Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1312/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: ESTEVES MARQUES
Descritores: PROVA ANTECIPADA
SEGREDO DE JUSTIÇA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
REQUERIMENTO
PROTESTO
PODER DE DIRECÇÃO
Data do Acordão: 05/10/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ANADIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 89º DO C. P. PENAL, ART.º 75º DO ESTATUTO DA ORDEM DOS ADVOGADOS E ART.ºS 322º E 323º DO C. P. PENAL
Sumário: 1. A tomada de declarações para memória futura não legitima a consulta, pelo arguido, de peças do inquérito em segredo de justiça e a que aquele não tem acesso nos termos gerais.
2. Quanto a essas declarações, o contraditório observa-se com a presença facultativa do arguido, seu Advogado e Ministério Público, com a possibilidade de estes solicitarem ao Juiz a formulação de perguntas adicionais, e com a possibilidade de a prova assim conseguida ser impugnada e contraditada por quaisquer outras provas em julgamento.

3. O Advogado tem a faculdade de, no decurso das diligências, requerer e apresentar os protestos que entenda convenientes, mas é ao Juiz, no âmbito dos seus poderes de disciplina e direcção dos trabalhos, que compete decidir o momento em que tal é consignado em acta..

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO

Nos autos de Inquérito nº 707/05.6TAAND, dos Serviços do Ministério Público, do Tribunal Judicial da Comarca de Anadia, foi determinada a tomada de declarações para memória futura à menor A..., suposta vítima do arguido B....
No início dessa diligência pelo Exmº defensor do arguido foi requerido que lhe fosse facultado para consulta, o auto de declarações já prestadas pela ofendida em sede de inquérito.
Tal pretensão mereceu da Exmª juiz o seguinte despacho:
“ Nos termos do disposto no art. 89° do C.P.P. se o Ministério Público não tiver ainda deduzido acusação, o arguido só pode ter acesso a auto na parte respeitante a declarações prestadas e a requerimentos e memoriais por ele apresentados bem como a diligências de prova a que pudesse assistir ou a questões incidentais a que devesse intervir ressalvando-se o disposto no art. 86°, n° 5 do mencionado diploma legal. -
Sendo certo que o ora requerido não diz respeito nem a declaração prestada nem a requerimentos ora apresentados pelo arguido nem a questões incidentais sendo que igualmente se não refere a uma diligência de prova que pudesse assistir (cfr. art. 61°, 64° e 86° do C.P.P.) indefiro o ora requerido. “
No desenvolvimento da diligência e conforme se alcança da acta, pela menor foi dito “ não querer falar à frente das pessoas presentes, mas querer ficar de mão dada com a sua mãe”, o que foi deferido pela Mmª juiz, tendo o ilustre mandatário do arguido manifestado oposição.
Nessa altura, foi então pedida a palavra pelo ilustre defensor do arguido, para fazer um requerimento.
Foi então proferido pela Mmª juiz o seguinte despacho:
“ Face ao visível nervosismo da menor, e atento o lapso de tempo já decorrido desde o início da diligência determina-se que o requerimento seja apresentado a final de forma a que a presente diligência possa decorrer sem prejudicar a espontaneidade do seu depoimento”.
Acto contínuo, por aquele ilustre mandatário foi dito que pretendia lavrar protesto, o qual mereceu da Mmª juiz o seguinte despacho:
“ Face às razões invocadas determino que o mesmo seja lavrado a final”.
É destes despachos (em itálico) que o arguido vem interpôr recurso, concluindo a sua motivação pela seguinte forma:
“ 1 - Ao decidir não dar conhecimento à defesa, em sede de diligência para tomada de declarações para memória futura, do depoimento anteriormente prestado pela testemunha em sede de inquérito, violou o douto despacho sob recurso o disposto no n° 5 do art° 86° C.P.P. e o disposto nos nºs 1 e 5 do art° 32° da Constituição da República Portuguesa o que constitui nulidade, que, oportunamente invocada pelo arguido, deverá de acordo com o disposto no n° 1 do art° 122° C.P.P. determinar a invalidade do acto em que foi praticada.
2- Ao não aceitar protesto interposto pelo mandatário do arguido no momento em que este o pretendia lavrar, relegando tal protesto para momento posterior da diligência, violou o tribunal ad quo o art° 75° da Lei 15/2005 de 26 de Janeiro, bem como o disposto nos nºs 1 e 5 do art° 32° da Constituição da República Portuguesa, o que constitui nulidade que, oportunamente invocada, deverá determinar a invalidade do acto em que foi praticada.”
O MP na sua resposta conclui que deverá ser negado provimento ao recurso interposto.
Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer concluindo que deverá o recurso ser julgado improcedente.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

FUNDAMENTAÇÃO

Comecemos então pela primeira questão suscitada, isto é saber se deveria ou não ter sido deferida, no âmbito de diligência de declarações para memória futura, a consulta de um auto de declarações prestadas anteriormente pela ofendida em sede de inquérito.
Pois bem estabelece o artº 89º CPP:
"1. Para além da entidade que dirigir o processo, do Ministério Público e daqueles que nele intervierem como auxiliares, o arguido, o assistente e as partes civis podem ter acesso a auto, para consulta, na secretaria ou noutro local onde estiver a ser realizada qualquer diligência, bem como obter cópias, extractos e certidões autorizados por despacho, ou independentemente dele para efeito de prepararem a acusação e a defesa dentro dos prazos para tal estipulados na lei.
2. Se, porém, o Ministério Público não houver ainda deduzido acusação, o arguido, o assistente, se o procedimento criminal não depender de acusação particular, e as partes civis só podem ter acesso a auto na parte respeitante a declarações prestadas e a requerimentos e memoriais por eles apresentados, bem como a diligências de prova a que pudessem assistir ou a questões incidentais em que devessem intervir, sem prejuízo do disposto no artigo 86º nº 5. Para o efeito, as partes referidas do auto ficam avulsas na secretaria, por fotocópia, pelo prazo de três dias, sem prejuízo do andamento do processo. O dever de guardar segredo de justiça persiste para todos.
3. ........
4. ........ .”
Por seu turno, o art.º 86.º, n.º 5 CPP dispõe que:
“ Pode todavia, a autoridade judiciária que preside à fase processual respectiva dar ou ordenar ou permitir que seja dado conhecimento a determinadas pessoas do conteúdo de acto ou de documento em segredo de justiça, se tal se afigurar conveniente ao esclarecimento da verdade.”.
De tais normas decorre assim:
- que antes de ser deduzida a acusação o arguido só tem acesso às suas próprias declarações e requerimentos, bem como a diligências de prova a que pudesse assistir ou a questões incidentais em que devesse intervir.
- que, a faculdade do juiz permitir que seja dado conhecimento a determinadas pessoas de acto ou documento em segredo de justiça serve o interesse público do esclarecimento da verdade ( v. g. aos peritos), ou seja a investigação dos factos e não o interesse da defesa do arguido.
O que significa que nesta fase, como escrevem Simas Santos e Leal Henriques( Código de Processo Penal Anotado, 1º Vol., pág. 457.) “ O critério deverá ser sempre o da conveniência para o esclarecimento da verdade ( que não necessariamente para a sua descoberta), independentemente de isso poder servir a acusação ou a defesa”.
Deste modo, tendo as declarações da ofendida sido obtidas em momento anterior à dedução da acusação, carece de cobertura legal a pretensão do arguido em ter acesso às mesmas.
Por outro lado entendermos não fazer sentido a argumentação do recorrente de que tal contraria o princípio do contraditório.
É que é bom não esquecer que estamos tão só perante uma diligência de redução a auto de declarações para memória futura.
E nos termos do art.º 271º n.º 1 CPP, o mesmo tem lugar quando:
“ Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítimas de crimes sexuais, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição, no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.”.
E de harmonia com o nº 2 do referido preceito “ Ao Ministério Público, ao arguido, ao defensor e aos advogados do assistente e das partes civis são comunicados o dia, a hora e o local da prestação do depoimento, para que possam estar presentes se o desejarem”.
Significa isto que a presença dos referidos sujeitos processuais em diligência de inquirição para memória futura é facultativa.
Sendo a inquirição feita pelo juiz, podendo em seguida as pessoas referidas no número anterior solicitar ao juiz a formulação de perguntas adicionais e podendo ele autorizar que sejam aquelas mesmas a fazê-las – nº 3
Por outro lado nos termos do artº 355º nº 1 CPP, não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formar a convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência, o que significa que no que respeita aos depoimentos prestados para memória futura estes não podem ser excluídos, na fase do julgamento, altura em que cada um dos sujeitos processuais pode, juntamente com a demais prova, sindicar ou abalar a sua credibilidade.
Os meios de prova apresentados no decurso da audiência são submetidos ao princípio do contraditório, mesmo que tenham sido oficiosamente produzidos pelo tribunal. – artº 327º nº 2 CPP.
Como se escreveu no AcSTJ 91.04.19( BMJ 406, pág. 364), também numa situação de depoimento prestado para memória futura “Actualmente, face ao novo Código de Processo Penal, existe uma enorme preo-cupação no sentido de ser respeitado sempre o contraditório de todas as provas apre-sentadas, em cumprimento, aliás, do disposto no artigo 32.°, nº 5, da Constituição.
Porém, neste caso, dada a forma como o depoimento é prestado, essa contradi-toriedade apenas é alcançada com a presença facultativa do arguido, seu advogado ou Ministério Público e com a possibilidade de solicitarem ao juiz a formulação de perguntas adicionais, conforme os nºs 2 e 3 desse preceito.
A lei não obriga à presença do arguido ou seu defensor, já que é expressa em referir que são notificados «para que possam estar presentes se o desejarem» e não permite sequer o contra-interrogatório, mas apenas consente o direito de «solicitar ao juiz a formulação de perguntas adicionais».
Daqui resulta que as garantias da defesa são alcançadas com as circunstâncias de a prova ser produzida perante um juiz, com a faculdade de assistência do arguido e seu defensor. Mas, como é nítido, garantia para a defesa, no sentido de que a prova assim conseguida poderá ser apresentada e aproveitada em julgamento.
Aí, pode ser impugnada e contraditada por outras quaisquer provas, no sentido de ser abalado e o seu valor é aceite pelo juiz nos precisos termos da forma como é apresentada.”.
Deste modo a defesa do arguido não sai prejudicada pelo facto de não ter acesso nesta fase às declarações em causa, já que a elas terá acesso em momento posterior e sempre antes do julgamento, momento em que poderá impugná-las e contraditá-las.
Improcede assim o recurso neste segmento.
Discorda ainda o recorrente do facto da Mmª juiz não ter aceite o protesto que pretendia lavrar no momento escolhido pelo ilustre mandatário, optando por relegá-lo para momento posterior da diligência.
Vejamos.
Dispõe o art. 75º nº 1 do EOA, aprovado pela Lei nº 15/2005 de 26 de Janeiro que:
“No decorrer de audiência ou de qualquer outro acto ou diligência em que intervenha o advogado deve ser admitido a requerer oralmente ou por escrito, no momento que considerar oportuno, o que julgar conveniente ao dever de patrocínio”.
Por sua vez no nº 2 do citado preceito consigna-se que:
“ Quando, por qualquer razão, não lhe seja concedida a palavra ou o requerimento não for exarado em acta, pode o advogado exercer o direito de protesto, indicando a matéria do requerimento e o objecto que tinha em vista.”.
Decorre assim claramente de tal norma que caberá sempre ao advogado avaliar de qual o momento que considera oportuno para a formulação do requerimento.
Porém essa avaliação não poderá ser entendida de forma absoluta.
É que a referida norma tem necessariamente de ser articulada com os preceitos que atribuem ao julgador o poder de disciplina de audiência e direcção de trabalhos ( artºs 322º e 323º CPP), sob pena da mesma poder transformar-se num factor de perturbação do bom andamento da audiência.
Por isso ao juiz cabe sempre a última palavra, incumbindo-lhe avaliar tão só das consequências que uma interrupção abrupta e imediata dos trabalhos, para o exercício do direito de protesto, possa ter no bom andamento dos trabalhos, sendo que, reconhece-se, que só razões muito fortes justificarão que não se conceda de imediato essa palavra ao advogado quer seja para formular o seu requerimento quer seja com vista a lavrar o protesto, por indeferimento do primeiro.
Como diz Alberto dos Reis( CPC Anotado, Vol. IV, pág. 511.), a propósito da direcção dos trabalhos, “Este poder é, por definição, inerente à função da presidência. Quem preside a qualquer sessão tem, naturalmente, o direito e o dever de dirigir a actividade que há-de ser exercida por todos quantos nela intervêm.”.
Reportando-nos agora ao caso dos autos cabe apreciar se havia motivo para não aceitar o protesto imediato do Sr. advogado, relegando-o para momento posterior dessa mesma diligência.
E a resposta parece-nos que não pode deixar de ser afirmativa.
Na verdade estava em causa a audição de uma criança de 9 anos de idade, alegadamente vítima de crime de natureza sexual.
A diligência desde o seu início já levava documentadas cerca de cinco páginas de processado, fruto nomeadamente de requerimentos apresentados pelo ilustre defensor do arguido.
Acresce que este manifestou igualmente oposição à pretensão da menor de não querer falar à frente das pessoas presentes, mas querer ficar de mão dada com a sua mãe.
A menor a tudo isso assistiu.
Conforme consta do despacho impugnado, foi determinante para que se relegasse para final o protesto, o “ visível nervosismo da menor” e o “ lapso de tempo já decorrido desde o início da diligência”.
E parece-nos que bem.
Ao juiz cabe ponderar não só o direito legalmente atribuído aos advogados de fazerem, quando entenderem oportuno, os requerimentos necessários à defesa dos interesses e direitos dos seus constituintes, mas também o caso concreto, considerando especialmente a protecção das vítimas, neste caso uma criança, e a necessidade de preservar a boa administração da justiça.
Ora não é preciso ser técnico da área psicológica, bastando tão só o recurso às regras da experiência, para afirmar que só por si a presença de uma menor de tão tenra idade em tribunal, para prestar declarações relativamente a crime sexual de que foi alegadamente vítima, agravada ainda por um longo período de requerimentos, tem consequências nefastas no seu equilíbrio psíquico-emocional, com naturais reflexos no depoimento.
Assim volvido um longo período após o início da diligência, impunha-se, para a boa administração da justiça e protecção da menor, ouvi-la de imediato, relegando para final a apresentação do protesto por parte do Sr. advogado, já que daí não adviria prejuízo para o recorrente e para a menor esse já era evidente, como consta do despacho recorrido.
Em suma a decisão não se mostra merecedora de qualquer crítica, não se mostrando por isso violados quaisquer preceitos legais, nem os indicados pelo recorrente, nem quaisquer outros.

DECISÃO

Por todo o exposto, acordam os Juizes desta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando-se inteiramente a douta decisão recorrida.
Fixar a taxa de justiça devida pelo recorrente em oito Ucs.
Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (Artº 94º nº 2 CPP)
Coimbra, 10 de Maio de 2006.