Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
512/09.0PBAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
ACTOS PARCIAIS
CONSUMAÇÃO
Data do Acordão: 12/15/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – 2º JUÍZO DE MÉDIA INSTÂNCIA CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGO 152º CP
Sumário: 1. De acordo com a razão de ser da estrutura normativa do crime do artigo 152.º, do CP [versão do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, com as alterações que sucessivamente foram introduzidas pelas Leis 65/98, de 2 de Setembro, 7/2000, de 27 de Maio, e 59/2007, de 4 de Setembro], as condutas que integram os respectivos tipos-norma não são autonomamente consideradas enquanto, eventualmente, integradoras de um ou diversos tipos de crime; são, antes, valoradas globalmente na definição e integração de um comportamento repetido revelador de um crime de maus tratos (lei antiga) ou violência doméstica (lei nova).
2. Neste contexto, entre o crime do artigo 152.º e os crimes que atomisticamente correspondem à realização repetida de actos parciais estabelece-se uma relação de concurso aparente, deixando de ter relevância jurídico-penal autónoma os comportamentos que integram a prática do crime de maus tratos/violência doméstica.
3. Tratando-se de um crime único, embora de execução reiterada, a consumação do crime de maus tratos/violência doméstica ocorre com a prática do último acto de execução.
Decisão Texto Integral: I. Relatório:

1. No Comarca do Baixo Vouga (Aveiro - Juízo de Média Instância Criminal - Juiz 2), foram submetidos a julgamento, em processo comum, com intervenção de tribunal singular, os arguidos:

- S..., divorciada,  residente na Rua …, Aveiro;

- B..., solteiro, residente na R. …, Aveiro; e

- V..., solteira, e residente na R. …, Aveiro,

sob imputação, na acusação pública de fls. 118 a 121, da prática dos seguintes crimes:

- A arguida S..., em autoria material, de dois crimes de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea d) e 2, do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 04-09;

- Os arguidos V...Andreia e B..., em co-autoria material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, do referido diploma legal.


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2. Por sentença de 26 de Maio de 2009, o tribunal decidiu nos seguintes termos:

I. Absolveu os arguidos B... e V... do crime de violência doméstica que lhes estava imputado.

II. Condenou a arguida S...:

a) Como autora material de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152.º, n.ºs 1, al. d) e 2, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão;

b) Como autora material de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 6 meses de prisão;

d) Realizado o cúmulo jurídico, condenou a arguida S... na pena única de 2 (dois) anos e 5 (cinco) meses de prisão, a qual declarou suspensa na sua execução por igual período de tempo [2 (dois) anos e 5 (cinco) meses].


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3. Inconformada, a arguida interpôs recurso da sentença, extraindo da respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

a) Com base na “perícia de avaliação do dano corporal em direito penal”, de fls. 8, 9 e 10, no “relatório de urgência” de fls. 101 a 108, nas declarações prestadas na audiência de julgamento pela Arguida e ora Recorrente S... (declarações gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no tribunal “a quo”, desde as 10:02:16 às 10:36:23 e das 10:58:28 às 11:20:13), nas declarações prestadas na audiência de julgamento pelos Arguidos B... (declarações gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no tribunal “a quo”, desde as 11:20:24 às 11:45:38) e V... (declarações gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no tribunal “a quo”, desde as 11:45:42 às 12:18:30), bem como nos depoimentos prestados na audiência de julgamento pelas testemunhas E… (depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no tribunal “a quo”, desde as 09:29:01 às 10:09:35) e P... (depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no tribunal “a quo”, desde as 10:18:33 às 10:59:10), devem ser julgados não provados os seguintes pontos de facto que a sentença recorrida considerou como provados: ponto n.º 2, ponto n.° 3 (na parte em que aí se refere que a Recorrente, quando o arguido B... “não ficava com os avós, deixava-o frequentemente em casa de uma vizinha de nome E…, enquanto (...) ia ter encontros amorosos.”), ponto n.° 4, ponto n.° 6 (na parte em que aí se refere que “arguida S...empurrou a sua filha V...contra a marquise e para o interior da arrecadação e deu-lhe bofetadas, com o que causou dores nesta”), ponto n.° 7, ponto n.° 8, ponto n.° 9, ponto n.° 11, ponto n.° 13, ponto n.° 14, ponto n.° 15, ponto n.° 16 e ponto n.° 17.

b) No que respeita ao Arguido B..., o tipo objectivo do ilícito (art. 152.°-l/d do CP) pelo qual a ora Recorrente vem condenada pressupõe, conforme aliás vem referido na sentença recorrida, que o agente coabite com o ofendido; que o ofendido seja uma pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica; e que o agente sujeite o ofendido a maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais.

c) Sucede que o Arguido B..., para além de não coabitar com a ora Recorrente (cfr. factos apurados no decurso da audiência de julgamento, após a modificação propugnada pela Recorrente), não era, à data dos factos, uma pessoa particularmente indefesa.

d) Com efeito, da prova produzida resultou inequívoco que o Arguido B... nunca coabitava com a sua mãe e ora Recorrente na Rua …, tendo sempre vivido com os respectivos avós.

e) Acresce que, contrariamente ao que vem referido na sentença recorrida, o facto de o Arguido B... ser menor de idade aquando da pretensa ocorrência dos factos em causa, não significa, por si só, que se possa considerá-lo como uma pessoa particularmente indefesa.

f) Na verdade, a estrutura valorativa do exemplo-padrão a que se refere o art. 152.º-l/d) do CP associa a “pessoa particularmente indefesa” a situações de evidente vulnerabilidade e desamparo da vítima, não sendo esse manifestamente o caso do Arguido B..., conforme, aliás, decorre daquilo que foi dado como provado pelo tribunal “a quo” nos pontos n.°s 10, 12 e 18.

g) Nesse sentido, importa ainda sublinhar que, à data dos factos cm apreço, o Arguido B... já era um adolescente com praticamente dezassete anos de idade.

h) O circunstancialismo apurado no decurso da audiência de julgamento (após a modificação propugnada pela Recorrente), não preenche, pois, o tipo objectivo do crime de violência doméstica previsto no art. 152°-l/d) do CP, nem de qualquer outro crime que se encontre legalmente previsto.

i) Tendo em consideração a restante factualidade que foi apurada no decurso da audiência de julgamento (após a modificação propugnada pela Recorrente), deverá ainda concluir-se que a Recorrente não cometeu, relativamente à Arguida V..., o crime de ofensa à integridade física simples pelo qual vem condenada.

j) De todo o modo, no caso de assim não se entender (no que não se concede e apenas se admite por cuidados de patrocínio), sempre se deverá concluir que a pena concretamente aplicada à Recorrente (seis meses de prisão) é manifestamente exagerada e desproporcionada, devendo a mesma ser preterida e substituída por uma pena de multa.

k) Com efeito, ponderando o contexto em que a pretensa agressão à Arguida V... terá ocorrido (clima de discussão entre a Recorrente e os demais Arguidos, sendo que no dia em causa tudo se despoletou na sequência de mensagens ameaçadoras recebidas pela Recorrente e provenientes de telemóvel que a mesma entendia pertencer ao namorado da Arguida V... - cfr. ponto n.° 6 dos factos provados); a circunstância de, no decurso dessa discussão, os Arguidos V... e B... terem dito à Recorrente que era uma má mãe e que ia morrer sozinha (cfr. ponto n.° 12 dos factos provados), o que terá sido determinante para a conduta da mesma Recorrente; a circunstância de a referida agressão não ter causado quaisquer lesões à Arguida V...; bem como o facto de a Recorrente não ter quaisquer antecedentes criminais e de estar socialmente integrada, deverá julgar-se adequada a aplicação à Recorrente de uma pena de multa em detrimento da pena de seis meses de prisão pela qual ela vem condenada.

1) Pelo exposto, a sentença recorrida violou o disposto nos arts. 70.° e 143.º-1, do CP (ao ter aplicado à Recorrente uma pena de seis meses prisão - ainda que suspensa na respectiva execução - em vez de uma pena de multa) devendo a norma do art. 152.°-l/d do mesmo diploma legal ser interpretada e aplicada com o sentido exposto no presente recurso.

Termos em que deverá a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que absolva a Recorrente dos crimes pelos quais vem condenada.

Quando assim não se entender (no que não se concede e apenas se admite por cuidados de patrocínio), sempre a sentença recorrida deverá ser revogada e substituída por outra que, no que respeita ao crime de ofensa à integridade física simples pelo qual a Recorrente vem condenada, julgue adequada a aplicação de uma pena de multa em detrimento da pena de seis meses de prisão que efectivamente lhe foi aplicada pelo tribunal “a quo”, tudo com verificação das legais consequências.


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4. Na sua resposta, o Ministério Público manifestou-se no sentido da improcedência do recurso.

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5. Neste Tribunal da Relação, em parecer a fls. 311/315, igual posição assumiu a Ex.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta.

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6. Cumprido o disposto no n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal, a arguida não exerceu o seu direito de resposta.

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7 Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

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II. Fundamentação:

1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:

Conforme Jurisprudência constante e pacífica, são as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso, indicadas no art. 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
Tendo em conta as conclusões formuladas pelo recorrente, resumem-se ao seguinte quadro as questões de que cumpre conhecer:
A) Alterabilidade da matéria de facto;
C) Se a arguida/recorrente incorreu na prática do crime de violência doméstica e de ofensas corporais simples pelos quais foi condenada no tribunal de 1.ª instância;
D) A verificar-se o crime de ofensa corporal simples, se a recorrente deve ser condenada em pena de multa.


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2. Na sentença recorrida, foram dados como provados os seguintes factos:

1. A arguida S... é mãe dos também ora arguidos V... de maior idade e de B..., este nascido a 22-12-1991 e por isso de menoridade à data dos factos que infra se descrevem.

2. Tinham como residência comum na Rua …, em Aveiro, embora desde muito pequeno o arguido B..., por grandes temporadas, vivesse com os avós maternos.

3. Sendo que o relacionamento entre as arguidas S...e V...era minimamente aceitável e que entre a arguida S...e o arguido B... nunca foi bom, porquanto esta, quando aquele não ficava com os avós, deixava-o frequentemente em casa de uma vizinha de nome E…, enquanto a sua mãe ia ter encontros amorosos.

4. Numa dessas vezes, no Verão de 2007, a arguida S...levou-o para a noite e enquanto esta foi ter um relacionamento amoroso, deixou-o na mala de uma carrinha de marca Kangoo, tendo sido a referida E... a ter que ir lá buscá-lo.

5. Por motivos que não foi possível apurar, o ambiente familiar foi-se sucessivamente degradando e as discussões tornaram-se mais frequentes entre os arguidos.

6. No dia 07.12.2008, pelas 01h30m, no interior da residência supra referida, na sequência de discussão originada pelo facto de alegadamente a arguida S...ter recebido mensagens ameaçadoras provenientes do telemóvel do namorado da arguida V…, a arguida S...empurrou a sua filha V...contra a marquise e para o interior da arrecadação e deu-lhe bofetadas, com o que causou dores nesta.

7. A arguida S...chamou ainda a sua filha V...de puta e disse-lhe que não valia nada como filha e que não descansava enquanto não a visse mal.

8. A arguida S...agrediu também o seu filho B... com uma esfregona nas costas e empurrou-o, sem que contudo lhe tenha provocado lesões visíveis.

9. Ao mesmo tempo, dirigindo-se-lhe, dizia que era um bardino, um filho da puta, um cabrão, que deveria estar no tratamento psiquiátrico e que não descansava enquanto o mesmo não fosse para um reformatório.

10. Na altura em que as arguidas S...e V...discutiam uma com a outra de frente a frente, o arguido B... colocou-se no meio delas e apenas com a finalidade de evitar que a S...agredisse a V...empurrou a arguida S….

11. Na sequência de tal conduta da arguida S..., a arguida V...teve que sair daquela residência apenas com a roupa que tinha no corpo, tendo esta, bem como o arguido B... ido pernoitar a casa da já mencionada vizinha E....

12. No âmbito daquela discussão os arguidos V...e B... disseram à arguida S...que era uma má mãe e que ia morrer sozinha.

13. Com as actuações agressivas acima descritas a arguida S...causou dores no corpo dos arguidos V...e B....

14. Ao proferir as expressões acima referidas, sabia a arguida S...que dirigia aos arguidos V...e B... palavras ofensivas da sua honra e consideração pessoal, fazendo-os sentir-se humilhados e tristes.

15. Sabia bem a arguida S...o que estava a fazer e nada a obrigava a adoptar esse comportamento.

16. Ao actuar da forma descrita, bem sabia a arguida S...que infligia maus tratos ao arguido B... e que, assim, o molestava física, moral e psicologicamente, o que fez através do uso da violência física e verbal, como forma de levar por diante a sua vontade, com total indiferença para com o dever de respeito que devia ser devido ao referido menor B....

17. A arguida S...agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo as suas condutas censuráveis, proibidas e punidas criminalmente.

18. Ao empurrar a arguida S..., o arguido B... agiu livre e conscientemente, mas apenas e tão só com a finalidade de obstar a que a arguida S...agredisse a arguida Verónica.

19. A arguida S...aufere mensalmente cerca de €600 e vive com um companheiro, em casa de renda mensal de cerca de €350.

20. O arguido B... aufere mensalmente cerca de €560 e vive com os avós.

21. A arguida V...frequenta o 12.º ano de escolaridade, não exerce actividade remunerada e é sustentada pelos seus avós e, por alguns, é tida como rapariga bem comportada.

22. Nenhum dos arguidos tem antecedentes criminais.


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3. Quanto aos factos não provados está referido na sentença:

Não se provaram outros factos constantes da acusação que estejam em contradição com os assentes e que tenham relevância para a decisão da causa, designadamente:

- que a arguida V... tenha deficiências a nível de audição e de visão;

- que as discussões tornaram-se mais frequentes a partir do momento em que a arguida S...conheceu o seu companheiro P...;

- que naquele dia 07.12.2008 a arguida S...também tivesse torcido o braço direito da sua filha Verónica;

- que a V...tivesse sofrido nódoas negras na perna direita e dores na coluna vertebral;

- que a arguida S...tivesse colocado os seus filhos acima mencionados fora de casa;

- que os arguidos V...e B... tivessem dito à sua mãe S...que era uma vaca e uma puta.

- que quando levou o empurrão do B..., a S...veio a cair de costas contra a maçaneta da porta.

- que a arguida V...empurrou a sua mãe S...por diversas vezes, puxou-lhe os cabelos, esbofeteou-a por duas vezes e com o tacão do sapato, bateu-lhe com o mesmo no pé direito, vindo a provocar-lhe a fractura do dedo grande do pé direito;

- que a arguida V...tivesse provocado ferimentos na S....


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4. Relativamente à motivação da decisão de facto ficou consignado:

O Tribunal, num juízo crítico de apreciação da prova produzida, formulou a sua convicção, quanto aos factos dados como provados, tendo por base os seguintes elementos:

a) nas declarações dos arguidos:

- da arguida S...quanto: aos motivos que estiveram na origem dos desacatos e discussões ocorridos naquela casa naquele dia 07/12/2008 (recebimento de mensagens ameaçadoras provenientes do telemóvel do namorado da sua arguida V…, sua filha), admitindo apenas ter dito ao arguido B..., seu filho, “o que é que ele queria da vida ou se queria ir para um reformatório”; referiu ter sido empurrada pelo arguido B... quando estava a discutir com a V…; admitiu que fazia muitas saídas nocturnas para a discoteca e nelas era muitas vezes acompanhada pelo B.... Foram ainda tidas em conta as declarações da referida arguida quanto à sua situação económica e familiar;

- dos arguidos V...e B... os quais, e não obstante as suas posições processuais nos autos, prestaram depoimentos consentâneos entre si e acerca do modo em que se desenrolaram os factos naquele dia 07/12/2008, pronunciando-se ambos de forma clara e que se nos afigurou convincente quanto a todo o apurado comportamento da arguida S...(mãe dos mesmos), quer em termos das apuradas agressões físicas quer das verbais por parte desta arguida, bem como às dores e ofensa da honra e consideração sentidas, admitindo o arguido B... ter empurrado a arguida S..., mas apenas e tão só com a finalidade de evitar que esta agredisse a sua irmã V…. Referiram ambos estes arguidos que a arguida S...saía muitas vezes à noite para encontros amorosos, tendo o arguido B... sido convincente quanto ao apurado episódio em que a arguida S...o deixou sozinho fechado na mala do mencionado veículo, tendo posteriormente dali sido recolhido pela testemunha E.... Ambos estes arguidos referiram naquele dia 07/12/2009 terem censurado a arguida S...pelo facto de considerarem a mesma uma má mãe e que por isso no futuro não iria ter o apoio deles. Cada um destes arguidos se pronunciou ainda quanto às respectivas situações económicas, familiares e habilitações literárias, bem como quanto ao apoio/carinho que têm sentido quer por parte dos avós maternos quer por parte da testemunha E...;

- E... (vizinha da arguida S...e que durante cerca de 9 meses foi sua colega de trabalho na Segurança Social), a qual referiu que naquele dia 07/12/2008 o arguido B... estava ainda em sua casa (local onde ia com muita frequência tal como acontecia com a arguida V...que tinha saído dali, para casa, há pouco tempo) quando a arguida S...lhe telefonou para ir ver as mensagens que tinha recebido do namorado da V…, tendo então ali acorrido na companhia do arguido B... e relatando o desenrolar dos factos da forma apurada, que, no essencial, foi consentâneo com o depoimento dos arguidos V...e B..., referindo ainda ter visto a arguida S...a dar bofetadas na V...quando a empurrou para o sofá e que quando estas duas estavam na zona da marquise a V...gritava dando a entender que estava a ser agredida e que a S...agrediu o B... com uma esfregona, sendo que em toda esta situação a testemunha P…, que também ali se encontrava nada fez para evitar pôr termo às agressões. Referiu ainda que efectivamente numa noite do Verão de 2007 ter recebido uma mensagem do arguido B... que a informava que se encontrava fechado numa carrinha e que a mãe (a arguida S...estava com um senhor), sendo que pouco depois a própria S...lhe telefonou a pedir para lá ir buscar o B..., o que a testemunha fez, tendo-o encontrado fechado dentro daquele veículo;

- P... (companheiro da arguida S...), apenas na parte em que confirmou que naquele dia 07/12/2008 se encontrava em casa da arguida S...quando esta, após ter recebido uma mensagem do namorado da V…, telefonou para a testemunha E..., a qual compareceu lá em casa, tal como os arguidos V...e B.... Apesar de ter referido ter existido discussão entre todos e de ter visto o arguido B... a empurrar a arguida S..., no mais o seu depoimento, contraposto com o depoimento esclarecido e pormenorizado da testemunha E..., não nos mereceu credibilidade da forma como foi prestado pela forma um tanto evasiva em que dizia que do local onde se encontrava não dava para ver o que se passava (sendo que a testemunha E... foi convincente em afirmar que a testemunha P...se encontrava também naquela sala e nada fez para evitar qualquer agressão);

- M..., a qual disse ter estudado na mesma turma da arguida V...e que esta arguida e o arguido B... viveram algum tempo em casa dos avós;

- F... (colega de trabalho da arguida S...) a qual referiu que na altura em que conheceu esta arguida (há cerca de 8/9 anos) os demais arguidos viviam com os avós;

- A..., a qual teceu as melhores considerações acerca do comportamento da arguida V…, a qual demonstrou conhecer há algum tempo uma vez que esta é namorada de seu filho;

c) no teor dos seguintes documentos: certidões de nascimento de fls. 41, 45 e 47, fotos de fls. 86 a 94, bem como no teor dos CRC's de fls. 156 a 158.


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Quantos aos factos dados como não provados não foi feita prova segura, consistente nem convincente dos mesmos por forma a que, pela positiva, pudessem ser tidos como assentes. Para além dos arguidos terem negado na parte em que lhe eram imputados, pela testemunha E... não ter visto a V...a agredir a S...nem ouvido aquela ou o B... a dirigirem expressões injuriosas à mãe, a testemunha P...também disse não ter visto as arguidas a agredirem-se fisicamente, nem muito menos a V...a puxar os cabelos à S.... Por outro lado, e não obstante a arguida ter dito ter ficado com uma fractura no dedo do pé, pela ficha clínica de fls. 49 e segs. decorre que “Não tem sinais inflamatórios. Ao Rx não é evidente qualquer sinal de fractura”, sendo que nos autos não existe qualquer exame médico-legal a mencionar que pudesse ter ocorrido qualquer fractura. Por outro lado os relatórios médico-legais respeitantes à arguida V...nada de relevante assinalam (repare-se que o de fls. 8-9 realizado apenas em 02/03/2009 refere que “não apresenta lesões ou sequelas” e o de fls. 81 e 82, realizado em 27/04/2009, referente ao episódio de urgência de fls. 101, ocorrido em 15/12/2008, também nada de relevante indica. Por outro lado, para além de inexistir qualquer elemento clínico ou informação médica a tal respeito, não foi produzida qualquer prova tendente a demonstrar que a arguida V...tivesse deficiências quer ao nível da audição quer ao nível da visão. Por outro lado ainda pelos próprios arguidos/ofendidos B... e V...foi dito terem saído voluntariamente daquela casa naquele dia 07/12/2008. Por tais razões, e tendo em conta o princípio do in dubio pro reo, os factos da acusação que extravasam dos apurados não puderam ser tidos como assentes.
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4.1. Alterabilidade da matéria de facto:

Resulta impressivamente do contexto global da motivação do recurso e das próprias conclusões que é posta em causa a factualidade provada dos pontos n.ºs 2, 3 (no segmento «porquanto esta» (S...), «quando aquele» (B...) «não ficava com os avós, deixava-o frequentemente em casa de uma vizinha de nome E... E..., enquanto sua mãe ia ter encontros amorosos», 4, 6 (no seguinte trecho: «a arguida S...empurrou a sua filha V...contra a marquise e para o interior da arrecadação e deu-lhe bofetadas, com o que causou dores nesta», 7, 8, 9, 11 (na parte em nele é referido que a arguida V...teve que sair da residência em causa em virtude da «conduta da arguida S...», 13, 14, 15, 16 e 17, sendo pretensão da recorrente que os descritos pontos, na totalidade ou nas partes indicadas, sejam erigidos à condição de não provados.

Na tese argumentativa suporte do recurso, a base impugnatória descrita supra, ancora-se nos seguintes meios de prova:

- Declarações dos arguidos B..., V... e depoimentos da testemunha E... E... (pontos n.ºs 2 e 3);

- Declarações dos arguidos S... e B... e no depoimento da testemunha E... (ponto n.º 4);

- “Perícia de avaliação do dano corporal em direito Penal (fls. 8, 9 e 10) e “relatório de urgência” do hospital Infante D. Pedro, do dia 15-12-2008 (fls. 101 a 108), relativos à arguida V..., e declarações das arguidas S... e B... (ponto n.º 6);

- Declarações da arguida S... e depoimentos das testemunhas E... e P... (ponto n.ºs 7, 14 e 15);

- Declarações da arguida S... e da testemunha P... (pontos n.ºs 8 e 9);

- Declarações da arguida V...(ponto n.º 11);

- Documentos acima indicados, declarações dos arguidos S..., B... e depoimento da testemunha P... (ponto n.º 13);

- Declarações dos arguidos S... e B... e depoimentos das testemunhas E... e P... (ponto n.º 16);

- Documentos já referidos, declarações das testemunhas S..., B..., V..., e depoimentos das testemunhas E... e P... (ponto n.º 17).


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A) Insurge-se a recorrente quanto ao ponto n.º 2, porquanto, segundo a prova concretamente especificada, o arguido B... não residia, conjuntamente com a mãe S... e a irmã V..., na Rua …, em Aveiro.

E com razão.

Escalpelando a prova oralmente produzida na audiência de discussão e julgamento, as declarações do próprio arguido B..., amplamente corroboradas pelas declarações da arguida V... e pelo depoimento da testemunha E..., são inequívocas nesse contexto.

De acordo com as declarações do visado B..., morou sempre na Rua …, na casa dos seus avós. Nunca viveu na Rua … . Nesse local residia sua mãe, a arguida S.... Só nas férias escolares de Verão, na casa de Vagos, e não de Aveiro, passava esse período de tempo com sua mãe.

Quando sua mãe se divorciou e foi regulado o poder parental, a sua guarda, e bem assim de sua irmã, foi conferida ao seu avô. Essa a razão porque vivia com o avô e passava férias de Verão, na casa de Vagos, com sua mãe.

Segundo V..., seu irmão, B..., sempre viveu com os avós de ambos, desde o divórcio de sua mãe.

No que lhe diz respeito, mudou para Vagos, localidade onde então sua mãe residia, quando tinha 8/9 anos de idade.

Por seu turno, a testemunha E..., a qual mantinha, na data dos factos descritos na acusação, estreitos laços de convivência com todos os arguidos, apresentou a mesma versão, referindo motu próprio: «O B... vivia com o avô materno, em casa deste. A V...residia com sua mãe em Vagos. Inicialmente relacionava-se só com a arguida S.... A posteriori conheceu o B... e a Verónica, em Vagos porque o B... costumava passar as férias também em Vagos».

Dúvidas não existem, pois, de que o ponto de facto em análise está incorrectamente julgado, devendo ficar circunscrito, na matéria de facto provada, ao seguinte texto:

«2. A arguida S... e sua filha, também arguida, V..., tinham residência em comum na Rua …, em Aveiro. Por sua vez, o arguido B... vive desde tenra idade com os seus avós maternos».

Por seu turno, acrescerá à matéria de facto não provada:

«O arguido B... residia conjuntamente com sua mãe e com a arguida V...na Rua …, em Aveiro, embora desde muito pequeno, por grandes temporadas, vivesse com os avós maternos».


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B) Quanto ao ponto n.º 3, no segmento objecto de impugnação, a razão também pende para o lado do recorrente.

Na realidade, não resulta de nenhuma das declarações produzidas no decurso do julgamento, nomeadamente das declarações de B... e de E... o segmento factual em causa.

O primeiro apenas se referiu, neste contexto, aos encontros diversos contactos amorosos mantidos entre sua mãe e diversos homens, dando como exemplo três episódios.

Sem necessidades de maiores considerações, o dito segmento não decorre da prova produzida, devendo, por conseguinte ser dado como não provado.

 Consequentemente, permanecerá na primeira parte do ponto em destaque Sendo que o relacionamento entre as arguidas S...e V...era minimamente aceitável e que entre a arguida S...e o arguido B... nunca foi bom»), enquanto a parte final, já delimitada («o relacionamento entre a arguida S...e o arguido B... nunca foi bom, porquanto a primeira, quando o segundo não ficava na casa com os avós, deixava-o frequentemente em casa de uma vizinha de nome E..., enquanto sua mãe ia ter encontros amorosos»), passará a constar dos factos não provados.


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C) Passando ao ponto n.º 4 dos factos provados, a prova é eloquente no sentido da sua verificação.

A arguida negou é certo, tais factos.

Contrariamente, B... asseverou a sua ocorrência.
Como nos dá conta a doutrina e a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça[1], embora as declarações de co-arguido não constituam prova proibida, exigem-se cautelas especiais na sua valoração que, de um modo geral, se reconduzem à exigência de corroboração, o mesmo é dizer, à existência de elementos provenientes de fontes probatórias diversas das declarações que, embora não se reportem directamente ao mesmo facto narrado nas declarações, permitem concluir pela veracidade desta.
Como é referido no Ac. do STJ já citado, de 12-07-2006, «significa que as declarações de co-arguido só podem fundamentar a prova de um facto criminalmente relevante quando exista “alguma prova adicional a tornar provável que a história do co-arguido é verdadeira e que é razoavelmente seguro decidir com base nas suas declarações”. Ou, noutros termos, a exigência de corroboração significa que as declarações dos co-arguidos nunca podem, só por si, e por mais inequívocas e credíveis que sejam, suportar a prova de um facto criminalmente relevante. Exige-se para tanto que as declarações sejam confirmadas por outro autónomo contributo que “fale” no mesmo sentido, em abono daquele facto».
 Ora, no caso sub judice, as declarações do co-arguido B... foram in totum corroborados por outro meios de prova, ou seja as declarações da testemunha E..., amiga da arguida S..., a qual referiu, de forma objectiva e pormenorizada,  ter ido contactada, primeiramente pelo menor e depois pela mãe deste, com o propósito de transportar B... de determinado local, sendo que o mesmo se encontrava no interior (zona destinada à carga) de uma carrinha Kangoo.
Deste modo, nenhuma alteração há que introduzir, nesta vertente de facto, à matéria de facto provada.

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D) Cingindo-nos à reapreciação da prova correlacionada com o ponto 6. da matéria de facto provada, é verdade, como argumenta o recorrente, a ausência de lesões ou sequelas advindas das invocadas agressões físicas, medicamente comprovadas, na arguida V....
Contudo, os factos imputados, agora em apreciação, ocorreram, segundo os termos da acusação, em 07-12-2008. Porém, o episódio de urgência teve lugar, no Hospital D. Pedro, em 15-12-2008, e foi determinado por mialgia e miosite não especificadas (cfr. documento a fls. 101/108), enquanto a perícia de avaliação do dano corporal em direito penal, efectuado pelo Gabinete Médico-Legal de Aveiro, apenas ocorreu em 02-03-2009 (cfr. documento a fls. 8/10).
Tendo em conta o distanciamento temporal entre as invocas agressões e os documentos analisados, e bem assim a hipotética natureza das lesões sofridas, aqueles não afastam a possibilidade de verificação de actos de agressão física, nomeadamente os descritos no visado ponto 6, havendo de recorrer à demais prova produzida em julgamento.
Confrontamo-nos aqui com versões antagónicas dos factos em questão.
De um lado, a arguida S...afirmou peremptoriamente a inexistência de qualquer agressão pratica por si na pessoa de sua filha V… .
Contudo, versão completamente diversa apresentaram V... e E....
Ambas aludiram à agressão perpetrada pela arguida S....
V... narrou ter sido atirada contra a marquise, de modo tal que a sua cabeça foi projecta contra as prateleiras existentes no local.
Por seu turno, a testemunha E..., com a qual a arguida S...mantinha relações de convívio frequente, e que havia sido chamada à residência da primeira, com o intuito de verificar umas mensagens, tidas por desconfortáveis, que à primeira haviam sido envidadas pelo namorado de V..., descreveu, com riqueza de pormenores, a agressão sofrida por esta.
Nas palavras impressivas da testemunha, «Dirigiu-se à cozinha, que comporta uma despensa. A arguida S...tinha a V...presa por um braço, atrás das costas, enquanto lhe dava, basicamente, murros e bofetadas e mandava a cara da agredida contra as prateleiras da marquise (…)».
Na desordem generalizada verificada na interior da residência sita na Rua …, Aveiro, nenhum crédito se pode conferir ao depoimento da testemunha P..., companheiro da arguida S..., porquanto não presenciou, por não lhe ser possível ver, como disse, os desacatos ocorridos na cozinha e marquise.
Perante as declarações de V..., suficientemente coadjuvadas pelo testemunho de E..., também o facto apreciado se mantém como provado.
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    F) Analisando probatoriamente o facto 7, somente V... e B... referiram concretamente palavras injuriosas dirigidas por sua mãe à pessoa da primeira. V..., mencionou as expressões: «puta», «muito porca», «galdéria».
B..., por sua vez, confirmou o impropério «puta», para além dos seguintes termos: «não valia nada como filha», «não descansava enquanto não a visse mal».
Todavia, nada disto foi confirmado quer pela arguida S..., quer pelas testemunhas P..., quer, sobretudo, pela testemunha E... .
Em conformidade, a falta de corroboração, nesta parte, das declarações dos co-arguidos B... e V...por qualquer outro meio de prova, determina, mais não seja, por imperativo do princípio in dubio pro reo, que se erija à condição de não provado o ponto n.º 7.
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G) Relativamente ao ponto 8., a arguida S...e a testemunha P... negaram a prática desse facto.
Posição antagónica tiveram os arguidos B... e V...e a testemunha E..., os quais, unanimemente, revelaram o acto de agressão física em causa praticado pela arguida S....
A posição sustentada pela testemunha P..., aliás, pouco esclarecedora quanto à globalidade dos factos acontecidos, não é digna de crédito, por esta circunstância e, fundamentalmente, pela relação de especial intimidade existente entre si e a arguida S....
Prepondera também aqui a versão de B... e V..., substancialmente confirmada pela testemunha E... .

H) O mesmo juízo valorativo se justifica em relação ao ponto de facto n.º 9, assente nos mesmos meios de prova, confirmativos das expressões ali descritas.

Nenhum reparo merecem, desta forma, os pontos de factos em avaliação, n.ºs 8 e 9.
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 I) Visto o ponto 11., V... foi peremptória: «Saí de casa de boa vontade».
Assim, sem recurso a outros meios de prova, apenas o segmento final («tendo esta, bem como o arguido B... ido pernoitar a casa da já mencionada vizinha E...»)  do ponto 11 se mantém no acervo factológico provado, transitando para os factos não provados a primeira parte do mesmo ponto («Na sequência de tal conduta da arguida S..., a arguida V...teve que sair daquela residência apenas com a roupa que tinha no corpo»).
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J) À luz da pretensão da recorrente, só se justificará a alteração do ponto 13. se concomitantemente sofrerem modificação, em consonância com os fundamentos expressos na motivação e respectiva conclusão, supra referidos, os pontos 6. e 8. da matéria de facto provada, o que, como vimos, não se verificou.
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K) No que concerne aos factos atinentes à intenção e motivação dos arguidos, convém recordar a lição de Cavaleiro Ferreira[2], quando refere que existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são susceptíveis de prova indirecta como são todos os elementos de estrutura psicológica, aos quais apenas se poderá aceder através de prova indirecta (presunções naturais não jurídicas), a extrair de factos materiais comuns e objectivos dados como provados.

In casu, os factos objectivos que hão-de permanecer na factualidade provada determinam a formulação de um seguro juízo de inferência no sentido do quadro volitivo e intelectual da arguida S...na perpetração dos factos efectivamente cometidos.

Posto o dito, ficam sem alteração os ponto 15. e 16. e 17. Quanto ao ponto 14, por força da alteração que importa fazer no ponto 7. da factualidade provada, pelas razões expostas na alínea F), será considerado provado apenas na parte correlacionada com o arguido B....


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   4.2. Procedendo à assinalada modificação da matéria de facto [cfr. art. 431.º, al. b), do CPP], nos pontos em destaque, os factos provados e não provados são os seguintes:
Factos provados:

1. A arguida S... é mãe dos também ora arguidos V... de maior idade e de B..., este nascido a 22-12-1991 e por isso de menoridade à data dos factos que infra se descrevem.
2. A arguida S... e sua filha, também arguida, V..., tinham residência em comum na Rua…, em Aveiro. Por sua vez, o arguido B... vive, desde tenra idade, com os seus avós maternos.
3. Sendo que o relacionamento entre as arguidas S...e V...era minimamente aceitável e que entre a arguida S...e o arguido B... nunca foi bom.

 4. No Verão de 2007, a arguida S...levou B... para a noite e enquanto esta foi ter um relacionamento amoroso, deixou-o na mala de uma carrinha de marca Kangoo, tendo sido a referida E... a ter que ir lá buscá-lo.

5. Por motivos que não foi possível apurar, o ambiente familiar foi-se sucessivamente degradando e as discussões tornaram-se mais frequentes entre os arguidos.

6. No dia 07.12.2008, pelas 01h30m, no interior da residência supra referida, na sequência de discussão originada pelo facto de alegadamente a arguida S...ter recebido mensagens ameaçadoras provenientes do telemóvel do namorado da arguida V…, a arguida S...empurrou a sua filha V...contra a marquise e para o interior da arrecadação e deu-lhe bofetadas, com o que causou dores nesta.

8. A arguida S...agrediu também o seu filho B... com uma esfregona nas costas e empurrou-o, sem que contudo lhe tenha provocado lesões visíveis.

9. Ao mesmo tempo, dirigindo-se-lhe, dizia que era um “bardino”, “um filho da puta”, um “cabrão”, “que deveria estar no tratamento psiquiátrico e que “não descansava enquanto o mesmo não fosse para um reformatório”.

10. Na altura em que as arguidas S...e V...discutiam uma com a outra de frente a frente, o arguido B... colocou-se no meio delas e apenas com a finalidade de evitar que a S...agredisse a V...empurrou a arguida S....

11. Na sequência de tal conduta da arguida S..., a arguida V...e o arguido B... foram pernoitar na casa da já mencionada vizinha E....

12. No âmbito daquela discussão, os arguidos V...e B... disseram à arguida S...que era uma má mãe e que ia morrer sozinha.

13. Com as actuações agressivas acima descritas, a arguida S...causou dores no corpo dos arguidos V...e B....

14. Ao proferir as expressões acima referidas, sabia a arguida S...que dirigia ao arguido B... palavras ofensivas da sua honra e consideração pessoal, fazendo-o sentir humilhado e triste.

15. Sabia bem a arguida S...o que estava a fazer e nada a obrigava a adoptar esse comportamento.

16. Ao actuar da forma descrita, bem sabia a arguida S...que infligia maus tratos ao arguido B... e que, assim, o molestava física, moral e psicologicamente, o que fez através do uso da violência física e verbal, como forma de levar por diante a sua vontade, com total indiferença para com o dever de respeito que devia ser devido ao referido menor B....

17. A arguida S...agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo as suas condutas censuráveis, proibidas e punidas criminalmente.

18. Ao empurrar a arguida S..., o arguido B... agiu livre e conscientemente, mas apenas e tão só com a finalidade de obstar a que a arguida S...agredisse a arguida Verónica.

19. A arguida S...aufere mensalmente cerca de €600 e vive com um companheiro, em casa de renda mensal de cerca de €350.

20. O arguido B... aufere mensalmente cerca de €560 e vive com os avós.

21. A arguida V...frequenta o 12.º ano de escolaridade, não exerce actividade remunerada e é sustentada pelos seus avós e, por alguns, é tida como rapariga bem comportada.

22. Nenhum dos arguidos tem antecedentes criminais.


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Factos não provados:

Não se provaram outros factos constantes da acusação que estejam em contradição com os assentes e que tenham relevância para a decisão da causa, designadamente:

- O arguido B... residia conjuntamente e com sua mãe e com a arguida V...na Rua…, em Aveiro, embora desde muito pequeno, por grandes temporadas, vivesse com os avós maternos;

- O relacionamento entre a arguida S...e o arguido B... nunca foi bom, porquanto a primeira, quando o segundo não ficava na casa com os avós, deixava-o frequentemente em casa de uma vizinha de nome E...;

- que a arguida V... tenha deficiências a nível de audição e de visão;

- que as discussões tornaram-se mais frequentes a partir do momento em que a arguida S...conheceu o seu companheiro P...;

- que naquele dia 07.12.2008 a arguida S...também tivesse torcido o braço direito da sua filha V…;

- que a V...tivesse sofrido nódoas negras na perna direita e dores na coluna vertebral;

- que a arguida S...chamou ainda a sua filha V...de “puta” e disse-lhe que “não valia nada como filha e que “não descansava enquanto não a visse mal”;

- que a arguida S...tivesse colocado os seus filhos acima mencionados fora de casa;

- que na sequência de tal conduta da arguida S..., a arguida V...teve que sair daquela residência apenas com a roupa que tinha no corpo;

- que ao proferir as expressões acima referidas, sabia a arguida que dirigia à arguida V...palavras ofensivas da sua honra e consideração pessoal, fazendo-a sentir humilhada e triste;

- que os arguidos V...e B... tivessem dito à sua mãe S...que era uma vaca e uma puta.

- que quando levou o empurrão do B..., a S...veio a cair de costas contra a maçaneta da porta.

- que a arguida V...empurrou a sua mãe S...por diversas vezes, puxou-lhe os cabelos, esbofeteou-a por duas vezes e com o tacão do sapato, bateu-lhe com o mesmo no pé direito, vindo a provocar-lhe a fractura do dedo grande do pé direito;

- que a arguida V...tivesse provocado ferimentos na S....


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À alteração da matéria de facto, nos pontos assinalados, foram determinantes os fundamentos que, casuisticamente, em sede própria, ficaram expostos.

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6. Verificação do crime de violência doméstica:
Como demonstraremos já de seguida, afigura-se-nos não estar preenchido o tipo objectivo do crime de violência doméstica imputado à  arguida S... e pelo qual foi condenada em 1.ª instância.

O facto previsto na lei como crime diz-se consumado quando tiverem sido praticados os actos de execução que realizam e integram os elementos constitutivos do tipo legal de crime, produzindo as consequências previstas que preenchem o respectivo tipo; a consumação é a execução acabada e completa e a integração por inteiro dos elementos do tipo objectivo, a que pertencem sempre, além da menção do sujeito activo, a descrição de uma acção típica com a indicação do resultado (nos crimes de resultado) ou com a simples descrição da actividade (nos crimes de mera actividade)[3].

«O crime consumado é o crime «perfeito», o crime realizado; o crime realiza-se completamente, o facto criminoso preenche o tipo legal do crime, ou seja, o facto concreto corresponde ao modelo de comportamento típico que o tipo representa. O conceito de crime consumado é um conceito formal: corresponde à realização plena do tipo legal; termina o iter criminis. O crime está consumado quando se reúnam todos os elementos da sua definição legal»[4].

O crime de maus tratos/violência doméstica, com excepção dos casos em que se realiza através de um único comportamento e que em devido tempo serão objecto de análise, pressupõe uma reiteração das condutas que preenchem o respectivo tipo objectivo e que são susceptíveis de integrar, quando singularmente consideradas, outros tipos de crime: nomeadamente, injúria, ofensa à integridade física, ameaça e sequestro simples [os crimes de ofensa à integridade física grave ou de sequestro agravado são puníveis, por força da regra da subsidiariedade, pelas respectivas incriminações (artigos 144.º e 158.º, n.ºs 2 e 3, ambos do Código Penal)] .

De acordo com a razão de ser da estrutura normativa do crime do artigo 152.º, do CP [versão do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, com as alterações que sucessivamente foram introduzidas pelas Leis 65/98, de 2 de Setembro, 7/2000, de 27 de Maio, e 59/2007, de 4 de Setembro], as condutas que integram os respectivos tipos-norma não são autonomamente consideradas enquanto, eventualmente, integradoras de um ou diversos tipos de crime; são, antes, valoradas globalmente na definição e integração de um comportamento repetido revelador de um crime de maus tratos (lei antiga) ou violência doméstica (lei nova).

Neste contexto, entre o crime do artigo 152.º e os crimes que atomisticamente correspondem à realização repetida de actos parciais estabelece-se uma relação de concurso aparente, deixando de ter relevância jurídico-penal autónoma os comportamentos que integram a prática do crime de maus tratos/violência doméstica.

Como é dito no Acórdão da Relação do Porto de 05-11-2003[5], o crime de maus tratos inclui na sua descrição típica uma pluralidade de actos parciais.

«A execução é reiterada quando cada acto de execução sucessivo realiza parcialmente o evento do crime; a cada parcela de execução segue-se um evento parcial. Porém, os eventos parcelares devem ser considerados como evento unitário. A soma dos eventos parcelares é que constitui o evento do crime único».

Tratando-se de um crime único, embora de execução reiterada, a consumação do crime de maus tratos/violência doméstica ocorre com a prática do último acto de execução.

No caso dos autos, decorrendo dos factos dados como provados pelo tribunal da 1.ª instância que o último acto singular se verificou em 7 de Dezembro de 2008 (cfr. ponto 6 do acervo factológico provado), a existência do crime deve/tem de ser indagada à luz do tipo definido no artigo 152.º do Código Penal revisto pela Lei n.º 59/2007.
Dispõe esse normativo:
«1 – Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 – No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
(…)».
O artigo acabado de citar tutela a protecção da saúde, bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, o qual pode ser ofendido por toda a multiplicidade de comportamentos que afectam a dignidade pessoal da vítima[6].
Assim, não é suficiente qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, para o preenchimento do tipo legal.
«O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à degradação pelos maus-tratos»[7].
Trata-se de um crime específico, que impõe ao agente uma determinada relação com o agente passivo, e de execução não vinculada, podendo os maus tratos físicos e psíquicos consistir nas mais variadas acções ou omissões.
Seguindo a corrente jurisprudencial maioritária e mais recente dos nossos tribunais superiores, à realização do crime de maus tratos (lei antiga) não bastava, por regra, uma acção isolada do agente, sendo necessária uma acção plúrima e reiterada, com uma proximidade temporal entre os vários actos ofensivos, embora não se exigisse uma situação de habitualidade.
Todavia, a regra era excepcionada pela verificação de uma única acção agressiva se ela fosse suficientemente grave para afectar de forma marcante a saúde física, emocional ou psíquica da vítima.
Em suma, para a realização do crime era necessário, pois, que o agente reiterasse o comportamento ofensivo, em determinado período de tempo, admitindo-se, porém, que um singular comportamento bastaria para integrar o crime quando assumisse uma dimensão manifestamente ofensiva da dignidade pessoal do cônjuge ou equiparado[8].
É também esta a orientação que subjaz à configuração típica do novo artigo 152.º, resultante da reforma introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, sendo que o inciso da nova lei «de modo reiterado ou não» não deixa agora qualquer dúvida quanto à posição firmada pelo legislador de pôr cobro ao dissídio doutrinal e jurisprudencial sobre a existência ou não da reiteração como elemento objectivo típico de verificação necessária, exigindo o tipo de crime, epigrafado de «violência doméstica», a prática reiterada de actos ofensivos consubstanciadores de maus tratos ou, então, um único acto ofensivo de tal intensidade, ao nível do desvalor, da acção e do resultado, que seja apto e bastante a lesar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana[9].
No que concerne à reiteração, o critério de interpretação há-de assentar num conceito fáctico e criminológico que dê lugar a um estado de agressão permanente por parte do sujeito activo, sem que as agressões tenham de ser constantes, embora com uma proximidade temporal relativa entre si.
«É o estado de agressão permanente que permite concluir pelo exercício de uma relação de domínio ou de poder, proporcionada pelo âmbito familiar ou quase-familiar, deixando a vítima sem defesa numa situação humanamente degradante»[10].
Revertendo ao caso dos autos, dizem-nos os factos provados que, no Verão de 2007, a arguida S...levou o seu filho B... para a noite e, enquanto esta foi ter um relacionamento amoroso, deixou o menor na mala de uma carrinha de marca Kangoo, tendo a referida E... diligenciado pela sua recolha.
Contudo, não nos revelam estes factos em que específicas condições B... foi deixado na dita carrinha. Se contra sua vontade, se fechado no seu interior, sem possibilidade de sair, e por quanto tempo, etc.
Mais se extrai dos factos provados que, na sequência de uma discussão, no interior da residência das arguidas S...e Verónica, a primeira agrediu B..., seu filho, com uma esfregona, e, ao mesmo tempo, lhe chamou “bardino”, “filho da puta”, cabrão”, acrescentando que deveria estar em tratamento psiquiátrico e que não descansava enquanto o visado não fosse para a um reformatório. 
Sem curar de saber, porque irrelevante, se os dois episódios ora referidos assumem, conjugadamente ou de per si, um grau de intensidade do desvalor, da acção e do resultado, incompatível com a dignidade da pessoa humana, é manifesto não estar preenchido o tipo objecto de crime de maus tratos imputado à arguida.
Efectivamente, o preceito do alínea d) do n.º 1 do artigo 152.º do CP exige que o agente passivo do crime seja pessoa particularmente indefesa, em razão da idade (segmento típico que ao caso concreto interessa) e, concomitantemente, coabite naturalisticamente com o agressor, ou seja, vivam ou e outro na mesma casa, ainda que num vínculo relacional mínimo na partilha de um espaço de habitação comum[11].
Sindicada de novo a matéria de facto provada, dela resulta impressivamente que B... não coabitava com sua mãe, a arguida S..., desde tenra idade, mas sim com os avós maternos.
A par, afigura-se-nos, não estarmos em presença de pessoa particularmente indefesa, ou seja, especialmente frágil ou vulnerável.
B... tinha, à data dos factos juridicamente relevantes, descritos nos n.ºs 8 e 9 dos factos dados como provados, quase 16 anos de idade e, como já ficou dito, não mantinha relações de convívio com sua mãe, não sendo boas as relações entre ambos. Daí que, não se vislumbre, ainda que por razões de menor afectividade e psicológicas, o referido elemento típico.
Uma questão se pode colocar.
Independentemente do que ficou dito, poder-se-á ter por verificado, autonomamente, o tipo agravado do n.º 2 do artigo 152.º?
A resposta só pode ser negativa.
O tipo de violência doméstica está normativamente definido no n.º 1 do artigo 152.º, que delimita, nas suas diversas alíneas, com inclusão da alínea d), o âmbito dos sujeitos passivos do crime.
Dito de outro modo, o n.º 2 está vinculado ao preenchimento dos elementos do n.º 1, delimitadores do tipo objectivo do crime de violência doméstica. Assim, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais «no domicílio comum  ou no domicilio da vítima» só preencherá o crime de violência doméstica agravado se a vítima estiver incluída no domínio dos sujeitos passivos descritos no n.º 1. O mesmo sucede quanto à prática dos factos na presença de menor.
A título de exemplo, maus tratos de diversa ordem, na presença «de menor» ou «no domicilio da vítima», mas sem que esta seja cônjuge ou ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com que o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação ou, progenitor de descendente comum em 1.º grau, não terão potencialidade para integrar a agravação do n.º 2.
A previsão da alínea d) do n.º 1 tutela pessoas particularmente indefesas, isto é, para além de outras situações, aquelas que se encontram numa situação de particular fragilidade devido à sua idade precoce como avançada.
Também aqui, como nos outros casos geralmente previstos, acima exemplificamente demonstrados, sendo sujeito passivo um menor, para o preenchimento da agravação contida no n.º 2 teremos de passar pelo crivo do tipo objectivo do artigo 152.º, n.º 1, alínea d), sendo de exigir, consequentemente, maus tratos infligidos a menor particularmente indefeso que coabite com o agressor.
Em síntese conclusiva: a agravação do n.º 2 pressupõe sempre a ocorrência de violência doméstica, na concepção tipificadora do n.º 1 do artigo 152.º do Código Penal.

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Tendo a arguida ofendido o corpo de B..., há que ver agora se a conduta da arguida preenche, nesta parte, o crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. no artigo 145.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.

Estatui este normativo:

«1 – Se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido:

a) Com pena de prisão até quatro anos no caso do artigo 143.º.

b) (…).

2 – São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132».

Uma dessas circunstâncias é justamente a previstas na al. a) daquele n.º 2 e consiste, no que ora interessa considerar, em o agente activo ser ascendente da vítima.

Na descrição típica do citado art. 145.º, o legislador, tal como no homicídio, optou pela técnica dos exemplos-padrão.
O legislador, com as circunstâncias que enunciou no n.º 2 do art. 132.º do CP, veio fornecer ao juiz, se bem que exemplificativamente e de aplicação não automática, elementos que, em regra, tipicamente, indiciariamente, denunciam uma especial censurabilidade ou perversidade do agente, num tipo de culpa muito mais desvalioso do que a que presidiu à formulação do tipo-base, seja do homicídio simples, seja da ofensa à integridade física. É, por isso, certo que a existência, no caso, de alguma das circunstâncias aí referidas não conduzem necessariamente à especial censurabilidade ou perversidade da cláusula geral do n.º 1, como é também certo que outras circunstâncias não catalogadas podem conduzir a tal censurabilidade, o que, porém, não significa que as circunstâncias não previstas possam ser descobertas discricionariamente pelo julgador. Ainda então, como nos parece correcto, tendo presente que se está perante uma moldura penal agravada, em conexão com os princípios da legalidade e do Estado de direito, a relação do juiz não se estabelece com o n.º 1 do art. 132.º sem mediação do seu n.º 2.

Como escreve o Prof. Jorge de Figueiredo Dias[12], «O legislador português seguiu, em matéria de qualificação do homicídio, um método de combinação de um critério generalizador, determinante de um especial tipo de culpa, com a técnica chamada dos exemplos-padrão. A qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: a «especial censurabilidade ou perversidade» do agente; verificação indiciada por circunstâncias ou elementos uns relativos ao facto, outros ao autor. Elementos estes assim, por um lado, cuja verificação não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação; e cuja não verificação, por outro lado, não impede que se verifiquem outros elementos substancialmente análogos aos descritos e que integrem o tipo de culpa qualificador. Deste modo devendo afirmar-se que o tipo de culpa supõe a realização dos elementos constitutivos do tipo orientador, que resulta de uma imagem global do facto agravada correspondente ao especial conteúdo de culpa tido em conta no art. 132.º, n.º 2».

Porém, a especial censurabilidade ou perversidade do agente relativamente ao crime em apreço - ofensa à integridade física qualificada - conquanto seja susceptível de revelação, entre outras, de qualquer uma das circunstâncias previstas no n.º 2 do art. 132.º do CP, como expressamente estabelece o n.º 2 do art. 145.º do mesmo diploma, terá de ser apreciada em função do concreto bem jurídico tutelado (integridade física) e não do bem jurídico tutelado pelo art. 132.º (vida humana).

Daí que, para que se justifique a agravação de tal comportamento delitivo, forçosamente terá que haver algo mais que transcenda o campo de “ofender a integridade física”, dado que essa realidade já se mostra contemplada no tipo fundamental do art. 143.º, n.º 1, do CP.

Na situação dos autos, ficou demonstrado que a agressão praticada pela arguida surgiu na sequência de uma discussão generalizada, onde intervieram os três arguidos dos autos.

A ofensa praticada pela arguida foi manifestamente leve, dela não tendo resultado para a vítima qualquer lesão.

Obviamente que a conduta da arguida não pode deixar de ser censurável. Porém, em face do quadro atrás traçado, não poderemos deixar de convir que não ocorre falar no caso presente de especial censurabilidade ou perversidade.

Deste modo, o crime que o arguido cometeu é tão só o de ofensa à integridade física simples, previsto no referido art. 143.º, n.º 1 do CP, já que estão preenchidos os respectivos tipos objectivo e subjectivo, porquanto a arguida S...ofendeu o corpo de seu filho B..., agindo com o intuito conseguido de o molestar fisicamente, não obstante saber que a sua conduta não era permitida por lei.

Na presente situação, não se torna necessário o cumprimento do disposto no artigo 424.º, n.º 3, do CPP, uma vez que a alteração jurídica que se regista é para um infracção que representa um minus relativamente à da acusação, sucedendo que o arguido teve conhecimento de todos os elementos constitutivos do novo crime e a possibilidade de exercer em plenitude o contraditório[13].


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No que tange aos factos consubstanciadores do crime de injúria, falta um pressuposto objectivo da punição traduzido na não dedução de acusação particular, em conformidade como o disposto no artigo 50.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).

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No que diz respeito ao ponto 4.º da matéria de facto provada, é insusceptível de preencher sequer o tipo objectivo do crime de sequestro simples, p. e p. pelo artigo 158.º, n.º 1, do Código Penal, por carecer de demonstração absoluta a privação de liberdade do menor B....

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7. Das consequências jurídicas dos crimes:

Os crimes de ofensa à integridade física simples cometidos pela arguida S..., tendo por vítimas seus filhos B... e V... são punidos, com pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias.

Cabe, assim, previamente, analisar, no seguimento da orientação inserta no art. 70.º do Código Penal, se será de dar preferência à pena de multa em detrimento da pena de prisão.

O critério legal a seguir é simplesmente este: o tribunal deve preferir à pena privativa de liberdade uma pena alternativa (de multa) sempre que verificados os respectivos pressupostos de aplicação, a pena alternativa se revele adequada e suficiente à realização das finalidades da punição.

O que o mesmo é dizer que a aplicação de uma pena alternativa à pena de prisão, no caso a pena de multa, depende tão somente de considerações de prevenção especial, sobretudo de prevenção especial de socialização, e de prevenção geral sob a forma de satisfação do «sentimento jurídico da comunidade».

«...Sendo a função exercida pela culpa, em todo o processo de determinação da pena, a de limite inultrapassável do quantum daquela, ela nada tem a ver com a questão da escolha da espécie da pena. Por outras palavras: a função da culpa exerce-se no momento da determinação quer da pena de prisão..., quer da medida da pena alternativa...» [14].

Mais adiante, na obra citada, § 500, pág. 333, escreve o mesmo ilustre professor:

«Em primeiro lugar, o tribunal só deve negar a aplicação de uma pena alternativa...quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquela pena; coisa que só raramente acontecerá se não se perder de vista o...carácter criminógeno da prisão, em especial da de curta duração.

A prevenção geral «deve surgir aqui unicamente sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico..., como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização. Quer dizer: desde que impostas ou aconselhadas à luz de exigências de socialização, a pena alternativa...só não será aplicada se a execução da prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias».

O quadro factológico provado não aponta minimamente no sentido de a arguida estar carecida de socialização, a concretizar através da aplicação de pena privativa de liberdade.

Na vertente das exigências de prevenção geral, também não se vislumbra que a preferência pela pena de multa abale o reforço da consciência jurídica comunitária e o sentimento de segurança face à violação da norma violada. A ausência de antecedentes penais leva à conclusão de a conduta da arguida ter radicado numa situação de mera ocasionalidade, num contexto de conflitualidade entre esta e os seus dois filhos, B... e Verónica.

Crê-se, por isso, que a pena de multa realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, cabendo de imediato proceder à sua determinação concreta.

Preceitua o art. 40.º, do Código Penal, que «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (n.º 1), sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» (n.º 2).

O art. 71.º do mesmo diploma, estipula, por outro lado, que «a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção» (n.º1), atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele (n.º 2 do mesmo dispositivo). 

Dito de uma outra forma, a função primordial de uma pena, sem embargo dos aspectos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos incidentes sobre bens jurídicos penalmente protegidos.

O seu limite máximo fixar-se-á, em homenagem à salvaguarda da dignidade humana do condenado, em função da medida da culpa revelada, que assim a delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que social e normativamente se imponham.

O seu limite mínimo é dado pelo quantum da pena que em concreto ainda realize eficazmente essa protecção dos bens jurídicos.

Dentro destes dois limites, situar-se-á o espaço possível para resposta às necessidades da reintegração social do agente.

Assim, ponderando:

- A não despicienda gravidade da violação jurídica em que a arguida incorreu, por as agressões terem sido perpetrada contra seus filhos;

- a reduzida gravidade das referidas lesões;

- O motivo determinante das condutas, conexionadas com a degradação da relação familiar;

- O acentuado conhecimento e intensidade da vontade no dolo (directo) revelado;

- A ausência de antecedentes penais por parte da arguida;

- A condição pessoal da arguida e a sua situação económica, acima descritas;

julgamos adequada, para cada um dos crimes, a pena de 120 dias de multa, à razão diária de € 6 (a fixação do quantum diário da multa teve também em conta o disposto no artigo 47.º, n.º 2, do CP).


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A moldura abstracta da pena do concurso tem como limite máximo a soma das penas de multa concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 900 dias de multa, e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos crimes em causa (art. 77.º, n.º 2 do CP).
Dentro da moldura encontrada, é determinada a pena do concurso, para a qual a lei estabelece que se considere, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (art. 77.º, n.º 1, do CP), sem embargo, obviamente, de ter-se também em conta as exigências gerais da culpa e da prevenção a que manda atender o art. 71.º, n.º 1 do CP, bem como os factores elencados no n.º 2 deste artigo, referidos agora à globalidade dos crimes.

Essencial na formação da pena conjunta é a visão de conjunto, a eventual conexão dos factos entre si e a relação «desse bocado de vida criminosa com a personalidade». A pena conjunta deve formar-se mediante uma valoração completa da pessoa do autor e das diversas penas parcelares.

Será, deste modo, o conjunto dos factos que fornece a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique.

Na avaliação da personalidade – unitária – do agente, reproduzindo as palavras autorizadas do Prof. Figueiredo Dias[15], «revelará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade; só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta».

No fundo, é todo um processo de socialização e de inserção, ou de repúdio, pelas normas de identificação social e de vivência em comunidade que deve ser ponderado.

Seguindo o mesmo autor, de grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).

Um dos critérios fundamentais reportado à globalidade dos factos assenta na determinação da intensidade da ofensa e dimensão do bem jurídico ofendido, sendo inquestionável que assume um significado profundamente diferente a violação repetida de bens jurídicos de natureza pessoal ligados ao núcleo de bens essenciais em relação à ofensa de outros valores de menor dimensão ético-jurídica[16].
Vistos estes postulados, no caso, não é elevada a gravidade do ilícito global, aferida em função da própria natureza dos crimes cometidos e do específico circunstancialismo em que os mesmos ocorreram.

Acresce ainda que, no contexto da personalidade unitária da arguida, os elementos conhecidos permitem dizer que a globalidade dos factos não é reconduzível a um desvalor que radica numa personalidade manifestamente desconforme aos valores sociais que o direito penal tutela, ainda que no domínio da protecção da saúde e integridade física.

Pelo que fica exposto, reputamos como justa e adequada a pena única de 160 dias de multa, à razão diária de € 6.


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8. Da responsabilidade pelas custas:
Face à parcial improcedência do recurso, o arguido é responsável pelo pagamento de custas, ao abrigo do disposto nos arts. 513.º, n.º 1 e 514.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal e arts. 82.º, n.º 1 e 87.º, n.ºs 1, al. b), e 3, do Código das Custas Judiciais.

Tendo em conta a complexidade do processo e a condição económica da arguida, fixa-se a taxa de justiça em 2 UC.



III - Dispositivo:

Posto o que precede, os Juízes que compõem a 5.ª secção criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra concedem provimento parcial ao recurso e, em consequência, revogando a decisão de 1.ª instância, decidem:

- Absolver a arguida S... da prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea d), e 2, do Código Penal, que lhe está imputado;

- Condenar a arguida S..., pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física simples (perpetrados, um, na pessoa de B..., e o outro, na vítima V...), p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, nas penas de 120 (cento e vinte) dias de multa, à razão diária de € 6, cada um dos crimes, e na pena única de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à referida razão diária.

Custas pela arguida, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC.

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(Processado e integralmente revisto pelo relator, o primeiro signatário)

Coimbra, 15 de Dezembro de 2010
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(Alberto Mira)

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(Elisa Sales)


[1] Teresa Beleza, O Valor Probatório do Depoimento de Co-Arguido no ProcessoPenalPortuguês, Revista do Ministério Público, Ano 19.º, Abril/Junho-1998, págs. 39 e ss., Medina Seiça, O Conhecimento Probatório do Co-Arguido, Coimbra Editora, 1999; e o Acórdãos do STJ de 22-06-2006, proc. n.º 06P1426, e de 12-07-2006, proc. n.º 06P1608, ambos publicados em www.dgsi.pt. 
[2] Curso de Processo Penal, vol. 1, 1981, pág. 292.
[3] Cfr. Acórdão do STJ de 04-06-2003, processo n.º 03P1528, publicado no sítio www.dgsi.pt.
[4] Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, Editorial Verbo, 1998, pág. 235/236.
[5] Publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano XXVIII, tomo V/2003, pág. 220/230.
[6] Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, pág. 332, a propósito do crime de maus tratos na lei antiga. No mesmo sentido, no domínio da lei nova, Plácido Conde Fernandes, Violência Doméstica, Novo quadro penal e processual penal, Revista do CEJ, n.º 8, 1.º semestre, pág. 305.
[7] Plácido Conde Fernandes, idem, pág. 305.
[8] Neste sentido, v.g., o Acórdão do STJ de 06-04-2006, Colectânea de Jurisprudência, Ano XIV, Tomo II, pág. 166 e ss., e os diversos arestos no mesmo referidos; Acórdão da Relação do Porto de 29-09-2004, Colectânea, Ano XXIX, tomo IV, pág. 210 e ss.; Acórdãos da Relação de Lisboa de 13-01-2004 (proc. 7506/2003-5) e da Relação de Coimbra de 13-06-2007 (proc. 426/05.3GAMMV.C1) e 26-06-2007 (proc. 256/05.2GCAVR.C1), estes publicados, em texto integral, no sítio www.dgsi.pt. 
[9] Cfr. Plácido Conde Fernandes, ibidem, pág. 308.
[10] Cfr. Plácido Conde Fernandes, ob. cit., pág. 306/7.
[11] Cfr. Plácido Conde Fernandes e Teresa Pizarro Beleza, ainda a mesma obra, pág. 313 e 283, respectivamente.
[12] Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, 1999, I, 25-26.
[13] Cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal, anotado e comentado, 15.ª edição, p. 696, nota 3. Em casos similares, vejam-se ainda os Acórdãos do STJ de 02-05-2002, 07-11-2002, 06-04-2006, 14-06-2006 e 31-10-2007, todos publicados, em sumário ou texto integral, em www.dgsi.pt.
[14] Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, As consequências Jurídicas do Crime, § 497 e 499, págs. 331 e 332.
[15] Direito Penal Português - Parte Geral II - As Consequências Jurídicas do Crime, ed. Aequitas - Editorial Notícias - 1993, § 421, págs. 291 e 292.)
[16] Cfr. acórdão do STJ de 11-02-2009, proc. n.º 08P4131, publicado em www.dgsi.pt, que de muito perto vimos seguindo.