Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2281/11.5TBFIG-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: INVENTÁRIO
CÔNJUGES
PATRIMÓNIO COMUM
INDEMNIZAÇÃO LABORAL
CESSAÇÃO DO CONTRATRO DE TRABALHO
INCOMUNICABILIDADE
Data do Acordão: 11/10/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - FIGUEIRA FOZ - INST. CENTRAL - 2ª SEC. F. MEN. - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS. 1717, 1724, 1733, 1789 CC
Sumário: 1. É a afectação estritamente individual dos bens que justifica a incomunicabilidade prevista no art.º 1733º, do CC.

2. Perante situações de perda do emprego por facto não imputável ao trabalhador (v. g., em caso de encerramento da empresa), o valor correspondente à compensação por antiguidade destina-se a ressarcir as consequências inerentes à perca do direito ao trabalho, que é de índole pessoal (intuitu personae).

3. Trata-se, pois, de um bem pessoal (próprio) do cônjuge, que, em princípio/regra - sem prejuízo do posicionamento dos cônjuges ou ex-cônjuges e porventura de outros aspectos relacionados com a relação conjugal - deverá ser excluído da comunhão conjugal.

4. Decisivo para as relações patrimoniais entre os cônjuges é o momento do facto que dá causa/origem a determinado fluxo patrimonial (a repercutir no património comum do casal), e não propriamente a data da concretização ou execução desse mesmo fluxo, ainda que verificado após a propositura da acção de divórcio (art.º 1789º, n.º 1, do CC).

Decisão Texto Integral:
            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
           

            I. Em 21.3.2012, P (…) instaurou, por apenso à respectiva acção de divórcio, os presentes autos de inventário para partilha dos bens comuns do dissolvido casal que ligava o requerente M (…).

            Apresentada a relação de bens, a interessada M (…) reclamou contra a mesma invocando omissão e excesso de relacionação.

            Em resposta, o cabeça-de-casal disse, nomeadamente: o valor recebido pela reclamante a título de rateio parcial no processo de insolvência “revestiu o caracter de compensação pecuniária global”; “essa compensação, não especifica qual a origem dos créditos do trabalhador englobando num valor único e indivisível todos os montantes a que tem direito”; “tal não pode ser confundido, como faz a reclamante no artigo 8º do seu requerimento com ´indemnização por cessão do contrato de trabalho`, porque o despedimento não teve origem num facto culposo[1]; “o valor (…) recebido pela reclamante no rateio parcial da insolvência, foi-o a título de compensação pecuniária global, razão pela qual se trata de um bem comum, e como tal, deve manter-se inalterado o relacionamento” (fls. 56).

            Por despacho de 12.02.2013 foram decididas parte das questões suscitadas.

            Produzida a prova, a Mm.ª Juíza a quo, por sentença de 07.5.2015, julgou parcialmente procedente a reclamação, determinando, designadamente, a rectificação da verba n.º 1 para € 44 260,86.

            Inconformada, a interessada interpôs a presente apelação (mandada subir de imediato/apenso D) formulando as conclusões que assim vão sintetizadas:

            (…)

            O cabeça-de-casal não respondeu à alegação de recurso.

            Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, questiona-se, apenas, a inclusão, no acervo a partilhar, da importância da indemnização pela cessação do contrato de trabalho e do dito crédito laboral rateado depois de decretado o divórcio.


*

            II. 1. A 1ª instância deu como provados, entre outros, os seguintes factos:

             a) Os interessados casaram entre si a 09.01.1991, no regime de comunhão de adquiridos.

            b) A acção de divórcio entre os interessados e na sequência da qual veio a ser decretado o divórcio por mútuo consentimento, foi intentada a 21.9.2011.

            c) Por sentença datada de 30.11.2011, foi decretado o divórcio por mútuo consentimento entre os interessados.

            d) No âmbito do processo de insolvência de pessoa colectiva n.º 808/10.9TBFIG, em que era insolvente C (…), a aqui interessada M (…), na qualidade de credora, por créditos fundados na sua prestação laboral, recebeu as seguintes quantias:

            - por cheque datado de 21.7.2011, no rateio parcial, € 42 704,05;

            - por cheque datado de 26.6.2014, no rateio final, € 1 556,81.

            2. Releva ainda para o objecto do recurso a seguinte factualidade:

            a) Na “relação de bens” o cabeça-de-casal relacionou sob a “verba n.º 1” o seguinte bem:

            “Quantia em dinheiro que se encontra na posse da interessada M (…) correspondente ao rateio parcial dos créditos laborais reclamados no âmbito do processo de insolvência n.º 808/10.9TBFIG que corre termos no 3º Juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz no montante de € 42 407,05.” (fls. 9)

            b) Relativamente à factualidade dita em II. 1. d), a Mm.ª Juíz a quo apresentou a seguinte motivação:

            «Valorámos a documentação de fls. 89-93 e 121-151, bem assim os esclarecimentos prestados pela testemunha (…), administradora da insolvência no processo da Corfoz.

            Com efeito, resulta claramente da certidão da sentença de reconhecimento e graduação dos créditos que a interessada M (…) acordou receber, a título de crédito privilegiado, o valor de € 44 260,86, que efetivamente recebeu, e a título de crédito subordinado, o valor de € 8 500, que não recebeu, por insuficiência de património

            c) Da aludida certidão de sentença, junta a fls. 121 a 151, consta:

            «M (…), NIF: 198091966 (…) veio reclamar o valor de 70 490€ [setenta mil, quatrocentos e noventa euros], proveniente de relações laborais, sendo 8 500€ a título de empréstimo à insolvente; 775€, referente ao vencimento em atraso do mês de Agosto de 2009, 1.100€ referente ao vencimento em atraso do mês de Setembro de 2009, 1.100€ referente ao vencimento em atraso do mês de Outubro de 2009, 1.100€ referente ao vencimento em atraso do mês de Novembro de 2009, 1.100€ referente ao vencimento em atraso do mês de Dezembro de 2009, 1.100€ referente ao vencimento em atraso do mês de Janeiro de 2010, 1.100€ referente ao vencimento em atraso do mês de Fevereiro de 2010, 330€ referente a nove dias de vencimento do mês de Março de 2010, 1.100€ referente a subsídio de Natal de 2009, 220€ referente a seis dias do subsídio de Natal de 2010, 1.100,00€ referente a férias não gozadas de 2006, 1.100€ referente a férias não gozadas de 2007, 1.100€ referente a férias não gozadas de 2008, 1.100€ referente a férias não gozadas de 2009, 220€ referente a seis dias de férias não gozadas de 2010, 220€ referente a seis dias de subsídio férias de 2010, 26.125€ referente a 1900 horas extraordinárias, 22.000€ referente a indemnização por antiguidade.[2] Mais requereu o credor a compensação do seu crédito reclamado com o valor de 105,14€, por liquidar para com a insolvente. Todavia, não fica reconhecido o valor de 26.125€ referente às 1.900 horas extraordinárias pelo motivo de não estarem documentadas nem provadas e, segundo decorre da reclamação do credor tais horas teriam sido, alegadamente, dadas às lojas de outras empresas. Assim, apenas fica reconhecido: o valor de 8.500€ referente ao empréstimo à insolvente, montante este com a natureza de crédito subordinado, e o restante valor reclamado referente a vencimentos, férias, subsídios de férias, no montante de 35.760,86€, de natureza privilegiada.» (fls. 139)

            d) Na mesma sentença refere-se que, por acordo (art.º 136º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas/CIRE), o crédito de M (…) foi «fixado na quantia de € 44 260,86 na parte privilegiada, e no montante de € 8 500, na parte subordinada.» (fls. 142)

            3. Sendo, assim, correcta a perspectiva da recorrente ao ter pugnado pela inclusão, na matéria de facto, do dito “excerto da sentença de verificação e graduação de créditos”, resta apreciar se lhe assiste razão quanto à pretendida exclusão dos montantes mencionados nas “conclusões 9ª e 10ª” (ponto I, supra).

         4. No dito despacho de 12.02.2013 referiu-se, designadamente:

            «(…) não assiste qualquer razão à interessada M (…) no referente à temática da indemnização por cessação do contrato de trabalho.

            Na verdade, é clara a alínea a) do artigo 1724º do Código Civil quando estatui que fazem ´parte da comunhão o produto do trabalho dos cônjuges`. E explicitam, nesse sentido, PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA que se consideram produto do trabalho ´todos os proventos auferidos por trabalho dependente ou independente, regular ou esporádico, pago em dinheiro ou géneros (…) Devem considerar-se parte integrante do património comum os bens adquiridos em substituição de salários, como as pensões de reforma, os complementos de reforma resultantes de aforros de salários, por exemplo através de planos-poupança-reforma, e as indemnizações, por qualquer causa, que tenham na sua base uma intenção de compensar a diminuição da capacidade de ganho` [GUILHERME DE OLIVEIRA e PEREIRA COELHO, in Curso de Direito da Família, Volume I, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 2003, pág. 589].

            Tal significa que integrarão o património comum do casal não só os salários auferidos – ou «gerados» – na pendência do casamento, mas também quaisquer compensações eventualmente auferidas na vigência ou por cessação do contrato de trabalho. O que se mostra, por si só, suficiente para ter a reclamação improcedente na vertente em que pugna pela exclusão do valor de € 22 000 da verba n.º 1.»

            Esta perspectiva das coisas veio a ser reafirmada na sentença recorrida - dizendo-se, nomeadamente, que «(…) relativamente à quantia de € 44 260,82,[3] na sequência do despacho de 12.02.2013, confirmado que está que a mesma é integrada exclusivamente de créditos laborais (…)”; “Determina-se, pois, a atualização do valor aí consignado (após retificação) de € 42 704,05, porquanto, à data da apresentação da relação de bens, ainda não havia tido lugar o rateio total (26.6.2014), na sequência do qual veio a caber à aqui interessada M (…), no âmbito dos créditos laborais privilegiados de que era titular, também, a quantia de € 1 556,81, o que perfaz o referido total de € 44 260,86”» -, esclarecendo-se, também, que se tratava do valor global a considerar, «independentemente de, na altura do recebimento dos € 1 556,81, do rateio final, há muito, estarem os interessados divorciados, porquanto têm por causa a prestação laboral ocorrida antes da propositura da ação de divórcio e durante a pendência do casamento» e que, «Por outro lado, quanto a ser a totalidade do valor recebido, a explicação é imanente à vocação do instituto jurídico do inventário, também nos casos de divórcio – a repartição integral do património conjugal entre os ex-cônjuges

            Se temos por inteiramente correcto o entendimento expresso quanto à inclusão da importância de € 1 556,81 no acervo de bens a partilhar, cremos que outro já deverá ser o enquadramento a dar à quantia percebida a título de indemnização/compensação pela cessação do contrato de trabalho (por causa não imputável ao trabalhador).

            5. Prosseguindo.

            Aplicando-se à situação dos autos - instaurados em 21.3.2012 - o regime jurídico estabelecido nos art.ºs 1 326º e seguintes e 1404º, do Código de Processo Civil (CPC) de 1961 (em particular, o disposto nos art.ºs 1345º a 1351º), para a compreensão do objecto do litígio relevam ainda, principalmente, os ensinamentos do direito laboral e o preceituado nos art.ºs 1724º, alínea a); 1733º, n.º 1, alínea d) e 1789º, n.º 1, do Código Civil (CC).

            Não se questionando que o regime de bens aplicável ao casamento entre os interessados é o da comunhão de adquiridos [cf. II. 1. a), supra e art.º 1717º, do CC] e que não foi fixada a data em que a falta de coabitação teve o seu início (ou seja, não obstante o alegado na petição inicial da acção de divórcio, não existe formalmente data de separação de facto), importa, pois, atentar no preceituado nos citados normativos.  

            6. Nos termos do art.º 1724º, do CC (sob a epígrafe “bens integrados na comunhão”), fazem parte da comunhão o produto do trabalho dos cônjuges [a)] e os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam exceptuados por lei [b)].

            Preceitua o art.º 1733º que são exceptuados da comunhão (bens incomunicáveis/bens próprios), nomeadamente, as indemnizações devidas por factos verificados contra a pessoa de cada um dos cônjuges ou contra os seus bens próprios [n. 1, alínea d)].

            Por último, segundo o art.º 1789º (com a epígrafe “data em que se produzem os efeitos do divórcio”), os efeitos do divórcio produzem-se a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença, mas retrotraem-se à data da proposição da acção quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges (n.º 1); se a separação de facto entre os cônjuges estiver provada no processo, qualquer deles pode requerer que os efeitos do divórcio retroajam à data, que a sentença fixará, em que a separação tenha começado (n.º 2).

            7. Assim, atento o disposto na citada alínea a) do art.º 1724º, do CC, considera-se coisa comum ´todo` o produto do trabalho dos cônjuges[4], o que inclui, principalmente, a retribuição devida ao trabalhador em contrapartida do seu trabalho (art.º 258º, do Código do Trabalho[5]) ou, melhor, em razão da disponibilidade de força do trabalho por ele oferecida.[6]

            E é no desenvolvimento e explicitação desta realidade[7] que a doutrina vem afirmando como produto do trabalho todos os proventos auferidos por trabalho dependente ou independente, regular ou esporádico, pago em dinheiro ou géneros, e que devem considerar-se parte integrante do património comum os bens adquiridos em substituição de salários, como as pensões de reforma, os complementos de reforma resultantes de aforros de salários, por exemplo através de planos-poupança-reforma, e as indemnizações, por qualquer causa, que tenham na sua base uma intenção de compensar a diminuição da capacidade de ganho.[8]

            É o carácter eminentemente pessoal das indemnizações devidas por factos verificados contra a pessoa de cada um dos cônjuges (para ressarcir danos patrimoniais e/ou danos não patrimoniais) que justifica a natureza incomunicável do direito a essas prestações, prescrita no art.º 1733º, n.º 1, alínea d), do CC.[9]

            No que se refere às relações patrimoniais entre os cônjuges, o divórcio produz efeitos a partir da propositura da acção (art.º 1789º, n.º 1, do CC).

            8. Importa ter presente a natureza peculiar/singular da prestação laboral (actividade laboral) enquanto bem jurídico, pela sua inseparabilidade da pessoa do trabalhador/prestador.[10]

            A extinção do contrato de trabalho é a designação que corresponde, nas suas diversas modalidades, à perda do emprego contra a vontade do trabalhador.

            A perda do emprego implica para o trabalhador a perda da sua principal ou exclusiva fonte de rendimentos e transporta consigo consequências de natureza psíquica, familiar e social que a política de assistência material no desemprego dificilmente compensa.

            O trauma provocado pela perda do emprego afecta profundamente a própria personalidade do trabalhador, implicando, com frequência, perturbações fisiológicas e psíquicas: sente-se humilhado, inútil, atingido no seu brio profissional, vítima de uma medida injusta, objecto da piedade pública ou particular. Altera-se o seu quotidiano, o tempo e o ritmo da sua vida, ressente-se, ou modifica-se, o círculo da sua convivialidade.[11]

            Daí a previsão legal de um efeito compensatório ligado à perda do emprego, especialmente, quando tenha lugar contra a vontade do trabalhador (cf., designadamente, os art.ºs 344º, n.ºs 2 e 3; 345º, n.º 4; 346º, n.º 5; 366º; 372º; 379º e 391º, do Código do Trabalho).

            9. Os contratos de trabalho do insolvente mantêm-se para além da declaração de insolvência, ou seja, não se extinguem ipso facto com a sua declaração. Só com o encerramento definitivo do estabelecimento do insolvente (o termo definitivo da actividade correspondente) ocorre a cessação dos contratos dos trabalhadores que nele prestem serviço (cf., sobretudo, os art.ºs 113º, n.º 1 e 277º, do CIRE e 346º, n.ºs 1 e 3, do Código do Trabalho).[12]

            10. O contrato de trabalho da recorrente cessou, ao que tudo indica, na sequência da insolvência da sua entidade patronal e por esta haver encerrado o respectivo estabelecimento comercial ou industrial [cf. II. 1. d) e 2. b) a d), supra].

            Por conseguinte, no apurado circunstancialismo, encerrada a empresa, passou a ser devida à trabalhadora, aqui interessada, a compensação pela cessação do seu contrato de trabalho, a compensação devida pela perda do emprego e efeitos a ela naturalmente associados e que se repercutem na pessoa e na vida do trabalhador (cf. os art.ºs 346º, n.ºs 3 e 5 e 366º, do Código do Trabalho).

            11. Sabendo-se que é a afectação estritamente individual dos bens que justifica a incomunicabilidade prevista no art.º 1733º, do CC, e perante situações de perda do emprego por facto não imputável ao trabalhador (v. g., em caso de despedimento sem justa causa ou de encerramento da empresa), o valor correspondente à compensação ou à indemnização por antiguidade (neste caso, em opção pela reintegração no posto de trabalho/art.º 391º, do Código do Trabalho) destina-se a ressarcir as consequências inerentes à perca do direito ao trabalho, que é de índole pessoal (intuitu personae).[13]

            Trata-se, pois, de um bem pessoal (próprio) do cônjuge, em princípio/regra, excluído da comunhão conjugal.

            12. De resto, o cabeça-de-casal/recorrido também não se opôs a este entendimento, porquanto se limitou a dizer que o valor recebido pela reclamante/recorrente a título de rateio parcial no processo de insolvência “revestiu o carácter de compensação pecuniária global”, sem especificar/concretizar “a origem dos créditos do trabalhador englobando num valor único e indivisível todos os montantes a que tem direito” (cf. resposta de fls. 56), o que, diga-se, não era correcto e ficou devidamente esclarecido atenta a factualidade indicada em II. 2., supra, donde resultam perfeitamente individualizadas as parcelas correspondentes às retribuições vencidas à data da cessação do contrato (salários, férias e subsídios) no montante de € 13 865, à compensação/indemnização por antiguidade no valor de € 22 000 e ao valor do “empréstimo à insolvente” no valor de € 8 500, com a dedução da importância de € 105,14 “por liquidar para com a insolvente” (sic).

            13. Afigurando-se que esta matéria não é isenta de dificuldades e que sempre importará efectuar uma análise de todo o circunstancialismo fáctico associado à ruptura do vínculo laboral, nomeadamente, das consequências imediatas e futuras desse rompimento (especialmente para a pessoa do cônjuge trabalhador e sua família), do estado e do previsível desenvolvimento do relacionamento conjugal e, por último, do posicionamento dos cônjuges ou ex-cônjuges (o que, no caso vertente, assumirá particular relevância) e, até, do denominado “esforço conjunto do casal para a manutenção da relação laboral[14], cremos que, na conjugação dos interesses em presença, aquela será uma resposta razoável e adequada, tanto mais que a cessação do vínculo laboral terá surgido num momento de acentuada desagregação da ligação matrimonial (cf., a propósito, a petição inicial da acção de divórcio) e o efeito da perda do emprego - como vimos, naturalmente ligado à vida e à pessoa do trabalhador - pouco ou nada teria a ver com o “futuro” do casal (que, de facto, já não existiria…) mas, apenas, com a situação da recorrente, já “distanciada” da sua relação conjugal…

            14. Conclui-se, assim, que a dita compensação deve ser excluída da comunhão conjugal (do acervo patrimonial do dissolvido casal a partilhar), tendo em conta o exposto e o preceituado no art.º 1 733º, n.º 1, alínea d), do Código Civil, com a consequente redução da “verba n.º 1” do activo da relação de bens para o valor de € 22 260,86 (vinte e dois mil, duzentos e sessenta euros e oitenta e seis cêntimos).

            15. Quanto à importância de € 1 556,81, entregue por cheque de 26.6.2014 e que integrou o aludido “montante global” de € 44 260,86 [cf. II. 1. d), supra], a circunstância de ter sido recebida pela interessada/recorrente no estado de divorciada, não implica que não deva ser considerada como bem comum do dissolvido casal, pela simples razão de que, se é certo que, no que se refere às relações patrimoniais entre os cônjuges, o divórcio produz efeitos a partir da propositura da acção (art.º 1789º, n.º 1, do CC), aquele montante tem como causa/origem a prestação laboral (e correlativo crédito laboral vencido) ocorrida antes da propositura da acção de divórcio e no decurso do casamento.

            Decisivo para as relações patrimoniais entre os cônjuges é o momento do facto que dá causa/origem a determinado fluxo patrimonial a repercutir no património comum do casal, e não propriamente a data da concretização ou execução desse mesmo fluxo, ainda que verificado após a propositura da acção de divórcio (art.º 1789º, n.º 1, do CC).

            16. Procedem, desta forma, parcialmente as “conclusões” da alegação de recurso.


*

III. Pelo exposto, na parcial procedência da apelação, decide-se aditar à factualidade provada a matéria aludida em II. 2., supra, e reduzir a “verba n.º 1” do activo da relação de bens para o valor de € 22 260,86 (vinte e dois mil, duzentos e sessenta euros e oitenta e seis cêntimos), mantendo-se o demais decidido.

Custas do incidente e da apelação a cargo da recorrente e do recorrido na proporção de 1/5 e 4/5, respectivamente, sem prejuízo do apoio judiciário eventualmente concedido.

                                                        *

                                                 10.11.2015

           

Fonte Ramos ( Relator)

Maria João Areias

Fernanda Ventura

             

                       


[1] Consta do referido art.º da reclamação de fls. 19: “Assim há que esclarecer que do montante total recebido pela interessada M (…) – 42 704,05€, no âmbito do supra mencionado processo de insolvência, 22 000,00€ (vinte e dois mil euros) foram recebidos a título de indemnização por cessação do contrato de trabalho,”.
[2] Sublinhado nosso, como os demais a incluir no texto.
[3] Existe lapso na indicação do montante global (€ 44 260,86), independentemente da questão de saber se foi devidamente efectuada a soma dos valores aludidos em II. 2. c), supra…
[4] Vide Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. IV, 2ª edição, Coimbra Editora, 1987, pág. 428.
[5] Sendo que à situação da recorrente, cujo contrato de trabalho terá cessado no 1º semestre de 2010, seria aplicável a versão do Código na redacção conferida pela Lei n.º 105/2009, de 14.9 [cf. II. 2. c), supra].
[6] Vide, entre outros, A. Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 15ª edição. Almedina, 2010, pág. 487.
[7] Cf., nomeadamente, o acórdão da RC de 02.7.2013-processo 988/12.9TMCBR-A.C1, publicado no “site” da dgsi.

[8] Vide F. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, Volume I, 3ª Edição, Coimbra Editora, 2003, pág. 589.
[9] Vide Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. IV, cit., pág. 442 e Antunes Varela, Direito da Família, Livraria Petrony, 1987, pág. 445.
[10]Vide Maria do Rosário Palma Ramalho, Da Autonomia Dogmática do Direito do Trabalho, Almedina, 2000, págs. 764, 772 e seguinte, 783 e 1029.
[11]Vide Jorge Leite, Direito do Trabalho, Vol. II, Coimbra (UC), 1999, págs. 280 e 281.
[12] Vide, designadamente, L. Carvalho Fernandes, Repercussões da falência na cessação do contrato de trabalho, in Estudos do Instituto de Direito do Trabalho, Vol. I, Instituto de Direito do Trabalho, Almedina, 2001, págs. 436 e seguinte, Maria do Rosário Palma Ramalho, ob. cit., pág. 418 e Jorge Leite, ob. e vol. citados, pág. 309.
[13] Cf., neste sentido, o acórdão da RL de 02.10.2007-processo 5871/2007-7, publicado no “site” da dgsi.
   Relativamente a um caso de cessação do contrato de trabalhado por acordo em que as partes estabelecerem uma compensação pecuniária global para o trabalhador (cf. art.º 349º, n.º 5, do Código do Trabalho), cf. o citado acórdão desta Relação de 02.7.2013-processo 988/12.9TMCBR-A.C1, no qual, pesem embora porventura alguma “indiferenciação” na abordagem das diversas modalidades de cessação do contrato de trabalho (art.º 340º do Código do Trabalho) e o assinalar da dificuldade no enquadramento das situações concretas - envolvendo, designadamente, o quadro temporal da quebra do vínculo laboral e da ligação matrimonial e o denominado “esforço conjunto do casal para a manutenção da relação laboral” -, se firmou o seguinte entendimento: “Tendo A trabalhado numa empresa entre 1991 e 2011 e casado em 2004, sob o regime de comunhão de adquiridos, a quantia recebida por A, durante a vigência do casamento, a título de compensação por revogação consensual do seu contrato de trabalho, assume a qualidade de bem próprio, nos termos da al. c), do n.º 1, do artigo 1722º do Código Civil, relativamente à fracção da compensação que é proporcional ao tempo correspondente ao período em que a relação laboral decorreu antes de A ter casado e comum na parte restante”.
[14] Dando especial enfoque a este “critério”, cf. o citado acórdão da RC de 02.7.2013-processo 988/12.9TMCBR-A.C1.