenha corrido em Tribunal estrangeiro, até acolhimento interno da mesma.

III. DECISÃO
Pelo exposto, julgamos a apelação procedente e, em consequência, revogamos a decisão judicial posta em crise e ordenamos o prosseguimento dos autos.
Custas pela parte vencida a final.

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Carlos M. G. de Melo Marinho (Relator)
Alberto Ruço (1.º Adjunto)
Judite Pires (2.ª Adjunta)