Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | JORGE JACOB | ||
Descritores: | AMEAÇA AGRAVAÇÃO NATUREZA DA INFRACÇÃO | ||
Data do Acordão: | 03/30/2011 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COMARCA DO BAIXO VOUGA - 2º JUÍZO DE MÉDIA INSTÂNCIA CRIMINAL DE AVEIRO | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ART.º 155º, N.º 1, AL. A), DO C. PENAL | ||
Sumário: | O tipo de crime de ameaça agravado, p. e p. pelo art.º 155º, n.º 1, al. a), do C. Penal, tem natureza pública. | ||
Decisão Texto Integral: | I – RELATÓRIO: Nestes autos de processo comum que correram termos pela Comarca do Baixo Vouga – Juízo de Média Instância Criminal (Juiz 2) – o Ministério Público deduziu acusação contra JN... imputando-lhe a prática de um crime de ameaças agravado, p. p. pelas disposições conjugadas dos arts. 153º, nº 1 e 155º, nº 1, al. a), ambos do Código Penal. Recebidos os autos para julgamento, após abertura da audiência, o ofendido declarou desistir da queixa que havia apresentado contra o arguido, tendo a defensora oficiosa do arguido declarado aceitá-la. O M.P. desde logo se opôs à homologação da desistência. Não obstante, o Mmº Juiz homologou a desistência de queixa em despacho com o seguinte teor: “Ao arguido, é imputada a prática de um crime de ameaça agravada p. p. pelos art°s 153°, nº 1 e 155°, nº 1, al. a) ambos do C.P . Salvo o devido respeito por opinião contrária, consideramos que a situação a que alude a al. a) do nº 1 do art. 155°, tal como, aliás, resulta da epigrafe de tal artigo, apenas se traduz numa agravação do crime base (o do art° 153° n° 1 ou do art. 154° do C.P.), não constituindo a situação de tal alínea um novo tipo legal de crime. Aliás, não descortinamos face à redacção do n° 1 do art. 153º, do C.P., em contraposição com a redacção da al. a) do n° 1 do art. 155º e pelo elenco de todos os arts. do C.P. que seja possível a prática de um crime contra a vida, de carácter doloso, com punição até 3 anos. Considerando assim que o art. 155º, nº 1 al. a) do C.P. apenas se traduz numa agravação do crime base, e sendo o crime base - neste caso o do art° 153º, nº l - de natureza semi-pública, consideramos que será relevante a desistência de queixa agora apresentada. Neste termos, atendendo à natureza semi-pública do crime de ameaça e face à legitimidade e tempestividade da desistência de queixa agora apresentada e à não oposição à mesma por parte da ilustre defensora do arguido, julgo válida e relevante tal desistência, que homologo, declarando em consequência, extinto o procedimento criminal instaurado contra o arguido (art° 116°, n° 2 e 153° nº 2 ambos do C.P. e art. 51° nºs. 2 e 4 do C.P.P.). Sem custas.” Inconformado, o M.P. interpôs recurso desta decisão, dele retirando as seguintes conclusões: 1 - Conforme supra se referiu, a actual redacção do nº 2 do artigo 153º reporta-se, exclusivamente, à descrição contida no nº 1 desse mesmo art. 153º. 2) O artigo 155° I que, ora, prevê o tipo-de-ilícito de ameaça agravada, não contém qualquer critério que faça depender de queixa o respectivo procedimento criminal nem existe, no Código Penal, qualquer norma autónoma que estabeleça a natureza semi-pública da previsão e punição contidas nesse art. 155°. 3) Na falta de norma expressa que indique que o procedimento criminal depende de queixa o crime tem natureza pública. 4) À semelhança do que ocorre com diversos outros tipos-de-ilícitos penais previstos no Código Penal, a forma simples/base assume natureza semipública e quando agravados/qualificados passam a ter natureza pública 5) O que aliás, no caso em apreço foi intenção clara e expressa do legislador. 6) Intenção essa que se revela coerente porquanto a agravação do tipo-de-ilícito de ameaça se reporta às mesmas circunstâncias que qualificam o tipo-de-ilícito de coacção grave/qualificada, previsão essa que sempre esteve contida no art. 155° e cuja natureza pública nunca foi questionada. 7) E tanto mais clara foi a intenção legislativa de conferir natureza pública ao crime de ameaça agravada que o legislador não fez integrar no corpo do anterior nº 2 do art. 153°, que previa a forma qualificada do ilícito de ameaça, as circunstâncias que qualificavam o tipo-de-ilícito de coacção - cfr. Exposição de Motivos do Anteprojecto de Revisão do Código Penal. 8) Antes pelo contrário, revogou o anterior nº 2, passando o anterior n° 3 a nº 2, e passou a integrar, de forma autónoma, a previsão agravada do ilícito de ameaça no corpo do art. 155° sem fazer depender o procedimento criminal de tal previsão de queixa. 9) Não faria sentido que o legislador pretendesse manter a natureza semi-pública do ilícito penal de ameaça agravada e seguisse a técnica legislativa de revogar o anterior n° 2 do art. 153°, autonomizando a previsão qualificada desse ilícito e deixando de fazer depender de queixa o procedimento criminal através de preceito expresso, em vez de, pura e simplesmente, alterar e/ou acrescentar a previsão do anterior n° 2. 10) Face ao exposto, e atenta a natureza pública do ilícito penal pelo qual o arguido vinha acusado, a desistência de queixa apresentada pelo ofendido é irrelevante e, como tal, inoperante. 11) E, subsequentemente, não podia, a referida desistência, ter sido homologada nem, em consequência, ter sido declarado extinto o procedimento criminal instaurado contra o arguido. 12) A decisão recorrida, ao homologar a desistência de queixa apresentada, in casu, pelo ofendido, e, em consequência, ao declarar extinto o procedimento criminal contra o arguido, violou o disposto nos arts 48° e 510 do Cód. Proc. Penal e os arts 116° e 155° Cód. Penal. Nestes termos, deve o presente Recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida, com as demais consequências legais. O Mmº Juiz recebeu o recurso e sustentou assumidamente a posição que havia subscrito nos autos. Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer sufragando a posição assumida pelo M.P. em 1ª instância. Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência. Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso. No caso vertente e vistas as conclusões do recurso a única questão suscitada – questão exclusivamente de direito – implica a averiguação da natureza do crime de ameaça imputado ao arguido, em ordem a verificar se esse crime comporta a possibilidade de desistência de queixa. * * II - FUNDAMENTAÇÃO: Apreciando e decidindo: O artº 153º do Código Penal, na redacção anterior à que veio a ser introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, estatuía nos seguintes termos: “1. Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias. 2. Se a ameaça for com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias. 3. O procedimento criminal depende de queixa.”. Após a revisão operada pela citada Lei nº 59/2007, o artº 153º do Código Penal ficou com a seguinte redacção: “1. Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias. 2. O procedimento criminal depende de queixa.”. Com a alteração legal, o tipo de crime agravado que se encontrava previsto no antigo nº 2 do art. 153º, foi eliminado, tendo surgido em sua substituição um novo tipo legal agravado, com sede legal no art. 155º, com a seguinte redacção: “1 - Quando os factos previstos nos artigos 153.º e 154.º forem realizados: a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos; ou b) Contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez; c) Contra uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º, no exercício das suas funções ou por causa delas; d) Por funcionário com grave abuso de autoridade; o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, no caso do artigo 153.º, e com pena de prisão de um a cinco anos, no caso do n.º 1 do artigo 154.º 2 - As mesmas penas são aplicadas se, por força da ameaça ou da coacção, a vítima ou a pessoa sobre a qual o mal deve recair se suicidar ou tentar suicidar-se.”. O legislador manteve a natureza semi-pública do crime simples de ameaça, não se tendo pronunciado expressamente quanto ao tipo agravado, donde resulta a assumida intenção de lhe atribuir natureza pública; o que bem se compreende, de resto, por força da natureza dos comportamentos expressamente tipificados como integradores da agravação, seja por revelarem uma maior ilicitude da acção – als. a), b) e c) – seja por traduzirem uma maior culpa do agente – al. d), todas os nº 1 do art. 155º. É essa, de resto, a conclusão a retirar do argumento de ordem sistemática, pois não faria sentido que se o legislador pretendesse manter a natureza semi-pública do crime agravado, tendo-o autonomizado em novo artigo, não o dissesse expressamente. Acrescenta-se, já agora, que no mesmo sentido decidiu recentemente o acórdão desta Relação (4ª secção criminal) proferido nos autos de processo comum nº Proc. nº 148/09.6GAVGS.C1. Nesta medida, uma vez que o crime agravado de ameaça passou a ter natureza pública, é insusceptível de desistência da queixa, donde se segue que o recurso do M.P. se afirma como procedente, devendo os autos prosseguir com a realização do julgamento. * * III – DISPOSITIVO: Nos termos apontados, concede-se provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida. Sem tributação. * * Jorge Miranda Jacob (Relator) Maria Pilar de Oliveira |