Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3786/13.9TBVIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: LOCAÇÃO FINANCEIRA
CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS
DEVER DE INFORMAÇÃO
BOA FÉ
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 01/18/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS: 6.º N.º 1, E 8.º ALÍNEA B) DO DECRETO-LEI N.º 446/85, DE 25 DE OUTUBRO
ARTIGO 334.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – A cláusula contratual geral, inserida em contrato de locação financeira, que prevê que, quando resolver o contrato, o locador tem direito, além do mais, ao montante do capital financeiro em divida, só é oponível ao locatário quando o locador prove que informou efectivamente aquele de tal cláusula.

II – Em caso de resolução do contrato de locação financeira, a exigência ao locatário do montante do capital financeiro em dívida excede manifestamente os limites impostos pela boa fé.

Decisão Texto Integral:







Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                           *

1 – RELATÓRIO

A. e B. , com os demais sinais identificadores constantes dos autos, por apenso à execução ordinária para pagamento de quantia certa que lhes move o “Banco C. , S.A.”, vieram deduzir embargos de executado.

 Para tanto, os embargantes arguiram a ilegitimidade do exequente e a prescrição das rendas locatícias, vencidas em 02.01.2013, tendo impugnado o conteúdo da livrança, não se recordando de alguma vez a terem assinado, sustentando que nenhum valor é devido ao exequente e que este, alguma vez, os tenha interpelado para o respetivo pagamento.

Pedem, então, os embargantes que se julguem procedentes as exceções invocadas e seja extinta a execução em conformidade.

                                                           *

 O exequente/embargado contestou os embargos, conforme melhor se colhe do teor do respetivo articulado que aqui se reproduz por brevidade de exposição, pugnando pela improcedência das pretensões dos embargantes.

*

Dispensada a audiência prévia, proferiu-se despacho saneador onde se julgou inexistir a arguida ilegitimidade ativa e improcedente a exceção perentória de prescrição, tendo sido fixado o objeto do litígio e os temas da prova.

*

Realizou-se a audiência final com observância das formalidades legais, como da respetiva ata emerge.

*

Na sentença, considerou-se, em suma, que face à factualidade apurada, se tinha de considerar que a Exequente, na qualidade de locadora financeira, resolveu validamente o contrato subjacente à emissão da livrança, sucedendo, contudo, que não lhe assistia o direito de pretender cobrar o valor correspondente ao capital financeiro em dívida à data da resolução, rectius, às rendas vincendas até ao fim do contrato, até por tal exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé (nos termos previstos no artigo 334.º do CCivil), donde lhe ser negada essa pretensão (correspondente ao valor parcial de € 6.275,62), e consequentemente apenas assistindo à Exequente o direito a reclamar € 77,34 de imposto de selo da livrança, assim tendo lugar a parcial procedência dos embargos em conformidade, termos em que se concluiu com o seguinte concreto “dispositivo”:

«Decisão:

Pelo exposto, julga-se a oposição à execução parcialmente procedente e, consequentemente, determina-se o prosseguimento da execução para pagamento da quantia de €15.546,09, à qual acrescerão juros de mora desde a data do vencimento da livrança, à taxa legal de 4%, até integral pagamento da dívida, extinguindo a execução quanto ao demais peticionado.

Custas pelos embargantes e embargado na proporção do decaimento.

Registe, notifique e dê conhecimento ao Exmo. Sr. Agente de Execução.»

                                                           *

            Inconformado com essa sentença, apresentou a Exequente recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

«Em conclusão, portanto, por errada interpretação da aplicação da matéria de facto provada na instância, e por violação do disposto nos artigos 405º e 406º, nº 1, do Código Civil, deve o presente recurso ser julgado procedente e provado e, em consequência, revogar-se a sentença recorrida, na parte objecto do presente recurso, julgando-se os embargos totalmente improcedentes e não provados, desta forma se fazendo

JUSTIÇA»                                                      

                                                                       *

            Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

                                                                       *

            Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela Exequente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4, 636º, nº2 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte: incorreto julgamento de direito [artigos 405º e 406º, nº 1, do Código Civil], porquanto consta dos factos provados [sob a al. M)] que quando o locador resolver o contrato, o mesmo tem direito a haver, além do mais, o montante do “capital financeiro em dívida”.

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Cumpre começar por enunciar o elenco factual que foi considerado fixado/provado pelo tribunal a quo, sendo certo que o recurso não questiona tal parte da decisão.   

            Tendo presente esta circunstância, consignou-se o seguinte na 1ª instância:

«Dos factos provados, com interesse para a decisão dos presentes embargos:

 A) O exequente, Banco C. , SA, antes denominado E. , SA, por escritura de cisão/fusão de sociedades outorgada em 28 de Dezembro de 2011, no Cartório Notarial do Dr. D. , em Lisboa, de fls. 11 a fls. 29 verso do Livro 4-T do dito Cartório, integrou no seu património todos os elementos do Activo e Passivo associados aos ramos de actividade “financiamento de aquisições a crédito” e “leasing mobiliário” da sociedade – que foi extinta por tal escritura – C. Go-Instituição Financeira de Crédito, SA, (sociedade esta antes denominada Banco Leasing SA e na qual se integrou por fusão a sociedade C. Crédito, SFAC S.A.) que tinha sede na ..., ..., e que tinha o número de pessoa colectiva nº ..., tendo por tal escritura sido alterada pela sociedade incorporante, a sua denominação de E. , SA, para BANCO C. , SA.

B) O Exequente é portador de uma livrança do Banco C. Leasing, subscrita por Transportes A. Lda. e avalisada pelos ora embargantes, emitida em Lisboa a 18.12.2012, vencida a 02.02.2013, no montante de €22.564,71, conforme resulta do teor do documento junto a fls. 12 da execução e que aqui se dá por integralmente reproduzido.

C) A livrança descrita em A) foi entregue em branco para garantir o contrato de locação financeira n.º 74784, que o ex- C. Leasing celebrou com a sociedade TRANSPORTES A. S.A. relativamente ao veículo automóvel ..., sendo que, nesse contrato, as assinaturas dos ora embargantes foram devidamente reconhecidas por notário, na qualidade de únicos sócios e gerentes da sociedade subscritora da livrança, TRANSPORTES A. S.A.

D) O contrato de locação mobiliária, aludido em C) foi objecto de aditamento em de 5 de Agosto de 2009, tendo as assinaturas dos ora embargantes, por si e na qualidade de gerentes da sociedade locatária, sido reconhecidas por advogado.

E) Por força da alteração das rendas, na sequência do aditamento referido, foi enviada, sob registo e com aviso recepção, à sociedade subscritora da livrança, a firma TRAMSPORTES A. S.A., o novo Plano de rendas.

F) Conforme ponto 2.5 das condições particulares do contrato de locação mobiliária, “Para garantia do bom pagamento de qualquer obrigação ou responsabilidade emergentes do presente contrato, o Locatário entrega à C. Leasing, SA uma livrança por si subscrita e avalizada por Nome: A. e B. , livrança essa que, desde já autoriza (m) a C. Leasing. SA a, em caso de incumprimento e/ou resolução do presente contrato, preencher pelo valor que for devido, conforme o preceituado no pacto de preenchimento da Livrança e o estipulado nos artigos 19º e 20º das Condições Gerais”.

G) Segundo o artigo 23º das Condições Gerais do referido contrato: “Como garantia das obrigações assumidas no presente contrato, poderão ser constituídas a favor do Locador quaisquer garantias, nos termos em que vierem a ser ajustados entre as partes, nomeadamente a subscrição da livrança em branco, acompanhada do respectivo acordo de preenchimento, subscrito pelo locatário e avalizada por terceiros identificados no presente contrato e correspondências associada como “avalistas”.

H) Simultaneamente foi entregue ao ex- C. Leasing o “Pacto de Preenchimento da Livrança” do contrato de locação financeira 74784, do qual expressamente consta: “Pela presente, na qualidade de subscritor (es) do (amos) o meu/nosso consentimento expresso e irrevogável para que, em caso de incumprimento e/ou resolução do contrato acima referenciado, a Livrança que junto se envia, seja pelo C. Leasing, SA. preenchida pelo valor que for devido, fixando-lhe a data de emissão e de vencimento, bem como o local de pagamento. Assim, caso se verifique alguma das referidas situações, será a livrança accionada, sendo o montante, o correspondente ao somatório da (s) renda (s) vencida (s) e não paga (s), das rendas vincendas, juros e encargos decorrentes do preenchimento da mesma, outras despesas contratuais e tudo o mais que for devido, tal como previsto nomeadamente, nos artigos 19º, 20º e 22º das Condições Gerais e, ainda, as despesas judiciais e extra-judiciais, incluindo honorários de advogados e solicitadores, necessários à boa cobrança de valores titulados pela livrança.

I) O referido “Pacto de Preenchimento de Livrança” mostra-se assinado pela subscritora da livrança constando igualmente expressamente do dito documento a seguinte “Declaração do (s) Avalista (s): “Na qualidade de avalista (s) declaro/declaramos que tenho/temos perfeito conhecimento do conteúdo das responsabilidades assumidas pelo (s) subscritor (es), das consequências do incumprimento temporário ou definitivo, da resolução, da caducidade do Contrato de Locação Financeira, do seu montante e dos termos do presente pacto, ao qual dou/damos o meu/nosso total acordo, sem excepções ou restrições de tipo algum, autorizando assim e por isso o preenchimento da livrança nos termos exarados

J) O contrato de locação financeira atento o aditamento mencionado previa um pagamento de 72 rendas, com vencimentos mensais e sucessivos, com início em 08/06/2007, sendo o valor residual de €576,00.

K) Do referido contrato foram pagas as trinta e duas primeiras rendas e, posteriormente, a trigésima quarta.

L) Do artigo 19º das Condições Gerais do referido contrato, sob a epígrafe “Resolução” resulta que “1 – O presente contrato poderá ser resolvido por iniciativa do Locador, para além dos casos previstos na Lei: a) Sempre que o Locatário se atrasar no pagamento de qualquer renda de locação ou qualquer outro débito conexo com o presente contrato; b) Sempre que, e independentemente de interpretação o Locatário passe a estar sujeito a processo especial de recuperação de empresas e protecção de credores ou falência, sua dissolução ou liquidação, ou contra ele correr execução ou providência cautelar em que esteja ou possa estar em causa o bem locado; c) Sempre que exista manifesta detioração da situação económico financeira do Locatário, bem como, de práticas pelo mesmo de delapidação ou qualquer outra forma de alienação patrimonial, que possa fazer perigar as garantias inerentes ao presente contrato; d) Sempre que o Locatário incumpra definitivamente qualquer das suas obrigações não pecuniárias decorrentes deste contrato. O incumprimento temporário destas obrigações do Locatário tornar-se-á definitivo com o envio ao Locatário pelo Locador de carta registada com aviso de recepção intimando-o ao cumprimento em prazo que desde já é fixado em oito dias. 2 – Nos casos previsto nas alíneas a), b) e c) do número anterior, o Locador enviará ao Locatário carta registada com aviso de recepção em que lhe comunicará a resolução do contrato e identificará os seus fundamentos, podendo este precludir tal resolução nos termos da Lei. 3 – No caso indicado na alínea d) do número um deste artigo, o Locador enviará ao Locatário carta em que lhe comunicará o saldo em dívida decorrente da resolução entretanto operada.

M) Do artigo 20º das respectivas Condições Gerais, sob a epígrafe Direitos do Locador, resulta : “Quando o Locador resolver o contrato nos termos do artigo anterior, terá direito: a) A fazer definitivamente suas as rendas vencidas e pagas pelo Locatário; b) À restituição imediata do Equipamento; c) Ao pagamento, à data da resolução das rendas vencidas e não pagas, acrescidas dos respectivos juros de mora, encargos e portes de acordo com o preçário em vigor, do montante do capital financeiro em divida e de uma indemnização igual a 20% deste

N) Conforme consta do artigo 22º das ditas Condições Gerais sob a epigrafe Mora, 1“- A falta e pagamento pontual das rendas vencidas e/ou outros montantes devidos pelo Locatário, no âmbito do presente contrato, implica a obrigação de pagamento ao Locador de juros de mora e de encargos, nos termos dos números seguintes. 2 – Os juros de mora serão calculados pela adição à taxa de juro convencionada para o contrato, da sobretaxa máxima permitida por lei às sociedades de locação financeira. 3- Os encargos devidos por cada débito vencido e não pago pontualmente serão devidos, quando não haja lugar à resolução do contrato nos termos do artigo 19º e calculados por aplicação de uma percentagem fixada no preçário em vigor à data da constituição em mora, sobre os valores em falta, até ao limite máximo de 10% do respectivo montante”.

O) Conforme deixaram expresso antes da sua assinatura nas condições gerais do aludido contrato “o Locatário e o (s) Avalista (s) (indicados no Artº 6 das presentes Condições Particulares) declaram conhecer e aceitar plenamente as Condições Particulares e Gerais constantes do verso do presente Contrato de Locação Financeira e o Precário, aos quais dá(ão) a sua plena concordância, e confirma (m) que todas as informações indicadas estão correctas.

P) O exequente, por cartas de 25/05/2011, dirigidas aos executados/embargantes e por estes recebidas, declarou resolver o aludido contrato, o que confirmou por cartas de 27/03/2012, em conformidade com o teor dos documentos 12 a 20 da contestação, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.

Q) A livrança foi preenchida com consideração dos seguintes valores parcelares: o valor das rendas de €10.447,77, respectivos juros de €1.050,68, €1.476,00 de encargos, €6.275,62 de capital financeiro em dívida à data da resolução e €1.255,12 correspondente à indemnização de 20% de capital em dívida à data do incumprimento, €1.946,70 de juros de mora até à data do vencimento da livrança, e €112.,82 de imposto de selo da livrança.

*

Não ficaram por provar quaisquer factos com relevo para a decisão »

                                                           *

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Cumpre entrar sem mais na apreciação da questão supra enunciada, diretamente reportada ao mérito da sentença, na vertente da fundamentação de direito da mesma, a saber, que ocorreu incorreto julgamento de direito [artigos 405º e 406º, nº 1, do Código Civil], porquanto consta dos factos provados [sob a al. M)] que quando o locador resolver o contrato, o mesmo tem direito a haver, além do mais, o montante do “capital financeiro em dívida”.

Que dizer?

Abreviando razões, que inequivocamente improcede a argumentação recursiva.

É certo que da factualidade provada, mais concretamente sob a al. M) do elenco correspondente, resulta que assistiria à Exequente ora recorrente, em caso de resolução do contrato de locação ajuizado, reclamar o pagamento do “capital financeiro em dívida”.

Isso é o que consta literalmente da dita al. M), mais concretamente da sua parte final, a saber, «M) Do artigo 20º das respectivas Condições Gerais, sob a epígrafe Direitos do Locador, resulta : “Quando o Locador resolver o contrato nos termos do artigo anterior, terá direito: a) A fazer definitivamente suas as rendas vencidas e pagas pelo Locatário; b) À restituição imediata do Equipamento; c) Ao pagamento, à data da resolução das rendas vencidas e não pagas, acrescidas dos respectivos juros de mora, encargos e portes de acordo com o preçário em vigor, do montante do capital financeiro em divida e de uma indemnização igual a 20% deste”» [com sublinhados da nossa autoria].

Sucede que a sentença recorrida desde logo arredou a aplicação de uma tal cláusula contratual fazendo apelo à sua invalidade à luz do regime das cláusulas contratuais gerais.

Senão vejamos.

«(…)

Ora, se é certo que a cobrança das quantias discriminadas em i., ii., iv. tem cobertura contratual (cf. facto provado em M), e não nos suscita qualquer reserva quanto à sua legalidade), já a cobrança da quantia de €6.275,62 a título de capital financeiro em dívida à data da resolução (embora também resulte das condições gerais do contrato), está alicerçada numa cláusula que, no nosso modesto juízo, não poderá ser admitida, atentos os contornos do caso5 .

O banco embargado, ao optar pela resolução do contrato de locação financeira, está a declarar à locatária que pretende destruir os efeitos desse negócio, revelando-se o seu pedido de reembolso do capital financeiro – correspondente à exigibilidade antecipada das rendas – uma pretensão excessiva e desproporcionada do que ficou acordado entre as partes (tendo também em mente que essa vinculação ocorre em sede de cláusulas contratuais gerais de adesão).

Destarte, sabido que a resolução, nos termos previstos nos artigos 433.º, 289.º e 290.º do CC, destrói o direito às rendas vincendas, e que a pretensão indemnizatória do banco embargado se satisfaz pela cobrança da quantia correspondente a 20% desse capital financeiro (nada tendo sido alegado na contestação que justificasse a salvaguarda do seu interesse contratual positivo), julgamos que o credor, ao pretender cobrar o valor correspondente ao capital financeiro em dívida à data da resolução (rendas vincendas até ao fim do contrato), excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, nos termos previstos no artigo 334.º do CPC, devendo ser-lhe negada essa pretensão, o que se decidirá.

(…)

5 Com interesse para a solução jurídica que propugnamos vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.02.2009 disponível em http://www.gde.mj.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/07fb864d462872b1802575600037be44?Ope nDocument.»

Ora, compulsando as alegações recursivas não pode deixar de se constatar que a Exequente ora recorrente nada aduz – em concreto e especificamente – para contrariar uma tal linha de argumentação [no que ao regime das cláusulas contratuais gerais diz respeito].

O que, salvo o devido respeito, bem se compreende, na medida em que não lograria êxito se tivesse optado por tal desiderato.

Na verdade, quanto a nós, seria manifestamente caso para se concluir pelo incumprimento do dever de informação e esclarecimento da contraparte, vigente no campo das cláusulas contratuais gerais [cf. arts. 5º e 6º do DL nº 446/85, de 25 de Outubro], donde dever ter-se tal cláusula por excluída, ex vi do art. 8º als. a) e/ou b) do mesmo diploma legal.

Atente-se que o ónus de prova do cumprimento desse ónus competia à Exequente ora recorrente[2], sendo certo que a mesma nada alegou nesse sentido, nem nada resulta da matéria provada em termos do cumprimento em causa.

E nem se argumente que da al.O) dos factos provados resulta materialidade que contraria o ora vindo de afirmar.

Rememoremos o teor literal desta alínea por último invocada, a saber:

«O) Conforme deixaram expresso antes da sua assinatura nas condições gerais do aludido contrato “o Locatário e o (s) Avalista (s) (indicados no Artº 6 das presentes Condições Particulares) declaram conhecer e aceitar plenamente as Condições Particulares e Gerais constantes do verso do presente Contrato de Locação Financeira e o Precário, aos quais dá(ão) a sua plena concordância, e confirma (m) que todas as informações indicadas estão correctas.”» [com sublinhado da nossa autoria]

Sucede que a par de um dever de comunicação, existe um específico dever de informação, que o acompanha, sendo certo que só assim não seria caso todo o clausulado fosse simples e acessível para a generalidade dos aderentes a que se destina.

Na verdade, a este propósito já foi doutamente sublinhado em aresto jurisprudencial, «(…)

2.–As cláusulas que dizem que os aderentes tiveram conhecimento e aceitaram as CCG (cláusulas confirmatórias ou de confirmação) têm, quando muito e observada que seja uma série de exigências, um valor de princípio de prova da comunicação dessas CCG, que teria de ser corroborado por outros meios de prova.

3.– A simples existência de uma cláusula de confirmação, aposta no rosto assinado do documento, não é sequer prova da comunicação da existência das CCG existentes no verso do documento.»[3]

A esta luz, cremos que sempre seria de excluir a aplicação/vigência da cláusula contratual em causa, por força do regime das cláusulas contratuais gerais.

Mas mesmo que assim se não entendesse, cremos que a igual conclusão – sobre não ter a Exequente/recorrente direito a haver o montante do “capital financeiro em dívida” na circunstância dos autos – importaria chegar, por força do que na sentença recorrida se sustentou a esse propósito por ser uma pretensão excessiva e desproporcionada do que ficou acordado entre as partes, em termos de exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, nos termos previstos no art. 334º do C. Civil, donde dever ser-lhe negada essa pretensão com base no instituto do abuso do direito.

Senão vejamos.

A resolução do contrato «consiste na destruição da relação contratual, validamente constituída, operada por um acto posterior de vontade de um dos contraentes, que pretende fazer regressar as partes à situação em que elas se encontrariam se o contrato não tivesse sido celebrado».[4]

A resolução do negócio pode fazer-se mediante declaração à outra parte, nos termos do art. 436º, nº1, do C.Civil., por ter havido incumprimento contratual do aqui Executado/Embargante/recorrido.

Na falta de disposição especial, a resolução é equiparada, quanto aos seus efeitos, à nulidade do negócio jurídico – art. 433º do C.Civil.

A nulidade tem efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente [cfr. art. 289º, nº1, do C.Civil]. Todavia, a resolução, por regra, também tem efeito retroativo, mas nos contratos de execução continuada, como é o caso do contrato em análise nos autos, ou seja, aqueles cujo cumprimento se prolonga ininterruptamente no tempo, ou periódica, mas a resolução não abrange as prestações já efetuadas, exceto se entre estas e a causa de resolução existir um vínculo que legitime a resolução de todas elas [cfr. art. 434º, nos 1 e 2 do C.Civil].

No caso vertente, a Exequente peticiona o pagamento de uma indemnização estipulada na dita cláusula contratual que efetivamente a pretende colocar na situação que estaria se o contrato tivesse sido integralmente cumprido – ou indemnização pelo interesse contratual positivo.

Sucede que em caso de resolução contratual, a posição clássica e largamente dominante, é a de que a tutela se resume ao interesse contratual negativo, ou seja, ao prejuízo que o credor não teria se o contrato não tivesse sido celebrado.[5]

Igualmente na Jurisprudência esta posição é a dominante.[6]

E assim sendo, por regra, a indemnização fundada no não cumprimento definitivo, que se cumula com a resolução, respeita apenas ao chamado interesse contratual negativo ou indemnização do dano de confiança, visando colocar o credor prejudicado na situação em que estaria se não tivesse sido celebrado o contrato, e não naquela em que se acharia se o contrato tivesse sido cumprido, ou em situação aparentada, como é o que resulta do artigo 20º das Condições Gerais do contrato em apreço [reproduzido nos factos provados sob a al. M)].

Nesta linha de entendimento, a Doutrina e a Jurisprudência dominantes defendem a incompatibilidade de cumulação entre a resolução do contrato e a indemnização correspondente ao interesse contratual positivo, sobretudo com fundamento no efeito retroativo da resolução e da incoerência da posição do credor, ao pretender, depois de ter optado por extinguir o contrato por resolução, basear-se nele para obter uma indemnização, correspondente ao interesse no seu cumprimento.

Dito de outra forma: salvo casos muito excecionais atendendo a especiais interesses em jogo, em regra, a indemnização fundada no não cumprimento definitivo, que se cumula com a resolução, respeita apenas ao chamado interesse contratual negativo ou de confiança, visando colocar o credor prejudicado na situação em que estaria se não tivesse sido celebrado o contrato, e não naquela em que se acharia se o contrato tivesse sido cumprido.

E é por assim ser que a exigência formulada pela Exequente/recorrente de ter direito a haver o montante do “capital financeiro em dívida” na circunstância dos autos deve ser vista como configurando uma pretensão excessiva e desproporcionada, e a significar uma atuação com abuso do direito.

Num sistema jurídico de check and balances, valorizando o critério de Justiça do caso concreto, o aplicador da lei pode realizar um escrutínio da especificidade da situação jurisdicional colocada à apreciação.

E na hipótese vertente, ao realizar a análise de todo o cenário de litigância, essa é a conclusão a que não se pode deixar de chegar.

No que respeita ao particular instituto de abuso de direito, estabelece o art. 334º do C.Civil que é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda, manifestamente, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Conforme vem sendo admitido pela nossa Jurisprudência, sob pena de se esvaziar de conteúdo o instituto do abuso de direito, sempre que as circunstâncias apontem para uma clamorosa ofensa do princípio da boa-fé e do sentimento geralmente perfilhado pela comunidade, importará reconhecer uma situação em que o abuso do direito servirá de válvula de escape, consagrada no nosso ordenamento jurídico.[7]

 Há abuso de direito quando um comportamento, aparentando ser o exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem.[8]

A conceção adotada de abuso do direito é a objetiva.

Não é necessária a consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, basta que se excedam esses limites.

Isto não significa, no entanto, que ao conceito de abuso do direito consagrado no art. 334º do C.Civil sejam alheios fatores subjetivos, como, por exemplo, a intenção com que o titular tenha agido.

A este propósito já foram doutamente abreviadas em seis tipologias (a exceptio doli, o venire contra factum proprium, as inalegabilidades formais, a supressio e a surrectio, [são figuras baseadas nos mesmos fenómenos - decurso do tempo, boa-fé e tutela da confiança - mas de sentido inverso, na medida em que no primeiro caso, o decurso de um longo período de tempo sem o exercício de um direito faz com que o seu titular perca a faculdade do seu exercício, ao passo que no segundo caso, a manutenção de uma situação durante um longo período de tempo faz surgir numa pessoa uma faculdade jurídica que de outro modo não teria], o tu quoque e o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas) as situações em que o instituto do abuso de direito poderá ocorrer e que nos permitirão, ao cabo e ao resto, ajustar padrões de atuação adequados a corporizar os conceitos jurídicos indeterminados em que está sustentado o instituto do abuso do direito.[9]

De referir que como bom critério para aferir distintivamente as situações, nos parece ser de seguir o que foi enunciado no aresto citado na decisão recorrida, no qual se reconhece que «pode, porém, excepcionalmente ter lugar indemnização por danos positivos», e acrescenta que «há pois que ponderar os interesses em jogo no caso concreto e, perante eles, conceder ou denegar o caminho, particularmente estreito, da indemnização pelo interesse contratual positivo. Nesta ponderação, tem, a nosso ver, uma palavra a dizer o princípio da boa fé.»[10]

Ora é isso que não se consegue concluir no caso vertente relativamente à Exequente ora recorrente, na medida em que ao declarar a resolução do contrato e cumulando com a reclamação do que estava vencido e em dívida, pretende ainda cobrar o valor correspondente ao capital financeiro em dívida (à data da resolução) correspondente às rendas vincendas até ao fim do contrato.

Tal pretensão afigura-se-nos efetivamente ser excessiva e desproporcionada face ao que ficou acordado entre as partes.

Admitir o direito à Exequente ora recorrente a tal reclamar seria tutelar uma situação que excede manifestamente os limites impostos pela boa fé.

Deste modo, e sem necessidade de outros considerandos, entendemos que “in casu” não é devida à Exequente a peticionada indemnização do parcial de € 6.275,62 e, consequentemente, apenas assistindo à mesma Exequente o direito a reclamar € 77,34 de imposto de selo da livrança.

Nestes termos improcedendo inapelavelmente o recurso.

                                                           *

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

(…)                                                                *

6 - DISPOSITIVO

Assim, face a tudo o que se deixa dito, acorda-se em julgar improcedente o recurso e, em consequência, manter a sentença recorrida nos seus precisos termos.

Custas do recurso pela Exequente/recorrente.                                                                                                                      Coimbra, 18 de Janeiro de 2022

                                                            Luís Filipe Cravo

                                                          Fernando Monteiro

                                                       António Carvalho Martins


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Carvalho Martins

[2] Cf., inter alia, o acórdão do TRG de 18.05.2017, proferido no proc. nº 2679/15.0T8BCL.G1, acessível em www.dgsi.pt/jtrg.
[3] Trata-se do acórdão do TRL de 27.05.2021, proferido no proc. nº 12753/19.7YIPRT.L1-2, acessível em www.dgsi.pt/jtrl.
[4] Cfr. ANTUNES VARELA, in “Das Obrigações em Geral”, Vol, II, a págs. 238.
[5] Cfr. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, in “Código Civil Anotado”, Vol. II, a págs.58; ANTUNES VARELA, in “Das Obrigações em Geral”, Vol. II, a págs.109; ALMEIDA COSTA, in “Direito das Obrigações”, a págs. 1045; ANTÓNIO PINTO MONTEIRO, in “Cláusula Penal e Indemnização”, a págs. 693, e MENEZES LEITÃO, in “Direito das Obrigações”, Vol. II, a págs. 267.
[6] Cfr., inter alia, o acórdão do STJ de 15.12.2011, proferido no proc. nº 1807/08.6TVLSB.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[7] Assim no acórdão do STJ de 11.02.2015, proferido no proc. nº 174/12.8TBLGS.E1.S1, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[8] Neste sentido, vide FERNANDO AUGUSTO CUNHA E SÁ, in “Abuso do Direito”, 1973, Lisboa, a págs. 164-188.

[9] Assim por ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, in “Tratado de Direito Civil Português”, Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra, Livª Almedina, a págs. 249-269.
[10] Trata-se do acórdão do STJ de 12.02.2009, proferido no proc. nº 08B4052, também ele acessível em www.dgsi.pt/jstj.