Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
124/18.8T8FND-F.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: TRANSMISSÃO DE CRÉDITOS
HABILITAÇÃO DO ADQUIRENTE
LEGITIMIDADE PROCESSUAL
APENSO DE VERIFICAÇÃO DE CRÉDITOS
Data do Acordão: 05/04/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO – JUÍZO DE COMÉRCIO DO FUNDÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 54º, Nº 1, E 263º, Nº 1 DO NCPC.
Sumário: 1. A transmissão inter vivos não determina a suspensão da causa, sendo facultativa a habilitação do adquirente, continuando o transmitente a ter legitimidade para a causa, produzindo contra o adquirente, mesmo que este não intervenha, efeitos de caso julgado.

2. Transmitido o direito de crédito ou alienada a coisa objeto do litigio, embora já sem interesse na ação, por ter deixado de ser o sujeito ativo da relação substantiva, continua a ter legitimidade ad causam até ao seu termo, configurando-se a sua posição como substituto processual do adquirente.

3. Conhecida a cessão na pendência do apenso de verificação e graduação de créditos, o transmitente mantém a legitimidade para a causa até à habilitação do cessionário (artigo 263º, nº1 do nCPC); contudo, nas sequentes fases de satisfação dos créditos, seja pela liquidação e rateio do produto da massa pelos credores, seja pela aprovação de um plano, só ao verdadeiro e atual titular do direito de crédito é atribuída legitimidade para intervir nos autos (artigo 54º, nº1 nCPC).

4. A não convocação do verdadeiro titular do crédito, quando constitua um dos cinco maiores credores constituirá motivo de recusa da homologação de um plano que, em tais condições, vier a ser aprovado.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

Nos presentes autos de insolvência relativos A..., Lda., apresentado que foi um plano de insolvência pelo Administrador de Insolvência (A.I.) e submetido a votação na Assembleia para o efeito convocada de 04 de dezembro de 2019, fez-se constar da ata que tal plano obteve 38,41% de votos favoráveis, 45,10% de votos contra e 0,22% de abstenções.

Dentro do prazo de 10 dias, o ISS, IP. – Centro Distrital de (…) veio a apresentar o seu voto favorável.

Pela A.I. foi junto requerimento no qual afirma que, pela verificação da maioria qualificada de votos emitidos pelos credores com créditos reconhecidos, se encontra aprovado o plano de pagamentos:
i) Número total de credores presentes na assembleia – 97,05%;
ii) Votaram favoravelmente 50,89% dos credores reconhecidos;
iii) Votaram desfavoravelmente 45,10% dos créditos reconhecidos.

Pelo juiz a quo foi, a 20.12.2019, proferido o Despacho de que agora se recorre, no qual se fez constar que, tendo votado favoravelmente o plano de insolvência credores cujos créditos totalizam 50,89% com direito de voto, e que votaram contra credores cujos créditos representam 45,10% dos créditos com direito de voto, não se encontra verificada a maioria qualificada exigida para a verificação do quórum deliberativo a que se refere o artigo 212º CIRE (2/3 do valor total dos votos emitidos), declarando não aprovado o Plano de Insolvência apresentado pela A.I.

Não se conformando com tal decisão a Insolvente dela vem interpor recurso de Apelação, cujas alegações terminam com as seguintes conclusões:

A. O cerne do recurso prende-se com a legitimidade do voto de um credor que, previamente à assembleia de credores havia já cedido o seu crédito e que na Assembleia que apreciou o plano votou contra este plano.

B. De facto, a sentença proferida a 19 de Dezembro determina que “não se encontrar verificada a maioria qualificada exigida para a verificação do quórum deliberativo a que se refere o artigo 212.º n.º 1 do CIRE; refere a sentença que o plano de insolvência não foi aprovado por mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos e em consequência, declarou-se não aprovado o plano de insolvência apresentado pela Sra. Administradora da Insolvência, tendo para esta contabilização sido determinante o crédito do Credor Banco...

C. Resulta dos autos, designadamente do mapa dos créditos da Assembleia de Credores, elaborado pela Senhora Administradora, que o credor em causa representa um total de 39,34% dos créditos, o que tem como consequência que a sua não admissão à votação na Assembleia, como defende a Recorrente, tenha como consequência que a decisão do M.mo Juiz a quo haja de ser diversa daquela que foi tomada, atento a que sem este voto contra verifica-se a votação de dois terços de votos favoráveis ao plano.

D. Esta questão da legitimidade do Banco ... já oportunamente foi suscitada nos autos, em concreto no Apenso “E”, apresentado no dia 5 de Setembro de 2019.

E. Conforme resulta da comunicação anexada aquele requerimento (e que se anexa uma vez mais ao presente recurso) por carta datada de 12 de Agosto de 2019, a H... comunicou à Recorrente que o crédito detido pelo Banco ... havia sido cedido à entidade A..., S.A.

F. No apenso “E” veio o M.mo Juiz veio a decidir que enquanto não se mostrasse realizada a habilitação processual nos autos, que “Quanto à reportada cessão de créditos de fls. 116 a 118, não tendo até à data sido promovido nos autos o competente incidente de Habilitação de Cessionário e em face do disposto no artigo 263º, n.º 1, CPC, afigura-se-nos que o credor Banco ... continua a ter legitimidade para a causa, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do mesmo preceito quanto aos efeitos da decisão.”

ORA,

G. Não obstante este despacho, que até se compreendia no contexto do que estava em discussão no apenso em causa (no caso no Apenso E dos autos), é modesto entendimento da Recorrente que na presente situação apenas a Cessionária dos Créditos poderia votar na assembleia; e que tendo esta questão sido suscitada naquele Apenso em setembro, que até à Assembleia de Dezembro decorreu tempo suficiente para que as interessadas, no caso a Cedente ou cessionária, tivessem promovido a competente habilitação processual.

H. Não desconhece a Recorrente que nos termos do disposto no artigo 577º, n.º 1 do Código Civil, o credor pode ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito, independentemente do consentimento do devedor. De igual modo não se ignora o que dispõe o n.º 1 do artigo 582º do Código Civil, quando refere que “na falta de convenção em contrário, a cessão do crédito importa a transmissão, para o cessionário, das garantias e outros acessórios do direito transmitido que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente”.

I. O que está em causa é exatamente esta questão, que se extrai do numero 1 do artigo 582.º do Código Civil, que se delimitou supra em termos de legitimidade para um determinado credor poder votar na Assembleia quando é do conhecimento do devedor que já não é o titular do crédito.

J. Entende-se que conforme resulta da letra deste preceito, a cessão do crédito importa a transmissão, para o cessionário, das garantias e outros acessórios do direito transmitido que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente e essa cessão há muito que se havia consumado, razão pela qual não poderá o Cedente votar na Assembleia, atendo a que o direito a votar é inseparável do direito de crédito e assume-se no tocante a este como um direito acessório do direito transmitido.

K. De outro modo, a admitir-se o voto do Banco ..., tal implica a manutenção na esfera jurídica do novo banco de um direito que é em si mesmo inseparável de um crédito que esta entidade já não detém (e já não detinha na data da votação na assembleia).

L. Como é consabido e pacífico, a cessão produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada, ainda que extrajudicialmente, ou desde que ele a aceite”, artigo 583º, n.º 1 do Código Civil, que foi o que se verificou com a comunicação de 12 de Agosto de 2019, a partir da qual o crédito passou para a esfera jurídica da Cessionária.

M. No momento desta comunicação consumou-se definitivamente a substituição de credor originário por outro; ou seja, consumou-se a modificação subjetiva da obrigação, pois se até aí o contrato tinha apenas eficácia entre cedente e cessionário, a partir deste momento passou a ter eficácia também relativamente ao terceiro envolvido no negócio, no caso passou a ter efeitos relativamente ao devedor originário.

N. E se esta questão da eficácia do contrato da cessão de créditos tem suscitado algumas questões e controvérsias ao nível da doutrina e jurisprudência, a partir do momento em que ocorre a comunicação ao devedor, deixa de subsistir qualquer questão para se discutir a sua eficácia, até porque as questões que normalmente se colocam e subsistem prendem-se exatamente com os efeitos da cessão na esfera jurídica do devedor, se esta está ou não dependente da comunicação formal dos cedente e cessionário.

O. Assim, na situação em apreço nos presentes autos, no momento daquela Assembleia, a 4 de Dezembro, verificavam-se todas as condições objetivas e subjetivas atento a que a cessão de créditos já havia operado e, de igual modo, havia já sido comunicada à devedora por aquela comunicação de 19 de Agosto

P. Por outro lado, conforme notado, a devedora já no apenso “E” havia suscitado a legitimidade da cedente e entre este suscitar desta questão e a Assembleia de Credores decorreram mais de três meses, tempo mais que suficiente para se ter verificado a habilitação processual da Cessionária, o que deve ter como consequência a ilegitimidade do voto do Banco ...

Q. Pelo exposto é modesto entendimento da Recorrente que apenas a Cessionária dos Créditos poderia votar na assembleia e que tendo esta questão sido suscitada naquele Apenso em setembro, que até à Assembleia de Dezembro decorreu tempo suficiente para que as interessadas, no caso a Cedente ou cessionária, tivessem promovido a competente habilitação processual.

R. Conforme resulta da letra deste preceito, a cessão a cessão do crédito importa a transmissão, para o cessionário, das garantias e outros acessórios do direito transmitido que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente e essa cessão há muito que se havia consumado, razão pela qual não poderá o voto do Cedente Banco ... ser considerado na referida Assembleia de 4 de Dezembro, já que o direito a votar é inseparável do direito de crédito e assume- se, no tocante a este, como um direito acessório do direito transmitido.

Nestes termos, e nos mais de direito, sempre com o mui douto suprimento de V Ex.as que desde já se invoca, devem as presentes contra alegações serem recebidas e, após a sua normal tramitação, consideradas procedentes e, consequentemente, declarado que no âmbito de uma decência de créditos, só o cessionário pode votar na Assembleia que aprecie o plano, atento a que este direito a votar é inseparável do direito de crédito, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 582.º do Código Civil, tudo com as legais consequências, designadamente em termos de apreciação das votações do referido plano.
Pelos credores J... e Banco ..., S.A., foram apresentadas contra-alegações, no sentido da improcedência do recurso.
Dispensados que foram os vistos legais ao abrigo do disposto no nº4 do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – artigos 635º, nº 4, e 639º, do Novo Código de Processo Civil –, a questão levantada pelo apelante nas suas alegações de recurso, é uma só:
1. Se o Banco ... tinha legitimidade (processual) para intervir na votação do Plano de Insolvência apresentado pelo A.I., pelo facto de o respetivo crédito haver sido cedido a terceiro.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
São os seguintes os factos com interesse para a decisão da questão em apreço:
1. Da lista de créditos reconhecidos apresentada pelo A.I. consta como reconhecido ao Banco ... um crédito no valor global de 486.057,03 €, correspondente a uma percentagem de 39,34% do total de créditos reconhecidos.
2. Por despacho de 02 de abril de 2019, com valor de sentença, foi verificado e reconhecido ao Banco ... um crédito aquele seu crédito, no valor global de 486.057,03 €.
3. Por requerimento de 05 de setembro de 2019, a devedora/Insolvente veio comunicar aos autos que, por carta data de 12 de agosto de 2019, fora notificada da cessão do crédito do Banco ... a favor da entidade A..., S.A..
4. A 11 de setembro de 2019, no Apenso E – Reclamação de Créditos –, foi proferido o seguinte despacho: “Quanto à reportada cessão de créditos de fls. 116 a 118, não tendo até à data sido promovido nos autos o competente incidente de Habilitação de Cessionário e em face do disposto no artigo 263º, nº1 CPC, afigura-se-nos que o credor Banco ... continua a ter legitimidade para a causa, sem prejuízo do disposto no nº3 do mesmo preceito quanto aos efeitos da decisão”.
5. A 01 de outubro de 2019 foi proferida sentença de verificação relativamente aos créditos impugnados e de graduação dos créditos verificados.
6. A 04 de dezembro de 2019 teve lugar a Assembleia para Apreciação e Votação do Plano de Insolvência, na qual, entendendo o juiz encontrarem-se presentes créditos cujos créditos constituíam pelo menos 1/3 do total dos créditos com direito a voto, foi o Plano submetido a votação, fazendo-se constar da respetiva Ata que tal plano obteve 38,41% de votos favoráveis, 45,10% de votos contra e 0,22% de abstenções.
7. O credor Banco ..., S.A., foi um dos credores que votou contra, representando o seu crédito 39,34% do total de créditos verificados.
Insurge-se a Apelante/Insolvente contra a contabilização do voto exercido pelo Banco ... (voto contra a aprovação da medida), pelo facto de o mesmo ter cedido o seu crédito a terceiro, notificação que é eficaz por lhe ter sido devidamente notificada, pelo que, em seu entender, apenas a Cessionária poderia votar na assembleia, sendo que, desde que a questão foi suscitada no Apenso E havia já decorrido tempo suficiente para que as interessadas, no caso, a cedente ou a cessionária, tivessem promovido a competente habilitação processual.
Apreciemos, assim, a questão da legitimidade do Banco ..., S.A., para participar e votar na Assembleia de Credores para discussão e votação do Plano de Insolvência apresentado pelo A.I., quando, à data da sua realização, fora já dado conhecimento aos autos de que o Banco ... transmitira o seu crédito a um terceiro.
Dispõe o artigo 263º do Código de Processo Civil[1], sob a epígrafe “Legitimidade do transmitente – Substituição deste pelo adquirente
1. No caso de transmissão, por ato entre vivos, da coisa ou direito litigioso, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa, em substituição processual do adquirente, enquanto este não for, por habilitação, admitido a substituí-lo.
2. A substituição é admitida quando a parte contrária esteja de acordo e, na falta de acordo, só deve recusar-se a substituição quando se entenda que a transmissão foi efetuada para tornar mais difícil, no processo, a posição da parte contrária.
3. A sentença produz efeitos em relação ao adquirente, ainda que este não intervenha no processo, exceto no caso de a ação estar sujeita a registo e o adquirente registar a transmissão antes de feito o registo da ação.
De tal norma resulta que o transmitente, transmitido o direito de crédito ou alienada a coisa objeto do litígio, embora já sem interesse na ação, por ter deixado de ser o sujeito ativo da relação substantiva, continua a ter legitimidade ad causam até ao seu termo, configurando-se a sua posição como substituto processual do adquirente, até que ocorra a sua habilitação[2].
Ou seja, é pacífico o entendimento de que a transmissão inter vivos não determina a suspensão da causa, sendo facultativa a habilitação do adquirente, continuando o transmitente a ter legitimidade para a causa, produzindo contra o adquirente, mesmo que este não intervenha, efeitos de caso julgado (artigo 263º, nº3)[3].
Contudo, como salienta Paula Costa e Silva[4], as estatuições fundamentais do artigo 271º (atual 263º) – perpetuação da legitimidade do transmitente e vinculação do transmissário à sentença –, dependem da verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: i) a pendência de uma ação; ii) a existência de uma coisa ou direito litigioso; iii) a transmissão da coisa ou direito litigioso na pendência da ação por acto intervivos; iv) o conhecimento da transmissão durante a ação.
Visando o artigo 263º os casos de transmissão de coisas ou direitos litigiosos, a sua aplicação encontra-se dependente da existência de um litígio, sendo que, constituindo este o objeto do processo, pode ser decomposto em dois elementos, um conflito de interesses e uma pretensão, acrescido de uma resistência.
Pressupõe, assim, a pendência de uma ação, pelo que, se a transmissão ocorrer depois do encerramento da discussão, o tribunal estará impossibilitado dela conhecer face ao disposto no artigo 611º, nº1, CPC – a sentença deve tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à propositura a ação, de modo a que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão –, pelo que, se tiver relegado a questão da legitimidade para final, o que terá de apreciar é a legitimidade do transmitente, de acordo com a matéria apurada até ao momento exatamente anterior a esta ultima fase processual.
Quer isto dizer que um dos pressupostos de aplicação do artigo 273º é a pendência de uma ação declarativa, uma vez que, quanto à legitimidade para a ação executiva, dispõe o nº 1 do artigo 54º CPC (anterior 56º):
“1. Tendo havido sucessão no direito ou na obrigação, deve a execução correr entre os sucessores das pessoas que no título figuram como credor ou devedor da obrigação exequenda; no próprio requerimento para a execução o exequente deduz os factos constitutivos da sucessão.”
De tal norma se extrai não ter o legislador optado por uma perpetuação da legitimidade do transmitente para uma eventual fase executiva, sendo necessário que os sucessores no direito ou na obrigação sejam habilitados no próprio requerimento inicial da execução, sob pena de os seus antecessores, caso intervenham como partes principais na execução, serem julgados partes ilegítimas[5].
Ou, como afirma José Lebre de Freitas[6], o artigo 54º comporta uma especialidade da ação executiva no que respeita ao caso de transmissão por ato entre vivos do direito litigioso: enquanto na ação declarativa o transmitente continua a ter legitimidade para a causa enquanto não for admitido a substituí-lo, na ação executiva apenas este tem legitimidade para litigar.

No caso em apreço o insolvente veio dar conhecimento ao processo de insolvência da cessão de créditos que lhe fora notificada por requerimento datado de 5 de setembro de 2019, numa altura em que havia já sido proferida decisão de verificação dos créditos não impugnados, entre os quais se incluía o crédito do Banco ..., mas em que não havia sido ainda proferida sentença de verificação dos demais créditos impugnados e de graduação de todos os créditos verificados.

Ou seja, poderemos assim afirmar, sem grande margem para dúvidas, de que nos encontrávamos “na pendência” do procedimento respeitante à verificação e graduação de créditos (a que respeita o Apenso E), razão pela qual, o juiz a quo, então, e bem, proferiu decisão no sentido de que “não tendo até à data sido promovido nos autos o competente incidente de Habilitação de Cessionário e em face do disposto no artigo 263º, nº1 CPC, afigura-se-nos que o credor Banco ... continua a ter legitimidade para a causa”.

Vem agora a devedora/Insolvente questionar a legitimidade do transmitente Banco ... para participar e votar na Assembleia de Credores para discussão e aprovação do Plano de Insolvência apresentado pelo A.I. (assembleia prevista no artigo 209º), legitimidade que, nesta fase, assume contornos não necessariamente semelhantes aos verificados no Apenso da verificação e graduação de créditos.

De harmonia com o disposto no artigo 1º do CIRE, o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem por finalidade a liquidação de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista no plano de insolvência.

Constituindo o processo de insolvência um processo especial e complexo, composto por procedimentos declarativos e procedimentos executivos, Catarina Serra[7] qualifica o poder de requerer a declaração de insolvência como um poder de ação declarativa, sustentando que, só na fase da reclamação e verificação de créditos, é dada aos credores (neles se incluindo o requerente) a faculdade de exercerem o seu poder de execução.

Como sustenta Catarina Serra, os credores estão a exercer o seu poder de execução no processo de insolvência quando fazem valer judicialmente o direito de ser satisfeitos à custa do património do devedor, ou seja, quando reclamam os seus créditos[8].

Contudo, e uma vez que os titulares de créditos não necessitam, sequer, de se encontrar munidos de um título executivo, o direito de execução de cada um dos credores tem de ser objeto de certificação, sendo antecedido e aferido através de um novo procedimento declarativo pelo qual cada um dos credores reclama o seu direito, com a consequente faculdade de impugnação dos demais créditos reclamados e respetivas garantias, seguido da consequente decisão sobre os créditos reclamados e garantias que os acompanham, culminando na determinação da sua graduação pelo produto dos bens da massa falida.

O concurso de credores compreende, assim, duas fases, a fase da verificação de créditos – fase declarativa para apuramento dos créditos reclamados – e uma fase executiva na qual se procede à liquidação do património do devedor/insolvente e à distribuição do produto da venda, em conformidade com o decidido na sentença de verificação e graduação de créditos ou à satisfação de tais créditos pela forma prevista no plano de insolvência (artigo 1º CIRE)[9].

Nesta fase posterior, em que é exercido, de facto, o poder executivo – seja através da liquidação e repartição do produto obtido pelos credores, seja pela aprovação de um plano de insolvência – terá de ser o efetivo titular do crédito, ou seja, neste caso o cessionário que detém legitimidade, seja para participar no procedimento de liquidação dos bens da massa, seja para receber o respetivo pagamento.

Também no caso de discussão e aprovação de um plano – pressupondo os poderes de transacionar, seja votando o perdão de dívidas, seja na concessão de moratórias, seja na constituição ou extinção de garantias do crédito (ou como se lhes refere o artigo  196º, “providências com incidência no passivo” –, visando-se, também, através dele a satisfação dos credores, embora através de outros meios que não a liquidação do património do devedor ou para além desta, nos deparamos com um procedimento de cariz executivo.
Assim sendo, a conclusão a retirar do até aqui exposto é  que se, conhecida a cessão na pendência do apenso de verificação e graduação de créditos, o transmitente mantém a legitimidade para a causa até à habilitação do cessionário (artigo 263º, nº 1), nas sequentes fases de satisfação dos créditos, seja pela liquidação e rateio do produto da massa pelos credores, seja pela aprovação de um plano, só ao verdadeiro e atual titular do direito de crédito é atribuída legitimidade para intervir nos autos (artigo 54º, nº 1 CPC).
Passemos às consequências de tal ilegitimidade.
Sustenta a Apelante/Insolvente que, tendo-se consumado há muito a cessão do respetivo crédito, apenas a cessionária poderia ter exercido o direito de voto, pelo que não poderá o voto do Banco ... ser considerado na referida Assembleia de 4 de dezembro. Termina assim as suas conclusões do recurso, pedindo que seja “declarado que no âmbito de uma cedência de créditos, só o cessionário pode votar na assembleia que aprecie o plano (...), tudo com as legais consequências, designadamente em termos de apreciação das votações do referido plano”.
De tal alegação se retira que, para a Apelante/insolvente, a ilegitimidade do Banco ... importaria apenas a não consideração do seu voto, com a reavaliação da percentagem de credores presentes, bem como da percentagem de votos favoráveis, excluindo agora o voto contra do Banco ..., cujo crédito representava 39,34 €% da totalidade dos créditos reconhecidos.
Se as consequências de tal legitimidade se limitassem à não contabilização do voto emitido pelo Banco ..., tal significaria considerarmos presentes unicamente 57,71% - mais de um terço do total dos créditos com direito de voto, continuando-se a verificar o quórum constitutivo previsto no nº1 do artigo 212º do CIRE. Para que se tivesse por aprovada necessário seria que a medida proposta obtivesse mais de dois terços dos votos emitidos (1/3 de 702.687,85€, o designado quórum deliberativo). Tendo a medida obtido o voto favorável credores cujos créditos ascendem a 628.718,10€, os credores que votaram contra (não contabilizando agora o voto do Banco ...) ascendiam somente a um total de 71.260,75, pelo que a medida considerar-se-ia aprovada.
Em nosso entender, contudo, não podemos aceder em que as consequências da ilegitimidade do Banco ... para encabeçar aquele crédito no valor de 486.057,03 €, correspondente a 39,34 % da totalidade de votos reconhecidos e graduados, se possam limitar à não consideração do respetivo voto, com a validade e aproveitamento de todos os demais atos praticados na assembleia de credores em causa.
Com efeito, constituindo aquele um dos cinco maiores credores e sendo nos autos já então conhecida a cessão de tal crédito terceiro, era este terceiro e não o Banco ... que deveria ter sido avisado do dia, hora e local da reunião, por circular expedida sob registo, com uma antecedência mínima de 10 dias, da assembleia de credores (art.75º, por força do nº 1 artigo 209º, CIRE).
A ausência de tal notificação constitui a omissão de um ato prescrito por lei e que, como tal e segundo a lei geral, constituiria uma nulidade “quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa” (artigo 195º, nº 1 CPC).
Embora o CIRE não disponha diretamente sobre as consequências que, em geral, possam acarretar a realização de assembleia de discussão e votação do plano, que tenha sido convocada com violação de alguma das formalidades previstas no artigo 75º, por força do nº1 do art. 209º do CIRE, o seu artigo 215º comina com a sanção de recusa oficiosa da homologação do plano aprovado em assembleia “no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais[10].
Assim sendo, a irregularidade no iter processual conducente à publicidade de um plano de insolvência – ausência de convocação pessoal de um dos cinco maiores credores –, sempre importaria a recusa oficiosa do plano que se pudesse ter por aprovado na sequência da não contabilização do voto emitido pelo Banco ...
A apelação será de improceder, com a consequente manutenção da não homologação do plano.
IV – DECISÃO
 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a suportar pelo Apelante.                        

                                                                                         Coimbra, 04 de abril de 2020


V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.
1. A transmissão inter vivos não determina a suspensão da causa, sendo facultativa a habilitação do adquirente, continuando o transmitente a ter legitimidade para a causa, produzindo contra o adquirente, mesmo que este não intervenha, efeitos de caso julgado
2. Transmitido o direito de crédito ou alienada a coisa objeto do litigio, embora já sem interesse na ação, por ter deixado de ser o sujeito ativo da relação substantiva, continua a ter legitimidade ad causam até ao seu termo, configurando-se a sua posição como substituto processual do adquirente.
3. Conhecida a cessão na pendência do apenso de verificação e graduação de créditos, o transmitente mantém a legitimidade para a causa até à habilitação do cessionário (artigo 263º, nº1); contudo, nas sequentes fases de satisfação dos créditos, seja pela liquidação e rateio do produto da massa pelos credores, seja pela aprovação de um plano, só ao verdadeiro e atual titular do direito de crédito é atribuída legitimidade para intervir nos autos (artigo 54º, nº1 CPC).
4. A não convocação do verdadeiro titular do crédito, quando constitua um dos cinco maiores credores constituirá motivo de recusa da homologação de um plano que, em tais condições, vier a ser aprovado.


[1] Correspondendo ao antigo 271º do CPC de 1961 e em redação semelhante à do Código de 1939.
[2] Salvador da Costa, “Os Incidentes da Instância”, 5ª ed., Almedina, p.278.
[3] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 1º. Artigos 1º a 361º, 3ª ed., Coimbra Editora, Setembro 2014, p. 693., e Salvador da Costa, “Os Incidentes da Instância”, 5ª ed., Almedina, p.278
[4] “A Transmissão da Coisa ou Direito em Litígio, Contributo para o Estudo da Substituição Processual”, Coimbra Editora 1992, pp.59-60.
[5] Paula Costa e Silva, obra citada, p.63-64.
[6] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 1º, Artigos 1º a 361º, 3ª ed., Coimbra Editora 2014, p.111. Ainda segundo tal autor, compreende-se o porquê de tal tratamento diferencial: enquanto na ação declarativa a manutenção da legitimidade do transmitente encontra justificação na proteção da parte contrária contra a excessiva dilação da ação em curso e a formação de caso julgado quanto ao adquirente constitui obstáculo à eventualidade de nova ação declarativa instaurada por este, “na ação executiva, que visa a realização coativa do direito do credor/exequente, postulando por isso o emprego, efetivo ou potencial, da força, é necessário garantir, no caso de ter havido sucessão na parte ativa da obrigação, a vontade do credor atual de recorrer aos dispositivos coercitivos e, no caso de ter havido sucessão na parte passiva, a eficácia dessas medidas, pois, sendo o devedor o adquirente, apenas os seus bens estão sujeitos à execução (art. 601º CC e 735º-1).
[7] “O fundamento público do processo de insolvência e a legitimidade do titular do crédito litigioso para requerer a insolvência do devedor”, Revista do Ministério Público, Jan/Março 2013, Ano 34, nº 133, pp.97-123.
[8] – “A Falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito – O problema da Natureza do Processo de Liquidação Aplicável à Insolvência no Direito Português”, Coimbra Editora 2009, p. 267.
[9] Nas palavras de Catarina Serra, a falência é um processo complexo, composto de momentos de natureza executiva, como as fases de liquidação e de repartição do ativo, e de momentos de natureza estritamente declarativa, como as fases de abertura do processo e de verificação do passivo – “A Falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito – O problema da Natureza do Processo de Liquidação Aplicável à Insolvência no Direito Português”, Coimbra Editora 2009, p. 145.
[10] Como sustentam Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, “Normas procedimentais são, pois, todas aquelas que regem a atuação a desenvolver no processo, que incluem os passos que nele devem ser dados até que a assembleia de credores decida sobre as propostas que lhe foram presentes – incluindo, por isso as relativas à sua própria convocatória e funcionamento – e, bem assim, as relativas ao modo como ele deve ser elaborado e apresentado” – Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2ª ed., Quid Juris Lisboa 2013, p.826, nota 4.