Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1501/15.1T8CTB.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: RECURSO DE FACTO
ÓNUS DE ESPECIFICAÇÃO
PASSAGENS DA GRAVAÇÃO
REJEIÇÃO
UNIÃO DE FACTO
DISSOLUÇÃO
EFEITOS PATRIMONIAIS
PARTILHA
DIVISÃO DE COISA COMUM
Data do Acordão: 03/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - C.BRANCO - JUÍZO FAM. MENORES
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.640 CPC, 1688, 1689, LEI Nº 7/2001 DE 11/5, LEI Nº 23/2010 DE 30/8
Sumário: 1. É de rejeitar a impugnação da decisão relativa à matéria de facto quando o recorrente, tendo sido gravados os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas, não indica quaisquer passagens da gravação em que se funda o seu recurso (art.º 640º do CPC), referindo-se, apenas, ao tempo integral dos registos da gravação e ao que entende ser o resultado factual da conjugação da prova pessoal invocada, de per si ou conjugada com os demais meios de prova.

2. As relações patrimoniais entre os cônjuges e entre estes e terceiros estão sujeitas a um estatuto particular, a que se chama “regime de bens do casamento” mas assim não sucede na união de facto - os membros da união de facto em princípio são estranhos um ao outro, ficando as suas relações patrimoniais sujeitas ao regime geral das relações obrigacionais e reais.

3. Extinta a relação, não valendo aqui o disposto nos art.ºs 1688º e 1689º do CC - que só ao casamento respeitam -, as regras a aplicar, à liquidação e partilha do património do casal, são as acordadas no “contrato de coabitação” eventualmente celebrado e, na sua falta, o regime geral das relações obrigacionais e reais.

4. Não está excluído que a liquidação do património do casal se faça segundo os princípios das sociedades de facto ou do enriquecimento sem causa.

Decisão Texto Integral:


           

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:       

           

I. Em 07.9.2015, N (…) intentou a presente acção declarativa para dissolução da união de facto e especial de divisão do património comum contra V (…), pedindo: a) seja decretada a dissolução da sua união de facto com a R.; b) seja reconhecido o seu direito de propriedade, em comum e sem distinção de parte ou direito, sobre o imóvel e anexos e sobre todo o recheio, sobre os veículos automóveis e os valores constantes da conta bancária de que a R. é titular; c) seja decretada a repartição igualitária entre o A. e R. de todo o património de ambos; d) alternativamente, “e caso se entenda não ser concedida a partilha nos termos supra expostos”, atribua uma “indemnização a título de enriquecimento sem causa da Ré, no valor de metade do acervo dos bens comuns”; e) seja atribuída ao A. “o gozo provisório da casa de morada de família caso a Ré não possa liquidar de imediato os valores em que vier a ser condenada ou até que os bens comuns sejam alienados, e o valor resultante seja repartido de igual forma entre ambos”.

Alegou, nomeadamente: viveu, ininterruptamente, em união de facto com a R., desde 30.4.2001 até 22.7.2015; desde o início da relação A. e R. trabalharam juntos em projectos artísticos e em colaboração estreita sendo que o A. era o principal angariador de clientes e o mentor artístico dos projectos; por razões de índole pessoal e de filosofia de vida, nunca trazia consigo dinheiro ou qualquer forma de pagamento, nem documentos, tendo deixado que a R. liderasse tudo o que respeitava à titularidade dos bens comuns, sendo, pois, esta quem geria formalmente a parte financeira do casal, nomeadamente, aquando da aquisição de veículos automóveis, da propriedade na qual licenciaram e construíram a sua casa e os respectivos ateliers artísticos, razão pela qual, pese embora o A. participasse das aquisições, das manutenções, das consultas junto de construtores e da decisão de adjudicação da obra, a titularidade registral sempre foi da R.; e tal era o grau de confiança do A. na R. que a conta bancária da Caixa (...) , com o n.º (…) do balcão de (...) , esteve sempre titulada no nome da R., sendo esta quem, normalmente, também detinha os cartões multibanco; apesar disso, o A. sempre participou e, frequentemente, liderou os projectos, as obras, os contactos com clientes e sempre depositou em tal conta todos os valores por si recebidos, designadamente, os rendimentos dos seus trabalhos de crítica de arte, que efectuou para diversas publicações; era o A. quem planeava e organizava o calendário e os locais das exposições individuais ou conjuntas, estabelecendo os contactos necessários junto das entidades ligadas ao meio cultural; a Quinta (...) , Casa do (...) , inscrita na matriz predial sob o artigo (...) º, secção N e descrita na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o n.º (...) , da freguesia de (...) , era, não só a casa de morada de família, como o local de trabalho do casal, no qual ambos investiram todas as suas economias ao longo dos anos pelos quais durou a união de facto; quanto aos veículos automóveis, os mesmos foram adquiridos com dinheiro que foi realizado na vida em comum das partes e aos quais o A. sempre teve acesso irrestrito; tinha em casa um cartão MB, bem como as senhas de acesso à conta bancária, efectuando todo o tipo de operações bancárias que foram sendo necessárias ao longo do tempo e sendo o mesmo quem realizava todos os movimentos ´on line`; a R. despejou do quarto do casal os bens pessoais do A., passando, a partir daí a ocupar ambos quartos separados e comunicou-lhe que teria de sair da casa até finais de Setembro.

Fixada a competência em razão da matéria (Juízo de Família e Menores), a Ré contestou, pugnando pela improcedência dos pedidos deduzidos pelo A., nas “alíneas b), d) e e)” e, quanto aos demais, pronunciando-se pela sua procedência, com as especificidades aludidas na contestação, ou seja, com os “efeitos” da dissolução da união de facto reportados a 22.7.2015 e pronunciando-se acerca dos bens que devem ser considerados próprios do A., próprios da R. e comuns a ambos.

Invocou, em síntese: era a única, ou praticamente a única, a auferir rendimentos ou donativos que permitiam ao casal fazer face às despesas que realizaram, rendimentos que provinham, quase exclusivamente, de doações dos seus pais; os contributos monetários que não provinham dos pais da R. derivavam do seu trabalho como artista plástica, contando, embora, com a colaboração do A..  rendimentos afectados para pagamento das despesas do ex-casal; é a única subscritora da escritura pública celebrada para aquisição do prédio rústico no qual foi construída a casa que passou a ser a residência do ex-casal sendo ela também a única adquirente dos equipamentos e bens que compõe a casa que foi de morada de família; durante os anos pelos quais durou a união de facto, o A. auferiu rendimentos apenas muito esporadicamente, sendo que o mesmo não tinha a sorte de ser apoiado financeiramente pelos seus pais; antes de iniciarem a união de facto, A. e R. trabalharam numa galeria de arte explorada por uma empresa propriedade da R., sendo o A. seu funcionário; a conta bancária aludida pelo A. na petição inicial (p. i.), era e é, exclusivamente, titulada pela Ré, onde eram depositados os rendimentos desta, provenientes do seu trabalho sendo que nunca aí foram depositados rendimentos do A., o qual, quando os tinha, fazia questão de os depositar numa conta bancária da sua exclusiva titularidade, da Caixa (...) ; o bem imóvel encontra-se registado a seu favor, tendo sido ela quem adquiriu o terreno onde a casa veio a ser construída, com verbas provenientes da venda de um prédio que tinha e com o apoio financeiro dos pais, o mesmo sucedendo com a construção da moradia, pois foi a R. quem a pagou, com a ajuda dos seus pais; a R. recorreu a um crédito bancário, no montante de 100 000 € para fazer face às despesas com a construção da casa, ficando responsável pelo pagamento das prestações tendo os seus pais sido fiadores nesse empréstimo; têm sido sempre os pais da R. a pagar as prestações mensais à banca, encontrando-se por pagar a quase totalidade do empréstimo; o contrato de empreitada relativo à construção da moradia foi celebrado exclusivamente com a R., tendo sido esta e os seus pais a proceder a pagamentos ao empreiteiro; os veículos automóveis são propriedade exclusiva da R..

Na sequência do despacho de 12.01.2016 que absolveu a R. da instância e do acórdão desta Relação de 08.11.2016, foi determinado o prosseguimento dos autos quanto aos pedidos “b) a e)” (como acção de processo comum), adaptando-se, para o efeito, o processado, nos termos conjugados dos art.ºs 37º, n.º 3 e 547º, do Código de Processo Civil (CPC).

Foi proferido despacho saneador que fixou o objecto do litígio e enunciou os temas da prova.

Realizada a audiência de julgamento, por sentença de 10.7.2018, a acção foi julgada parcialmente procedente e, absolvendo-se a Ré de tudo o mais que contra si foi peticionado, reconheceu-se ao A. o direito de propriedade em comum com a Ré sobre os seguintes bens: - Casa de Banho: um lavatório. - Corredor do quarto de casal: uma obra em vitrine (objecto) da série os balões de alquimia; uma escultura de C (…); um quadro “vandanuno”; um quadro vermelho de L (…); uma pasta quadrada em formato de azulejo de C (…); uma fotografia oferecida por M (…) e um cadeirão Olaio. - Quarto do fundo: um guarda fatos deco. - Hall: um sofá. - Sala (zona de jantar): uma obra fotográfica “vandanuno”; um móvel e uma mesa com 12 cadeiras; um quadro de J (…), uma mesa de cabeceira deco; uma escultura de parede e um sino tibetano. - Sala (zona de estar): uma escultura de C (…); uma escultura de parede e um conjunto de bases de copos de xisto. - Biblioteca: quadro “vandanuno”; um móvel oferecido por (…) e diversos catálogos. - Atelier de pintura: vários desenhos; várias molduras e vários cavaletes; - Atelier de joalharia: máquinas e ferramentas de joalharia diversas e ferramentas de joalharia diversas que se encontram na bancada de gavetas. - Atelier de escultura: inúmeros módulos de gavetas com ferramentas e um móvel de ferramentas. - Corredor: uma escultura “v(…)o” com espelho e auricular.

Inconformado, o A. apelou formulando as seguintes conclusões:

1ª - A sentença recorrida deu por assente o facto provado 1 mas não retirou daí todos os efeitos que tinha obrigação de tirar, no respeitante à economia comum/conjunta do casal.

2ª - Para lá desse facto o tribunal a quo deu por assentes os factos 5, 6 e 24, em flagrante contradição com os restantes na medida em que estes últimos acabam por esvaziar por completo aqueles, retirando-lhes o seu verdadeiro significado e alcance.

3ª - O imóvel descrito no facto provado 14 foi adquirido conjuntamente por A. e Ré durante o período de tempo em que viveram como se de marido e mulher se tratasse.

4ª - Existe nos autos prova suficiente que permite dar por assente um facto que deverá integrar os factos provados como facto 58 com a seguinte redacção: A. e Ré, por viverem como marido e mulher, tinham inevitável e necessariamente vida económico-financeira conjunta em total comunhão, sem distinção de partes ou quinhões.

5ª - Da reapreciação crítica da prova resultará a eliminação do elenco dos factos provados aquele identificado como facto 35, o que conduzirá ainda à eliminação de outros factos provados que pudessem/possam estar em decorrência lógica com o facto cuja eliminação se requer.

6ª - Da matéria de facto dada como provada, designadamente os factos 1, 5, 6 e 24, existe fundamento suficiente para julgar a acção totalmente procedente.

A Ré respondeu concluindo pela improcedência do recurso.

            Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa conhecer e/ou reapreciar: a) se o recorrente cumpriu os requisitos da impugnação da decisão de facto; b) decisão de mérito (cuja modificação depende, sobretudo, da eventual alteração da decisão de facto), considerada a figura da união de facto.


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II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

1) O A. viveu ininterruptamente com a R., como se de marido e mulher se tratassem, desde 30.4.2001 até ao dia 22.7.2015.

2) A. e R. são artistas plásticos.

3) Desde o início da relação, A. e R. trabalharam juntos em projecto artísticos, designadamente, no projecto artístico “V(…)”, em colaboração estreita, ficando a idealização das obras mais a cargo do A. e a sua execução da R., embora cada um pudesse desenvolver os seus próprios projectos, o que ocorria com menor frequência.

4) O A. participou nos processos negociais respeitantes à realização das obras e à fixação dos valores a cobrar pelas mesmas.

5) A. e R. participavam conjuntamente nos processos negociais referentes à angariação de clientes e à concretização dos negócios.

6) No decurso da relação mencionada em 1., era a R. quem, geralmente, se encarregava de gerir a parte financeira do casal, nomeadamente, aquando da aquisição de bens: veículos automóveis, o terreno no qual vieram a construir a casa na qual instalaram o seu dia a dia e os respectivos ateliers artísticos.

7) O A. raramente trazia dinheiro consigo ou qualquer outro meio de pagamento.

8) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial (CRP) de (...) , sob o n.º (...) /20030307, o prédio rústico, denominado “ (...) ”, situado em (...) , consistente numa construção rural, em olival, cultura arvense e mato, inscrito na matriz predial sob o artigo (...) º, secção N, com a área de 10484 m2.

9) Através da ap. 19 de 2005/03/04, foi inscrita a favor da R. a aquisição do direito de propriedade sobre o prédio identificado em 6., por compra.

10) Através da ap. 17 de 2008/03/28, foi inscrita, provisoriamente, a favor da Caixa (...) , a constituição de uma hipoteca voluntária, referente ao capital de 100 000 € e referente ao montante máximo assegurado de 140 738 €, tendo como fundamento um empréstimo.

11) O registo foi convertido em definitivo, com o averbamento da ap. 34 de 2008/08/22.

12) No dia 07.02.2005, no 2º Cartório Notarial de (...) , foi outorgada escritura nos termos da qual C (…) e mulher M (…) declararam vender à Ré, que declarou aceitar a venda, pelo preço de 43 894,21 €, o prédio rústico sito ao (...) , na freguesia de (...) , melhor identificado em 6).

13) No dia 18.8.2005, no Cartório Notarial, sito em (...) , na Rua (...) , foi outorgada escritura nos termos da qual a R. declarou vender, pelo preço de 118 464,50 €, a M (…), que declarou aceitar, o prédio urbano/lote de terreno para construção de moradia unifamiliar, com a área de 855 m2, designado por lote 196, sito no (...) , freguesia e concelho de (...) , inscrito na respectiva matriz sob o art.º 3902º, com o valor patrimonial tributário de 16 802,99 €, e descrito na CRP de (...) sob o n.º (...) .

14) No dia 17.4.2008, perante L (…), notário em (...) , foi outorgada escritura nos termos da qual a Caixa (...) declarou conceder à R., na qualidade de 2ª outorgante, um empréstimo da quantia de 100 000 €, da qual a R. se confessou devedora, tendo sido dado em hipoteca, como garantia, o imóvel identificado em 8), nos termos referenciados em 10) e 11).

15) Na escritura mencionada em 14), ao imóvel dado em hipoteca nos termos aí mencionados, foi atribuído o valor de 325 000 €.

16) A (…) e esposa S (…) intervieram na escritura referenciada em 14), declarando que se responsabilizam, “como fiadores e principais pagadores, por tudo quanto venha a ser devido à Caixa credora em consequência do empréstimo”.

17) No imóvel identificado em 8), foi construída uma casa e instalados os ateliers artísticos onde A. e R. desenvolviam a actividade referida em 2) e plantadas árvores.

18) A construção aludida em 17) foi inscrita na matriz predial da (...) e (...) , no ano de 2012, correspondendo-lhe o art.º 2º, estando aí identificada como um prédio, para habitação, em propriedade total sem andares nem divisões susceptíveis de utilização independente, com a área de implantação de 538 m2, com o valor patrimonial determinado no ano de 2014, de 89 918,65 €, constando como titular, parta efeitos de identificação fiscal, a R..

19) A construção de tal casa e dos anexos foi iniciada e concluída no decurso do período de tempo dito em 1).

20) O A., até 22.7.2015, sempre teve acesso irrestrito às várias edificações construídos nos termos mencionados em 17), possuindo as chaves de todas as dependências, entrando e saindo, só ou acompanhado, quando queria, convidando e recebendo amigos seus ou comuns, os seus familiares, dispondo o seu filho de um quarto para sua utilização exclusiva.

21) A conta bancária na Caixa (...) n.º (…)/Balcão de (...) esteve sempre titulada no nome da R., a qual detinha, normalmente, os respectivos cartões multibanco.

22) No entanto, o A. sempre teve acesso à essa conta e tinha um cartão multibanco, bem como as senhas de acesso à conta bancária da Caixa (...) , efectuando todo o tipo de operações bancarias, compras, pagamentos, transferências, incluindo as despesas de reparação ou manutenção de que a casa necessitava.

23) Os movimentos ´online` de tal conta eram integralmente efectuados pelo A., atendendo à sua maior apetência para realizar tais operações através da ´internet`.

24) Eram o A. e a R. quem planeavam e organizavam o calendário e os locais de exposições individuais ou conjuntas de cada um, estabelecendo os contactos necessários junto das entidades ligadas ao meio cultural.

25) A propriedade sobre o veículo automóvel com a matrícula (...) , de marca Mitsubishi está registada, junto da Conservatória do Registo de Automóveis de (...) , a favor da R..

26) A propriedade sobre o veículo automóvel com a matrícula (...) , de marca Citroen, está registada, junto da mesma Conservatória, a favor da R..

27) Sobre os veículos identificados em 25) e 26), com data de 06.10.2015, encontra-se inscrito registralmente arrolamento.

28) O A. sempre teve acesso irrestrito àqueles veículos automóveis e respectivas chaves, utilizando-os, só ou com a R., para deslocações de trabalho, de lazer ou para visitas a amigos, ou simplesmente para as compras próprias da vida comum do casal.

29) Antes de terem iniciado a relação mencionada em 1), A. e R. trabalharam numa galeria de arte, designada “(…)”, a qual era explorada pela sociedade (…)Lda..

30) Tal sociedade encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial de (...), com o n.º (...) /001220, estando a sua constituição registada através da Ap. (...) /001220 e sendo, nessa data, sócios M (…) separada judicialmente de pessoas e bens de N (…),  A (…) e V (…), cada uma titular de uma quota de 1.000.000$00 e cada uma assumindo as funções de gerente.

31) Através da ap. (...) /20020322, foi designado gerente o A..

32) Através da ap. 14/20020322, foi registada a cessão da quota da sócia A (…)a favor da R., tendo a cessação de funções de gerente daquela, por renúncia, sido registada através da ap. 14/20020322.

33) Através da ap. 4/20020510, foi registada a redenominação do capital social, passando a sócia V (…) a titular uma quota no valor de 14 963,94 € e a sócia M (…) uma quota no valor de 9 975,96 €.

34) Através do av. 2 - ap.22/040707, foi inscrita a cessação de funções da gerente M (…), por renúncia.

35) Os fundos necessários para efectuar o pagamento das prestações referentes ao negócio mencionado em 14) têm sido depositados na conta da R. pelos seus pais, nunca tendo o A. pago qualquer quantia.

36) O A. foi o comissário para a exposição relativa ao XXX Congresso de Cardiologia, na qual participou em equipa com a R..

37) O A. programou, produziu e convidou todos os artistas envolvidos no projecto “Arte e contemporaneidade para (...) ”.

38) O A. organizou a exposição de (…) que decorreu no antigo edifício dos Correios de (...) , tendo a R. comissariado tal exposição.

39) A actividade do A. também envolvia a divulgação de exposições.

40) O A. escreveu artigos remunerados sobre arte em publicações periódicas nacionais.

41) Os rendimentos do A., provenientes da sua actividade de crítica de arte, eram depositados na conta bancária n.º (…) da Caixa (...) , titulada unicamente por aquele.

42) Durante cerca de um ano, numa altura em que o casal ainda residia em x(...) , beneficiou do apoio financeiro do irmão do A., no valor de € 250 mensais.

43) O casal beneficiou ainda das ajudas dos pais da R. que, pelo menos, nos anos de 2010, 2011, 2013, 2014 e 2015, faziam transferências regulares para a conta identificada em valores variáveis mas que, regularmente, se compreendiam entre os 120 e os 158,31 €.

44) No ano de 2001, o A. declarou, para efeitos de IRS, o rendimento bruto de 3 843,19 €.

45) No ano de 2005, a R. declarou, para efeitos de IRS, a alienação onerosa do prédio inscrito na matriz predial sob o artigo 3902, no valor de 118 464,50 €.

46) No ano de 2006, o A. declarou, para efeitos de IRS, 11 000 €, a título de rendimentos sujeitos a retenção na fonte.

47) No ano de 2007, o A. declarou, para efeitos de IRS, 4 000 €, a título de rendimentos sujeitos a retenção na fonte.

48) No ano de 2008, o A. declarou, para efeitos de IRS, 8 490 €, a título de rendimentos sujeitos a retenção na fonte.

49) No ano de 2009, o A. declarou, para efeitos de IRS, 9 000 €, a título de rendimentos sujeitos a retenção na fonte.

50) No ano de 2009, a R. declarou, para efeitos de IRS, 18 349,98 €, a título de rendimentos sujeitos a retenção na fonte.

51) No ano de 2010, o A. declarou, para efeitos de IRS, 4 500 €, a título de rendimentos sujeitos a retenção na fonte.

52) No ano de 2011, a R. declarou, para efeitos de IRS, 6 000 €, a título de rendimentos sujeitos a retenção na fonte, tendo declarado vendas no valor de 200 €.

53) No ano de 2012, a R. declarou, para efeitos de IRS, rendimentos de 10 500 € de prestação de serviços/outros rendimentos.

54) No ano de 2016, o A. declarou, para efeitos de IRS, rendimentos no valor de 1 760 €, provenientes de vendas.

55) Nos anos de 2002, 2004 e 2015, o A. não apresentou declaração de IRS.

56) Nos anos de 2002, 2004, 2009 e 2014, a R. não apresentou declaração de IRS.

57) Quanto ao recheio da casa e dos ateliers identificados em 17):

57) 1 - No decurso da relação que A. e R. mantiveram, como se de marido e mulher se tratassem, advieram à disponibilidade conjunta de ambos os membros do casal os seguintes bens: - Casa de Banho: um lavatório. - Corredor do quarto de casal: uma obra em vitrine (objecto) da série os balões de alquimia; uma escultura de (…); um quadro “V (…)”; um quadro vermelho de L (…); uma pasta quadrada em formato de azulejo de C (…); uma fotografia oferecida por M (..:)  e um cadeirão Olaio. - Quarto do fundo: um guarda fatos deco. - Hall: um sofá. - Sala (zona de jantar): uma obra fotográfica “V (…)”; um móvel e uma mesa com 12 cadeiras; um quadro de J (…); uma mesa de cabeceira deco; uma escultura de parede; um sino tibetano. - Sala (zona de estar): uma escultura de C (…); uma escultura de parede; um conjunto de bases de copos de xisto. - Biblioteca: quadro “V (…)”; um móvel oferecido por (…) e diversos catálogos. - Atelier de pintura: vários desenhos; várias molduras e vários cavaletes. - Atelier de joalharia: máquinas e ferramentas de joalharia diversas e ferramentas de joalharia diversas que se encontram na bancada de gavetas. - Atelier de escultura: inúmeros módulos de gavetas com ferramentas e um móvel de ferramentas. - Corredor: uma escultura “v(…)” com espelho e auricular.

57) 2 - Advieram à disponibilidade exclusiva do A. os seguintes bens:

- Quarto do Casal: uma mesa de cabeceira do primeiro quarto de casal dos pais do A. e uma cama oferecida ao A. pela sua mãe e pelo seu irmão. - Corredor do quarto do casal: uma mesa de cabeceira oferecida pelo irmão do A.. - Quarto do fundo: uma cama com incrustações de madrepérola e folha de ouro (antiga cama dos pais do A.); um quadro de M (…); um quadro de H (…); um pau, do jogo do pau e um bastão trabalhado com entrançados de pele; - Quarto de hóspedes: um guarda fatos em madeira, com talha e um quadro de L (…). - Casa de banho: uma mesa de cabeceira; um lavatório concebido e mandado executar pelo A. para a casa de x(...) e montado, mais tarde, na casa identificada em ???? - Corredor: um quadro de H (…); um quadro de C (…); uma salamandra de fundição; duas bengalas, macuas, uma de pau rosa, intacta e outra de pau preto, de punho partido. - Hall: um pechiché que pertenceu ao primeiro quarto de casal dos pais do A.; um quadro da autoria do A., da década de 80; um quadro de Pichel e um sofá. - Sala (zona de estar): um conjunto de bases de copos oferecidas pela irmã do A. antes de morrer; um par de binóculos antigos de ópera da tia A(…)do A.; dois cinzeiros de pau preto e um de pau rosa; um gira discos digitalizador de discos de vinil e uma mesa com bandeja de bronze trazida pelo pai do A. há 65/70 anos. - Biblioteca: uma enciclopédia portuguesa e brasileira; uma enciclopédia luso-brasileira; um dicionário de português de dois volumes; um dicionário etimológico; um dicionário técnico poliglota, composto por vários volumes; uma caricatura de L (..:), de V (…) um cadeirão de secretária; um Atlas antigo e um desenho de M (…). - Atelier de pintura: várias telas acabadas com obras de outros artistas e do A. da década de 80 e outras mais recentes; malas de transporte de obras; uma caixa de pastéis secos; vários pincéis; um cavalete profissional, da década de 80; uma caneta de tinta permanente que era da tia (…) do A.; uma máquina fotográfica e flash, oferecido ao A. pelo filho e um disco externo de computador com trabalhos e materiais do A.. - Atelier de joalharia: laminador eléctrico e bancada de joalharia e bancada de gavetas.

57) 3 - Advieram à disponibilidade exclusiva da R. os seguintes bens: - Quarto do Fundo: uma bengala trabalhada com entrançados de pele. - Sala (zona de jantar): um serviço oferecido pela (…) - Sala (zona de cozinha): várias máquinas e trens de cozinha, frigorífico e arca vertical na dispensa, máquina da roupa na lavandaria, máquina de café, placa eléctrica e forno, exaustor. - Sala (zona de estar): dois sofás; uma salamandra Stuv; uma aparelhagem Marantz e um sistema de 5+1 colunas Pioneer. - Corredor: uma salamandra de fundição.

2. E deu como não provado:

            a) Devido à diferença de idades entre o A. e a R., experiência e percursos profissionais distintos, o A. foi sempre o principal angariador de clientes.

b) O descrito em 6) e 7) dos factos provados ocorria porque o A., por razões de índole pessoal e de filosofia de vida, nunca se preocupou com o lado económico e mais pragmático da vida em sociedade.

c) O A. organizou a exposição “ (...) Arte Contemporânea”, em (...) .

d) O A. liderou a organização e promoção do espaço expositivo das instalações do (...) .

e) A construção dos edifícios aludidos em 17) dos factos provados e, bem assim, a plantação de árvores aí mencionada, assim como o pagamento do empréstimo referenciados em 14) foi levado a cabo com dinheiro proveniente das economias do A. e R., ao longo dos anos pelos quais viveram como se de marido e mulher se tratassem e, bem assim, com dinheiro resultante do exercício da actividade profissional de ambos.

f) O valor da venda do terreno mencionado em 13) dos factos provados não foi utilizado na compra do terreno mencionado em 12) dos factos provados.

g) Os veículos automóveis identificados em 25) e 26) dos factos provados foram adquiridos com dinheiro realizado pelo A. e pela R. na sua vida em comum.

h) O A., por razões de compromissos financeiros anteriores ao relacionamento e nunca resolvidos, não queria ser titular de rendimentos e, por consequência, a grande maioria das despesas era factura em nome da R..

3. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

            O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou a anulação da decisão (art.º 639º, n.º 1 do CPC[1]), ou seja, ao ónus de alegar acresce o ónus de concluir - as razões ou fundamentos são primeiro expostos, explicados e desenvolvidos no curso da alegação; hão-de ser, depois, enunciados e resumidos, sob a forma de conclusões, importando que a alegação feche pela indicação resumida das razões por que se pede o provimento do recurso (a alteração ou a anulação da decisão).

            Ora, o tribunal superior tem de guiar-se pelas conclusões da alegação para determinar, com precisão, o objecto do recurso; só deve conhecer, pois, das questões ou pontos compreendidos nas conclusões, pouco importando a extensão objectiva que haja sido dada ao recurso, no corpo da alegação[2], sendo que tudo o que conste das conclusões sem corresponder a matéria explanada nas alegações propriamente ditas, não pode ser considerado e não é possível tomar conhecimento de qualquer questão que não esteja contida nas conclusões das alegações, ainda que versada no respectivo corpo.[3]

4. Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (art.º 640º, n.º 1).

No caso previsto na citada alínea b), observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes (n.º 2 do mesmo art.º).

5. Tais requisitos da impugnação da decisão de facto justificam-se pela simples razão de que importa alegar o porquê da discordância, devendo o recorrente concretizar as suas divergências.

Trata-se da imposição de um ónus perfeitamente lógico e necessário atendendo, por um lado, a que ninguém está em melhor posição do que o recorrente para indicar os concretos pontos da sua discordância relativamente ao apuramento da matéria de facto, indicando os concretos meios de prova constantes do registo sonoro que, em seu entendimento, fundamentam tal discordância [pelo que deverá indicar com exactidão as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos] e qual a concreta divergência detectada [e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas], e, por outro lado, para permitir que a parte contrária conheça os argumentos concretos e devidamente delimitados do impugnante, para os poder contrariar, assim se garantindo o efectivo cumprimento do princípio do contraditório [art.ºs 638º, n.º 5 e 640º, n.º 2, alínea b)], obviando-se, assim, à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente.[4]

A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão de facto deve verificar-se quando, nomeadamente, falta a indicação exacta das passagens da gravação em que o recorrente se funda e/ou a posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.[5]

As referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor, tratando-se de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo. [6]

6. E também se diga que não basta ao recorrente atacar a convicção que o julgador for­mou sobre cada uma ou sobre a globalidade das provas, para provocar uma alteração da decisão da matéria de facto, mostrando-se necessário que cumpra os ónus de especifica­ção impostos pelos n.ºs 1 e 2 do art.º 640º, devendo ainda proceder a uma análise critica da prova, de molde a demonstrar que a decisão proferida sobre cada um dos concretos pontos de facto, que pretende ver alterados, não é possível, não é plausível ou não é a mais razoável.[7]

7. O recorrente, na sua impugnação da decisão referente à matéria de facto, afirma que o tribunal a quo deu por assentes os factos provados 1), 5), 6) e 24), “os quais estão em flagrante contradição com os restantes na medida em que estes últimos acabam por esvaziar por completo aqueles, retirando-lhes o seu verdadeiro significado e alcance”; o imóvel descrito no facto provado 14) “foi adquirido conjuntamente por A. e Ré durante o período de tempo em que viveram como se de marido e mulher se tratasse”; existe nos autos prova suficiente que permite dar por assente que “A. e Ré, por viverem como marido e mulher, tinham inevitável e necessariamente vida económico-financeira conjunta em total comunhão, sem distinção de partes ou quinhões” e que “da reapreciação crítica da prova resultará a eliminação do elenco dos factos provados aquele identificado como facto 35), o que conduzirá ainda à eliminação de outros factos provados que pudessem/possam estar em decorrência lógica com o facto cuja eliminação se requer” (cf. as “conclusões 2ª a 5”, ponto I, supra).

E já no corpo da fundamentação da decisão relativa à matéria de facto afirma que tal pretensa “errada apreciação da prova (…) inquinou de seguida toda a sentença recorrida”.

Porém, verifica-se que o apelante não mencionou, na “fundamentação/corpo” da alegação de recurso ou nas respectivas “conclusões” (e seria suficiente a indicação/concretização na respectiva fundamentação)[8], quaisquer passagens da gravação tidas como relevantes para a pretendida modificação da decisão relativa à matéria de facto (a audiência foi gravada “em sistema digital” e o recorrente baseou-se, sobretudo, na prova pessoal produzida em julgamento), limitando-se a remeter para o tempo integral de gravação de cada depoimento e das declarações de parte produzidos em audiência de julgamento, indicando, apenas, os respectivos início e termo do tempo integral das gravações, conforme consta das actas das sessões da audiência de julgamento de 14.3.2018, 21.3.2018 e 18.4.2018 (afirmando, a propósito, no final da fundamentação da alegação de recurso: “Os concretos pontos desses depoimentos que V. Exas devem reapreciar são todos os que estão indicados no tempo respectivo de cada gravação digital segundo o que consta das actas das sessões de julgamento em que os mesmos foram produzidos.”), e emitindo o seu juízo conclusivo sobre o seu teor mas sem concretizar o respectivo conteúdo, sendo que, e tratando-se de um procedimento facultativo, também não indica quaisquer excertos tidos como relevantes.

8. Ainda se dirá:

- Não se vê que alguma incoerência (contradição) exista entre os factos provados 5), 6) e 24) e os restantes, designadamente os provados em 7) a 10), 12) a 14), 16), 21), 42) e 43), sendo que aquele primeiro conjunto de factos reporta-se, principalmente, à vida pessoal e profissional do A. e da Ré no período da união de facto e aos negócios ou eventos relativos à actividade profissional que então desenvolveram, pelo que nesse contexto, e desenvolvimento, surge o segmento “(…) era a R. quem, geralmente, se encarregava de gerir a parte financeira do casal, nomeadamente aquando da aquisição de bens: veículos automóveis, o terreno no qual vieram a construir a casa na qual instalaram o seu dia a dia e os respectivos ´ateliers` artísticos” [ponto 6)], segmento a conjugar com a demais factualidade demonstrada (segundo as regras do direito probatório material) e que esclarece adequadamente tudo o que de essencial respeitava à situação dos bens que estiveram na disponibilidade fáctica das partes no decurso da sua vivência em comum (v. g., quanto ao seu financiamento, aquisição e registo) e à realidade das “finanças do casal” [para utilizar uma expressão do A./recorrente; veja-se, nomeadamente, II. 1. 43), supra, factualidade que em nada contende com as “ajudas” que directamente apenas beneficiavam a Ré, relevantes para a configuração do que ficou plasmado, por exemplo, em II. 1. 35), supra].

            - No fundo, a contradição que o recorrente diz existir entre os factos dados como provados pelo tribunal a quo identifica-se ou confunde-se com a alegada, mas inexistente!, contradição entre o que se deu como provado em II. 1. 1), supra, e o segmento injuntivo da sentença recorrida.

- Salvo o devido respeito, só por não se atender à correcta configuração do instituto da união de facto (que, nalguns, aspectos, é similar ao casamento) é que se poderá e ousará considerar - como o recorrente - que, ao viveram como marido e mulher, a A. e o Réu “tinham inevitável e necessariamente vida económico-financeira conjunta em total comunhão”, sem distinção de partes ou quinhões, e nesse sentido deverá ser dado como provado que “A e R, por viverem como marido e mulher, tinham inevitável e necessariamente vida económico-financeira conjunta em total comunhão, sem distinção de partes ou quinhões”.

- Por último, face ao ostensivo desrespeito dos ónus de impugnação da decisão relativa à matéria de facto é evidente que também nada se poderá objectar ao decidido sob o ponto II. 1. 35), supra, sendo que a correspondente fundamentação[9] nem sequer foi objecto da necessária e adequada análise critica…(quanto aos respectivos meios de prova – cf., a propósito, ponto II. 6., supra).

9. Assim, ante o descrito regime jurídico adjectivo, verifica-se ostensivo desrespeito pelas exigências claramente estabelecidas na lei sobre a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, na medida em que o recorrente afirma discordar do decidido mas não indica “as passagens da gravação em que se funda o seu recurso”.[10]

Dada a essencialidade ou relevância da prova pessoal apresentada e a natureza da restante prova produzida nos autos (documental e pericial[11]), cujo conteúdo teria de ser conjugado com aquela prova pessoal, não resta alternativa à total rejeição do recurso da decisão de facto, pelo que importa atender à factualidade dada como provada em 1ª instância, que, como vimos no ponto anterior, não padece das contradições e demais vícios assacados pelo recorrente.

10. Casamento é o contrato celebrado entre duas pessoas que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida, nos termos das disposições deste Código (art.º 1577º do Código Civil/CC, na redacção conferida pela Lei n.º 9/2010, de 31.5).

A união de facto é a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos (art.º 1º, n.º 2 da Lei n.º 7/2001, de 11.5, na redacção da Lei n.º 23/2010, de 30.8).

As pessoas que vivem em união de facto nas condições previstas na presente lei têm direito a protecção da casa de morada da família, nos termos da presente lei e a beneficiar do regime jurídico aplicável a pessoas casadas (ou equiparado) quanto a variados aspectos - laborais, fiscais e de protecção social - (art.º 3º, n.º 1 e 4º a 6º da mesma lei).

             11. As soluções plasmadas pelo legislador desde a Reforma de 1977 (DL n.º 496/77, de 25.11) até ao presente foram no sentido da tendencial e progressiva equiparação, para diversos efeitos, entre as situações próprias do vínculo conjugal e as decorrentes da união de facto, com a efectiva protecção dos agregados familiares constituídos fora das normas do casamento.

12. A união de facto só produz efeitos se durar há mais de dois anos (art.º 1º da Lei n.º 7/2001, de 11.5), e, naturalmente, se verificados os demais requisitos cumulativos que a lei prevê.

            Decorre da factualidade provada que a Ré e o A. viveram em união de facto durante mais de 14 anos, o que ambos reconheceram e nenhum deles colocou em causa - relação pessoal que envolve a “comunhão de leito, mesa e habitação” e a “aparência de vida matrimonial”.[12]

13. Na situação em análise releva a determinação dos efeitos patrimoniais que decorrem da união de facto durante a vida (tempo) da relação.

 Sabemos que as relações patrimoniais entre os cônjuges e entre estes e terceiros estão sujeitas a um estatuto particular, a que se chama “regime de bens do casamento” (cf. os art.ºs 1717º e seguintes do CC) mas assim não sucede na união de facto. Não há aqui um “regime de bens”, nem têm aplicação as regras que regulam os efeitos patrimoniais do casamento independentemente do regime de bens, o denominado “regime primário” (art.ºs 1678º a 1697º do CC): administração dos bens dos cônjuges, dívidas dos cônjuges e bens que respondem por elas, partilha dos bens do casal, etc.

Os membros da união de facto em princípio são estranhos um ao outro, ficando as suas relações patrimoniais sujeitas ao regime geral das relações obrigacionais e reais. Assim, nos termos gerais do direito, cada um pode vender bens móveis ou imóveis, dar ou tomar de arrendamento, contrair dívidas e, inclusive, contratar um com o outro (fazer contratos de compra e venda, de trabalho, locação, depósito, comodato e mútuo, etc.), sendo que o art.º 1714º do CC, que proíbe determinados contratos entre cônjuges, não tem aplicação à união de facto.[13]

14. A união de facto pode extinguir-se, designadamente, pela ruptura da relação, por mútuo consentimento ou por iniciativa de um dos seus membros (art.º 8º da Lei n.º 7/2001, de 11.5).

Extinta a relação, há que efectuar a liquidação e partilha do património do casal, que pode suscitar dificuldades, sobretudo, quando a vida em comum durou muito tempo: haverá então, normalmente, bens adquiridos pelos membros da união de facto, dívidas contraídas por um ou por ambos, contas bancárias em nome dos dois, confusão dos bens móveis de um e outro, etc. Não valendo aqui o disposto nos art.ºs 1688º e 1689º do CC, que só ao casamento respeitam (regulando a cessação de relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges, a partilha do casal e o pagamento de dívidas), as regras a aplicar são as que tenham sido acordadas no “contrato de coabitação” (um contrato ou, melhor dizendo, uma união de contratos em que os membros da união de facto reúnem várias espécies contratuais em vista da organização convencional das suas relações patrimoniais, durante a vida da relação e após a extinção desta) eventualmente celebrado e, na sua falta, o direito comum das relações reais e obrigacionais.

Mas também não está excluído que a liquidação do património do casal se faça segundo os princípios das sociedades de facto (verificados os respectivos pressupostos) ou os princípios do enriquecimento sem causa (frequentemente invocados na jurisprudência) em que o membro da união de facto que se considere empobrecido (relativamente aos bens em cuja aquisição participou) peça a condenação do outro a reembolsá-lo com fundamento no enriquecimento sem causa, provando que há um património comum resultante da união de facto vivida entre um e outro (não assim no caso de união conjugal, em que, no regime da comunhão de adquiridos, os bens adquiridos a título oneroso na constância do matrimónio se consideram comuns, independentemente de qualquer prova - cf. o art.º 1724º, alínea b) do CC).[14]

15. Constituindo objecto do presente litígio aferir da existência de compropriedade entre o A. e a Ré relativamente a determinados bens móveis, a um bem imóvel (e anexos), a quantias existentes numa conta bancária da Ré e a veículos automóveis [cf., nomeadamente, II. 1., 17) a 19), 21), 25) e 26), supra], é irrecusável que apenas ficou demonstrada a compropriedade relativamente aos bens móveis indicados na parte injuntiva da sentença, improcedendo a acção quanto ao demais.

Na verdade, o A. não demonstrou que as construções em causa tenham ocorrido à custa de dinheiro provindo de poupanças do casal. Pelo contrário, provou-se que foram edificadas num terreno pertença da Ré, que a mesma procedeu à venda de um prédio urbano que titulava no Algarve e que, posteriormente, contraiu, individualmente, um empréstimo, no qual foram fiadores os seus pais, no qual o A. não teve qualquer intervenção e relativamente ao qual não logrou demonstrar ter suportado o pagamento de qualquer prestação e para o qual foi dado em garantia (hipoteca) o terreno da Ré ; e o A. também não provou ter pago qualquer montante ao empreiteiro ou a quem foi responsável pela elaboração da documentação necessária [neste contesto, atente-se nos rendimentos declarados ou na não apresentação de qualquer declaração de rendimento, por parte do A., como se indica em II, 1, 44), 46) a 49), 51), 54) e 55), supra].

            E o A. também não demonstrou qualquer direito sobre os mencionados automóveis ou que lhe pertencessem, a si ou ao casal, em razão da actividade profissional desenvolvida pelos seus membros, quaisquer dos montantes que foram sendo depositados na conta bancária titulada exclusivamente pela Ré (e veja-se que o A. também tinha conta bancária por ele unicamente titulada… - cf. II. 1. 41), supra), nomeadamente o valor existente à data da extinção da união de facto.

            Ou seja, a conta bancária, os veículos automóveis e o imóvel estão excluídos da invocada comunhão.

            16. Relativamente aos bens móveis do recheio da casa ficou demonstrado que existem bens móveis comuns e outros da titularidade exclusiva de cada uma das partes (cf. II. 1. 57) 1, 57) 2 e 57) 3, supra).

 Naturalmente, quanto aos bens comuns, ditos em II. 1. 57) 1, supra - peças de arte, ferramentas, mobiliário, electrodomésticos e outros objectos decorativos, todos, de natureza indivisível (art.º 209º do CC) -, assistia ao A. o direito de peticionar o termo da indivisão.

Soçobram, desta forma, as restantes “conclusões” da alegação de recurso. 


*

III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo A./apelante, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário concedido a fls. 23 verso.


*

26.3.2019

Fonte Ramos ( Relator)

Maria João Areias

Alberto Ruço


[A Senhora Desembargadora Maria João Areias tem voto de conformidade, não assinando por não estar presente (art.º 153º, n.º 1 do CPC).]


[1] Diploma a que respeitam os normativos adiante citados sem menção da origem.
[2] Vide, entre outros, Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. V (reimpressão), Coimbra Editora, 1984, págs. 308 e seguintes e 358 e seguintes; J. Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, CPC Anotado, Vol. 3º, Coimbra Editora, 2003, pág. 33 e os acórdãos do STJ de 21.10.1993 e 12.01.1995, in CJ-STJ, I, 3, 84 e III, 1, 19, respectivamente.
[3] Cf. o citado acórdão do STJ de 12.01.1995.
[4] Cf., de entre vários, o acórdão do STJ de 15.09.2011-processo 1079/07.0TVPRT.P1.S1, publicado no “site” da dgsi.

[5] Cf., de entre vários, os acórdãos do STJ de 19.01.2016-processo 3316/10.4TBLRA.C1.S1 e da RC de 17.6.2014-processo 405/09.1TMCBR.C1, 17.12.2014-processo 6213/08.0TBLRA.C1, 10.02.2015-processo 2466/11.4TBFIG.C1 [assim sumariado: “Não cumpre o ónus da impugnação da decisão da questão de facto, o recorrente que não procede à indicação exacta, precisa, das passagens da gravação em que o fundamenta, limitando-se a indicar o início e o terminus dos depoimentos e a proceder à transcrição parcial deles.”], 03.3.2015-processo 1381/12.9TBGRD.C1, 22.9.2015-processo 198/10.0TBVLF.C1 [constando do respectivo sumário: “A especificação dos concretos meios probatórios constantes da gravação deve ser acompanhada, sob pena de imediata rejeição do recurso nessa parte, da indicação exacta das passagens da gravação em que se funda o seu recurso - art.º 640º, n.º 2, a), do Novo C. Processo Civil.”], 12.01.2016-processo 165/14.4TBCVL-B.C1 – subscrito pelo relator e a 1ª adjunta – [tendo-se concluído: “É de rejeitar a impugnação da decisão relativa à matéria de facto quando o recorrente, tendo sido gravados os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas, não indica quaisquer passagens da gravação em que se funda o seu recurso (art.º 640º, do CPC), referindo-se, apenas, ao tempo integral dos registos da gravação e ao que entende ser o resultado factual da conjugação da prova pessoal invocada, de per si ou conjugada com os demais meios de prova.”], publicados no “site” da dgsi.
[6] Vide A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, págs. 127 e seguintes.
    De resto, quando o legislador introduziu um efectivo grau de jurisdição em matéria de facto, através do DL n.º 39/95, de 15.02, deixou expresso no preâmbulo deste diploma, nomeadamente:
   «A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.
   Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1.ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido.
   A consagração desta nova garantia das partes no processo civil implica naturalmente a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação.
(…)
   Este especial ónus de alegação, a cargo do recorrente, decorre, aliás, dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado (…).»
[7] Cf., nomeadamente, os citados acórdãos da RC de 17.6.2014-processo 405/09.1TMCBR.C1, 24.02.2015 [constando do sumário: “O recorrente que se limita a indicar o meio de prova em que funda a impugnação da decisão da questão de facto, sem proceder à determinação da sua relevância e à sua valoração, de modo a tornar patente a violação, pelo decisor de facto, da regra da ciência, da lógica ou da experiência aplicável ao caso, não satisfaz o ónus de impugnação daquela matéria a que lei de processo o vincula.”], 03.3.2015-processo 1381/12.9TBGRD.C1 [tendo-se concluído: “Fundamentando-se o recurso de facto na desconformidade entre a prova documental e a factualidade que veio a ser demonstrada, não basta remeter para o teor do documento, recaindo sobre o recorrente o ónus de indicar eventuais erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto relevante para a solução jurídica do pleito, especificando os fundamentos da sua discordância, os motivos que justificam que o documento conduza a um juízo diferente do efectuado pelo juiz.”] e 22.9.2015 [constando do respectivo sumário: (…) não basta ao recorrente atacar a convicção que o julgador for­mou sobre cada uma ou sobre a globalidade das provas, para provocar uma alteração da decisão da matéria de facto, mostrando-se necessário que cumpra os ónus de especifica­ção impostos pelos n.ºs 1 e 2, do art.º 640º do Novo C. P. Civil, devendo ainda proceder a uma análise crítica da prova, de molde a demonstrar que a decisão proferida sobre cada um dos concretos pontos de facto, que pretende ver alterados, não é possível, não é plausível ou não é a mais razoável.”].
[8] Cf., neste sentido, designadamente, o acórdão do STJ de 19.02.2015-processo 299/05.6TBMGD.P2.S1, publicado no “site” da dgsi.

[9] Que reza o seguinte: «No que se refere à factualidade julgada provada em 35., o Tribunal formou a sua convicção ponderando conjuntamente as declarações de parte prestadas pelo A. com as declarações de parte prestadas pela R., com os depoimentos testemunhais prestados pelos pais desta. Recorde-se que o A. assumiu, nas suas declarações, nunca ter pago qualquer valor referente ao empréstimo contraído. Por outro lado, a R. disse que quem tem suportado o pagamento de tal empréstimo são, assim como sempre foram, os seus pais, realidade que estes reiteraram. Aliás, recorde-se que os mesmos intervieram na escritura (…) do empréstimo na qualidade de fiadores.»
[10] Cf., de entre vários, o acórdão do STJ de 06.6.2018-apelação 125/11.7TTVRL.G1.S1 [constando respectivo sumário: «Não cumpre o ónus imposto pelo n.º 2, al. a), do art.º 640º do CPC - indicação exacta das passagens da gravação em que se funda a sua discordância - o recorrente que nem indicou as passagens da gravação, nem procedeu à respectiva transcrição e se limitou a fazer um resumo, das partes pertinentes desses depoimentos.»], publicado no “site” da dgsi.
[11] Prova que, de resto, foi objecto de exaustiva análise na fundamentação da decisão relativa à matéria de facto proferida em 1ª instância (fls. 563 verso e seguintes do processo físico).
[12] Vide, nomeadamente, F. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, Imprensa da Universidade de Coimbra, Vol. I., 5ª edição, 2016, págs. 76 e seguintes e 87.
[13] Vide F. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, ob. cit., pág. 82.
[14] Vide F. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, ob. ci., págs. 84 e 91 e seguinte.