Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
147/14.6GBILH.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: PENA DE MULTA
TAXA DIÁRIA
Data do Acordão: 11/12/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA (TRIBUNAL JUDICIAL DE ÍLHAVO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Legislação Nacional: ART. 40.º, 47.º E 71.º, DO CP
Sumário: I - A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, quando possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização.

II - Na fixação da pena há parâmetros de análise vinculativos, que o julgador tem que considerar.

Em recurso o que há que analisar nesta sede é se os critérios fundamentais da culpa, da prevenção especial e geral e as demais circunstâncias que rodearam o crime - passadas, contemporâneas ou posteriores -, foram consideradas e se a pena encontrada é a adequada quanto à escolha e ajustada quanto à duração.

III - Na fixação da taxa diária o tribunal terá que atender aos factos, sob pena de decidir contra eles e, muitas vezes, fomentar o incumprimento.

IV - Tendo-se provado que o arguido é solteiro, que vive com os pais e que aufere o vencimento de 520 €, que contribui para as despesas da casa com uma quantia entre os 100 € e os 150 € e que está a pagar à Segurança Social 20 € por mês, para saldar uma dívida, a taxa diária fixada de 6,00€ não se mostra desconforme aos parâmetros aceitáveis.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 4ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO

1.
O arguido A... foi condenado na pena de 59 dias de multa, à taxa diária de 6 euros, e em 4 meses de proibição de conduzir veículos com motor pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, dos art. 292º, nº 1, e 69º, nº 1, al. a), ambos do Código Penal.

2.
Inconformado, o Ministério Público recorreu, retirando da motivação as seguintes conclusões:
«1) Mostram-se preenchidos os elementos do tipo legal de crime pelo qual o arguido foi condenado.
2) As penas, principal e acessória, a aplicar deverão respeitar as necessidades de prevenção geral e especial, bem como a medida da culpa do agente, nos termos do disposto nos artigos 40º, 70º e 71º do Código Penal.
3) Em face da matéria apurada em audiência de julgamento, bem como, atendendo às necessidades de prevenção geral e especial, à medida da culpa do arguido, à taxa de álcool com que o arguido conduzia, mostra-se adequada a aplicação ao mesmo de uma pena não inferior a 85 dias de multa e de uma pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor não inferior a 5 meses.
4) Face ao disposto no artigo 47º, nº 2, do Código Penal, tendo em conta a matéria relativa à situação económica e financeira do arguido dada como provada na sentença recorrida, o montante diário da pena de multa aplicada não deverá ser fixado num quantitativo inferior a € 7,50 (sete euros e cinquenta).
5) Ao não ter ponderado devidamente os referidos princípios e critérios orientadores da escolha da dosimetria da pena de multa e da pena acessória aplicadas o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 40º, 47º, 70º, 71º, 69º, nº 1 e 292º, nº 1, al. a) todos do Código Penal.
6) Face a tudo o que se deixou exposto deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, deverá ser parcialmente revogada a sentença recorrida, substituindo-a por acórdão que condene o arguido pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez pelo qual vinha acusado, mas, pelo menos, nas penas supra indicadas».

3.
O recurso foi admitido.

O Exmº P.G.A. pronunciou-se pela procedência parcial, no sentido de a pena acessória ser agravada.

Foi cumprido o disposto no nº 2 do art. 417º do C.P.P..

5.
Proferido despacho preliminar foram colhidos os vistos legais.
Cumpre decidir.
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FACTOS PROVADOS

6.
Na sentença recorrida foram julgados provados todos os factos da acusação, ou seja:
- no dia 4-3-2014, pela 1h50m, na rua da Igreja, sita no concelho de Aveiro, na área desta comarca do Baixo Vouga-Ilhavo, conduzia um velocípede com motor e no seguimento de uma fiscalização rodoviária, ao ser submetido ao exame de pesquisa de álcool no sangue, o arguido conduzia, naquela via pública, o referido veículo com uma taxa de álcool no sangue registada de 2,27 gr/l, a que corresponde o valor apurado após dedução do erro máximo admissível de 1,58 gr/l;
- o arguido previu e quis conduzir o aludido veículo naquela via pública, apesar de saber que tinha ingerido bebidas alcoólicas e que conduzia o mesmo sob a influência do álcool, tendo apresentado uma taxa que excedia 1,20 gr/l;
- o arguido agiu sempre de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Mais se provou:
- o arguido é operário fabril, trabalha por conta da Riacoleite e aufere mensalmente 520 €;
- é solteiro e vive com os pais em casa destes e ajuda com a quantia mensal sita entre 100 e 150 € por mês para custear as despesas da casa;
- tem despesas mensais no valor de 20 € para pagamento de dívida à Segurança Social e 114 € para pagamento de dívida às Finanças, sendo que quanto a esta última restam apenas 2 meses para finalizar o pagamento;
- como habilitações literárias tem o 7º ano de escolaridade e dos autos não consta que tenha antecedentes criminais registados.
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DECISÃO
Como sabemos, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente (art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do S.T.J. - cfr. acórdão do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência ali citada e Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., pág. 74 e decisões ali referenciadas), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios enumerados no art. 410º, nº 2, do mesmo Código.

Por via dessa delimitação resulta que a questão a decidir respeita à medida das penas principal e acessória aplicadas.

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As finalidades das sanções penais são, como diz a lei, «a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade», não podendo a pena ultrapassar, nunca, a medida da culpa - art. 40º, nº 1 e 2, do Código Penal.
A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, quando possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização.
Partindo daqui procede-se, depois, à escolha da pena e, finalmente, à fixação da respectiva medida, a fazer de acordo com as determinações do art. 71º do Código Penal, que diz, além do mais, que na fixação da pena o juiz terá que atender ao grau de ilicitude do facto e à intensidade do dolo (nº 2, al. a) e b)).

Na fixação da pena há parâmetros de análise vinculativos, que o julgador tem que considerar.
Porém, ele goza de alguma margem de liberdade, pois que, como sabemos, é impossível encontrar uma pena inequívoca, unanimemente apontada por todos os juízes para um qualquer concreto ilícito.
Daí que o que há que analisar nesta sede é se os critérios fundamentais da culpa, da prevenção especial e geral e as demais circunstâncias que rodearam o crime - passadas, contemporâneas ou posteriores -, foram consideradas e se a pena encontrada é inadequada quanto à escolha ou desajustada quanto à duração.
Tida como boa a pena escolhida para se proceder a qualquer alteração na sua duração terá o desajustamento que ser relevante, isto é, a pena terá que surgir como desproporcionado face à culpa e exigências de prevenção que se façam sentir.
E então é susceptível de revista a correcção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de factores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de determinação: o quantum exacto de pena será objecto de alteração se tiver ocorrido violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efectuada.
Desde que sejam observados os critérios de dosimetria concreta da pena, há uma margem de actuação do julgador que é dificilmente sindicável, se não mesmo impossível de censurar. Por isso o recurso não pode pretender apurar o “quantum” exacto da pena, salvo se, como referido, existir uma desproporção da quantificação efectuada Sobre a questão, e a título exemplificativo, vejam-se os acórdãos do S.T.J. de 25-10-2006, processo 05P3635, relatado pelo sr. conselheiro Soreto de Barros, de 29-3-2007, processo 07P1034, relatado pelo sr. conselheiro Simas Santos, e de 14-5-2009, processo 19/08.3PSPRT, relatado pelo sr. conselheiro Raul Borges, e o da Relação do Porto de 2-6-2010, processo 60/09.9GNPRT, relatado pelo sr. desembargador Joaquim Gomes..
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Da matéria apurada consta, além do mais, que o arguido, aquando da realização do teste de detecção de álcool, apresentou «uma taxa de álcool no sangue registada de 2,27 gr/l, a que corresponde o valor apurado após dedução do erro máximo admissível de 1,58 gr/l».
Esta formulação deriva da actual redacção do art. 170º do Código da Estrada, introduzida pela Lei nº 72/2013, de 3/9, que estabelece no seu nº 1:
«1 - Quando qualquer autoridade ou agente de autoridade, no exercício das suas funções de fiscalização, presenciar contraordenação rodoviária, levanta ou manda levantar auto de notícia, o qual deve mencionar:
a) Os factos que constituem a infração, o dia, a hora, o local e as circunstâncias em que foi cometida, o nome e a qualidade da autoridade ou agente de autoridade que a presenciou, a identificação dos agentes da infração e, quando possível, de, pelo menos, uma testemunha que possa depor sobre os factos;
b) O valor registado e o valor apurado após dedução do erro máximo admissível previsto no regulamento de controlo metrológico dos métodos e instrumentos de medição, quando exista, prevalecendo o valor apurado, quando a infração for aferida por aparelhos ou instrumentos devidamente aprovados nos termos legais e regulamentares».
O texto da al. b) transporta-nos, imediatamente, para o exercício da condução sob a influência de álcool sendo claro, face à nova redacção da lei, que para o legislador o valor relevante é o valor apurado, que se obtém subtraindo ao valor registado o valor do erro máximo admissível previsto.
Agora o decisor tem que considerar, sempre, a existência de um erro no resultado apresentado pelo aparelho de medição e, por via disso, proceder ao desconto para, desta forma, obter o resultado que deve ser considerado.
Daí que o facto ilícito seja que o arguido, aquando da realização do teste, apresentou uma taxa de álcool no sangue de 1,58 gr/l.

Nos termos dos art. 292º, nº 1, e 69º, nº 1, al. a) (e 41º, nº 1, e 47º, nº 1), do Código Penal quem conduzir veículo, com ou sem motor, na via pública com uma TAS de valor igual ou superior a 1,2 g/l é punido com prisão de 1 mês a 1 ano ou multa de 10 dias a 120 dias e proibição de conduzir veículos com motor entre 3 meses e 3 anos.
A pena aplicada ao arguido foi fixada em 59 dias de multa e em 4 meses de proibição de conduzir.

Na conclusão 3 do recurso o Ministério Público reclama o aumento das penas aplicadas ao arguido porque «em face da matéria apurada … às necessidades de prevenção … medida da culpa, à taxa de álcool … mostra-se adequada … uma pena não inferior a 85 dias de multa e … proibição de conduzir veículos com motor não inferior a 5 meses».
No entanto, resulta da motivação do recurso que a sua discordância com a decisão recorrida deriva da circunstância de a taxa de álcool com que o arguido conduzia ser, efectivamente, de 2,27 g/l. E é considerando esta TAS que o Ministério Público entende que as penas são desadequadas.
Conforme se lê na motivação do recurso «não podemos descurar que o arguido conduziu com uma taxa de álcool registada de 2.27 gr/l, a que corresponde o valor apurado após dedução do erro máximo admissível (no caso concreto correspondente a 30%) de 1.58 gr/l.
Tais circunstâncias têm, necessariamente, de se reflectir na medida da pena principal e acessória».

A nova redacção do art. 170º, nº 1, al. b), do Código da Estrada contém uma regra imperativa de prova, nos termos da qual o valor relevante para efeitos de apreciação e decisão da prática do crime de condução com álcool no sangue é o valor apurado, por contraponto ao valor registado. Considerando que este valor apurado se obtém descontando ao valor registado o valor do EMA previsto no regulamento de controlo metrológico, então para o legislador o valor relevante é um valor inferior ao registado. Agora o decisor tem que considerar, sempre, a existência de um erro no resultado apresentado pelo aparelho de medição e, por via disso, proceder ao desconto para, desta forma, obter o resultado que deve ser considerado na decisão.

E é por isso que as razões invocadas pelo Ministério Público não podem ser acolhidas.
A nova redacção da lei contém uma regra imperativa de apreciação da prova nos termos da qual o facto punível é que o arguido conduzia com uma TAS de 1,58 g/l e aquilo que o Ministério Público pretende é que seja considerado para efeitos de fixação das penas que o arguido circulava com uma TAS de 2,27 g/l.

No entanto entendemos que a pena de multa aplicada deverá ser aumentada por se mostrar desadequada à TAS apurada, considerando aquilo que, por regra, é decidido e, ainda, o facto de o processo não relevar nenhum facto que importe a aplicação de pena inferior.

Assim, aplicamos ao arguido a pena de 75 dias de multa.

O Ministério Público também reclama um aumento da taxa diária da multa porque, refere, provou-se que o arguido é solteiro, vive com os pais e aufere 520 €.

Dada a técnica usada pelo legislador a propósito da fixação da pena de multa, num primeiro momento há que quantificar a pena a aplicar ao caso, determinada segundo os critérios estabelecidos no art. 71º, e depois fixar a respectiva taxa diária.
Quanto à taxa diária da multa a lei apenas diz, no nº 2 do art. 47º do Código Penal, que a cada dia de multa corresponde uma quantia entre 5 e 500 €, «que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais».
Portanto, a lei não fornece os critérios sobre a fixação da taxa diária da multa.
Para Figueiredo Dias este silêncio «só pode significar … o desejo do legislador de oferecer ao juiz o maior campo possível de eleição de factores relevantes. É seguro que deverá atender-se … à totalidade dos rendimentos próprios do condenado, qualquer que seja a sua fonte … Como é seguro, por outro lado, que àqueles rendimentos hão-de ser deduzidos os gastos com impostos, prémios de seguro … e encargos análogos. Como igualmente parece legítimo tomar em conta … rendimentos e encargos futuros, mas já previsíveis no momento da condenação …» Figueiredo Dias, Direito Penal Português-As Consequências Jurídicas do Crime, II, pág. 129..
A pena de multa, enquanto tal, tem que causar sacrifício económico palpável Acórdão do S.T.J. de 3-6-2004, processo 04P1266., pois o sacrifício é fundamental para a prossecução dos seus fins preventivos.
No entanto, na fixação da taxa diária o tribunal terá que atender aos factos, sob pena de decidir contra eles e, muitas vezes, fomentar o incumprimento.
No caso, para além de se ter provado que o arguido é solteiro, que vive com os pais e que aufere o vencimento de 520 €, também se provou que ele contribui para as despesas da casa com uma quantia entre os 100 € e os 150 € e que está a pagar à Segurança Social 20 € por mês, para saldar uma dívida.
Atendendo a mais estes factos temos que não obstante o arguido ser solteiro, o vencimento é pouco superior ao SMN e o rendimento disponível muito inferior a este.
Não está demonstrado, portanto, que a taxa diária fixada seja desconforme aos parâmetros aceitáveis.
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DISPOSITIVO
Pelos fundamentos expostos, embora por fundamentos diferentes julga-se parcialmente procedente o recurso e, em consequência, aplica-se ao arguido A... a pena de 75 dias de multa.
No mais confirma-se a decisão recorrida.

Sem custas.





Coimbra, 2014-11-12

Relatora: Olga Maurício
Adjunto: Luís Teixeira